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academia
Senso Incomum
Quais são os limites do Poder Judiciário? (parte 1)
Esta coluna é necessária. Sabemos que advocacia é para os fortes, como se diz. Stoic mujic (ver aqui). Mas deve haver um limite. Uma fronteira. O caso que vou contar a seguir exigiria, metaforicamente, uma "CPI hermenêutica". O ponto é: quais são os direitos das partes e dos advogados nesse sistema de justiça que se estabeleceu no Brasil? Todos os dias embargos são aniquilados com recorta e cola. Por mais omissa e contraditória que seja a decisão, as decisões obedecem a um padrão: negar os embargos. Afinal, como ousa a parte dizer que uma decisão se omitiu, é contraditória ou obscura? E se a parte interpuser outros embargos, leva multa. Ou não tem sido assim? E quando a coisa aperta, diz-se que há processos em demasia e lá vem jurisprudência (mais) defensiva (ainda). Mas isso é só a ponta do iceberg. De novo: qual é o limite do poder judicial? Essa pergunta é revestida de grande dimensão simbólica. Qual é o papel da doutrina em um país continental como o Brasil? Só os tribunais cuidam do direito? É deles o monopólio de dizer o direito? Para falar disso farei uma crítica lhana e sofisticada. Usarei a teoria do direito. Com efeito. Uma crítica que Dworkin faz ao positivismo é dizer que é criterialista. Talvez seja difícil explicar o que é esse conceito. Mas no Brasil ninguém morre de tédio e funciona como um laboratório para explicar coisas antes mesmos que tenham nome próprio. Pois o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) acaba de dar uma "aula" de criterialismo (Recurso: 0000918-66.2021.8.16.0092/3). Determinado cidadão ingressou com recurso especial e, horas depois — e na mesma data — interpôs recurso extraordinário. Sim, horas depois. Para surpresa, o TJ-PR inadmitiu o recurso extraordinário porque não foi interposto "simultaneamente". Afinal, diz a decisão, "A violação constitucional ocorrida no julgamento efetuado pelo tribunal local deve ser impugnada mediante recurso extraordinário interposto simultaneamente ao recurso especial, sob pena de preclusão" (RE 915324 AgR). Mais: "Nos termos da jurisprudência do Supremo, somente é possível o envio dos autos ao Superior Tribunal de Justiça para que processe a demanda, quando não há interposição simultânea dos recursos extraordinário e especial" (RE 1288529 ED-AgR-ED). Pergunto: quem foi o estagiário quem fez o esboço do voto? Ou o assessor? Para começar, o STF nunca disse que tinham que ser interpostos no mesmo segundo. No mesmo instante. Aliás, como seria isso? Mais ainda, para piorar a situação, a decisão do TJ-PR violou o artigo o artigo 1.031, caput do CPC, que diz que, na hipótese de interposição conjunta de recurso extraordinário e recurso especial, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça. Alguém leu "simultaneamente"? Bastava um google. O estagiário poderia fazer isso. O assessor também, para não colocar sua chefia em uma fria. Veja o resultado de um simples google: "AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. [...] tem a parte recorrente o prazo simultâneo de 15 (quinze) dias para a interposição tanto de recurso extraordinário, como de recurso especial, sendo que a segunda impugnação não fica preclusa caso manejada em data posterior àquela em que protocolizada a primeira, desde que respeitado o interregno legal. ANTE O EXPOSTO, dou provimento ao agravo e determino, por conseguinte, sua conversão em recurso especial." (STJ - AREsp: 2126023 GO 2022/0138038-5). Parece incrível (ou crível) que, nesta quadra da história, tenhamos chegado ao ponto máximo do positivismo jurídico (não no sentido que o senso comum pensa, é claro — positivismo é um conceito sofisticado). Refiro-me às críticas feitas ao positivismo no sentido de que é convencionalista e criterialista. O caso do TJ-PR é um exemplo paradigmático que mostra como a mentalidade dogmática-tribunalícia que vigora no Brasil é convencionalista, criterialista: trata o direito, que é um fenômeno essencialmente interpretativo, como se fosse criterial, como se seus conceitos fossem criteriais. O que é "simultaneamente"? No caso, a coisa é até mais simples: a palavra "simultaneamente" foi inventada, fruto de uma "convenção". Não consta no CPC! Mesmo que o STF a tenha usado, não o fez no sentido que a ela foi dada pelo TJ-PR. Isto é, no caso do TJ-PR, o criterialismo é ad hoc: definem-se na hora os critérios semânticos para aplicação criterial de um conceito e pronto. Quem define talvez seja o estagiário. Isto tem nome: realismo (que no Brasil é retrô): direito é o que o Judiciário diz que é. E contra legem. Porque a própria decisão sobre os recursos viola o CPC, ensejando, ela mesma, um recurso especial por violação da lei que lhe dá direito aos recursos. Paradoxalmente, um recurso especial contra negativa de vigência de dispositivo do CPC que trata dos recursos especiais e extraordinários. Se o papel da boa dogmática é o de, intersubjetivamente, construir os conceitos para uma interpretação correta — íntegra e coerente (e aqui estou usando termos do Código) da norma jurídica, permitam-me a pergunta: onde está a boa dogmática? Essa não é uma crítica. É um chamado. Como prometi, tratei do tema elegantemente e à luz da mais abalizada teoria do direito. Eu poderia ter feito de outro modo. Mas não é do meu feitio. Como sou lhano, faço como Guimarães Rosa: em vez de dizer que a água da cachoeira cai, prefiro "a cachoeira é barranco de chão e água se caindo por ele". Compreendem? Há vários modos de dizer as coisas. De todo modo, resta perguntar, com ou sem sofisticação na crítica: até quando os causídicos aguentarão? Numa palavra final: alguém pode dizer que a decisão do TJ-PR é um ponto fora da curva, assim como algumas tantas decisões monocráticas do STJ ou do STF. OK. Aceito o argumento. Todavia, com relação a ele, deixo sua avaliação aos causídicos de todo o Brasil. Afinal, posso estar equivocado. E tenho humildade científica para ser convencido do contrário. Numa palavra: até quando? Adendo: O IMPÉRIO DOS ENUNCIADOS E UM NOVO REALISMO Não vale ler este adendo sem ler a parte de cima da coluna. OK? O Brasil tem um tipo diferente, talvez híbrido, de realismo jurídico. Em vez de o direito é o que os tribunais dizem, tem também o direito que os fóruns de enunciados dizem que é. Têm tanto poder que fazem "novas leis" — e nada acontece. Querem ver? O Fonaje "promulgou" o enunciado 162, pelo qual "Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do artigo 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95"). Mas o que diz o artigo 38? A sentença mencionará os elementos de convicção do juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório. Segundo o Fonajef, isso dispensaria a aplicação do art. 489 do CPC. Quer dizer: para o Fonaje, trata-se de um direito à parte. Invocar precedentes, etc, é coisa para o "outro direito". Nos juizados vigora o direito... dos juizados. Pronto. Enquanto o CPC diz que não se considerará fundamentada qualquer decisão que — e aí o legislador coloca seis incisos, o Fonaje diz o contrário da lei. Simples assim. Ah, você, causídico, não concorda? Faça REsp. Poxa. Lamento. Não cabe REsp de decisão dos juizados. Mas, perguntaria o causídico recém derrotado: "- Mas eu invoquei, nos termos do CPC, art. 489, um precedente do próprio STJ e outro do STF". Lamento, nada há a fazer [1]. Eis o "sistema". De novo a pergunta de um milhão de CPCs e CPPs: "Até quando"? [1] Claro. Há casos teratológicos quem nem mesmo o "sistema" aguenta. Ou não dá conta. Há uma decisão interessante Iujef 200481100176162 que mostra isso. Vale verificar. O problema é que os juizados não obedecem a esse precedente. Porque não é necessário. E há ainda as súmulas. Isso fica para outra coluna. Há a possibilidade de RE. Afinal, o Fonaje ou correlatos ainda não tiveram a ousadia de elaborar um enunciado de matéria constitucional... Porém, como fazer "passar" um RE de decisão de juizado?
2023-04-27T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-27/senso-incomum-quais-sao-limites-poder-judiciario-parte
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Debate do momento
FGV produz estudo sobre responsabilização de plataformas digitais
Responsabilizar as plataformas digitais de modo progressivo e proporcional ao risco sistêmico dos conteúdos publicados é a proposta contida na petição protocolada no Supremo Tribunal Federal por professores e pesquisadores do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio), representando a Associação Brasileira de Centros de Inclusão Digital (ABCID). Na condição de petição de amicus curiae, o estudo analisou a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da responsabilidade das plataformas pelo conteúdo ilegal e que viola direitos de outros usuários nela veiculado e compartilhado em seus serviços. O pedido foi direcionado aos Recursos Extraordinários 1.057.258 e 1.037.396. A petição de amicus curiae é assinada pelos pesquisadores do CTS da FGV Direito Rio Yasmin Curzi e Walter Gaspar; e pelos professores da FGV Direito Rio André Mendes, Daniel Dias, Luca Belli e Nicolo Zingales. O STF reconheceu a repercussão geral do tema em análise nesses dois processos, que colocam em discussão a possibilidade de os provedores serem responsabilizados pelos conteúdos que os seus usuários publicam, bem como a sua remoção em casos de postagens que ataquem direitos fundamentais. O estudo indica que o artigo 19 do Marco Civil da Internet define uma regra geral que não reflete a evolução do ecossistema da internet na última década. Denota também que existe uma movimentação regulatória global marcada por uma abordagem progressiva, com a tendência de que se reconheçam e imponham crescentemente deveres de diligência mínima aos provedores cujo tamanho, funcionamento tecnológico e modelo de negócio são radicalmente diferentes do que caracterizava os provedores até o início da década de 2010. O Marco Civil da Internet foi aprovado em 2014. "Na realidade atual, uma interpretação e aplicação literal do artigo 19 do MCI representa uma restrição desproporcional de um amplo leque de direitos fundamentais em nome da liberdade de expressão e pode prejudicar, inclusive, o pleno gozo da liberdade de expressão por inúmeros grupos vulneráveis", diz o texto da petição. O trabalho dos pesquisadores fez um diagnóstico da evolução das plataformas digitais e dos aplicativos de redes sociais nas últimas duas décadas. De acordo com Luca Belli, que coordena o CTS da FGV Direito Rio, nos últimos 15 anos houve uma mudança substancial não apenas nas tecnologias adotadas pelas plataformas digitais, mas também na dimensão das corporações, que se tornaram megaplataformas e empresas de capital aberto, em um ambiente de concentração de mercado. Em um novo patamar, passaram a adotar técnicas de recomendação algorítmica e big data. E, desse modo, promovem conteúdos que maximizam, segundo o especialista, o alcance de conteúdos problemáticos, mas com maior potencial de engajamento, a despeito de seu impacto sobre o gozo dos direitos fundamentais dos usuários, uma vez que não existe nenhuma obrigação legal nesse sentido. "Se houvesse essa obrigação legal, as plataformas cumpririam. Mas, na ausência desse tipo de norma, a única obrigação que existe é maximizar os lucros dos acionistas a cada trimestre", observou Belli.  A solução apontada no levantamento é trabalhar com o artigo 19 do Marco Civil da Internet conforme a Constituição Federal, de maneira que a previsão de "danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros" seja interpretada restritivamente, protegendo apenas provedores que adotem a devida diligência, de acordo com seu próprio tamanho e capacidade, na proteção de direitos fundamentais. Isso implica particularmente a obrigação para grandes provedores de adotar medidas de moderação adequadas (sob pena de eventual responsabilização) quando há possibilidade de risco sistêmico, e a necessidade para todos os provedores de manter um canal de atendimento que garanta aos usuários um justo processo para eventuais reclamações. "Defendemos essa abordagem progressiva, pois já vimos que esse modelo de negócio das megaplataformas pode gerar o que se viu nos últimos anos: interferência nos processos democráticos, prejuízo aos direitos fundamentais e manipulação em massa", completou Belli. Com informações da FGV Direito Rio. Clique aqui para ler a íntegra do documento
2023-04-27T07:49-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-27/fgv-produz-estudo-responsabilizacao-plataformas-digitais
academia
Opinião
Hélio Roberto de Sousa: O círculo e a espiral hermenêutica
De início, é importante apontarmos a natureza ontológica da interpretação, qual seja a compreensão de algo, e isso requer uma análise mais analítica. Tanto na hermenêutica geral quanto na jurídica, deve-se atentar para a essência do que vem a ser compreender algo. Para tal, não se pode passar ao largo da construção trazida por Heidegger — sistematizada por Gadamer — quanto à árdua tarefa de se compreender o que vem a ser compreender. Segundo Eros Grau, o compreender é algo existencial, sendo, assim, experiência daquele que compreende [1]. Foi nessa odisseia filosófica (determinar o alcance e papel da compreensão para hermenêutica) que se cunhou a expressão círculo hermenêutico. Tomando o conceito de Heidegger, Gadamer afirma que, em outras palavras, a compreensão consiste em um movimento circular, a partir de uma retroalimentação interpretativa entre o intérprete e o objeto da interpretação [2]. Entender o conceito de círculo hermenêutico é de suma importância para a correta aplicação do Direito, máxime pela necessidade de esclarecer que o processo interpretativo vai muito além da mera subsunção de determinado texto normativo a uma situação posta. Nas palavras de Hassemer, enxergar a hermenêutica como mero ato de subsunção não passa de inocência [3]. Pois bem, segundo a ideia decorrente do círculo hermenêutico, a compreensão do texto parte de uma pré-compreensão do intérprete em direção ao objeto a ser interpretado, o que consiste em uma antecipação de sentido. Desta forma, esse sentido prévio do intérprete o aproxima do objeto a ser interpretado, sofrendo, simultaneamente, influência deste, protagonizando verdadeira valsa síncrona (por vezes assíncrona) de mútua influência, até que haja transformação recíproca (tanto no intérprete quanto no objeto) produtora da interpretação (compreensão). Nas palavras de Gadamer: "Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra por que lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto" [4]. Nesta linha, Hassemer afirma que "esse processo se desdobra com o tempo; envolve, portanto, o indivíduo com sua história de vida e o contexto das tradições sociais ('compreensão prévia')" [5]. Desta feita, é importante atentar para o fato de que, conforme se extrai do instituto do círculo hermenêutico, o processo de compreensão é dinâmico, não consistindo em mera contemplação do objeto pelo intérprete, mas sim em movimento do intérprete em relação ao objeto e da influência mútua entre eles. Apresentado, ainda que em apertadas linhas, o conceito de círculo hermenêutico, é necessário que avancemos no entendimento relacionado à mútua influência que ocorre entre intérprete e objeto, de modo a ratificarmos se a figura apresentada por Gadamer é a mais adequada para explicar tal fenômeno. Hassemer aduz que esse processo de mútua influência é melhor entendido a partir de uma espiral hermenêutica, superando, de certa forma, a figura do círculo hermenêutico vislumbrada por Gadamer. Nas palavras de Hassemer: "Puesto que no es contemplación (de un sujeto frente a un objeto), sino acercamiento en desarrollo, se produce de forma circular o, como hay que decir más correctamente, en forma de espiral: el sujeto y el objeto se acercan el uno al otro en el proceso de la comprensión, se presuponen mutuamente en los dife­rentes niveles de acercamiento" [6]. Ao se considerar que, inobstante o círculo hermenêutico traga em seu bojo teórico a concepção de movimento, bem verdade é que a figura apresentada (círculo) não consegue representar de forma completa esse movimento de retroalimentação. Entendo ser inadequado afirmar que ao se movimentar em direção ao objeto, impulsionado por sua pré-compreensão, e, após sofrer influência deste, o intérprete retorne ao mesmo ponto de partida. Por certo, este intérprete sofrerá a ação de força atrativa por parte do objeto, deslocando-o do ponto em que originariamente se encontrava na periferia do círculo, tornando, outrossim, incompleta a ideia do círculo hermenêutico. Neste cenário, mais apropriado seria dizermos que essa simbiose intérprete-objeto é melhor representada por uma espiral hermenêutica, como visualizado por Hassemer, ao ponto em que a cada ação que o objeto/intérprete venha a exercer sobre o outro, há mútua alteração do ponto em que estavam, gerando-se, portanto, trajetória condizente com verdadeira espiral, ou seja, uma espiral hermenêutica. Entender esse processo cognitivo como uma espiral hermenêutica faz fenecer a ideia de que o processo interpretativo é estático e que é possível encontrar um único conhecimento do direito, o que não quer dizer que as possíveis possibilidades sejam infinitas. Vale a pena, mais uma vez, recorrermos aos preciosos ensinamentos de Hassemer: "Este movimiento excluye la posibilidad de medir y comprobar la com­prensión acertada (el conocimiento “verdadeiro”). Ya que res e intellectus no se encuentran mutuamente en una relación estática de contempla­ción, sino en una relación dinámica de acercamiento, la “verdade” no puede ser adaequatio rei et intellectus, es más bien un fenómeno dialogal, consesual y procedimental" [7]. Entendo, portanto, que a melhor compreensão deste movimento, por vezes síncrono, por vezes assíncrono, que envolve intérprete e objeto, é ilustrada pela figura da espiral hermenêutica, o que não significa, repito, que há número indiscriminado de potenciais interpretações, já que o próprio enunciado normativo não pode ser elidido. Destarte, o mais apropriado seria falarmos em uma espiral hermenêutica contida na moldura interpretativa de Kelsen, sendo esta limitadora das potenciais resultantes interpretativas, sem que se anule o processo de mútua influência existente entre o intérprete e o objeto. Devemos, ainda, alçar a hermenêutica à posição de destaque na aplicação do Direito. Assim, a previsibilidade e confiabilidade da aplicação da norma pacificarão as insurgências do jurisdicionado. É necessário que se faça um apelo, portanto, à sã aplicação da hermenêutica, tão essencial à melhor aplicação do Direito, o que gerará previsibilidade, cientificidade e tecnicidade ao manuseio da norma jurídica. Ao se compreender a relação intérprete-objeto, pode-se melhor entender que a arte interpretar não é trivial, e nem poderia ser. A correta compreensão do círculo e da espiral hermenêutica é divisor de águas na interpretação e aplicação do Direito, fato este que não se pode passar ao largo por aqueles que, de forma sincera, buscam a melhor mais excelente aplicação do Direito. [1] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 101. [2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 75. [3] HASSEMER, Winfrield. Hermenéutica y Derecho. Anales de la Cátedra Francisco Suarez 25. Universidad de Granada, 1985. p. 80. [4] GADAMER. Op cit., p. 75. [5] HASSEMER. Op cit., p. 79. [6] Ibid., p. 79. Tradução livre: Por não ser uma contemplação (de um sujeito diante de um objeto), mas uma abordagem em desenvolvimento, ela se dá de forma circular ou, como se deve dizer mais corretamente, em forma de espiral: o sujeito e o objeto aproximando-se uns dos outros no processo de compreensão, eles pressupõem um ao outro em diferentes níveis de abordagem. [7] Ibid., p. 79. Tradução livre: Este movimento exclui a possibilidade de medir e verificar a compreensão correta (conhecimento "verdadeiro"). Uma vez que res e intellectus não se encontram em uma relação estática de contemplação, mas em uma relação dinâmica de abordagem, a "verdade" não pode ser adaequatio rei et intellectus, é antes um fenômeno dialógico, consensual e procedimental.
2023-04-28T19:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-28/helio-roberto-sousa-circulo-espiral-hermeneutica
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Diário de Classe
A secularização do teológico e a tradição jurídica ocidental
Durante muito tempo predominou entre renascentistas e iluministas uma leitura equivocada sobre o período da Idade Média, sendo este definido muitas vezes como a idade das trevas. Dentro desta concepção, o medievo deveria ser observado como um período marcado somente por nulidades, sem qualquer relação com o nascimento da modernidade, já que as origens deste novo mundo estariam muito mais vinculadas à antiguidade clássica existente dez séculos atrás do que ao medievo. É como se na história não existissem continuidades e a modernidade não tivesse nenhuma relação com o mundo que o antecedeu. Ao contrário do que parece, o mundo moderno não cortou totalmente seus laços com o medievo, pois, de acordo com as palavras do dramaturgo austríaco Hugo Von Hofmannsthal, "nada há de sacro que seja puramente espiritual" [1]. Um caso interessante — que envolve o uso moderno de conceitos pertencentes aos teólogos do medievo — foi a formação da ideia de separação entre o público e o privado formulada durante o século 15 pelos ingleses. De acordo com esta doutrina, o monarca era constituído por dois corpos: um natural e outro político. O primeiro corpo estava sujeito às enfermidades, aos problemas ocasionados pela velhice e a todas as deformidades que ocorriam com os corpos naturais das demais pessoas; já o segundo corpo era perfeito, incorruptível e nunca poderia ser tocado ou ter seus atos invalidados devido a alguma incapacidade presente no corpo natural. A teoria dos dois corpos do rei propugnava que a instituição política deveria colocar-se acima da pessoa física do monarca e apresentava para os ingleses a noção moderna de separação entre o público e o privado a partir da apropriação conceitual de elementos teológicos que caracterizavam a Igreja ou o próprio corpo de Cristo [2]. Por meio desse exemplo é possível perceber as marcas do medievo na constituição do mundo moderno, e ressaltar que a história é marcada por movimentos de continuidade e descontinuidade que sempre estão presentes em vários aspectos da vida [3]. É por meio desses movimentos de continuidade e descontinuidade que o aparecimento, a evolução e a transformação das diversas instituições pertencentes à tradição jurídica ocidental [4] devem ser analisados ao longo da história. A gestação de múltiplos componentes formadores dessas instituições ocorreu no medievo, fazendo com que o moderno fosse gerado a partir de elementos do velho mundo. No entanto, é importante ressaltar que o novo e o velho mundo não podem ser vistos como o mesmo. É essa a relação que se estabelece entre o medievo e a modernidade nos vários aspectos da vida, incluindo também a construção das instituições jurídicas do ocidente, já que, de acordo com Carl Schmitt, "todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderno são conceitos teológicos secularizados" [5]. O aparecimento do Estado absolutista, da burocracia e da racionalidade jurídica instrumental — que no caso operacionaliza as estruturas modernas de poder — foram fenômenos institucionais responsáveis por inaugurar uma nova época, mas que, ao mesmo tempo, possuem em seu bojo componentes do velho mundo medieval responsáveis pela formação da tradição jurídica ocidental. Esses componentes são originários de um amplo movimento político e teológico dentro da cristandade, e que acabou culminando na centralização do poder dentro da Igreja e no aparecimento do primeiro sistema jurídico ocidental: o Novo Direito Canônico (Jus Novum) apresentado pelos sacerdotes [6]. Foi a partir do século 11, início da reforma gregoriana, que o direito começou a ganhar status de maior autonomia como ciência e como instituição política. Esse momento caracterizou-se pela centralização política da Igreja e pelo aparecimento das primeiras universidades, como foi o caso de Bolonha em 1088. Na verdade, a reforma gregoriana foi a grande responsável pelo estabelecimento inicial da teoria jurídica. Os desafios políticos e institucionais para que a Igreja se sobrepusesse ao Império eram enormes e, portanto, exigia de seus estudiosos um maior esforço intelectual para costurar os diversos elementos jurídicos necessários à nova dominação papal. Seu primeiro passo foi estabelecer as bases jurídicas da nova estrutura política da Igreja, definindo sua jurisdição, as regras do processo canônico, a hierarquia ministerial e sua organização administrativa, já que a Igreja havia deixado de ser um simples corpo místico de reunião da cristandade para se transformar numa complexa corporação jurídica. Ao formular as respostas jurídicas para os problemas institucionais da Igreja, o clero assumiu uma identidade corporativa de principal formulador teórico das estruturas de poder do medievo. Esta identidade, que surgiu de sua elevada capacidade de formulação intelectual no âmbito do direito canônico, era semelhante à identidade do jurista moderno na formulação das estruturas de poder do Estado absolutista, com a diferença de que o primeiro ainda possuía a função pastoral de guia espiritual da comunidade cristã, enquanto o aparecimento do jurista moderno foi resultado do processo histórico de secularização da cultura, responsável por colocá-lo numa função exclusivamente política de construtor das instituições modernas. O sacerdote não abandonou sua condição de representante exclusivo da comunidade cristã. Já o jurista moderno surgiu envolvido em condições muito mais complexas para a construção da nova ordem política, já que, a partir da reforma protestante, uma pluralidade de interesses políticos, sociais, econômicos e religiosos passou a disputar espaço na composição das estruturas de poder do Estado. A consequência desse aumento da complexidade foi o movimento de secularização da cultura, pelo qual o jurista se apresentou, ao mesmo tempo, como criador e criatura. É por isso que o sacerdote e o jurista moderno, como também a Igreja e o Estado absolutista, não podem ser observados simplesmente como fenômenos estanques. Na verdade, a importância de retornar à reforma gregoriana, ocorrida em 1075, está em identificar alguns dos elementos originários da engenharia política moderna, e, ao mesmo tempo, compreender o papel desempenhado pelos sacerdotes-juristas na composição de uma complexa estrutura de poder no seio da cristandade, a Igreja Católica Apostólica Romana. Foi nesse movimento de continuidades e descontinuidades que os juristas modernos se apropriaram da noção de pessoa jurídica para organizar uma grande corporação jurídica secularizada, já que o direito romano desconhecia completamente este conceito. Seu aparecimento foi obra dos canonistas e acabou servindo, mais tarde, para estabelecer uma ordem política completamente distinta de cada um de seus membros. Foi nesse processo dialético entre o que é permanente e o que é ruptural que o jurista moderno acabou forjado como arquiteto da ordem política moderna. [1] Hugo von Hofmannsthal apud MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. São Paulo: Unesp, 1995, p. 35. [2] Nesse sentido, ver: KANTAROWICS, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [3] TOCQUEVILLE, Alexis. Estado social e político da França antes e depois de 1789. In: Igualdade social e liberdade política: uma introdução à obra de Alexis de Tocqueville. São Paulo: Nerman, 1988, pp. 67-68. Nesse sentido, Tocqueville afirma que, "laços invisíveis, mas quase onipotentes, unem as ideias de um século às do presente. Uma geração pode declarar guerra às anteriores e combatê-las, mas nem por isso deixará de herdar algo delas". [4] É importante esclarecer que a presente coluna faz referência à tradição jurídica ocidental no mesmo sentido da obra de Harold Berman. De acordo com ele, "o Ocidente não pode, dessa maneira, ser declinado com o girar de um compasso. Limites geográficos ajudam a localizá-lo; esses limites sofrem mudanças de tempos em tempos. O Ocidente é, antes de tudo, um termo cultural, mas com uma forte dimensão diacrônica. Ele não é, no entanto, meramente uma ideia; é uma comunidade". Nesse sentido, ver: BERMAN, Harold. Direito e Revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 12. [5] SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 35. [6] BERMAN, Harold. Direito e Revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 12.
2023-04-29T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-29/diario-classe-secularizacao-teologico-tradicao-juridica-ocidental
academia
Opinião
Ferreira Neto e Correia: Patrimonialização dos terreiros
As religiões de matriz afro-brasileira têm sido alvo do racismo estrutural ao longo do processo histórico brasileiro. As expressões religiosas, assim como outras manifestações culturais das populações negras e dos povos originários, foram rechaçadas por meio de estruturas normativas proibitivas ou ideologias deslegitimadoras. A miscigenação dos povos africanos, a luta pelo direito de (r)existir em meio à opressão eurocêntrica e o contato com a cultura indígena, proporcionou, no Brasil, o surgimento de expressões de religiosidade de diversos matizes. O candomblé se destaca entre as religiões afro-brasileiras, sua gênese está em povos distintos, tais como iorubás, bantos e jeje, que cultuam um panteão de entidades, respectivamente, orixás, inquices e voduns. Os terreiros, nome genérico dado aos espaços de culto dessas tradições, expressam a luta contra o colonizador, integram o legado nacional e africano para a identidade brasileira. Estão por todo o Brasil, com suas peculiaridades locais e entre essa diversidade de expressões é possível citar o tambor-de-mina no Maranhão, o xangô em Pernambuco, e os candomblés e umbandas que, ainda usando esse mesmo nome, organizam-se com suas particularidades em vários estados. Assim, os terreiros constituem um universo envolto de tradições, danças, cantos, poesias, mitos e rituais. Toda essa representatividade, com seus simbolismos, fazeres e saberes, sagrados, festas e celebrações constituem um patrimônio cultural, com dimensões materiais e imateriais, que podem e devem ser protegidas e fomentadas. A Constituição Federal de 1988 ampliou o entendimento de patrimônio cultural, saindo do espectro apenas material, que trazia a dicotomia de bens móveis e imóveis. A figura do Tombamento, instrumento de proteção do patrimônio material, deixou de ser única, passando a coexistir com outros instrumentos como os registros, inventários, entre outras formas de proteção e acautelamento possíveis de serem desenvolvidas. O Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, localizado em Salvador (BA), foi o primeiro terreiro tombado pelo Iphan, inscrito nos livros do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1984. Em seguida, vieram outros, entre eles, Axé Opô Afonjá; Ilê Iyá Omim; Gantois; Alaketu; Bate-Folha; Ilê Axé Oxumaré; Casa das Minas Jeje, em São Luiz do Maranhão, entre outros. O tombamento é o instrumento de proteção mais antigo, passa de oitenta anos. O Decreto-Lei nº 25/37, estrutura normativa que o regulamenta, foi recepcionado pela constituição democrática de 1988, em seu artigo 216, que prevê a participação cidadã em sua aplicação. Esse instrumento jurídico também pode ser usado em nível estadual e municipal, se previsto em lei. É preciso ressaltar que a figura do tombamento não é o único instrumento para a proteção do patrimônio cultural, nem o mais adequado quando se pensa nos bens imateriais. O tombamento implica em restrições administrativas sobre o direito de propriedade e se assenta na conservação do bem, proibindo expressamente qualquer intervenção que vise demolir, destruir ou modificar o bem. Além disso, qualquer obra para manutenção com fins de conservar as características originais, exige aprovação do órgão que realizou o tombamento. No caso dos terreiros, roças e ilès axés de um modo geral, essas exigências podem ser delicadas, uma vez que a natureza dessas manifestações implica em alterações em seu espaço físico. São casas que abrigam famílias e que, por isso, muitas vezes precisam passar por adaptações de suas estruturas. Outro instrumento possível de aplicação é o registro para salvaguardar o patrimônio imaterial, previsto no Decreto nº 3.551 de 2000. A aplicação desse instrumento aos terreiros teria o objetivo de proteger a prática existente nesses lugares. Ambos os instrumentos, tombamento e registro, parecem ser adequados, basta observar os casos específicos, sem pensar em uma ação padrão. É preciso uma investigação, em diálogo com a comunidade, para verificar qual o instrumento se adequa melhor, ou se é possível e adequado o uso de ambos. Também não se pode esquecer dos inventários, com igual previsão constitucional. Podendo ser aplicados de forma complementar ou como instrumento de proteção em si. Entre os anos de 2013 e 2015, o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana estabeleceu, entre suas metas, o acompanhamento de processos de tombamento dos terreiros existentes no Brasil, associado à produção do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Além disso, é possível pensar em outras formas de acautelamento conforme prevê o texto constitucional, no artigo 216. Também é possível pensar na criação de instrumentos mais adequados à realidade local, como previsto no texto constitucional sobre as competências dos estados e municípios. Aliado aos instrumentos citados, é fundamental a implementação de uma educação patrimonial, antirracista e antielitista em instituições educacionais formais, ou não, para a formação cidadã que garanta a participação efetiva dos povos minoritários nos processos decisórios para a manutenção e preservação dos bens culturais. Referências: Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 07 abr. 2023. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Terreiros Tombados. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1312/. Acesso em: 16 07 abr. 2023. Museu Afro Brasil. Roteiro de visita ao acervo. São Paulo: 2007, p. 18-20. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/manifestacoes-culturais/religioes-afro-brasileiras. Acesso em: 02 abr. 2023. SANT’ANNA, Márcia. Escravidão no Brasil: os terreiros de candomblé e a resistência cultural dos povos negros. IPHAN. WATANABE, Elisabete Mitiko; CRUZ, Heloisa de Faria. O reconhecimento do patrimônio cultural de matriz africana — tombamento e registro de territórios tradicionais em São Paulo. USJT. Arq.Urb. número 26 | setembro — dezembro de 2019.
2023-04-30T11:12-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-30/ferreira-neto-correia-patrimonializacao-terreiros
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Opinião
Streck e Belluzzo: CF/88 exige revisar acordos de leniência
No dia 29 de março de 2023 três partidos políticos ajuizaram uma ação (ADPF) para que os acordos de leniência firmados no curso da operação "lava jato" sejam revistos à luz de critérios fixados pelo Supremo Tribunal Federal. A reação veio a jato — sem trocadilho. Sob rótulos como "anistia", "perdão", "bolsa ladroagem", os críticos da ação não só demonstram descompromisso com a história institucional recente, como distorcem os pedidos deduzidos em juízo. Por que os críticos confundem os empresários com as empresas e clamam que o Estado as elimine? Por que defendem a destruição definitiva de riquezas, renda, empregos, arrecadação e conteúdo nacional? Por que é correta a ação judicial? Porque todos já sabemos o que os agentes do Estado fizeram, praticando lawfare de forma escancarada, como se não houvesse amanhã. Ou alguém tem dúvida de que o 8 de janeiro é produto do conjunto da obra lavajatista? De qualquer modo, insistamos na explicação do óbvio, agora em tom jornalístico, ao menos para ficar claro de que lado estão os autores da ação e de que lado estão os críticos. Uma premissa fundamental é que, em um Estado de Direito, toda e qualquer pessoa, inclusive os reconhecidamente corruptos e os que produzem mentiras a título de crítica, são titulares de direitos fundamentais e não podem sofrer sanções desproporcionais ou ilegais. De há muito escrevo sobre garantias: democracia se faz no direito e pelo direito. Se a política ou a moral fagocitam o direito, já não há mais direito. Do que trata a ação? Simples. E complexo. Entre os pedidos não está a "anulação" dos acordos de leniência, ou seja, os autores não pretendem livrar as empresas das multas e das obrigações de ressarcimento ao erário. Os críticos não leram a petição. Não, os autores não querem um haraquiri judicial. O que querem é a revisão dos acordos de leniência, a ser conduzida pelos órgãos e entidades que os celebraram, mas segundo critérios fixados pela Suprema Corte. Todos sabemos que os acordos foram elaborados por atos de vontade impostos pelo Ministério Público, com homologação do Judiciário. Há uma pergunta de um milhão de leniências: "E por que 'partidos de esquerda' estão preocupados com 'empresas corruptas'?" E a resposta é clara, pois basta olhar para o artigo 219 da Constituição, que diz: "o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". Isso quer dizer, na melhor hermenêutica constitucional, que, se as empresas nacionais constituem um patrimônio do povo brasileiro, o seu destino não pode ser confundido com o de seus dirigentes. Elementar. Países desenvolvidos sabem disso. Não se atira fora a água suja com a criança dentro. A esse respeito vale uma pergunta aos críticos da ação: diante de notórios escândalos de corrupção, a Alemanha se mobilizou para destruir a Volkswagen ou os Estados Unidos se empenharam no sepultamento da IBM ou da Boeing? Rotundamente, não. Além disso, os excessos cometidos nos acordos de leniência firmados durante a operação "lava jato", vivamente aplaudidos pelos críticos, impedem o pleno ressarcimento do erário, uma vez que inviabilizam as empresas. Só empresas minimamente saudáveis conseguem honrar suas dívidas. Elementar, outra vez. A reavaliação dos acordos de leniência é, portanto, uma pauta de interesse nacional — basta ver o que diz a Constituição — e deve ser tratada com seriedade, livre da degeneração lavajatista que muitos, ingenuamente, supunham superada. Ainda há dúvidas de que a "lava jato" degenerou o direito e vitaminou a antipolítica? E ao ajudar na quebra das empresas, traiu a Constituição. Invocando Ulysses Guimarães, "traidor da Constituição é traidor da pátria". Com certeza, os partidos que ingressaram com a ADPF em defesa da Constituição não são os traidores.
2023-04-30T11:03-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-30/streck-belluzzo-cf88-exige-revisar-acordos-leniencia
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Direitos Fundamentais
A CIDH e o controle de convencionalidade de norma constitucional
A concepção — de há muito não meramente teórica mesmo nas Américas — de um constitucionalismo de múltiplos níveis, está, ao que tudo indica, para além dos importantes desenvolvimentos nas últimas décadas, em especial, ainda que de modo muito heterogêneo em termos quantitativos e qualitativos, alcançando um nível mais avançado. O que está em causa, ao fim e ao cabo, é a possibilidade de, no sistema interamericano de direitos humanos, implantar e fazer valer o controle de convencionalidade de norma constitucional por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que, dito de outro modo, significa a afirmação da tese da prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre a ordem jurídica interna, considerada na sua integralidade, dos Estados que os ratificaram e incorporaram à ordem jurídica doméstica. O ensejo para a revisitação e fortalecimento de tal debate — e não apenas na seara doutrinária — foi oferecido pela própria CIDH, à qual, como notório, cabe o controle judicial externo de convencionalidade, por ocasião do julgamento, depois de transcorridos quase vinte anos ao longo dos quais se arrastou o processo —, em 12.04 p.p., do caso García Rodríguez y Alpízar Ortíz v. México. Na histórica sentença proferida por ocasião do emblemático julgamento que contou com a participação do professor doutor Rodrigo Mudrovitsch, na condição de magistrado representando o Brasil, a CIDH condenou o México a eliminar a já de há muito polêmica figura da prisão preventiva "ex officio", além de declarar a responsabilidade internacional do Estado mexicano pela violação dos direitos à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à igualdade em face da lei, às garantias judiciais e do direito à proteção judiciária, todos consagrados na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Antes de prosseguirmos com a descrição do caso decidido há três semanas pela CIDH, calha relembrar que, ao julgar o caso Tzompaxtle Tecpile v. México, em novembro de 2022, a corte já havia declarado a incompatibilidade da prisão preventiva obrigatória com a Convenção Interamericana, determinando ao Estado do México, em termos genéricos, adotar todas as medidas necessárias para adequar a legislação não só à convenção, mas também aos parâmetros adotados pela corte na sua decisão e ao restante de sua jurisprudência aplicável ao caso. O detalhe a ser sublinhado é o de que a CIDH não chegou a declarar explicitamente a inconvencionalidade do artigo 19 da Constituição mexicana, tampouco ordenou a realização de ajustes específicos no texto constitucional, o que acabou ocorrendo apenas no caso García Rodriguez y Alpizar Ortíz, objeto precípuo da presente coluna. A condenação do México no caso ora examinado, importa frisar e desenvolver ainda que em apertada síntese, se deu a partir de uma denúncia feita por García Rodriguez e Alpizar Ortíz, em virtude do fato de terem ficado encarcerados por mais de 17 anos sem que fosse proferia uma sentença. Os denunciantes foram presos em 2002 sob a acusação da prática do homicídio da conhecida regente e pianista Maria de los Ángeles Tamés. Note-se que a prisão se deu sem autorização judicial, sem que lhes fosse assegurado um advogado, ademais de torturados, ameaçados e constrangidos a assinar documentos. Durante todo o transcurso do processo, eivado de irregularidades, os acusados mantiveram firme a alegação de sua inocência, tendo sido colocados em liberdade vigiada e obrigados a usar um bracelete eletrônico. Todavia, em apenas duas semanas o denunciante Daniel García foi novamente preso de modo arbitrário, tendo a CIDH, quando do julgamento do caso, determinado o encerramento do processo e a libertação de ambos os denunciantes. Além disso a corte condenou o México a eliminar o registro dos antecedentes dos acusados, a investigar as torturas sofridas, oferecer tratamento médico e psicológico a ao denunciante Daniel y Reyes e pagar uma indenização no montante de USD 100 mil a cada um dos acusados. Voltando agora à discussão em torno da inconvencionalidade de normas constitucionais, há que destacar que a Constituição Mexicana, em seu artigo 19, prevê — fixando o prazo máximo de dois anos — a figura da prisão preventiva de ofício, que implica o encarceramento automático, sem necessidade de autorização judicial e durante a primeira fase do processo, aos acusados de uma série de delitos previstos em lei (16 no total), dentre os quais, o feminicídio e o roubo praticado no interior de uma residência. Calha referir, ainda nesse contexto, que chegou inclusive a haver uma ampliação da lista, nela incluindo três delitos de natura fiscal, os quais, todavia, foram novamente excluídos por força de uma decisão do pleno da Suprema Corte de Justiça mexicana, no final de 2022. À vista de tudo isso, a CIDH, no julgamento ora comentado, entendeu que o referido artigo 19 da Constituição do México, contraria frontalmente a Convenção Americana, especialmente pelo fato de não prever os fins da prisão preventiva, as situações processuais que buscam ser prevenidas e asseguradas, tampouco mencionando a exigência de uma análise da necessidade da medida em face de outras menos lesivas aos direitos da pessoa processada, como é o caso das medidas alternativas à prisão. Além disso, ainda segundo a corte, o dispositivo constitucional tido como inconvencional, limita o papel dos juízes e chancela um ato imune a todo controle judicial efetivo, ademais de interditar a possibilidade do exercício do direito ao contraditório do acusado. Outro ponto destacado na sentença da CIDH diz respeito ao tempo excessivo de aprisionamento preventivo, que se verifica em parte expressiva dos casos, e que, no caso dos denunciantes, acabou sendo o mais longo do qual se tem notícia no México. Quanto a esse aspecto, a corte — e aqui não de modo inédito — entendeu que nem a complexidade do caso e do processo, nem eventual atitude dos acusados, explica e justifica tal demora, que deve ser atribuída ao Estado. Foi precisamente por tais razões que a CIDH ordenou que o Estado do México, no concernente à prisão preventiva oficiosa, adeque a sua ordem jurídica, incluídos seus preceitos constitucionais, de modo a assegurar sua compatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Agregue-se que o cumprimento da sentença da CIDH afeta diretamente a situação de milhares de pessoas encarceradas sem uma condenação judicial, ressaltando-se, contudo, que o julgado não implica a libertação automática dos presos, mas assegura a possibilidade de requerer ao juiz responsável por cada processo, a revisão da prisão. Limitando-nos à declaração da inconvencionalidade do artigo 19 da Constituição mexicana, a despeito da existência e reconhecimento de uma série de outras violações da Convenção Americana de Direitos Humanos por parte da CIDH, já mencionadas, é o caso de, daqui para frente, tecer algumas considerações — com foco na realidade brasileira — sobre uma declaração de inconvencionalidade de normas constitucionais, ou seja, da afirmação da supremacia da Convenção Americana (e mesmo outros tratados do sistema regional de proteção) sobre todo o direito nacional. Para tanto, iniciamos relembrando que a concepção de um direito constitucional multinível, atribuída a Ingolf Pernice, Catedrático Emérito da Universidade Humboldt de Berlim e um dos mais proeminentes ex-alunos do internacionalmente conhecido professor Peter Häberle, em termos gerais, se deve, ao fim e ao cabo, a um modelo próximo ao difundido conceito de bloco de constitucionalidade, mas, diferentemente deste, referente originariamente em especial à União Europeia. Isso se deve ao fato, mais do que notório atualmente, não só mas principalmente no contexto da União Europeia (em boa medida aplicável à "Europa ampliada" sujeita à Convenção Europeia de Direitos Humanos e à jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos) de um sistema normativo integrado, composto, grosso modo, pelo Direito constitucional Europeu (destaque para o Tratado de Lisboa e a nele contida Carta Europeia de Direitos Fundamentais) e as ordens jurídico-constitucionais nacionais, ainda que, do ponto de vista formal, seja, pelo menos para alguns, questionável designar o Tratado de Lisboa como a Constituição da União Europeia, visto que não aprovado como tal pela unanimidade dos Países que a compõe. Nessa perspectiva, a noção de um constitucionalismo de múltiplos níveis pode não soar como precisa e adequada ao ambiente interamericano e seu sistema regional de proteção de direitos humanos e sua articulação com as ordens jurídicas nacionais e mesmo com o sistema universal da ONU, o que, em tese, só seria de fato rigorosamente cabível no caso de se atribuir à Convenção Americana (para ficarmos do documento geral basilar e orientador de todo o sistema regional) a condição similar a uma Constituição supranacional e seu reconhecimento como tal pelos países signatários. Independentemente, contudo, de se ter como corretas as observações precedentes, o fato é que uma prevalência da Convenção Americana dos Direitos Humanos sobre o direito doméstico, inclusive constitucional, assim como a possibilidade de uma declaração de inconvencionalidade de normas constitucionais por parte da CIDH, não necessariamente depende, como igualmente sabido, do fato de reconhecer aos tratados/convenções internacionais a condição de Constituições. O mesmo pode ser dito em relação a uma posição a priori hierarquicamente superior dos tratados internacionais, no sentido da lógica que define a hierarquia normativa do direito nacional e que orienta não somente a possibilidade, como a necessidade (ainda que não mediante um controle jurisdicional, que de todo modo é a regra), de uma declaração de inconstitucionalidade da normativa infraconstitucional quando em dessintonia com as respectivas Constituições. No caso brasileiro, como se sabe, houve — notadamente desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF) — importantes desenvolvimentos no que diz respeito ao papel do direito internacional dos direitos humanos no âmbito doméstico, isto seja no plano legislativo, seja em nível doutrinário e jurisprudencial. No respeitante ao texto constitucional originário, os destaques são inegavelmente a inserção de um catálogo especificamente destinado a orientar a atuação do Brasil no plano das relações internacionais, que inclui a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF) e a inclusão, na já tradicional cláusula de abertura material do catálogo de direitos fundamentais (no caso da CF, o artigo 5º, § 2º) dos direitos consagrados nos tratados internacionais dos quais o Brasil for parte. Mais adiante, quando da promulgação da Emenda Constitucional 45 de 2004, ocorreu a inserção (limitando-nos ao artigo 5º) de dois novos parágrafos, nomeadamente o § 3º (estabelecendo que os tratados aprovados pelo Congresso Nacional por 3/5 dos votos, nas duas Casas do Parlamento e em dois turnos de votação, são equivalentes às emendas constitucionais) e o § 4º, que reconhece expressamente que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Em nível doutrinário, especificamente no que diz respeito ao valor jurídico dos tratados de direitos humanos no âmbito doméstico, são diversos os entendimentos, que vão desde a posição minoritária da prevalência dos tratados (sejam do sistema regional, sejam do universal da ONU) sobre todo o direito interno, inclusive constitucional, passando pela tese (dominante na literatura jurídica) da hierarquia constitucional (no sentido de normas materialmente constitucionais, em regra) do direito internacional dos direitos humanos, mas também advogando uma hierarquia supralegal e mesmo a hoje praticamente abandona tese da paridade entre tratados e lei ordinária. Finalmente, no que diz respeito à jurisprudência do STF, que, ao fim e ao cabo, detém a prerrogativa de, no âmbito interno, dizer a última e vinculante palavra sobre a matéria, relembramos a posição dominante de partida, vigente até meados da primeira década do terceiro milênio, da paridade entre todos os tratados e lei ordinária, que acabou sendo substituída pelo igualmente majoritário, mas não unânime, entendimento da hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos, à exceção daqueles aprovados na forma prevista pelo § 3º do artigo 5º da CF, já referido, porquanto esses detém hierarquia equivalente a das emendas constitucionais. Com isso, salvo nova mudança de entendimento do STF, o quadro atualmente posto — pela perspectiva da nossa Suprema Corte — em termos do controle de constitucionalidade e/ou convencionalidade do direito interno (portanto, em se tratando do segundo, aquilo que se chama controle interno de convencionalidade) é o de que o STF segue mantendo a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de tratados de direitos humanos ratificados e incorporados pelo Brasil (o que, ainda que se trate de hipótese muito improvável, inclui, em tese, os tratados com hierarquia equivalente às emendas constitucionais), além da possibilidade (entre outros pontos que aqui não examinaremos dada a limitação de espaço) de um duplo controle, visto que se, por um lado, uma norma interna pode ser declarada inconvencional, isso não afasta de o mesmo juiz ou tribunal, reconhecer a inconstitucionalidade da convenção. Já com base nas breves notas tecidas, soa razoável afirmar que mesmo prevalecendo a ainda majoritária posição do STF, que, de todo modo, já indica estar numa fase de gradual transição no sentido de uma posição paritária entre tratados de direitos humanos e a CF, isso de modo algum impede que a CIDH venha a declarar a inconvencionalidade de norma constitucional brasileira. Isso porque não se faz necessário maior esforço para perceber que no plano do controle judicial externo de convencionalidade, o Brasil, queira ou não, enquanto não denunciar a Convenção Americana, segue a ela vinculado e sujeito à jurisdição da CIDH, podendo ser sancionado por eventual violação de preceito da convenção ou da jurisprudência da corte. Por outro lado, sabe-se que o fato de uma condenação por parte da CIDH no sentido de ajustar o texto constitucional, não significa que tal mandamento — venha a ser cumprido pelo poder de reforma constitucional brasileiro (ou mesmo de outros países) ou mesmo que — à revelia da ocorrência de uma emenda constitucional — seja implementado por via de decisão jurisdicional, seja pelo STF, seja por outro órgão do Poder Judiciário. Para além disso, mas absolutamente afinada com a matéria ora examinada, é de se refrescar a memória quanto ao fato de que o STF, depois de alguns julgados no sentido da proscrição da prisão civil de depositário infiel quando da fixação da tese da hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos, veio a afirmar categoricamente a impossibilidade de criação, inclusive pelo legislador, de qualquer modalidade de prisão civil além da prisão por dívida alimentar. Em se considerando que o artigo 5º, LXVII, CF, dispõe que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel, o fato de o STF ter proscrito toda e qualquer possibilidade de prisão civil que não a de natureza alimentar acaba, ao fim e ao cabo, por implicar uma revogação judicial da eficácia de norma constitucional
2023-04-30T10:43-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-30/direitos-fundamentais-cidh-controle-convencionalidade-norma-constitucional
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Embargos Culturais
O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes
Em O Santo Inquérito, Dias Gomes (1922-1999) retomou o martírio de Branca Dias (século XVI) para explorar o assustador tema da violência na política. Agências judiciárias são instrumentalizadas para a perseguição e destruição do inimigo político, o que muitos chamam hoje de "lawfare". O tema é recorrente, porque é da essência de uma concepção realista da vida forense. Não há novidades. Quanto ao enredo, Branca Dias é uma personagem cuja existência suscitaria algumas dúvidas, inclusive se vivia em Pernambuco ou na Paraíba. Há fortes indícios de que vivera em Olinda, onde encontramos uma simpática casa atribuída a essa proto-heroína. Para José Joffily (político e historiador paraibano que viveu muitos anos no Paraná) Branca Dias nasceu na Paraíba, em 1734, foi condenada pela Inquisição por ser judia, e teria morrido na fogueira em Lisboa, em 1761. Joffily expôs em seu livro (Nos tempos de Branca Dias) uma foto da rua Branca Dias em João Pessoa. Minha mãe, Leila Moraes Godoy, coordenou e revisou o trabalho. Arnaldo Nisker, da Academia Brasileira de Letras, também tratou do assunto em Branca Dias, Martírio, em livro muito bem pesquisado, sob uma perspectiva da perseguição ao judaísmo, realisticamente observando que o martírio de Branca Dias, real ou imaginário, marca fortemente a imaginação popular. Niskier é um especialista em temas conexos, como lemos em Padre Antonio Vieira e os Judeus. Dias Gomes antepõe à peça um texto de importante valor historiográfico, registrando o que sabia e o que pensava sobre os personagens. Supõe que Branca Dias havia de fato existido, e que fora queimada na fogueira, a exemplo de Joana D'Arc. Admitiu que a história não é precisa e que há muita controvérsia em torno do assunto. A introdução fixa precisamente os limites entre história e ficção. O que aconteceu não importa. O que vale é como o autor se apropriou do enredo e do motivo histórico. O que também encanta nessa peça de Dias Gomes é a problematização da condição da mulher. A sinceridade de Branca Dias, e até certo ponto sua ingenuidade, possibilitam uma chave interpretativa para a tragédia. O Inquisidor, Padre Bernardo, é um crápula. Implacável, pervertido, maldoso, que invertia o sentido da realidade das coisas, alertando que a acusada fingia que era um anjo de candura, e que os julgadores não eram "bestas sanguinárias". Branca Dias, no entanto, chega a afirmar que o Santo Ofício era misericordioso e justo. Quanta ingenuidade. Há aqui também um problema historiográfico que pode nos colocar numa cilada. A Inquisição era a forma de adjudicação daquele tempo, naquele contexto, e nesse sentido era a forma como se buscava a verdade. Quem viveu à época não entendia (e nem podia entender) de outra forma. O assunto foi tratado por Michel Foucault em uma série de conferências que proferiu no Rio de Janeiro, em 1973, na então Universidade Católica do Rio de Janeiro. As conferências foram organizadas e coordenadas por Affonso Romano de Sant'Anna. A busca da verdade por meio da racionalidade não era certamente a fórmula que conduzia os processos no ambiente da Inquisição, como lemos nos grandes estudos sobre o assunto, de Anita Novinsky, Giuseppe Marcocci, José Pedro Paiva, Neusa Fernandes, Francisco Bethencourt, Ronaldo Manoel Silva e Antonio Borges Coelho, entre tantos outros. Indico a leitura imperdível das Confissões da Bahia, organizadas por Ronaldo Vainfas. O assunto (Inquisição) é substancialmente atual, especialmente à luz de delações premiadas, acordos de leniência e de não persecução penal. No núcleo, a disputa em torno do monopólio da verdade. Vale também a leitura de O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginsburg. Na peça, ironicamente, Branca Dias havia salvado a vida do religioso que a acusa, que quase morrera afogado. O padre reconhece que Branca Dias lhe havia estendido a mão uma vez, que lhe salvara a vida, e que agora era sua vez de retribuir com o mesmo gesto. Ela a mandou para a fogueira, na conclusão de um processo que não poderia terminar de outra forma. Retribuiu. Um canalha. Branca Dias tinha posições firmes. Afirmou (na peça) que "se um texto da Sagrada Escritura pode ter duas interpretações opostas, então o que não estará nesse mundo sujeito a interpretações diferentes?". É essa dúvida (de algum modo cartesiana) que forneceu à Inquisição o material para condenar a ré. A acusação consistia na heresia e na prática de atos contra a moralidade, a exemplo de nadar nua no rio, numa noite de muito calor. Branca Dias não confessou o que não podia confessar, não mentiria, "nem mesmo em troca do sol". Na sentença, o tribunal concluiu: "Procedemos a um longo e minucioso inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e arrependimento. Dia após dia, noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas fomos derrotados. Desgraçadamente". Na execução (fogueira) o padre, o canalha a que me referi acima, "a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas (...) contorce-se também, como se sentisse na própria carne". A Inquisição queimava os corpos para salvar as almas.
2023-04-30T08:00-0300
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Público & Pragmático
Ilegalidade do circuito fechado no fretamento colaborativo
Em sede de Agravo de Instrumento interposto no Mandado de Segurança Coletivo impetrado pelo Sindicato das Empresas de Processamento de Dados e Serviços de Informática do Estado de São Paulo (Seprosp) [1], uma decisão inédita, proferida pelo desembargador federal Marcelo Saraiva, da 4ª Turma do TRF-3 [2], colocou em xeque a legalidade da regra do "circuito fechado", um dos principais entraves para o livre exercício das atividades desenvolvidas pelas plataformas de transporte coletivo de passageiros, que consiste na ideia de que, em viagens de fretamento, o trecho de ida e o trecho de volta devem ser realizados no mesmo veículo e com a mesma lista de passageiros — consoante disposto no artigo 3º, inciso XIV, da Resolução ANTT 4.777/15, que disciplina o tema. Ao fretador que desobedecer a essa regra pode ser imposta sanção e até ter o seu ônibus apreendido pela agência fiscalizadora durante a viagem. A apreensão do ônibus gera a necessidade de transbordo dos passageiros, o que gera desconforto, descontentamento e até mesmo insegurança por parte dos passageiros. E essa regra, vale dizer, que só existe no transporte rodoviário, aplica-se somente às viagens realizadas por transporte coletivo de fretamento (as viagens regulares, aquelas das "empresas de rodoviária", não precisam segui-la). E não há aparente justificativa plausível para esse tratamento diferenciado. Nos dias atuais, em que a economia compartilhada veio para reduzir os custos de transações (no caso específico do mercado de transporte rodoviário de fretamento, essa redução dos custos é facilmente percebida ao se diminuir a ociosidade dos ônibus), fica praticamente impossível acreditar que uma regra assim — antieconômica, para dizer o mínimo — ainda exista. Felizmente o paradigma parece estar mudando, e a decisão judicial referida no início do texto é mais uma importante evidência dessa tendência, que encontra eco em situações passadas: em 2021, por exemplo, a Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (Seae) do então Ministério da Economia, por meio da sua Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (Fiarc), já havia declarado que a regra do circuito fechado é anticoncorrencial e causa um prejuízo anual ao país de cerca de R$ 1,055 bilhão. Com efeito, a Seae classifica a regra como "bandeira vermelha", o que significa "um ato normativo com caráter anticompetitivo", pois "verificados fortes indícios de presença de abuso regulatório que acarretem distorção concorrencial", "com efeitos potencialmente negativos sobre o bem-estar do consumidor". A única razão de ser do circuito fechado, conforme também concluiu o estudo, é a criação de reserva de mercado, impedindo a entrada de novos concorrentes, retardando a inovação e a adoção de novas tecnologias, e, por conseguinte, prejudicando o ambiente de concorrência. No âmbito legislativo, deputados federais estão trabalhando para derrubar a imposição do circuito fechado para o fretamento. Em dezembro de 2022, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados aprovou duas propostas de decreto legislativo com esse objetivo [3], deixando claro que entendem que a regra do circuito fechado é arcaica e importa em restrição à atividade econômica não prevista em lei. Enquanto o Legislativo segue curso para a busca da aprovação de lei que revogue a norma do circuito fechado, o Judiciário começou a dar importantes passos no mesmo sentido. A mais recente decisão do TRF-3 [4] — na verdade, "decisões" [5], pois já são dois desembargadores com o mesmo posicionamento — traz um pouco de luz a esse conflito. Do conteúdo das decisões é possível extrair o correto entendimento segundo o qual, para além das questões regulatórias e anticoncorrenciais, a insistência na aplicação dessa regra anacrônica e antieconômica ignora, simplesmente, a existência de um importante personagem, o consumidor — maior prejudicado com a limitação do seu poder de escolha [6]. Portanto, o circuito fechado é uma regra restritiva de direitos, criada por decreto e sem amparo em lei, que se opõe à autonomia de vontade das partes, impede novos entrantes no mercado, limita o direito de escolha do consumidor e impõe a ele uma venda casada de trechos de ida e volta. Mas qual o papel das plataformas de intermediação e vendas de viagens nesse cenário? A Buser, por exemplo, empresa brasileira que fomenta o transporte rodoviário, precursora do modelo "fretamento colaborativo", tem colecionado vitórias nos tribunais. A popularização desse modelo de negócio vem facilitando o entendimento do Judiciário, que tem mostrado cada vez mais aptidão para entender seus benefícios para a sociedade brasileira, especialmente para aquela parcela menos favorecida da população [7]. A tecnologia disruptiva de conexão das duas pontas — o transportador e o transportado - possibilita a otimização dos recursos ao tornar mais eficiente o encontro entre oferta e demanda, reduzindo a ociosidade das frotas dos fretadores (que se estima ser de mais de 29 milhões de assentos por ano [8]), assim como o custo final pago pelo viajante. Quando analisado sob a ótica da oferta de transporte ao consumidor, os números também chocam: de 2019 a 2021, por exemplo, o transporte fretado apresentou queda de quase 15% no número de empresas atuantes, e entre os regulares, a queda foi de cerca de 32%. Como consequência da redução do número de empresas no setor de transporte rodoviário regular interestadual de passageiros, percebeu-se um aumento da concentração dos mercados, uma vez que a fração de mercados exclusivos, isto é, operados por uma única empresa, passou a ser de 73% em 2021 [9]. E entende-se que grande parte desses resultados poderia ser mitigado com o fim da regra do circuito fechado, permitindo maior liberdade econômica e atuação das empresas de fretamento, transferindo o poder de escolha da viagem ao próprio consumidor final. De mais a mais, a conclusão é apenas uma: as restrições regulatórias impostas ao transporte rodoviário coletivo privado não possuem razão de ser e unicamente prejudicam a prosperidade do setor, além dos direitos do usuário do serviço enquanto consumidor. Enquanto a regulação e a consequente concentração de mercado tendem a ignorar a evolução e a disrupção dos meios de transporte, a sociedade clama pelo livre acesso a um transporte rodoviário seguro, confortável e mais barato. [1] Agravo de Instrumento n 5000213-90.2023.4.03.0000, TRF-3. [2] Referida decisão, vale dizer, foi ratificada posteriormente pela des. Monica Nobre, também da 4ª Turma, ao conceder efeito suspensivo ao recurso de apelação interposto pela Buser (autos nº 5001433-26.2023.4.03.0000). [3] PDL 494/2020e PDL 69/2022. [4] Agravo de instrumento n. 5000213-90.2023.4.03.0000, TRF3. [5] Efeito Suspensivo à Apelação n. 5001433-26.2023.4.03.0000, TRF-3. [6] Não à toa a sentença proferida pela Justiça Federal de Porto Alegre, RS, declarou que modelos de negócios como o da Buser empoderam o consumidor, na medida em que “este, em última análise, é quem ganha com a possibilidade de utilizar de um fretamento coletivo para viajar a um mesmo destino com outros consumidores, que podem usar então de um modelo privado de transporte, caso entendam melhor e mais barato.” (Processo n. 5005487-53.2020.4.04.7100, 2ª Vara Federal de Porto Alegre/RS). [7] De acordo com a Pesquisa sobre Perfil de Usuários Buser, 62% dos usuários da Buser declararam renda mensal de até 3 salários mínimos. Pesquisa disponível em: https://medium.com/transporte-colaborativo/pesquisa-sobre-perfil-de-usuarios-buser-2a-edicao-49fed6368689 [8] Quanto à ociosidade do transporte coletivo, estudo elaborado pela LCA Consultores em março de 2022 sobre a "Avaliação dos potenciais impactos da abertura do circuito de operação para atividades de fretamento turístico rodoviário" aponta que "Sob a ótica da oferta, com base em dados da ANTT, tem-se que em 2019 apenas 66,9% dos assentos ofertados em viagens interestaduais estiveram ocupados, o que representa um montante de cerca de 20 milhões de assentos vagos em todo o ano. Já no que se refere ao serviço por fretamento, cerca de 26,3% da frota das empresas está ociosa nos dias úteis, segundo levantamento de 2017 da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Tomando por base os dados cadastrais da ANTT, que apontam a existência de 25.449 ônibus, uma média de 42 assentos por ônibus e a hipótese que os ônibus ociosos poderiam ser utilizados ao menos uma vez por semana para realizar uma viagem de ida e volta, o serviço de fretamento acumularia uma ociosidade de 29,2 milhões de assentos por ano". Somando-se a estimativa de ociosidade entre fretamento e transporte regular, "é possível estimar que existam mais de 48,8 milhões de assentos ociosos ao ano, o que denota o baixo aproveitamento da capacidade instalada no setor. Em termos de receita, considerando o ticket médio do transporte rodoviário de passageiros em 2019 (R$ 108,449), o subaproveitamento da capacidade instalada do setor se reflete em um custo de oportunidade de aproximadamente R$ 5,4 bilhões de reais para o setor de transporte rodoviário de passageiros". O estudo encontra-se disponível em: https://medium.com/transporte-colaborativo/estudo-avalia-os-impactos-da-abertura-do-circuito-para-atividades-de-fretamento-turistico-783dab21d313 [9] Dados também obtidos pelo estudo elaborado pela LCA, acima referenciado.
2023-04-30T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-abr-30/publico-pragmatico-ilegalidade-circuito-fechado-fretamento-colaborativo
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Direito Civil Atual
Ronald Coase: a perspectiva de um economista sobre o Direito
O economista Ronald Harry Coase nasceu em Londres no ano de 1910 e morreu em Chicago em 2013. Mais de um século de vida e mais de oito décadas dedicadas à Economia renderam-lhe muitas experiências, em especial o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel em 1991. Ronald Coase distingue-se da maioria dos economistas, pois foi um observador do Direito e da lei como instrumentos de regulação da empresa e do mercado, deixando um precioso aporte não apenas para seus pares, mas também para a comunidade jurídica (afinal, a Economia, assim como o Direito, é uma "ciência das escolhas humanas" ) [1]. Filho de um casal de empregados do Royal Mail [2], a infância de Coase coincide com a Primeira Guerra Mundial. Já sua adolescência transcorre numa sociedade britânica que buscava se recuperar do exauriente conflito, quando, na verdade, perdia importância geopolítica para os Estados Unidos. A guerra e seu saldo, curiosamente, não são recorrentes na obra do autor. Em 1929, Ronald Coase inicia a vida universitária na London School of Economics (LSE). É nesse período que surge seu interesse pelo Direito. O contato com os julgamentos das cortes inglesas e a leitura de revistas jurídicas quase o convenceram a ser advogado, mas uma palestra do economista Arnold Plant (estudioso da gestão de empresas e do sistema de patentes de invenções) o convenceu, de vez, a ser economista. Pouco tempo depois, por recomendação de Plant e por sua dedicação como aluno na LSE, Coase recebe a disputada bolsa Sir Ernest Cassel Travelling Scholarship, passando os anos de 1931 e 1932 nos Estados Unidos, onde teve a oportunidade de conhecer a estrutura das fábricas, o funcionamento das indústrias e as diferentes formas de organização das empresas de acordo com o setor. Eram tempos do prolongamento dos efeitos da Crise de 1929: a recessão econômica, a queda das ações, a paralisação da produção fabril, o desemprego e o abalo do produto interno bruto compõem o ambiente da estadia de Coase na América do Norte. Nessa oportunidade, ele passa a se indagar: Qual a razão de existirem empresas? O que estimula empresários, gestores e trabalhadores [3]? Tais questionamentos são a gênese do que vem a se tornar a Nova Economia Institucional, com o aprofundamento da ideia de custos de transação e a investigação dos motivos que levam pessoas isoladas a se reunirem no formato de empresa. As respostas a essas questões formam a base de um dos mais importantes trabalhos de Ronald Coase — The Nature of the Firm —, publicado em 1937 e citado pela Real Academia Sueca de Ciências na cerimônia em que lhe foi entregue o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel em 1991. Com o retorno ao Reino Unido e concluída a graduação em Economia, Coase inicia a docência na Dundee School of Economics and Commerce, na Escócia, onde permanece de 1932 a 1934. Depois, segue para a Irlanda, lecionando de 1934 a 1935 na Universidade de Liverpool. O ingresso como professor na London School of Economics, sua alma mater, ocorre em 1935, inicialmente num curso sobre economia dos serviços públicos na Grã-Bretanha. A Segunda Guerra Mundial eclode em 1939. A LSE transfere-se de Londres para Cambridge, enquanto Ronald Coase, então com 29 anos, é nomeado assessor do Gabinete de Guerra, permanecendo nessa função de 1940 a 1946. Somente em 1946 Coase retoma a docência na LSE, assumindo a importante disciplina de Princípios de Economia. Paralelamente, continua suas investigações sobre a economia dos serviços públicos (em particular, os correios e a radiodifusão). A propósito, em 1948, recebeu a bolsa Rockefeller e passou mais nove meses nos Estados Unidos para estudar a indústria de radiodifusão, o que resultou na publicação do livro British Broadcasting: a Study in Monopoly (1950) [4]. De volta a Londres, seu nome foi escolhido para a cátedra de Ciência Econômica na London School of Economics, pois o titular, Friedrich von Hayek, passaria a integrar o Comitê sobre o Pensamento Social na Universidade de Chicago. Ronald Coase, entretanto, estava convencido a deixar a conceituada LSE e, em 1951, muda-se com a esposa para os Estados Unidos da América. Na realidade, por intermédio do amigo John Sumner, Ronald Coase havia aceitado o convite para ser professor na modesta Universidade de Buffalo (à época uma instituição privada, mas que, a partir de 1962, foi objeto de fusão com a Universidade Estadual de Nova Iorque, passando a denominar-se State University of New York at Buffalo). Essa notícia foi vista sob dois ângulos: para a Universidade de Buffalo, representava um prestígio ter um docente oriundo da London School of Economics; para esta última instituição, a ida de Coase para uma universidade pouco conhecida não deixava de ser intrigante. Ronald Coase, contudo, manteve-se discreto quanto à existência de eventuais inimizades ou dissabores na LSE que, porventura, lhe tenham motivado à mudança de universidade e de país. Coase permaneceu em Buffalo de 1951 a 1959, apesar dos convites de grandes universidades como Chicago e Harvard. Em 1959, Coase, por influência de James Buchanan Jr., transferiu-se para a Universidade da Virgínia, onde ficou até 1964, imerso na investigação sobre a perda do referencial humanístico e histórico na Economia. A ida para Chicago aconteceu em 1964, quando Ronald Coase aceitou ser editor do The Journal of Law and Economics em conjunto com o economista Aaron Director, lá permanecendo até 1982. Esse periódico, fundado em 1958 e patrocinado pela Chicago Booth e pela Law School, ambas da Universidade de Chicago, representou para Coase não somente uma nova e desafiadora experiência, mas também seu reencontro com o universo jurídico. As matérias ali tratadas situavam-se no campo da regulamentação e do comportamento das empresas regulamentadas; da organização industrial; da política antitruste; da economia política; da legislação e do processo legislativo; das finanças à luz do direito. Respirar os ares de Chicago representava, naquela quadra, estar não apenas num ambiente de excelência, como também de troca de insights, ladeado que estava de economistas do quilate de George Stigler, Milton Friedman e Gregg Lewis. Em 1991, a láurea com o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel representou para Coase, de modo confessional e já do alto de seus 80 anos de idade, um daqueles acontecimentos inexplicáveis da vida, haja vista que ele se considerava um economista cuidadoso, mas pouco ambicioso. O merecido reconhecimento não o eximiu de produzir até os derradeiros dias de vida, tanto que suas últimas obras, escritas em coautoria com Ning Wang, datam de 2011 (The Industrial Structure of Production: a Research Agenda for Innovation in an Entrepreneurial Economy) e 2012 (How China Became Capitalist). Ronald Coase morreu em 2 de setembro de 2013 em Chicago, deixando abertos os caminhos para a reaproximação entre a Economia e o Direito. Entre seus estudos mais importantes para os profissionais da área jurídica, podem ser citados: The Nature of the Firm (1937); The Problem of Social Cost (1960); e The Lighthouse in Economics (1970). Por iniciativa do ministro Dias Toffoli e do professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., da Faculdade de Direito da USP, fez-se possível a versão brasileira da obra The Firm, the Market and the Law, que já está em sua terceira edição pelo selo editorial Forense Universitária, do Grupo Editorial Nacional — GEN (Coleção Paulo Bonavides). A obra é traduzida por Heloísa Gonçalves Barbosa e integrada pela revisão de Francisco Niclós Negrão, além da revisão técnica de Alexandre Veronese, Lúcia Helena Salgado e Antônio José Maristrello Porto. É acompanhada de um estudo introdutório escrito pelo ministro Antonio Carlos Ferreira e por mim, no qual buscamos investigar o labor inconfundível de Ronald Coase. Feitas estas considerações primeiras sobre Ronald Coase, dar-se-á continuidade, nos próximos dias, ao estudo específico dos efeitos de seu pensamento no Direito, com ênfase no "Teorema de Coase", nos custos de transação, nos contratos, nos direitos de propriedade e, ainda, no impacto das leis e decisões judiciais na Economia.   *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam). [1] COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o direito. Tradução: Heloísa Gonçalves Barbosa; revisão da tradução: Francisco Niclós Negrão; revisão final: Otavio Luiz Rodrigues Jr.; estudo introdutório: Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária/GEN, Coleção Paulo Bonavides, 2022, p.1. [2] Ronald H. Coase. Biographical. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/1991/coase/biographical/. Acesso em: 22-4-2023. [3] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Coase foi um dos pais da Análise Econômica do Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-set-04/direito-comparado-coase-foi-pais-analise-economica-direito. Acesso em: 22-4-2023. [4] FERREIRA, Antonio Carlos; FERREIRA, Patrícia Cândido. Ronald Coase: um economista voltado para o Direito (Estudo introdutório). In: COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o direito, op. cit., p. XXVIII.
2023-05-01T14:30-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-01/direito-civil-atual-ronald-coase-perspectiva-economista-direito
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Não colou
Juíza nega pedido de Justiça gratuita feito por faculdade privada
Por entender que a veracidade da declaração de carência financeira não se presume em relação à pessoa jurídica e que a expectativa de crédito da instituição supera em muito o déficit financeiro alegado, a juíza Anuska Felski da Silva, da 3ª Vara Cível de Itajaí (SC), negou o pedido de gratuidade de Justiça feito pela Fundação Universidade do Vale do Itajaí (Univali) nos autos de uma ação de obrigação de fazer. Uma das principais instituições de ensino catarinenses e maior universidade privada da região do Vale do Itajaí, com cerca de 20 mil alunos, mais de cem cursos de graduação e pós-graduação e dois colégios, a Univali alegou, ao pedir o benefício, que atravessa uma grave crise em suas finanças. No processo, a universidade informou que teve de parcelar o pagamento de uma dívida tributária de R$ 231 milhões, por meio do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), do governo federal. Entre outras cifras referentes ao que classificou de "caos econômico-financeiro e tributário", a instituição sustentou também que amarga uma passivo de aproximadamente R$ 30 milhões a título de obrigações sociais e trabalhistas, além de compromissos bancários decorrentes de empréstimos e financiamentos que somam mais de R$ 72 milhões. Em sua defesa, a Univali lembrou ainda que a assistência gratuita foi concedida recentemente à instituição pelas Justiças Federal, do Trabalho e estadual, tendo sido também recomendada pelo Ministério Público. "A Fundação Univali prova que efetivamente necessita do benefício da assistência judiciária gratuita, ainda que seja na forma modulada, requerendo-o nos termos da Lei nº 1.060/50 e da Súmula nº 481 do STJ, sob pena do indeferimento do presente pleito comprometer ainda mais sua delicada situação econômico-financeira interna, comprometendo de morte, também, inúmeras atividades essenciais relacionadas aos seus objetivos estatutários nas áreas da educação, da saúde e da assistência social", diz a instituição no requerimento. Ônus de comprovar Responsável por analisar o pedido, a juíza Anuska Felski da Silva abriu sua fundamentação explicando a diferença entre as declarações de hipossuficiência apresentadas por pessoas físicas e jurídicas. Segundo ela, quando se trata de pessoa física, a declaração goza de presunção de veracidade, que pode ser refutada mediante prova em contrário, segundo o artigo 4°, §1°, da Lei 1.060/50. Mas isso não vale para a pessoa jurídica, sobre a qual "pesa o ônus de comprovar o alegado". Na sequência, a juíza discorreu sobre a situação da Univali e indicou que os argumentos apresentados não a convenceram sobre o alegado sufoco econômico. "Não há como ignorar que a requerente é a maior universidade privada da região do Vale do Itajaí, que oferece mais de 60 cursos superiores de graduação e sequenciais de formação específica (...), todos com mensalidades consideráveis", ponderou a juíza. "Isso significa que é possível concluir que, ainda que não possua fins lucrativos, sua expectativa de crédito é muito maior do que o déficit apresentado." Ela observou ainda que o sistema eletrônico do Judiciário local mostra que a Univali é parte em diversas ações naquela comarca — muitas delas como autora. Diante disso, explicou a magistrada, a concessão da gratuidade da Justiça poderia atingir não apenas as partes envolvidas na demanda em questão, "mas também, por isonomia, se estenderia às demais, afetando, sobremaneira, aos demais jurisdicionados e causando gastos excessivos ao erário, sem uma justificativa real de hipossuficiência". Para reforçar esse entendimento, a juíza citou, por fim, que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já se baseou, ao rejeitar pedido da Univali em 2018, na Súmula nº 481 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "faz jus ao benefício da Justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais" e também "não socorre as empresas falidas a presunção de miserabilidade, devendo ser demonstrada a necessidade para concessão do benefício". Clique aqui para ler a decisão Processo 5017573-52.2022.8.24.0033
2023-05-01T10:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-01/juiza-nega-pedido-justica-gratuita-feito-faculdade-privada
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Contas à Vista
Baixa escala federativa opõe responsabilidades fiscal e social
É preciso revisitar os avanços e as falhas históricas que acumulamos na consecução fiscalmente responsável dos direitos fundamentais desde a Constituição de 1988, para bem avaliar os desafios presentes e prospectivos nessa seara tão complexa quanto relevante. Arrisco-me a dizer que atualmente poucas são as hipóteses de controvérsia que se equiparam à aparente tensão, para alguns uma quase contraposição maniqueísta, entre financiamento e gestão de direitos sociais. Os extremos argumentativos titularizam vieses empobrecidos de análise, na medida em que ditam uma pretensa ordem de prioridades de ação como se fosse possível apartar uma coisa da outra. Ora, é falso o dilema de quem prega ser necessário primeiro aprimorar a gestão (no que se inclui prevenir e combater a corrupção) para depois assegurar rota progressiva de financiamento na promoção dos direitos fundamentais, ou vice-versa. Precisamos assumir, sem peias ideológicas, que mais financiamento e melhor gestão são ambos desafios instrumentais — igualmente prementes — para cumprirmos os fins constitucionais de promoção dos direitos fundamentais e de erradicação das desigualdades sociais e regionais. Do ponto de vista do financiamento, o socialmente almejado e constitucionalmente definido é que ele seja proporcionalmente progressivo conforme o nível de riqueza do país e conforme a arrecadação estatal. Por outro lado, a noção de melhor gestão, ademais da eficiência, economicidade e efetividade no exame dos seus custos e resultados, absorve também e necessariamente as republicanas agendas da responsabilidade fiscal e da proteção ao erário contra a corrupção. Quem defende direitos sociais não pode clamar apenas e tão somente por mais recursos. Temos de enfrentar nossos incomensuráveis gargalos de gestão (marcada pela inépcia, que na maioria das vezes está associada ao trato fisiológico dos recursos públicos), assim como precisamos corrigir os sérios gargalos de pactuação federativa que afetam a má qualidade de todo o ciclo das políticas públicas e, por óbvio, dos gastos públicos empreendidos ali. Tampouco é racionalmente crível ser possível aprimorar a gestão sem maior e mais estável fluxo governamental de custeio, que permita avançar em rotas tão basilares como a execução aderente ao planejado, a informatização, os processos de seleção, manutenção e avaliação por desempenho de profissionais mais qualificados, além dos insumos mínimos para realização dos serviços públicos. Tudo isso, sem nos olvidarmos do controle de pessoal ocioso para que sejam evitados inchaços no quadro de pessoal e para que haja, de fato, controle qualitativo da real demanda do serviço. Nossas carências são severamente mais complexas e não comportam a infantil polarização entre, de um lado, a prevenção e o combate à corrupção (no que se inclui o devido zelo para com a responsabilidade fiscal e o equilíbrio intertemporal nas contas públicas) e, de outro, a realização de direitos fundamentais, sobretudo os sociais, em busca da redução da nossa extrema desigualdade real. Para retomar esse aparente impasse em outro patamar mais qualificado de reflexão, é interessante trazer à tona o exemplo do forte impulso descentralizador da nossa Constituição Cidadã. Ao longo dos 35 anos de vigência do nosso arranjo tridimensional de federalismo, consolidamos um mosaico heterogêneo que comporta nada menos que 5.570 municípios e 27 estados (incluído o DF). As repercussões político-administrativas e fiscais do modelo federativo são extremamente preocupantes e ensejam grande parte das críticas dirigidas tanto à falta/fragilidade de gestão, quanto à insuficiência de financiamento nas políticas públicas asseguradoras de direitos fundamentais. Na Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, chegou-se a conceber o dever de comprovar sustentabilidade financeira dos municípios de até 5.000 habitantes, segundo o parâmetro de a arrecadação própria de impostos alcançar, no mínimo, 10% da sua receita total (artigo 6º da PEC 188/2019, que buscava inserir artigo 115 do ADCT nesse sentido). O pressuposto do dispositivo era que, quando operassem abaixo de tais parâmetros mínimos conjugados de densidade demográfica e de receita própria, os municípios não deveriam existir e precisariam ser incorporados a municípios limítrofes com melhor índice de sustentabilidade financeira. Por ocasião dos debates provocados pela PEC 188/2019 (também chamada de "PEC do Pacto Federativo"), a estimativa era que poderiam vir a ser extintos 769 municípios e eliminados até cerca de 20 mil cargos na estrutura administrativa das respectivas prefeituras e Câmaras de Vereadores. No "Balanço do Setor Público Nacional" relativo a 2016, houve o diagnóstico de que, em quase 82% dos municípios brasileiros, as transferências federativas respondiam por 75% das suas respectivas receitas orçamentárias globais. Tamanha foi a dependência levantada que apenas cerca de 2% dos municípios possuíam receita própria superior ao saldo das transferências. Quando observamos os estados, apenas sete possuíam receitas próprias francamente superiores às transferências (ou seja, quando as transferências respondem por fração igual ou inferior a 25% de sua receita orçamentária total). Bem sabemos que aludido quadro não mudou substancialmente de 2016 até os presentes dias. Ora, a expansão vertiginosa de entes federados sem suficiente viabilidade econômica e, por vezes, sem bases histórico-sociais e sem ganho mínimo de escala que lhes justificassem a existência, direta ou indiretamente, obriga-nos a superar o "mito da descentralização", tal como bem nos provocava Marta Arretche [1], como rota supostamente necessária de maior eficiência e democratização para a consecução das políticas públicas. Multiplicamos os custos da máquina estatal em um arranjo federativo disfuncional e tendente a diversos tipos de compadrios e de guerras fiscais na execução de políticas públicas, cuja concepção originária dada pelo Constituinte de 1988 evidentemente reclama cooperação entre os entes. Vale lembrar nesta semana em que se celebra o aniversário de 23 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal o que José Roberto Afonso e eu propusemos, por ocasião do aniversário de 22 anos da LRF, para conciliar as responsabilidades fiscal e social. Há cerca de um ano atrás, sugerimos a adoção do modelo de consórcios nacionais para consecução dos serviços públicos essenciais, que fossem de responsabilidade solidária de todos os entes da federação brasileira: "Contra a tendência de alocação pulverizada e subjetiva de recursos públicos no território brasileiro, e diante da urgência do enfrentamento dos desafios sociais, é urgente, mais que reformar, inovar e revolucionar nos arranjos institucionais que dominam a Federação brasileira. Uma alternativa seria a instituição de um consórcio nacional para integrar as ações sociais que perfizessem programas de duração continuada coincidentes nos três níveis da federação. O objetivo é formalizar o compartilhamento nacional das responsabilidades na formulação e na execução das diferentes políticas sociais no Brasil. As competências comuns inscritas no já citado artigo 23 da CF/1988 impõem deveres aos entes políticos, cuja implementação cotidiana implica razoável grau de coincidência dos seus instrumentos de planejamento orçamentário e setorial, sem prejuízo das peculiaridades locais e regionais — sendo as principais despesas subnacionais nas áreas de saúde, educação e previdência. Eis o contexto em que a gestão consorciada nacionalmente dos programas de duração continuada relativos a tais competências comuns agregaria racionalidade alocativa, dado o ganho de escala dos serviços públicos assim organizados, bem como permitiria adotar o regime jurídico das despesas obrigatórias, na forma do artigo 9º, §2º, da LRF. [...] A execução orçamentária do consórcio seria materialmente insuscetível de contingenciamento e estaria correlacionada com a dimensão temporal mais larga do plano plurianual. Os programas de duração continuada teriam resguardada, por conseguinte, sua consecução sob regime administrativo-financeiro de pactuação político-institucional, em consonância com os respectivos instrumentos de planejamento setorial de cada ente da federação. A gestão associada de serviços públicos referida ao fortalecimento do planejamento setorial das políticas públicas e à vedação de contingenciamento dos repasses federativos correspondentes visa atender não só à pauta da responsabilidade social, como também permitiria qualificar substantivamente a busca da sustentabilidade da dívida pública, na forma do artigo 164-A, inserido pela Emenda 109/2021 na CF/1988. A defesa concomitante da responsabilidade social e da responsabilidade fiscal passa pela estruturação de arranjos alocativos que promovam o ganho de escala na prestação dos serviços públicos e pela diminuição do espaço das transferências voluntárias e das emendas parlamentares balcanizadas. Assim, restariam alargadas temporal e operacionalmente a capacidade de consecução fiscal dos serviços públicos." Diversas têm sido as mazelas da governança federativa, por exemplo, no âmbito da educação básica obrigatória, em que, por sinal, falta garantir efetiva permanência na escola para crianças e jovens de 4 a 17 anos, bem como ainda não estão asseguradas vagas em creches para cerca de três milhões de crianças de 0 a 3 anos de idade. Se somarmos a isso o fato de que considerável patamar dos estados e municípios brasileiros não paga o piso remuneratório aos professores, bem reconheceremos a profunda necessidade de recursos que o horizonte da educação pública de qualidade reclama. Infelizmente, porém, até os presentes dias a União não regulamentou o custo aluno-qualidade inicial. A inconstitucional mora legislativa do governo federal impede que a sociedade tenha uma referência de custeio mais equitativa no federalismo educacional (artigo 211, §7º da CF/1988). Se é certo que falta dinheiro para trazer e manter milhões de brasileiros na escola (das creches ao ensino médio), assim como para remunerar melhor nossos professores e para assegurar infraestrutura adequada nas escolas, infelizmente é igualmente certo que gastamos muito e muito mal, por exemplo, com a compra de material apostilado pelas prefeituras em duplicidade de gasto em face do Programa Nacional do Livro Didático, com inchaços de pessoal na folha da educação para encobrir diversas formas de compadrio e desvios, entre outras mazelas. Idêntica abordagem é cabível no âmbito do Sistema Único de Saúde, no qual há carências incomensuráveis em face do subfinanciamento federal no setor. Algo já reconhecido até pelo então ministro da Saúde Arthur Chioro em audiência na Câmara dos Deputados realizada em 25/08/2015. Ao lado do nosso ínfimo padrão de gasto público per capita em saúde, vemos, por exemplo, a deveras onerosa e questionável opção política de curto prazo da maioria dos prefeitos em querer manter uma maternidade para chamar de sua, mesmo em municípios ou regiões com menos de 30 mil habitantes. Ora, é imperativo pensarmos em promover a economicidade da gestão hospitalar no SUS por meio do federalismo cooperativo que concilie regionalização e ganho de escala. Há considerável nível de irracionalidade gerencial no fato de termos milhares de hospitais de pequeno porte, a pretexto de capilaridade territorial no atendimento secundário. A bem da verdade, é chegada a hora de falarmos no fetiche hospitalocêntrico que é cada vez mais também referido ao acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo. Tragicamente, nosso senso comum não reconhece a extrema relevância da atenção básica e da vigilância sanitária como eixos primordiais das ações e serviços públicos em saúde em nosso país. O ideário social acerca da trajetória evolutiva do SUS é capturado por tais demandas míopes e, com isso, não conseguimos pautar a primazia do acompanhamento preventivo e resolutivo no âmbito da atenção básica de saúde e, se efetivamente necessário, pelo atendimento em hospitais regionais que absorvam a real demanda pela média e alta complexidade. Enfim, há muitas variáveis, interesses e conflitos distributivos em jogo, mas os exemplos arrolados aqui visam ampliar o alcance da nossa luta comum em prol da máxima eficácia dos direitos sociais albergados na CF/1988. Antes de nos deixarmos segregar ou polarizar diante de maniqueísmos ou falsos dilemas, resgatemos a perspectiva muito singela e basilar de que nosso país precisa igualmente de melhor gestão e maior financiamento para a consecução dos direitos fundamentais, sobretudo para assegurar equitativamente saúde e educação públicas, diante da nossa realidade com imensas desigualdades regionais e sociais. Nossa Constituição é pacto social que encerra o compromisso civilizatório de todos nós para com a dignidade da pessoa humana e para com os direitos sociais. Precisamos defendê-la de quaisquer arroubos autoritários ou até mesmo de razões econômicas pretensamente fatalistas que lhe negam vigência real, a exemplo da agenda de mitigação da progressividade real dos pisos em saúde e educação. Defender nosso pacto social hoje é conjugar e exigir democrática e simultaneamente a busca de uma melhor gestão pública com a progressividade no financiamento dos direitos fundamentais. Tudo isso somente se viabiliza em um contexto republicano de igual sujeição de todos à lei, de integridade na preservação do erário e de responsabilidade fiscal, em uma escala federativamente adequada de prestação de serviços públicos. Afinal, esses são os únicos meios de realização possível dos objetivos da nossa Constituição. Urge, portanto, uma maior regionalização na oferta de serviços públicos aderente ao planejamento setorial, tanto quanto é preciso reconhecermos o papel central das instituições e da sua interlocução necessária com os cidadãos para avançarmos no nosso estágio de debates sobre o nível de efetividade e accountability dos direitos fundamentais. Ocorre, contudo, que essas provavelmente são algumas das nossas agendas de evolução constitucional mais sonegadas e preteridas. Soa paradigmático, aliás, que o Projeto de Lei Complementar 93/2023, que visa fixar o "regime fiscal sustentável" para fins de revogação do teto de despesas primárias, na forma dos artigos 6º e 9º da Emenda 126/2022, não tenha pautado qualquer reflexão a respeito da adequada escala federativa dos serviços públicos. Enquanto não questionarmos a baixa escala dos serviços públicos e o desapreço ao planejamento pactuado das políticas públicas na federação brasileira, a noção de responsabilidade social continuará a ser tratada como se fosse antípoda do regime de responsabilidade fiscal. O mais triste é que segue sem regulamentação o parágrafo único do artigo 23 da Constituição, enquanto a União insiste em propor regras fiscais aplicáveis apenas a si própria, sem maior interlocução com os demais entes políticos. A indagação que fica é se seria, de fato, possível um "regime fiscal sustentável no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico", tal como pretende o artigo 1º do PLP 93/2023, quando não há qualquer menção ao "equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional" referido no parágrafo único do artigo 23 da CF/1988. [1] ARRETCHE, Marta. Mitos da Descentralização: Mais democracia e eficiência nas políticas públicas? Revista Brasileira de Ciências Sociais. 11 (31), 1996, p. 44-66, disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_31/rbcs31_03.htm
2023-05-02T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-02/contas-vista-baixa-escala-federativa-opoe-responsabilidades-fiscal-social
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Fábrica de Leis
Inteligência artificial pode ajudar na avaliação do cumprimento da lei
A arquitetura constitucional[1] composta por 22 normas referente à avaliação da ação governamental é das mais articuladas e abrangentes. É preciso refletir sobre a necessidade de precaução relativa à efetividade dos direitos evidenciada pelo legislador constitucional. O acréscimo do parágrafo 16 do artigo 37 reforça o compromisso federativo para com as práticas de monitoramento do ciclo de vida das políticas públicas, porém a norma se insere no sistema constitucional que tutela os efeitos da concretização das atividades governamentais de todas as funções do estado e dos entes da federação. A crítica às metas e aos resultados planejados e não alcançados já foi objeto de discussão aqui nesta ConJur por parte de Élida Graziane Pinto. Ela chama a atenção para o ciclo vicioso de repetição de erros do passado que desconsidera os diversos instrumentos de planejamento provocando um caos operacional onde muitos aproveitam para testar os limites das institucionalidades. Um dos efeitos malfazejos da desconsideração da sistema constitucional sobre avaliação atinge exatamente o primado da maximização da eficácia da nossa Lei Fundamental, que também opera articulada com outros atos normativos, vigentes, espalhados por toda a federação e relativos à qualidade dos serviços públicos, à transparência da informação estatal, aos modelos jurídicos da avaliação de impacto. Nesse sistema infra constitucional estão também as casas legislativas com suas funções fiscalizatórias sobre as ações dos seus respectivos executivos e que também, desenvolvem, assimetricamente, formas de controle e ferramentas para compreender a  realidade do abismo entre as leis que criam e seus efeitos. Parte desse abismo nos fala da desigualdade [2], cotidiana, a ser enfrentada quando ocorre a devida elaboração de políticas públicas e o monitoramento de todo o seu ciclo a assegurar eficácia para os comandos constitucionais Interpretar os dados da realidade passa a ser, então, um método essencial para a verificação do grau de eficácia de direitos, sobretudo aqueles de origem constitucional. O direito a alimentação [3] é constitucional, social, com altíssima transversalidade. Essa característica responde por uma maior complexidade na etapa de reconstrução de uma cadeia de fontes do direito, (eg. conjunto de relações entre normas articuladas e ordenadas por afinidade a um certo tema) necessária a uma devida avaliação de impacto normativo de qualquer direito, ação, programa relativos ao direito à alimentação. Se pensarmos na escala constitucional, alguns direitos que possuem sistemas de incidência normativa igualmente complexos (fontes diversas, multinível federativo, grande quantidade de atos infra legais) também se conectam ao direito à alimentação: vida, saúde, cultura, educação, às finanças públicas, propriedade, livre iniciativa, consumidor, saneamento, água, etc. Imagine a quantidade de atos normativos, a dificuldade para evidenciar as relações entre essas normas, suas respectivas políticas públicas na nossa desigual e assimétrica federação. E essa mesma Federação tem uma uníssona necessidade, de norte a sul, de leste a oeste, em todas as cidades e lares: comida. O direto a alimentação possui uma marcada dimensão territorial que também condiciona a sua efetividade, e claro, demanda ações de todos os atores políticos da federação. É exatamente aí que começam os problemas. Normas jurídicas possuem âmbitos de incidência predefinidos, mas as condições para a eficácia de um direito, não necessariamente se "submetem" a um mesmo lugar. É o caso do direito a alimentação. Uma dada área de cultivo pode ser geodesicamente identificada, localizada, no município "x" e sobre ela incidem um conjunto de atos normativos municipais, estaduais e federais. Essa dimensão, concreta, por sua vez, irá demandar outra sequência de ações governamentais, que incluem o tema da alimentação e todos os outros com os quais possa se articular. O estudo realizado na UFMG[4] (Universidade Federal de Minas Gerais), fruto de um projeto de pesquisa de pós doutoramento pretendeu ensinar uma máquina a identificar duas dimensões da realidade: os textos e seus contextos limitados ao território do estado mineiro. A elaboração da arquitetura do dado de treino (Legística), a base do algoritmo dirige como a máquina deve olhar para a realidade. Um processo dialético ocorre quando os resultados processados no contexto de um grande volume de dados e assim novas possibilidades de análise. Os textos legais foram obtidos na web, em repositórios oficiais das casas legislativas, agências reguladoras, ministérios, secretarias, órgãos com competências normativas da Administração Indireta. Os dados são "extraídos" desse manancial normativo via escolha prévia de termos (ontologia) aptos a produzirem relações de necessidade com o termo "alimentação" e suas noções correlatas, disseminadas em diversas categorias de normas (tipos de atos normativos). É preciso que a maquina "aprenda" com quem o direito a alimentação se relaciona e qual o peso de cada ato normativo na hierarquia entre eles possa indicar o seu nível de coerência. E aí temos um problema constante e que reclama também uma política própria (qualidade da legislação e qualidade regulatória). Novos atos normativos surgem todos os dias, no nosso país onde a lei precisa ser falada e repetida de diversas formas como se fosse uma garantia da sua existência na vida das pessoas e não somente nos livros, ou na tela dos sites oficiais de legislação. O contexto emerge de outro modo, é preciso verificar onde e como o direito a alimentação nasce e o caminho que percorre até chegar a mesa de cada pessoa brasileira. E esse caminho está muito além dos limites restritos da validade de um dado ato normativo, sobretudo se falamos nas condições para que o alimento seja produzido. Dois temas em particular, foram o foco do estudo, pela sua essencialidade e pelo seu paradoxo. É preciso  água para o plantio e todos nós precisamos saber o que comemos, de onde vem o nosso alimento e sobretudo, qual a qualidade do nosso alimento. Uma água de baixa qualidade impacta o nosso direto a alimentação. A disponibilidade de dados oficiais (transparências ativa e passiva) é essencial à reconstrução do cenário de incidência normativa (contexto). No caso de Minas Gerais, os dados estavam disponíveis e legíveis por máquina, algumas lacunas foram supridas por outros repositórios. Nem todas os entes da federação poderiam ser alvo de um estudo desse tipo: a assimetria dentro da federação existe. Se pensarmos na população de crianças, gestantes, lactantes, idosos o contexto pode assumir contornos de risco a ensejar ações governamentais específicas e novamente, transversais. Esse é o aspecto de essencialidade, pois o acesso a uma boa alimentação[5] é causa de um bem viver. O paradoxo se manifesta quando a máquina "olha" para a realidade, para o contexto onde os efeitos dos direitos transitam e consegue processar as informações de um grande volume das cidades de um estado da federação. E mais, aponta a proximidade arriscada entre a localização (ou não) de estações de tratamento de resíduos (comumente conhecido como lixões) e os seus cursos d'agua. As informações obtidas permitem traçar uma valência diferente para cada tipo de impacto e assim o risco pode ser mensurável. Municípios que não tratam o próprio resíduo, que recebem os resíduos de outras cidades, por exemplo tem seu risco aumentado. Aterros sanitários não regularizados a céu aberto, com altitude superior ao curso d'agua (rio, córrego, riacho e congêneres), idem, se são vizinhos a uma área de plantio temos um sinal de alerta. O direito ambiental também exige um dever de cuidado nas cidades e que a verdade inconveniente sobre rios "urbanos" canalizados e poluídos, sobre a ausência de políticas públicas de coleta seletiva deveria também indignar as pessoas. A promiscuidade entre o lixo e água, e seu risco sobre o direito a alimentação acaba por também tensionar os efeitos pretendidos pelo Marco Regulatório do Saneamento e colorem o paradoxo: os rios seguem independentemente das leis municipais, mas totalmente dependentes da política de saneamento[6] das cidades vizinhas. Publicado em 2021, o estudo de impacto da fome no mundo elaborado pela FAO e intitulado "The State of Food Security and Nutrition in the world" chegou à impressionante cifra entre 720 a 811 milhões de pessoas afetadas pela falta de comida ou de acesso a ela. Por outro lado, no mundo e também no Brasil, a gastronomia cresce como o terceiro interesse de viagem apontado pela crescente indústria do turismo que gera oportunidades de emprego e renda. Seja sobre fome ou abundância, seja sobre água potável ou qualidade do gasto público, seja sobre aterros sanitários regularizados e a proteção aos mananciais de grandes bacias hidrográficas brasileiras, seja sobre saber sobre o caminho do alimento que cada pessoa tem a mesa, quando falamos de direitos fundamentais, a análise do cumprimento da lei, seus efeitos, é acima de tudo, uma questão de dignidade humana. [1] Artigo 37, §3º, I — avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços públicos, a partir, entre outras dimensões, das reclamações dos seus usuários coletadas em sistemas de atendimento e canais de participação correspondentes; Artigo 37, §8º, II — avaliação acerca do cumprimento do contrato de gestão que ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta, desde que sejam atendidas metas de desempenho para o órgão ou entidade; Artigo 40, § 1º, I — avaliações periódicas obrigatórias realizadas para verificação da continuidade das condições que ensejaram, no âmbito do regime próprio de previdência social — RPPS, a concessão de aposentadoria por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que o servidor estiver investido, quando insuscetível de readaptação, na forma de lei do respectivo ente federativo; Artigo 40, § 4º-A — submissão a avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar para fins de concessão de aposentadoria especial a servidores com deficiência no RPPS; Artigo 201, § 1º, I —avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar para fins de concessão de aposentadoria especial a segurados com deficiência no âmbito do regime geral de previdência social (RGPS); Artigo 41, § 1º, III —avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa no caso de perda da estabilidade do servidor público mediante procedimento; Artigo 41, § 4 º —avaliação especial obrigatória de desempenho como condição prévia à aquisição da estabilidade pelo servidor ocupante de cargo efetivo; Artigo 132, parágrafo único — avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias, como condição prévia à aquisição de estabilidade de Procuradores dos Estados e do Distrito Federal; Artigo 52, XV — avaliação periódica da  funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Município (competência privativa do Senado Federal); Artigo 74, I —Avaliação do cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União como sistema de controle interno dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário; Artigo 74, II —Avaliação dos resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado atribuída ao sistema de controle interno;  Artigo 165, § 16 -Avaliação das políticas públicas ( resultados e monitoramento) previstos no § 16 do art. 37 desta Constituição, dever de que as leis de plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento anual observem; Artigo 173, § 1º, V –avaliação de desempenho e à responsabilidade dos administradores prevista no estatuto das empresas estatais exploradoras de atividade econômica; Artigo 193, parágrafo único — "o Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas"; Artigo 198, § 3º, III — previsão de que lei complementar fixe normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas computadas no piso em ações e serviços públicos de saúde pelas esferas federal, estadual, distrital e municipal;Artigo 209, II — avaliação de qualidade pelo Poder Público em relação à oferta do ensino privado no país; Artigo 212, § 9º — mandato constitucional de que lei disponha sobre normas de fiscalização, de avaliação e de controle das despesas computadas no piso em manutenção e desenvolvimento em educação pelas esferas estadual, distrital e municipal.Artigo 212-A, V, alínea "c" — distribuição de parte da complementação federal ao Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) conforme o cumprimento de condicionalidades de melhoria de gestão previstas em lei, bem como a partir do alcance da evolução de indicadores a serem definidos, de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica;Artigo 212-A, X, alínea "e" — lei regulamentadora do Fundeb deve definir "o conteúdo e a periodicidade da avaliação, por parte do órgão responsável, dos efeitos redistributivos, da melhoria dos indicadores educacionais e da ampliação do atendimento" em consonância com o Plano Nacional de Educação; Artigo 239, § 5º — dever de avaliação dos resultados dos programas de desenvolvimento econômico financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com os recursos do Programa de Integração Social e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep); bem como dever de divulgação de tais resultados "em meio de comunicação social eletrônico e apresentados em reunião" da Comissão Mista de Orçamento; Artigo 41 do ADCT — dever de reavaliação bienal por parte dos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de todos os incentivos fiscais de natureza setorial que estavam em vigor na data de promulgação da CF/1988. Caso não fossem confirmados por lei, seriam eles automaticamente revogados. [2] "A demanda pelo Estado, nos países em desenvolvimento, é mais específica, reclamando um governo coeso e em condições de articular a ação requerida para a modificação das estruturas que reproduzem o atraso e a desigualdade." (BUCCI, 2021, p.75) [3] Art. 6º fruto da Emenda Constitucional 65 de 2010. [4] Fabiana de Menezes Soares – Direito/LIA/UFMG ; Douglas Pontes -Depto. de Computação/LIA/UFMG ; Adriano Velloso - Depto. de Computação/LIA/UFMG Pesquisa em rede - Pós Doutorado LIA – Laboratório de Inteligência Artificial- Departamento de Ciência da Computação /UFMG intitulada: Análise preditiva aplicada a sistemas normativos complexos: IA para detecção de riscos ao direito à alimentação [5] Uma pesquisa no repositório de publicações do Google Scholar, com a utilização simultânea de dois termos “Food” e “Public Health” gera um resultado de aproximadamente 3.000.000 de ocorrências, repetindo a pesquisa em português “Alimentação e Saúde pública” as ocorrências chegam a cerca de 76.000. O termo “potable water”, por sua vez resulta em cerca de 708.000 ocorrências, em português “água potável” aparece em cerca de 106.000. Por outro lado o conceito latino-americano de ‘Buen vivir” por exemplo, aparece com pouco mais de 28.080 ocorrências. Acessado em 02 de maio de 2023. [6] Defendemos que os serviços de saneamento básico são um serviço social de titularidade estadual. DE OLIVEIRA, Thaís de Bessa Gontijo; DE MENEZES SOARES, Fabiana. Será o saneamento básico uma espécie de serviço público de interesse social? Um estudo à luz da Teoria das Capacidades Estatais aplicada aos Municípios brasileiros. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 3, 2020.
2023-05-03T10:36-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-03/fabrica-leis-avaliacao-cumprimento-lei
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Opinião
Tarso Genro: O barroco jurídico nos casos de negação do justo
A proposta aqui é inspirada numa soma de casos concretos de vários processos judiciais, especialmente de um, cuja execução de sentença foi iniciada em 2009. Os autores da ação escolhida como típica são servidores públicos federais que buscam diferenças salariais devidas pela União, em ação transitada em julgado há 14 anos. Pendente de cumprimento, a sentença exequenda foi bloqueada sem base legal, depois de diversas dilações, incidentes em cada momento que os valores apurados em liquidação de sentença seriam finalmente honrados. O processo não é identificado porque este artigo pretende tratar de forma abstrata a matéria processual-executiva em tela, tendo em conta que centenas de autores da mesma natureza sofrem as mesmas dilações em processos análogos. O que é o barroco? Mais do que um estilo específico, o barroco é um componente civilizatório. Na arquitetura e na literatura da renascença ele exerceu uma influência significativa que se projetou em todo o período moderno, como o fez sobre os mecanismos do Estado de Direito, canais formais pelos quais os cidadãos "buscam" seus reais (ou pretensos) direitos, nos escaninhos da administração pública ou nos canais formais de acesso à Justiça. O barroco influiu diretamente sobre as formas da prestação jurisdicional, seja nos pleitos judiciais perante o sistema de Justiça, seja no discurso jurídico, acrescido por arabescos reinventados das formas processuais. O barroco é dispersão da estrutura e o seu abuso mantém, na superfície da vida, o excesso — erigido como bem cultural — projetado nas formas jurídicas do Estado Moderno como mediação, tanto da aproximação como da repulsa aos direitos: através das formas barrocas do processo judicial o sistema reconhece que o direito existe, mas também avisa que o sujeito de direitos pode ser distanciado do seu objeto. Ele é uma herança da renascença (detalhista e lúdico): é "gasto", no "estoque" do tempo, e também uso abusivo de amplos espaços manipulados que subvertem o devido processo legal. Na literatura ele é o exagero da palavra escrita no discurso poético que dissimula os impasses do real. Em toda a produção artística — em regra — o barroco é o desperdício das formas que adiam o presente. No direito processual, o barroco é um desperdício da ordem normativa e o afastamento da prestação perseguida pelo devido processo legal. No discurso jurídico à fala da arte, com propósitos definidos, transforma-se numa subversão processual do direito de defesa e técnica dilatória do devedor. Não há ainda — na verdade — uma teoria do Estado de Direito compatível com o projeto de sociedade do Estado Social que corresponda as suas promessas históricas, como fez a doutrina constitucional do Estado Liberal, em relação ao direito de propriedade, de herança e aos direitos individuais genéricos.[1]  O Estado Constitucional e Social de Direto ainda não constituiu uma doutrina especial capaz de orientar uma nova dogmática, que possa materializar através do sistema normativo importantes mudanças reais na vida do cidadão comum. Em vários casos concretos foi alegado — por exemplo — o alto valor da causa como fato impeditivo da execução de sentenças transitadas em julgado (que já fizera, portanto, a tradição do bem), transformando a execução num ritual barroco de negações. Em alguns processos é comum, também, o abuso da categoria de reserva "do possível", para negar a apropriação pelo titular de um direito definido em sentença inapelável, cujo custo monetário pareceu "impossível" ao julgador. Quando o magistrado é seduzido por este argumento do "alto valor da causa", ele inverte os polos da demanda, gerando uma mora involuntária do credor e troca, assim, a posição do credor com a do devedor: o detentor direito subjetivo ao bem postulado na ação passa a ser réu de uma cobrança — através de um bloqueio processual —, visto o seu direito como "vultuoso", que ele deveria concordar em ser reduzido. Nesta hipótese, a ideologia do barroco, transposta para o processo de execução, promove a dissolução de um direito que é sonegado ao credor, quando o pleito chega ao seu final e o resultado — obtido no "sistema de acesso ao Poder Judiciário" — sucumbe nas formas alongadas do barroco. Na prática, a consequência desse raciocínio é que o titular do direito é considerado "pequeno" perante uma suposta sanção "tão grande", aplicada ao devedor, que, por ser "grande", pode deixar de ser reparada. Nelson Jobim, jurista e ex-ministro do STF, diz que "não podemos abandonar a necessidade de crítica aos excessos de ornamentação" pensada pelo jurista (algumas vezes instrumental), que visa encobrir o que deveria ser claro para desdizer aquilo que acidentalmente já disse".[2] Não é sem motivos que "a garantia institucional da coisa julgada tenha força jurídica muito superior a garantia do direito adquirido e a do ato jurídico perfeito" (...) que enunciados juntamente com ela, no artigo V inciso XXXVI, assevera que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, a diferenciação feita pela doutrina que é ratificada em decisões do STF, no sentido que só a coisa julgada opera a transferência do direito em disputa para a parte favorecida pela sentença".* É justo lembrar que foi "a partir do trabalho de Teixeira de Freitas (que) o direito civil ganhou o instrumental (processual civil) que faltava para se transformar em um sistema, não mais decorrente do poder de fato, ou da vontade do indivíduo, mas objetivo, ordenado e tutelado pelo Estado (que) protagonizou uma revolução no direito processual, ao utilizar idêntico enfoque para considerar as relações que se estabelecem entre o juiz e as partes no direito processual..."[3]. O Estado Social Constitucional de Direito inclusive incorpora "“discriminações positivas", como o faz em relação aos créditos alimentares e demais direitos dos trabalhadores, presentes na "ideia de valores constitucionais", que supõem que o direito do sujeito lesado — respeitados instrumentos e formas —  estará sempre amparado pela teleologia do “devido processo legal" em qualquer fase processual. O princípio constitucional da igualdade formal de nenhuma forma pressupõe que todos os homens sejam iguais em poder e potência social, mas, ao contrário, pressupõe a sua desigualdade. Por isso no sistema de proteção do Estado Social também estão estabelecidas hierarquias, pois a afirmação ontológica é que todos os homens são "iguais em direitos"[4], não que tenham condições iguais para frui-los. A espera, que poderá ser confortável para os mais poderosos, jamais o será para os cidadãos comuns. A arguição do "valor vultoso" de uma dívida do Estado, para induzir a Justiça a erro que produza decisões contraditórias sobre a efetividade de um direito, é uma estratégia que pode beirar a má fé, pois o que ela propõe — ao fim e ao cabo — é que o "elevado" valor, necessário para reparar um elevado prejuízo, pode permitir a inversão de um Juízo essencial sobre a demanda, como se mais valor significasse menos direito. Num dos casos concretos mais típicos que refere este estudo trata-se de uma execução definitiva, que já fora objeto de embargos à execução, julgados improcedentes por decisão passada em julgado. Esta é atacada por ação rescisória, julgada improcedente (sem atribuição de efeito suspensivo), tanto no TRF, como também no STJ, instância onde pende de julgamento agravo interno, contra a decisão que não conheceu do recurso da executada. E segue o caso emblemático: depois de cinco anos perdidos por conta de um agravo baseado numa alegação completamente desarrazoada de "erro material" no precatório expedido e, depois do juiz da execução determinar a liberação dos depósitos monetários que cumpririam a sentença expedida, a parte executada propõe um novo agravo de instrumento, pedindo a suspensão do processo de execução até o julgamento final da rescisória que já foi julgada! Agora, determinada pela segunda vez, a liberação dos valores devidos com o aval TRF, intenta a parte executada outro agravo, no qual repete as mesmas alegações protelatórias. Trata-se, na verdade, de impor ao Poder Judiciário um jogo barroco de suspensões do direito ao devido processo legal! O único argumento (extrajurídico) que restou à executada, no final deste caso concreto (para tentar retardar mais uma vez o final da execução), é que os valores alimentares são vultosos. É preciso buscar e rejeitar, em cada caso concreto, quais os argumentos do barroquismo que invertem as funções da prestação jurisdicional, tornando-a caudatária do "desejo" de uma das partes, não do que determina o sistema de normas que decorre da Constituição. É o processo eivado do barroquismo, já sem qualquer graça renascentista, invertendo os polos do prejuízo! [1] MARTÍN, Carlos de Cabo. TEORÍA CONSTITUICONAL DE LA SOLIDARIDAD. Madrid, Barcelona: Marcia Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A. 2006, p.54. [2]JOBIM, Nelson. O JURIDIQUÊS COMO LEGADO BARROQUISTA. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-juridiques-como-legado-barroquista-20082020>. Acesso em: 24 de abr. de 2023. [3] LEAL,PAULO J B. Augusto Teixeira de Freitas e o desenvolvimento do direito civil brasileiro (artigo em poder do autor) [4] KELSEN, Hans. A Justiça e o direito natural tradução prefacio de João Baptista Machado. Armênio Amado, Coimbra: Editor. Sucessor, 1979. P.66-67 *Razões do agravo (Marco Aurélio Pereira da Silva)
2023-05-03T09:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-03/tarso-genro-barroco-juridico-casos-concretos-negacao-justo
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Senso Incomum
Se você "não tem palavras...", confira o Dicionário Senso Incomum
Para quem só lê os títulos e as primeiras linhas de um texto (isso hoje é muito comum), já dou spoiler: estou lançando o Dicionário Senso Incomum — Mapeando as Perplexidades do Direito, da Editora Dialética. Agora vamos a uma breve apresentação. Toda simplificação incorre em um paradoxo, porque, depois de simplificada, a coisa ainda necessita ser explicada. Cria-se um círculo vicioso da simplificação que precisa de outra simplificação. É a Pedra filosofal do Simples. No contexto de uma epocalidade marcada pela massificação do conhecimento, a linguagem tende a se reduzir a um puro instrumento por meio do qual se entra em contato com o mundo. Eis o problema fundamental. Partindo-se do pressuposto — equivocado — de que a linguagem é puro instrumento, cria-se o ideal de torná-la menos complicada (existem até livros que orgulhosamente se apresentam como "sem as partes chatas" ou "partes difíceis") e o mais simplificada possível, daí porque simples reduções, abreviações e quejandices não são inocentes. Da abreviação da linguagem, o que sobra é algo sintético. Algo sempre diferente. E algo certamente menor. Há mais de dez anos a coluna Senso Incomum está no ar aqui no site Consultor Jurídico. Neste decênio fui criando conceitos e neologismos para melhor conseguir comunicar o que estou pensando. Por vezes se diz "não tenho palavras para dizer o que sinto". Pois é verdade. A palavra é condição de possibilidade para dizer as coisas do mundo. Desde a aurora da civilização essa questão se põe. No primeiro grande livro de filosofia da linguagem, o Crátilo, Platão, pela boca de Sócrates, faz um capítulo cujo fantasma nos persegue até hoje: "Da Justeza dos Nomes". Por que as coisas e os humanos têm nomes? A literatura captou bem essa fenomenologia. Já a Bíblia o faz em João, 1, 1: "no princípio era o verbo". Graciliano Ramos, em Vidas Secas, bem mostra isso: falo de quando os filhos de Fabiano entram pela primeira vez na cidade. "Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes". Mais tarde, Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão, também retorna ao mito bíblico do logos: "naquela pequena Macondo, as coisas ainda eram tão recentes que, para dirigirmo-nos a elas, ainda precisávamos apontar com o dedo. Porque elas ainda não tinham nome". Como nomeamos? Temos as palavras? Por vezes temos de construir novas e até mesmo criar conceitos para que as coisas lhes caibam melhor. Por isso, o presente dicionário que chamei de Senso Incomum — Mapeando as perplexidades do Direito. Dizendo pela primeira vez aquilo que está dito. Ou não. São 111 verbetes. Bom, agora eu já não preciso dizer "estou sem as palavras para dizer isto ou aquilo...". Por exemplo, para os casos em que o advogado clama pelos direitos de seu cliente e ninguém o ouve, tenho o verbete "Gaslighting Jurídico". Para os casos de ignorância endêmica, leiamos o verbete "Saber Nenhum". Quando alguém mistura textualismo com voluntarismo, eis o verbete "Anarco Textualismo". E que tal o "Direito Fofo", para aquelas interpretações erradas, mas que ninguém pode discordar? E o que dizer das "Concursocracias da Prosperidade" que se espalham como autoajudas jurídicas? E o "Neopentecostalismo jurídico"? Quando alguém quer sustentar que "isso é assim mesmo, não adianta reclamar", deve abrir o Dicionário no verbete "Próteses para Fantasmas". E assim por diante. O Dicionário também é uma boa vacina contra o Homo WhatZapiens. E ajuda você a fugir do Homem Comum do Direito. E da Mulher Comum, é claro. Bom, tem também o "Terraplanismo Jurídico". Enfim, são 111 verbetes. São muitos anos de observação. Dar nome às coisas. Eis o desafio desde a aurora da civilização. O Dicionário tem essa pretensão nomotética. Nomos é lei. Nomoteta: o que dá nomes. No Direito, algumas coisas ainda são tão novas que ainda precisamos apontar com o dedo. Ou consultar o Dicionário Senso Incomum. Boa leitura. Clique aqui para adquirir a obra
2023-05-04T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-04/senso-incomum-voce-nao-palavras-confira-dicionario-senso-incomum
academia
medidas de investigação
Escola do MP oferece curso em parceria com universidade alemã
A Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios firmou convênio com a Cátedra de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Penal Estrangeiro e Teoria do Direito Penal da Universidade Humboldt de Berlim-Alemanha e está promovendo, em parceria, o curso Medidas Ocultas de Investigação no Processo Penal, destinado a profissionais do Direito. Os aulas vão abordar os problemas específicos de medidas ocultas de investigação, tais como interceptação de telecomunicações, captação de sinais acústicos fora e dentro do domicílio, a figura do agente encoberto, a infiltração em computadores, entre outras práticas. As técnicas, em geral justificadas com base em exigências de combate ao crime organizado, serão abordadas do ponto de vista ético e legislativo. O curso busca oferecer uma reflexão panorâmica sobre as formas de investigação, levando em conta tanto os princípios constitucionais e processuais que as orientam, quanto as regras que as constituem. Serão abordadas as perspectivas alemã, portuguesa e brasileira. A metodologia é expositiva e participativa, complementada por sugestões de leitura, que serão enviadas com antecedência aos participantes. As aulas estarão estruturadas em dois grandes grupos: a) princípios constitucionais e processuais orientadores das medidas ocultas; e b) medidas ocultas em espécie: problemas específicos. As aulas serão ministradas em língua portuguesa, com exceção da exposição inaugural. O curso acontecerá presencialmente na Faculdade de Direito da Universidade Humboldt de Berlim, no período de 24 a 28 de julho de 2023. O corpo docente é formado por Luís Greco, professor catedrático de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Penal Estrangeiro e Teoria do Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Humboldt de Berlim. Doutor e LL.M. em Direito pela Universidade de Munique, Alaor Leite, professor auxiliar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Lisboa. Doutor e LL.M. em Direito pela Universidade de Munique e Bernd Schünemann, professor catedrático de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito da Universidade de Munique, Alemanha. Doutor em Direito pela Universidade de Gotinga. As vagas são limitadas ao número máximo de 60 participantes. As inscrições estão disponíveis até 30 de maio neste link. O valor da matrícula é de R$ 1.000, que devem ser pagos no ato da inscrição, e 980 euros que devem ser pagos após a confirmação da inscrição. As despesas referentes a passagens aéreas, hospedagem, alimentação, inscrições, entre outros gastos relacionados à participação no curso não estão contempladas no valor. Os certificados — expedidos pela Cátedra e pela Fundação Escola — serão entregues aos participantes que obtiverem 80% da carga horária do curso. Conteúdo Programático: 24/7/2023 (segunda-feira) 9h30 às 11h30 - Aula inaugural com o Prof. Dr. Bernd Schünemann. 14h às 17h - Tema: Princípios constitucionais e processuais orientadores das medidas ocultas (I). Prof. Dr. Luís Greco. 25/7/2023 (terça-feira) 9h às 12h - Tema: Princípios constitucionais e processuais orientadores das medidas ocultas (II). Prof. Dr. Luís Greco. 14h às 17h - Tema: Princípios constitucionais e processuais orientadores das medidas ocultas (III). Prof. Dr. Alaor Leite. 26/7/2023 (quarta-feira) 9h às 12h - Tema: As medidas ocultas em espécie (I): problemas específicos. Prof. Dr. Luís Greco. 14h às 17h - As medidas ocultas na prática da persecução penal. 27/7/2023 (quinta-feira) 9h às 12h - Tema: As medidas ocultas em espécie (II): problemas específicos. Prof. Dr. Alaor Leite. 14h às 17h - Tema: As medidas ocultas em espécie (III): problemas específicos. Prof. Dr. Luís Greco. 28/7/2023 (sexta-feira) 9h às 12h - Tema: As medidas ocultas em espécie (IV): problemas específicos. Prof. Dr. Alaor Leite.
2023-05-05T17:47-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-05/escola-mp-oferece-curso-parceria-universidade-alema
academia
Opinião
Jorge Trindade: Prova pericial psicológica e seus fantasmas
No direito processual penal, em matéria criminal — e aí reside uma questão que a psicologia e a psiquiatria têm dificuldade de compreender —, a forma não é uma mera formalidade, mas uma garantia. Uma garantia inegociável e irrenunciável, porque está associada ao direito de defesa e aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório e, desta maneira, indissociável do devido processo legal (Due processo of law). Garantia de direitos significa garantia de segurança e de liberdade. Vale um exemplo: quando o acusado no processo penal tem o direito de se manifestar por último, depois de todas as testemunhas e depois de encerrada a acusação, não é por casualidade, mas por obediência a uma ordem que é garantidora, pelo menos formalmente, de que nada será oposto de surpresa sem que o imputado tenha conhecimento e sobre o não que tenha a oportunidade de exercer com plenitude a sua autodefesa e a sua defesa legal. Assim, efetivamente é por se tratar de uma garantia. O imputado necessita ter pleno conhecimento acerca do que se lhe atribui para poder se defender plenamente e ter assegurado que nada lhe venha a golpear pelas costas. E por qual motivo poderia ser diferente quando se trata de produzir uma prova pericial psíquica/criminológica? E por que razões os peritos (psicólogos e psiquiatras) insistem em negar a participação do assistente-técnico (e mesmo dos advogados) em seus procedimentos? Por acaso, os atos que praticam são menos do que provas? Não. São provas no sentido pleno da palavra. Podem esses atos ficar na sombra ou, mais radicalmente, na mais completa escuridão? Seria verdadeiramente, como às vezes se argumenta, para assegurar o procedimento avaliativo? Nesse caso, assegurar exatamente o quê? Seria, como às vezes argumentam, para proteger a vítima? Mas não é a presença do réu que se discute. Trata-se da assistência técnica, do consulente de parte, do advogado(a). Da presença — e apenas da presença — daqueles que têm a missão de observar e se manifestar precisamente sobre aquilo que a perícia produz: o rapport, a metodologia, as perguntas formuladas, as eventuais heurísticas (viés confirmatório, hipótese única, raciocínio circular, algum tipo de indução, perguntas inadequadas, dentre outros aspectos do procedimento). Em síntese, do direito de exercer plenamente o papel que a lei atribui ao assistente técnico, que atua em uma linha de continuidade da defesa. Portanto, ao abrigo dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Entretanto, como exercer o princípio do contraditório, inerente ao processo, se a perícia ocorre a quatro paredes? Como saber se as perguntas feitas pelo expert foram neutras e apropriadas e não tendenciosas ou contaminadas? Só há uma forma de saber: se a avaliação for transparente, clara e assistida. Em outras palavras, se for um ato ético no sentido específico do termo, ou seja, um ato aberto. Não enclausurado. Por outro lado, os experts também devem ser socráticos: saber que não sabem. Porque há uma grande diferença entre aqueles que não sabem que não sabem e aqueles que sabem que não sabem. Estes permitem a crítica, os outros tomam-na como ofensa. Portanto, a dimensão ética da perícia forense é ser conhecimento aberto no sentido socrático e não uma instrumentação fechada, hermética, encerrada em si mesmo. Essa concepção configura um paradigma jurídico, mas também filosófico e epistêmico, e deve estar presente em todas as disciplinas da chamada área "psi", que não devem esquecer que, em direito, a forma é uma garantia. No Brasil, parece que tanto os psiquiatras quanto os psicólogos são preparados do ponto de vista técnico para atuar na área clínica. Entretanto, na maioria das vezes, nem uns nem outros conhecem os princípios básicos para exercer a psicologia forense, onde a forma precisa ser respeitada acima de tudo. Acima de todos os interesses, pois a forma foi constituída como garantia do devido processo legal. Se na clínica é o doente que se expressa ou se incrimina pelas suas falhas conscientes ou inconscientes (lapsus linguae e outros), na área forense é o Estado que detém a persecução do arguido com todas as suas forças e com todos os seus tentáculos. E, nesse momento, o perito faz parte desse mesmo Estado, exercendo funções em nome do Poder Judiciário. Para ser irrepreensível, a perícia terá de ser não só neutra no sentido de equidistante das partes, mas também aberta, afastada de qualquer escuridão ou magia. Aberta à visibilidade processual que somente se alcança através do exercício pleno da ampla defesa e do contraditório. De considerar que a subjetividade é própria da clínica, mas completamente estranha ao direito processual penal no sentido de que este cada vez mais se aproxima da cientificidade e, portanto, da objetividade. Nesse aspecto, pode-se afirmar que a clínica é autônoma, enquanto a psicologia forense é heterônoma. Na clínica, a discursividade e a imputação são interiores e subjetivas, provêm do mundo interno do sujeito. Porém, na área forense, a imputação vem de fora para dentro da pessoa. Por isso, a prova, mesmo psíquica, deve estar aberta para o exercício com plenitude pela defesa. Para isso, deve ser pautada objetivamente e fundamentada em sua metodologia e conclusões. Tais aspectos configuram uma garantia de ordem pública, pois a perícia é sempre um meio de prova. E qualquer prova, seja policial ou judicial, pré-processual ou processual, está sujeita a uma contraprova. É inerente à prova a possibilidade ontológica de ser contestada. Se a prova não for passível de uma contraprova, não será propriamente uma prova, mas um dogma, algo que se impõe e que deve ser aceito imperativamente, que não pode ser discutido. Ademais, a regra da possibilidade de contraprova vale desde o início de sua produção e não apenas para o final, quando o ato já estiver consumado. Ao fim, não se sabe mais o que aconteceu antes e o que determinou a conclusão de um procedimento pericial que se processou de maneira oculta. Se na prática clínica a subjetividade se constrói com o outro, no campo forense essa construção não pode prescindir da forma. Pois, nesse caso, a forma é uma garantia do sujeito frente ao poder externo da lei. Na seara da psicologia forense, a subjetividade não se estabelece entre indivíduos ou particulares, nem no campo do desejo, mas em torno do público, onde a regra é a ética da transparência em todos os atos, desde o começo até o fim. Portanto, a relação (subjetividade) em matéria pericial não é uma construção qualquer, mas uma construção com o outro perante a lei. Eis aí a diferença. É uma relação pautada pela força da lei que prevalece, tanto para o perito, quanto para o examinado. Uma construção mediada pela lei, onde a forma é sempre garantia.
2023-05-05T09:09-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-05/jorge-trindade-prova-pericial-psicologica-fantasmas
academia
sabedoria judaica
Binenbojm lança obra sobre valores do judaísmo e estudos de rabino
O advogado Gustavo Binenbojm, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), lançará, neste mês de maio, seu livro "O Rabino do Mundo: A Sabedoria Judaica Compartilhada", publicado pelo selo História Real da editora Intrínseca. O primeiro evento de lançamento, com sessão de autógrafos, acontecerá no próximo dia 17/5, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, Zona Sul do Rio. Já no dia 1º/6, a obra será lançada também no Museu Judaico de São Paulo, no bairro da Bela Vista, no centro da capital paulista. O livro trata da história do povo judeu e do legado do filósofo e teólogo Jonathan Sacks, que foi rabino-chefe do Reino Unido e, até sua morte em 2020, membro da Câmara dos Lordes. Binenbojm entrelaça os valores humanistas da obra de Sacks com reflexões filosóficas, preceitos religiosos e experiências pessoais de autores como Friedrich Nietzsche e Primo Levi. Dentre os assuntos abordados estão o medo da morte, a busca por um sentido na vida, a liderança dos educadores dentro da sociedade, a importância do erro, a conquista civilizatória da defesa da liberdade, os tribunais morais da internet e seus implacáveis cancelamentos. "O cancelamento é o novo desterro, uma condenação coletiva, sem que exista processo, defesa ou juiz. Não é à toa que o rabino Jonathan Sacks chamou o nosso tempo de a 'era do imperdoável'. A internet tem uma aversão absoluta ao erro. E, no entanto, seres humanos cometem erros. Essa é, no mundo real, a matéria-prima da qual todos somos feitos", diz o autor. O prefácio do livro é do ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer. Já a orelha é da jornalista Renata Capucci. "Gustavo Binenbojm nos leva a um mergulho nos pilares do judaísmo sob a ótica do rabino Jonathan Sacks, um defensor dos valores judaicos, como moralidade, humanismo e democracia", diz ela.
2023-05-06T15:56-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-06/advogado-lanca-obra-valores-judaismo-estudos-rabino
academia
Justiça inabalada
Anuário da Justiça Brasil 2023 será lançado no STF no dia 10 de maio
O Anuário da Justiça Brasil 2023 será lançado na sede do Supremo Tribunal Federal neste dia 10 de maio, quarta-feira, às 18h. O evento terá a presença da presidente da corte, ministra Rosa Weber, de ministros do STF, das cortes superiores e de representantes da comunidade jurídica. A publicação tem o apoio da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado). A 17ª edição do Anuário mostra o protagonismo do Poder Judiciário na contenção dos movimentos antidemocráticos, especialmente diante dos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. A sua atuação foi essencial para formar uma frente ampla em defesa da Constituição Federal e do Estado de Direito. Tudo isso foi feito enquanto os tribunais lidavam com uma avalanche processual das mais variadas ordens: em 2022, a Justiça brasileira recebeu 29,5 milhões de casos novos – 2,5 milhões a mais do que em 2021, mantendo uma taxa de crescimento anual próxima dos 9%. Saiba quem são e como votam os ministros do Supremo Tribunal Federal e de todos os Tribunais Superiores nas principais áreas do Direito e em Habeas Corpus. Uma seleção das decisões mais relevantes do último ano, do ponto de vista da jurisprudência e pacificação de temas controversos, é apresentada ao leitor. O Anuário da Justiça também mostra a produtividade de cada um dos ministros da cúpula do Poder Judiciário: a quantidade de processos distribuídos, julgados e em acervo. A história e o histórico dos Habeas Corpus são abordados em uma reportagem especial, que mostra a "overdose do remédio heroico" nos tribunais superiores. Os caminhos vislumbrados pelos operadores do Direito para a melhor resolução dos conflitos também são tema da reportagem. O leitor ainda encontra nas páginas do Anuário da Justiça Brasil informações sobre os integrantes e a atuação do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e do Tribunal de Contas da União. E poderá entender o impacto da troca no comando de pastas importantes do Executivo, como a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, e a Polícia Federal. A publicação está em pré-venda na Livraria ConJur e a versão online estará disponível, gratuitamente, a partir do dia 10 de maio no site do Anuário (anuario.conjur.com.br). Lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2023 Quando: Quarta-feira, 10 de maio, às 18h Onde: Salão Branco do Supremo Tribunal Federal. Praça dos Três Poderes, Edifício-sede, Brasília – DF Versão digital (a partir do dia 10 de maio): http://anuario.conjur.com.br (gratuita) Versão impressa: Livraria ConJur (R$ 40) Anunciaram nesta edição Apoio FAAP – Fundação Armando Alvares Penteado Anunciantes Advocacia Fernanda Hernandez Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia Basilio Advogados Bottini & Tamasauskas Advogados Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil D'Urso & Borges Advogados Associados David Rechulski Advogados Dias de Souza Advogados Erik Pereira Advogados Feldens Advogados Fontes Tarso Ribeiro Advogados Fux Advogados Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados Gustavo Uchôa Advogados Heleno Torres Advogados Hesketh Advogados JBS S.A. Leite, Tosto e Barros Advogados  Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno – Advogados  Machado Meyer Advogados  Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia  Mendes, Nagib & Luciano Fuck Advogados Milaré Advogados  Moraes Pitombo Advogados  Nelio Machado Advogados  Nepomuceno Soares Advogados  Nery Sociedade de Advogados  Pardo Advogados & Associados  Prevent Senior  Sergio Bermudes Advogados  SOB – Sacramone, Orleans e Bragança Advogados  Tavares & Krasovic Advogados  Thomaz Bastos, Waisberg, Kurzweil Advogados Tojal Renault Advogados  Walter Moura Advogados Associados  Warde Advogados
2023-05-06T11:09-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-06/anuario-justica-brasil-2023-lancado-stf-dia-10-maio
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Diário de Classe
Uma sentença judicial clara dispensa interpretação?
Prolegômeno 1: no centro da discussão, um tema de filosofia no direito há muito trabalhado pelo professor Lenio Streck: estamos condenados a interpretar. Prolegômeno 2: no debate, a interpretação do sentido e alcance da decisão judicial no processo do trabalho; em alguma medida, uma justa homenagem ao recente dia do trabalhador. Há 100 anos, Carlos Maximiliano publicava uma obra dedicada à interpretação do fenômeno jurídico. Em Hermenêutica e Aplicação do Direito [1], criticava o vetusto axioma que reinou absoluto por meio século, qual seja, o dogma segundo o qual a clareza do texto dispensaria a interpretação — "in claris cessat interpretatio". Embora tratasse, na altura, da posição do exegeta diante de um texto normativo (fosse o texto claro ou obscuro), a reflexão tem aderência ao propósito das reflexões aqui sucedidas, porque, julgamos, não parece sustentável afirmar, cientificamente, que uma decisão judicial "clara" dispense um processo compreensivo/interpretativo. A noção de plenitude do texto remonta ao positivismo primevo [2]. A escola da exegese tinha por premissa amalgamar o direito às proposições gerais das leis, enquanto abstrações a respeito do que o direito deveria ser. Tal corrente legitimou o mito do "juiz boca da lei", por meio do qual o Judiciário atuaria como despachante da vontade geral ou da lei natural, por sua vez perfeitamente representadas no texto legal. Nesta perspectiva, a linguagem se apresentava como uma ferramenta a serviço de uma racionalidade assujeitadora. Entre o sujeito e o objeto estaria a linguagem, como um instrumento designativo neutro, enquanto a tarefa da teoria do direito se resumiria a uma ciência da legislação, tal como propunha Jeremy Bentham. Contudo, até mesmo os positivistas pós-exegéticos (como Kelsen e Hart) reconheciam a inevitabilidade do componente subjetivo na dicção do direito, reconhecendo, portanto, o papel discricionário do julgador [3]. Nesse contexto, podemos afirmar que, apesar de o sujeito moderno rejeitar a ideia de que as coisas possuem uma essência (como na metafísica clássica), não há uma superação do esquema sujeito-objeto. A verdade ainda depende de corresponder com algo ideal, objetivo e alcançável mediante o uso do instrumento-linguagem. Neste sentido, as metafísicas têm diferentes abordagens, mas se aproximam: a linguagem deve ser boa o suficiente para corresponder à essência de um objeto (adeaquatio intellectum et rei) ou é boa o suficiente para articular o ideal instituído pela autoridade (adeaquatio rei et intellectum). O século 20, contudo, testemunhou uma virada no âmbito da filosofia: o giro ontológico-linguístico [4], que libertou a filosofia de um fundamento último e a introduziu ao mundo prático. Wittgenstein e Heidegger foram corifeus desta virada, a partir da qual não há como se pretender alcançar um ponto arquimediano para a interpretação. Em outras e poucas palavras, a linguagem não pode mais ser utilizada como ferramenta disponível ao intérprete, pois a relação do sujeito não se dá com algo externo, mas sempre consigo mesmo, visto que a linguagem intermedeia a existência e qualquer interação humana. É a linguagem que abre o horizonte do intérprete, legitima e, concomitantemente, limita a interpretação. Daí a famosa passagem de Gadamer: "ser que pode ser compreendido é linguagem" [5]. O autor rejeita a ideia de interpretação meramente reprodutora do sentido do texto. É na fusão de horizontes (texto-intérprete) que o sujeito, consciente da diferença ontológica e a distância histórica, atribui sentido ao texto (Sinngebung), jamais dele se apropriando. Trata-se da noção de Applicatio, segundo a qual a interpretação não ocorre — e nem pode ocorrer — em etapas, como se fosse possível primeiro conhecer, para então interpretar e só depois aplicar [6]. Dizer que um texto é claro e, por isso, prescinde de interpretação é se render ao senso comum teórico [7], replicando teses abstratas sem a devida atenção aos argumentos que a amparam. E isso ocorre pela falta da recepção paradigmática da filosofia pela teoria do direito, sem responsabilidade epistêmica, política e jurídica [8]. Significa dizer que o sentido não mora no texto; o texto não existe na sua "textitude", como costuma nos lembrar o professor Lenio Streck [9]. Tampouco é possível dizer que habita na subjetividade do intérprete, porque o homem não é senhor dos sentidos; pensar assim é prender-se ao paradigma da filosofia da consciência e suas vulgatas, já ultrapassado pela invasão da linguagem no âmbito da filosofia. Se o paradigma contemporâneo da filosofia assenta na linguagem — e o fenômeno jurídico é caudatário do manancial filosófico —, por mais escorreita que seja a linguagem, estamos condenados a interpretar (Streck). "Nítida ou obscura a norma, o que lhe empresta elastério, alcance, dutilidade, é a interpretação", porque até mesmo o silêncio deve ser interpretado [10]. Em que pese essas premissas da filosofia contemporânea — que impactam diretamente na compreensão do fenômeno jurídico, algumas práticas dos tribunais ainda parecem reféns de paradigmas ultrapassados. No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, ao tratar da interpretação do sentido e alcance do título executivo, a Orientação Jurisprudencial nº 123 da Subseção de Dissídios Individuais 2 dispõe que "o acolhimento da ação rescisória calcada em ofensa à coisa julgada supõe dissonância patente entre as decisões exeqüenda e rescindenda, o que não se verifica quando se faz necessária a interpretação do título executivo judicial para se concluir pela lesão à coisa julgada". Nos julgados que deram origem ao verbete, a justificação é fundamentalmente a mesma, variando nas expressões alusivas à clareza ou obscuridade do título executivo: apenas há ofensa constitucional em caso de dissonância patente — inequívoca, aberrante, nítida, evidente, gritante - entre a decisão exequenda e rescindenda. Essa mesma orientação jurisprudencial é utilizada, por analogia, como obstáculo ao recurso de revista interposto por ofensa constitucional, quando a parte aspira debater, na fase de execução trabalhista, o sentido da coisa julgada. O fundamento é simples: se for necessário interpretar o alcance do título executivo, não se divisa ofensa à coisa julgada. E a mesma ratio é utilizada nos casos de ação rescisória; se for preciso interpretar, o corte rescisório é inviável. Contudo, não logramos encontrar uma só decisão, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, que tenha acolhido a pretensão de ofensa à coisa julgada. Como resposta, o fundamento é contumaz: a necessidade de interpretar o alcance da sentença ou acórdão, o que inviabiliza a alegada violação ao artigo 5º, XXXVI da CF/88. Se o tribunal, como regra, denega o recurso de revista sob a justificativa da (necessária) interpretação, acaba por reconhecer a inexorabilidade do processo interpretativo. Inúmeras questões se podem colocar: o que seria uma dissonância patente? Um título judicial que defere horas extras com reflexos em repousos, cuja liquidação não contempla reflexos em feriados, é um título claro ou obscuro? O conceito de repouso abrange o feriado? Ou uma sentença que define a reintegração do empregado "nas mesmas condições" anteriores à dissolução do contrato, mas seu cumprimento é questionado porque o trabalhador deixa de exercer atividade insalubre, enquadra-se "nas mesmas condições"? Trata-se de uma reintegração nos moldes determinados? Ou a condição mais benéfica (salubre), embora financeiramente prejudicial, viola a coisa julgada? Como visto, "a verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma" [11]. Por mais translúcida e rigorosa a linguagem empregada no texto, o discurso jurídico, como qualquer outro objeto, não carrega consigo a plenitude dos sentidos, dispensando a (inter)mediação do sujeito. Não é possível demarcar cientificamente uma linha divisória entre os casos de violação patente à coisa julgada e as hipóteses de violação decorrente da interpretação do título executivo. Quando introduziu as súmulas no direito brasileiro em 1963, Victor Nunes Leal não pretendeu emprestar-lhe vocação normativa, porque visou criar apenas um método de trabalho, compilando os julgamentos do STF no mesmo sentido, com a advertência de que não seria recomendável a interpretação dos verbetes. Dizia textualmente: "o que se interpreta é a norma da lei ou do regulamento, e a Súmula é o resultado dessa interpretação, realizada pelo Supremo Tribunal. (...) A Súmula não é norma autônoma, não é lei, é uma síntese de jurisprudência (...). Em alguns casos, interpretar a Súmula é fazer interpretação de interpretação. Voltaríamos à insegurança que a Súmula quis remediar" [12]. Por isso, é sempre problemática a tentativa de fornecer respostas antes das perguntas ou acreditar num objeto plenipotenciário, claro e indene de interpretação. Marilena Chauí, por exemplo, diz que uma montanha é só uma montanha; quando a miramos, concluímos que ela é real; até aqui, nenhuma dissonância patente. Mas para o politeísta, ela pode ser a morada dos deuses; para o capitalista que descobre uma jazida de minério, uma propriedade privada; se for explorada, é capital; para o trabalhador, o local de labor; para o pintor, a montanha é campo de visibilidade [13]. Se a clareza do objeto não dispensa o sujeito — e tampouco o intérprete é dono dos sentidos, as leis, sentenças, acórdãos e correlatos são textos que dependem da interpretação, sempre constrangida (limitada) pelo conceito de linguagem pública e intersubjetiva. Por isso, é impossível trabalhar qualquer texto sem o elemento hermenêutico. No contexto aqui defendido, a hermenêutica se dá entre a subjetividade e a objetividade (Zwischen), o que ampara a Crítica Hermenêutica do Direito edificada pelo professor Lenio Streck, cuja matriz teórica, assumindo a responsabilidade política para tratar do direito, recepciona paradigmaticamente a filosofia. Neste sentido, a CHD é interpretativista [14], rejeita o criterialismo (caro ao positivismo), sem cair em relativismo [15]. Em suma, nem o realismo filosófico (que pressupunha um mundo dado, com objetos que teriam uma essência, bastando ao sujeito a tentativa de "extrair" os respectivos sentidos), nem o idealismo filosófico (que pressupunha a verdade/a realidade na razão do intérprete). Não há "a coisa-em-si" e a "coisa-para-nós", mas sim "um entrelaçamento do físico-material e da significação, a unidade de um ser e de seu sentido, fazendo com que aquilo que chamamos de coisa seja sempre um campo significativo" [16] — e, acrescentamos, interpretativo. Por isso, concluímos, é filosoficamente impossível pretender eliminar o processo interpretativo, traçando uma linha demarcatória entre o que seria uma dissonância patente e uma divergência interpretativa ao título executivo. Numa palavra final — e com toda lhaneza: a OJ 123 da SbDI-2 do TST é anti-hermenêutica. [1] A obra foi escrita em 1924, cf. prefácio. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005. [2] Há vários positivismos e o assunto pode ser aprofundado em STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 263-327. [3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 287. [4] Cf. Verbete específico no Dicionário de Hermenêutica. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. Ver também OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2015. [5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meuer, São Paulo: Vozes, 1999. p. 687. [6] Contrariamente à pretensa cisão dos momentos interpretativos, conferir Streck no verbete "Applicatio": STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 21-23. [7] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I. Porto Alegre: Fabris, 1994. [8] Especificamente no caso do livre convencimento, cf. STRECK, Lenio; JUNG, Luã Nogueira. Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. Novos Estudos Jurídicos, [S. l.], v. 27, n. 1, p. 2–21, 2022. DOI: 10.14210/nej.v27n1.p2-21. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696. Acesso em: 29 abr. 2023. [9] Conferir verbete "Texto e norma" in STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 421. [10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 8-29. [11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 30. [12] LEAL, Victor Nunes - Passado e futuro da Súmula do STF. Revista de Direito Administrativo (jul./set., Rio de Janeiro, 1981. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43387/42051 p. 11-13. [13] CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 35ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 17. [14] A CHD abraça a angústia de interpretar corretamente em direito. Assume a responsabilidade de estabelecer critérios que permitam a análise e a classificação de uma interpretação como legítima ou ilegítima, não com a pretensão de adiantar os sentidos na interpretação, o que é filosoficamente impossível. Há criteriologia, não criterialismo (diferença propriamente abordada pelos colegas Vinícius Quarelli e Luísa Giuliani Bernsts em https://www.conjur.com.br/2023-abr-15/diario-classe-teoria-decisao-principios-critica-hermeneutica-direito), e disso depende a democracia, pois, contemporaneamente, democracia é critério, accountabillity, na medida em que não existe linguagem privada e deve haver um modo de constatar a veracidade/validade de qualquer determinação em direito. Cf. verbete "Autonomia do direito" no Dicionário de Hermenêutica. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. [15] Cf. verbete "Cognitivismo e não cognitivismo moral" no Dicionário de Hermenêutica. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. [16] CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 35ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 18.
2023-05-06T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-06/diario-classe-sentenca-judicial-clara-dispensa-interpretacao
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Novas perpectivas
Juíza propõe estratégia de gerenciamento judiciário em novo livro
Diante das alegações de que o Poder Judiciário brasileiro se encontra sobrecarregado por uma crescente litigiosidade, sendo incapaz de garantir uma tramitação célere e com qualidade para os processos, a juíza Maria Rita Rebello Pinho Dias, articulista desta revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), está lançando a obra Novas Perspectivas de Gerenciamento Judiciário (Contracorrente). O livro propõe uma nova estratégia de gerenciamento que passa pela correta identificação das três dimensões que, segundo a autora, impactam o bom andamento dos processos: a dimensão processual, a dimensão das unidades judiciais e a dimensão institucional. Assim, a partir da ampla experiência da autora, de exemplos empíricos e de uma vasta bibliografia, o livro  destrincha essas três dimensões, com foco, sobretudo, nos fatores exógenos ao processo. A autora propõe estratégias de gerenciamento para que o "magistrado ou a instituição, dentro dos limites permitidos pelo legislador, possam customizar soluções que impactem a tramitação do processo, conforme as necessidades dos casos concretos, objetivando obter maior celeridade e qualidade da prestação jurisdicional". Maria Rita Rebello Pinho Dias é doutora em Direito Processual Civil e graduada em direito pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). É juíza de Direito da 3ª Vara de Falências e Recuperação Judicial da Capital no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Lançamento: Novas Perspectivas de Gerenciamento Judiciário data: 17/5 às 18h30 local: Livraria da Vila — Rua Fradique Coutinho, 915, São Paulo
2023-05-07T17:42-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-07/juiza-propoe-estrategia-gerenciamento-judiciario-livro
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Segunda Leitura
Estratégias nas profissões jurídicas dos 40 aos 70 anos
Ocupar espaço no mercado de trabalho é o sonho de todos, ou quase todos, estudantes de Direito. Quase todos, porque alguns ali estão sem qualquer vocação, mais para atender o desejo dos pais ou para obter o título de bacharel em Direito, que lhes dará alguma vantagem na profissão que exercem ou, simplesmente, porque desejam ser estudantes eternos, passando de um para outro curso, valendo-se de bolsas, até onde for possível. Os 40 anos são um marco na vida de todos. Não por acaso diversas obras tratam do tema há décadas, podendo ser citada para os homens, a título de exemplo, "A Crise do Homem na Meia Idade — Recomeçando a Vida aos 40".[1] O nosso corpo não será o mesmo e não adianta argumentar que a Jane Fonda tem mais de 80 e está linda.[2] Mas, por óbvio, uma vida bem regrada, acompanhamento médico e boa alimentação ajudam muito. As consequências da chegada aos 40 não são idênticas para homens e mulheres. Porém para ambos, como regra geral, esta idade traz perda de massa muscular, tendência à dilatação da barriga, redução do metabolismo, perda da densidade óssea, surgimento de cabelos brancos e, para os homens, redução dos níveis de testosterona. Se as coisas mudam do ponto de vista físico, por vezes causam reflexos graves no psicológico (quarentões passam a comportar-se como adolescentes, adotando roupas e falando como jovens). E se alteram com tanta força o comportamento das pessoas, por óbvio podem interferir nas suas atividades profissionais. Dali para a frente as mudanças se sucederão, valendo fazer a separação em decênios que, por óbvio, não são marcos imutáveis, variando conforme as pessoas. Aos que optaram por exercer a advocacia privada, os 40 anos já sinalizaram se a escolha foi boa ou não. Se o escritório não avançou, o dinheiro mal dá para pagar as contas, o melhor a fazer é mudar de rumo, por exemplo, preparando-se e adotando uma nova área de atividade jurídica ou mesmo mudando de profissão. Mas quem chegou aos 40 anos com sucesso, tudo caminhando bem e com boas perspectivas, também precisa mudar. Isto tem sentido? Sim. O mudar, aí, é no sentido de inovar, de atualizar-se, de adaptar-se a novos desafios. Por exemplo, se for uma advogada de família, fazer uma pós em psicologia social poderá ser uma boa medida. Mudar é o que fazem as empresas permanentemente, pois a imobilidade já significa ficar para trás. Nas carreiras públicas o foco será outro. A remuneração está garantida ao fim do mês, portanto a questão é de realização pessoal e não de sobrevivência. Com 40 ou mais anos, a pessoa já tem noção de seus limites, se avançará na luta por altas posições ou se optará pela acomodação. E aí surge uma questão essencial, nem todos são iguais. Alguns têm ambições legitimas de ocupar posições na alta hierarquia. Outros, por temperamento, preferem permanecer em posições mais cômodas, seguindo a rotina de uma vida mais tranquila. O que não pode é um inquieto talentoso permanecer na mesma rotina por toda a sua vida, pois ficará, com certeza, frustrado e infeliz. Aos 50 anos entra-se em uma nova etapa. Na minha opinião, nela estão as pessoas com o maior potencial de uma rica produção profissional, pois já possuem boa experiência de vida, podem estar em ótimas condições físicas e emocionalmente estão mais estáveis, inclusive. Mas a procura por um geriatra é imperiosa. Esta é a hora, não aos 70 como alguns supõem. Ele deverá conduzir todas as prescrições médicas para que o paciente tenha uma vida saudável. Ainda nas carreiras públicas, os cinquentões já perceberam que não é fácil mudar o mundo. Mais realistas, quando vocacionados adaptam-se ao sistema, sem renunciar aos seus ideais. Economicamente, se souberem conduzir bem as suas finanças, acham-se em condições de estabilidade. Nada lhes falta, pois os vencimentos são superiores aos das demais áreas. Mas a forma de ascensão não é a mesma. Carreiras mais novas, como a Defensoria Pública, podem possibilitar acesso rápido à cúpula. Em outras, o acesso é mais demorado. Um juiz pode levar de 25 a 30 anos para chegar ao Tribunal. Na Justiça Federal alguns entram sabendo que jamais irão ao TRF, pois a fila é grande e os cargos, poucos. Que fazer? O melhor a fazer é não se acomodar, tornando-se um desagradável insatisfeito. O jurisdicionado nada tem a ver com as frustrações de quem quer que seja. Ademais, exercer a profissão com má vontade é o caminho certo para uma vida infeliz. Em tal situação, a solução será: a) procurar participar de uma área do Direito de seu especial interesse, aprimorando-se em cursos de mestrado/doutorado; b) ter uma experiência no exterior, valendo-se da permissão que muitos tribunais dão, voltar com títulos, conhecimentos, utilizando-os a favor da sua Justiça e em proveito próprio (oportunidades que surjam); c) se a insatisfação é muito grande e a aposentadoria está longe, fazer um concurso para o foro extrajudicial, com possibilidades de ganhos bem maiores. Chegam os 60 anos. Os sonhos são menos ambiciosos. Decepções com o sistema ou com pessoas marcaram algumas passagens. A possibilidade de aposentar-se está mais próxima. É possível manter o ideal? A alegria? A resposta é sim, se não naturalmente, pelo menos como forma inteligente de viver. O geriatra agora não é opção, mas obrigação. Aos sessenta e pouco, os que se cuidaram bem e tiveram a vida sem grandes problemas estressantes têm condições físicas muito favoráveis. Apesar da lei brasileira dar aos de 60 anos a condição de idoso, a verdade é que alguns têm força, experiência e vontade para fazer as coisas. Neste caso, a situação é ótima. Todavia, muitos, a maioria mesmo, estão desencantados. Já viram muitas coisas na vida, assistiram entrar e sair governo prometendo melhores dias, quando, na verdade, a corrupção, o número de moradores de rua e outras mazelas aumentam dia após dia. A partir daí, a tendência é se tornarem burocratas, meros repetidores de práticas antigas. E no caldo do desencanto, poderão ceder às tentações. Não me refiro a receber dinheiro, mas sim às formas mais suaves de entregar-se. Um emprego para o filho, um cargo em comissão para a filha, uma vaga na creche para o neto, o empréstimo de uma casa na praia, esses favores da vida com os quais a sua consciência será complacente. E que, claro, serão cobrados com juros e correção monetária. Aí pode perder-se toda uma carreira feita com dignidade. Os que chegam aos 70 anos trabalhando, dividem-se em dois grupos: a) aposentados apegados ao poder, receosos de perder prestígio e parte do que ganham em atividade; b) uma minoria de abnegados que exercem um papel muito relevante, pois amortecem os arroubos dos mais jovens e passam a experiência tida na carreira. Poucos se preparam para o dia de limpar as gavetas e dar adeus. As mulheres levam a situação com mais sabedoria. Geralmente possuem outros interesses, são mais desapegadas do poder, mantém relações mais próximas com a família e dedicam-se a outras atividades. Os homens não costumam preparar-se e, um dia, veem-se fora da arena, excluídos das conversas, não encontram quem ouça as suas façanhas de anos atrás. Aos 70 anos ou mesmo alguns anos antes, é importante preparar-se para o Dia D. É importante começar a: a) cultivar outros interesses (de cinema a pescaria); b) iniciar uma faculdade ou o curso com que sonhava; c) aproveitar o convívio com a família; d) escrever as suas memórias; e) dedicar-se à genealogia da sua família; f) ler os livros sempre adiados; g) assistir clássicos ou novos bons filmes; h) tudo o mais que a imaginação possa ofertar. Mas a opção poderá ser outra: completa ociosidade. A estes vale a lembrança de Montaigne sobre a ociosidade, para quem "caracolando como um cavalo, cria ele cem vezes maiores preocupações do que quando tinha um alvo preciso fora de si mesmo".[3] O importante é colocar a carteira funcional na gaveta e não comentar com ninguém o que fez ou não fez. Esqueça. As pessoas, principalmente os jovens, não têm interesse em façanhas ocorridas há mais de um mês. Fazer novas amizades, participar de um clube de servir, atuar como voluntário, tudo isto poderá ser fonte de alegria. Quando descobrirem sua função dirão, elogiando: "Imagine, ela foi procuradora do Estado e nem fala nisto, é uma pessoa muito simples". E quando o dia chegar, saia de cabeça erguida, com orgulho do dever cumprido e de não ter contribuído para um Brasil pior.
2023-05-07T10:07-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-07/segunda-leitura-estrategias-profissoes-juridicas-40-aos-70-anos
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Embargos Culturais
O "direito da primeira noite" e "As Primícias", de Dias Gomes
Conta-nos certa narrativa historiográfica que o senhor feudal reservava para si o direito de passar a primeira noite de casamento com todas as mulheres do seu domínio. Na qualidade de dono inconteste de tudo e de todos o senhor via-se como o legítimo proprietário da primeira noite de todas as moças, as quais desvirginava. Atribuía-se um "privilégio", que ainda justificava como favor e benesse para praticava autorizado por costumes imemoriais. Ainda que o resumo que apresento seja historicamente impreciso, porque há variáveis e nuances, o tema é o pano de fundo para um horror civilizatório que na verdade revela relações de poder e de violência. É o tema do jus primae noctis, o "direito da primeira noite". Dias Gomes, o mais produtivo e importante dramaturgo popular brasileiro, (recomendo o estudo de Iná Camargo Costa, recentemente publicado pela Editora da Unesp) tomou o assunto do direito da primeira noite como fio condutor de "As Primícias", peça que escreveu em 1977, e que foi levada ao palco pela primeira vez em Brasília, em 1979, dirigida por Ricardo Torres. O diretor, Ricardo Torres, competentíssimo, dirige presentemente "Luiz Gama, uma voz pela liberdade", levado ao palco no Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Mais uma peça imperdível. "As Primícias" é um texto militante, de alto nível. É talvez o texto mais sério sobre a condição feminina (e sobre a violência contra as mulheres) que li nos últimos tempos. O problema é de algum modo universal e de todos os modos atemporal. Tanto que o dramaturgo diz ambientar a estória "em uma aldeia da Europa ou da América do Latina, entre os séculos 6 e 20". Essa peça tem o peso moral de quem sabe que está dizendo uma coisa importante. No enredo, uma virgem que seria oferecida ao senhor, e que se insurgiu contra a exigência do costume local. O marido, ao contrário de todos os outros maridos do tempo, também se insubordinou ao desejo do chefão. A própria mãe da insurgente defendia o costume abjeto: "Todos suportam, se não há outro jeito. Também não é assim... É um homem muito gentil, muito perfumado... Vou lhe dizer o que deve fazer para que a coisa não seja tão desagradável. Basta que na hora do sacrifício feche os olhos, relaxe e pense no homem que desejaria ter por cima (...)". O senhor local insiste que se trata de uma obrigação, de um sacrifício para ele próprio (sic), uma obrigação natural que não pode deixar de cumprir: "Mesmo sendo sacrifício, não iria me eximir. Porque a lei é a lei. Dever ser para todos igual. Esse ato expressa meu imenso amor ao povo, sem o menor preconceito estético ou racial (...)". A lei, mais uma vez, é a lei... Na noite alcançada pela peça o senhor violentou quatro mulheres, aguardando a insurgente, que seria a última. Os noivos das mulheres violentadas se revoltaram, saindo à caça da noiva insurgente e de seu noivo. Ao invés de se unirem no ataque contra uma instituição diabólica, exigiam que o sacrifício fosse também vivido pela noiva insurgente. A solidez das instituições locais estava em jogo. Não conto o desfecho, porque resenhas críticas não podem insinuar spoilers. Porém, adianto que os leitores dessa aliciante peça (agora publicada pela Bertrand Brasil) ficarão duplamente chocados com a reação da esposa do senhor todo poderoso. "As Primícias" é uma peça sobre poder, violência e misoginia. A estória que Dias Gomes contou não é diferente da história por tantas pessoas vivida. O dramaturgo dissecou a espinha dorsal de relações de poder que é misteriosamente sustentada por aqueles que são paradoxalmente os mais oprimidos. Um tema fascinante para quem gostamos do selo direito e literatura. Uma estória aflitiva para quem nos preocupamos com a dignidade da condição humana.
2023-05-07T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-07/embargos-culturais-primicias-dias-gomes
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Direito Civil Atual
Qual é a natureza dos créditos de carbono segundo o Direito Civil?
A crescente demanda pela compensação das emissões de dióxido de carbono (CO2) e outros gases do efeito estufa (GEE), em complemento ao movimento pela descarbonização da economia, tem atraído cada vez mais atenção para o potencial pouco explorado das florestas brasileiras. Uma das principais causas desse fenômeno é a edição de leis contendo metas climáticas vinculantes de redução das emissões e prazos para se alcançar a neutralidade. Na Europa, o Parlamento Europeu aprovou a "Lei Europeia do Clima" (Regulamento 2021/1119), prevendo redução vinculativa das emissões do bloco em, pelo menos, 55% até 2030, e a obrigatoriedade de se alcançar a neutralidade até 2050[1]. No Brasil, a Lei 12.187/09 (Política Nacional Sobre Mudança do Clima - PNMC) estabelecia o compromisso voluntário de reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas até 2020. Já por meio de Contribuição Nacionalmente Determinada no Acordo do Clima de Paris, o Brasil se propôs a reduzir as emissões em 37,5% até 2025 e 43% até 2030. O Congresso discute, atualmente, transformar essas metas voluntárias em obrigatórias (PL 3.250/15, aprovado na CCJ do Senado), na esteira do que já ocorre na Europa. Diante desse contexto, empresas e indústrias serão compelidas a zerar ou reduzir suas emissões no médio a longo prazo, sob pena de virem a ser responsabilizadas pelo descumprimento das leis climáticas. Para fazer isso, elas podem 1) descarbonizar suas atividades (alternando fontes de energia, investindo em tecnologias menos poluentes, etc.) ou, na impossibilidade diante do tipo da atividade ou sendo a redução alcançada insuficiente, 2) compensar suas emissões através de créditos de carbono verificados e validamente emitidos (carbon offsetting). Créditos de carbono podem ser definidos como a representação de 1  tonelada de CO2 ou equivalente[2] reduzido, evitado ou sequestrado da atmosfera. Os créditos são emitidos após um processo de mensuração, verificação e certificação, conferindo ao seu titular — em tese — o direito de emitir GEE nas mesmas proporções do que foi evitado ou de compensar suas emissões acima do legalmente permitido. Apesar das tentativas de regulamentação do setor, ainda há insegurança a respeito da natureza jurídica dos créditos de carbono. Não só no Brasil, mas também a nível global: há quem os trate como ativo financeiro, ativo intangível, conjunto de direitos, serviço e até como commodities[3]. No Brasil, a já citada Lei 12.187/09 é econômica ao dispor, em seu art. 9º, que "a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas" ocorrerá em bolsa de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado autorizadas pela CVM, potencialmente conduzindo à identificação dos créditos de carbono com valores mobiliários, o que poderia limitar o mercado aos títulos bursáteis. A Lei 12.651/12 (Código Florestal), em seu artigo 3º, conceitua crédito de carbono como "título de direito sobre bem intangível e incorpóreo transacionável", expressão que poderia levar o intérprete a equiparar — equivocadamente — créditos de carbono com títulos de crédito. Embora existam semelhanças, tal qual a noção de cartularidade – a incorporação do crédito a um documento de certificação — e a representatividade de um valor econômico expressável em dinheiro[4], um documento apenas pode ser considerado título de crédito se a lei lhe conferir essa característica[5], o que não ocorre no caso dos créditos de carbono. O recente Decreto 11.075/2022, ao endereçar a PNMC, define crédito de carbono como "ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado", enquadramento como ativo financeiro que pouco auxilia na compreensão de sua natureza jurídica. Nessa conjuntura, o recurso às normas gerais de Direito Civil pode contribuir para as discussões sobre a configuração dos créditos de carbono. No âmbito da natureza jurídica há de se analisar o enquadramento dos créditos certificados sob a ótica da tradicional classificação dos bens do Código Civil (artigos 79 a 103). Partindo da concepção clássica, tem-se por bens tudo aquilo que pode proporcionar alguma utilidade às pessoas, que tenha valor e utilidade econômica, que seja suscetível de apropriação. Nessa linha, o crédito de carbono certificado pode ser tomado — sem maiores problemas — como um bem móvel (tal qual o crédito, que pode circular), de natureza incorpórea (não possui existência material, eis que não pode ser apreendido fisicamente), em tese fungível[6] (pode ser substituído por outro de mesma qualidade, quantidade e espécie), indivisível (por convenção, o crédito de carbono equivale a 1 tonelada de CO2 equivalente[7] reduzido, evitado ou sequestrado da atmosfera, não podendo ser fracionado) e individual (embora reunidos, não necessariamente integram uma universalidade). Mais tormentosa é sua classificação sob o viés dos bens reciprocamente considerados. Importa definir se é um bem principal, cuja existência depende de si, abstrata e concretamente, ou acessório, cuja existência supõe a do bem principal. A resposta a essa questão parece depender da origem da redução, evitação ou sequestro das emissões. Considere-se, por exemplo, um projeto de REDD+[8] pela manutenção da floresta em pé: é possível chegar ao número de toneladas de CO2 reduzidas, evitadas ou sequestradas em determinada área num determinado período, gerando certas unidades de crédito de carbono verificadas. Parece claro, nesse caso, que o crédito é acessório do principal (a floresta). Mas seria ele um fruto ou um produto? Frutos são bens acessórios que têm sua origem no bem principal, mas não lhe diminuem a substância ou quantidade. Produtos, por sua vez, são extraídos do bem principal, mas afetam-lhe a substância e a quantidade. A discussão importa porque qualificações jurídicas diferentes aportam efeitos jurídicos distintos. E, neste caso, podem ter repercussões sobre a titularidade dos créditos. Pense-se numa comunidade extrativista atuante em uma unidade de conservação de uso sustentável. O Poder Público concede a essa comunidade, através de contrato (CCDRU), o direito real de uso da terra para que a explore segundo a sua destinação específica. A propriedade formal, todavia, ainda é do Estado. Num tal arranjo, se o crédito de carbono fosse conceituado como produto – o que, acredita-se, é equivocado — sua titularidade seria do Estado, titular da terra. Com efeito, visualizando-o como um fruto, que mantém íntegro o bem principal e se renova periodicamente, o crédito seria titularizado pela comunidade, que já desfruta do direito de usar e fruir da terra de modo sustentável. Além disso, não necessariamente o crédito de carbono terá sua existência atrelada a outro bem. Pode estar associado, também, à prestação de um serviço ambiental (fazer), assim considerados aqueles definidos na Lei 14.119/21. Nessa hipótese, o crédito, aparentemente, possuiria existência autônoma, e não acessória. O desenvolvimento de uma padronização — nacional e internacional — a respeito da natureza e do regime jurídico dos créditos de carbono é fundamental para a consolidação desse mercado e para a realização do enorme potencial econômico das florestas brasileiras. Uma próxima coluna terá como escopo a titularidade dos créditos de carbono de REDD+ em territórios de comunidades tradicionais, consideradas mundialmente como principais protetoras dos sumidouros de carbono. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] Redução das emissões de carbono: objetivos e políticas da União Europeia. Parlamento Europeu,  Bruxelas, 08 mar. 2023. Disponível aqui. Acesso em 06.mar.2023. [2] A denominação carbono equivalente deve-se ao fato de que outros gases também são responsáveis pelo efeito estufa, como o metano ou o óxido nitroso, mas a padronização é feita com base no carbono, por isso carbono equivalente. Uma tonelada de metano, por exemplo, corresponde a 21 toneladas de CO2. [3] INTERNATIONAL SWAPS AND DERIVATIVES ASSOCIATION. Legal Implications of Voluntary Carbon Credits. [s.l], dez. 2021. Disponível em: https://www.isda.org/a/38ngE/Legal-Implications-of-Voluntary-Carbon-Credits.pdf. Acesso em 05 mai. 2023. [4] NEVES, Maria Beatriz Correa; CHIANG, Gabriel Oura. Qual é a qualificação correta dos créditos de carbono para tributação? Jota, 05 mai. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/qual-e-a-qualificacao-correta-dos-creditos-de-carbono-para-tributacao-05052023. Acesso em 07 mai. 2023. [5] RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. [6] Quanto à fungibilidade dos créditos de carbono as discussões ainda não chegaram a uma conclusão definitiva por conta da diversidade de tratamentos jurídicos internos, o que impede a reunião de mercados regulados, por exemplo. [7] A denominação carbono equivalente deve-se ao fato de que outros gases também são responsáveis pelo efeito estufa, como o metano ou o óxido nitroso, mas a padronização é feita com base no carbono, por isso carbono equivalente. Uma tonelada de metano, por exemplo, corresponde a 21 toneladas de CO2. [8] REDD+ é a sigla para Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal, aliado ao + que designa a conservação de estoques de carbono florestal, o manejo florestal e o aumento dos estoques de carbono florestal.
2023-05-08T11:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-08/direito-civil-atual-qual-natureza-creditos-carbono-segundo-direito-civil
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Justiça inabalada
Anuário da Justiça Brasil 2023 será lançado no STF nesta quarta
O Anuário da Justiça Brasil 2023 será lançado na sede do Supremo Tribunal Federal neste dia 10 de maio, quarta-feira, às 18h. O evento terá a presença da presidente da corte, ministra Rosa Weber, de ministros do STF, das cortes superiores e de representantes da comunidade jurídica. A publicação tem o apoio da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado). A 17ª edição do Anuário mostra o protagonismo do Poder Judiciário na contenção dos movimentos antidemocráticos, especialmente diante dos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. A sua atuação foi essencial para formar uma frente ampla em defesa da Constituição Federal e do Estado de Direito. Tudo isso foi feito enquanto os tribunais lidavam com uma avalanche processual das mais variadas ordens: em 2022, a Justiça brasileira recebeu 29,5 milhões de casos novos – 2,5 milhões a mais do que em 2021, mantendo uma taxa de crescimento anual próxima dos 9%. Saiba quem são e como votam os ministros do Supremo Tribunal Federal e de todos os Tribunais Superiores nas principais áreas do Direito e em Habeas Corpus. Uma seleção das decisões mais relevantes do último ano, do ponto de vista da jurisprudência e pacificação de temas controversos, é apresentada ao leitor. O Anuário da Justiça também mostra a produtividade de cada um dos ministros da cúpula do Poder Judiciário: a quantidade de processos distribuídos, julgados e em acervo. A história e o histórico dos Habeas Corpus são abordados em uma reportagem especial, que mostra a "overdose do remédio heroico" nos tribunais superiores. Os caminhos vislumbrados pelos operadores do Direito para a melhor resolução dos conflitos também são tema da reportagem. O leitor ainda encontra nas páginas do Anuário da Justiça Brasil informações sobre os integrantes e a atuação do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e do Tribunal de Contas da União. E poderá entender o impacto da troca no comando de pastas importantes do Executivo, como a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, e a Polícia Federal. A publicação está em pré-venda na Livraria ConJur e a versão online estará disponível, gratuitamente, a partir do dia 10 de maio no site do Anuário (anuario.conjur.com.br). Lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2023 Quando: Quarta-feira, 10 de maio, às 18h Onde: Salão Branco do Supremo Tribunal Federal. Praça dos Três Poderes, Edifício-sede, Brasília – DF Versão digital (a partir do dia 10 de maio): http://anuario.conjur.com.br (gratuita) Versão impressa: Livraria ConJur (R$ 40) Anunciaram nesta edição Apoio FAAP – Fundação Armando Alvares Penteado Anunciantes Advocacia Fernanda Hernandez Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia Basilio Advogados Bottini & Tamasauskas Advogados Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil D'Urso & Borges Advogados Associados David Rechulski Advogados Dias de Souza Advogados Erik Pereira Advogados Feldens Advogados Fontes Tarso Ribeiro Advogados Fux Advogados Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados Gustavo Uchôa Advogados Heleno Torres Advogados Hesketh Advogados JBS S.A. Leite, Tosto e Barros Advogados  Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno – Advogados  Machado Meyer Advogados  Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia  Mendes, Nagib & Luciano Fuck Advogados Milaré Advogados  Moraes Pitombo Advogados  Nelio Machado Advogados  Nepomuceno Soares Advogados  Nery Sociedade de Advogados  Pardo Advogados & Associados  Prevent Senior  Sergio Bermudes Advogados  SOB – Sacramone, Orleans e Bragança Advogados  Tavares & Krasovic Advogados  Thomaz Bastos, Waisberg, Kurzweil Advogados Tojal Renault Advogados  Walter Moura Advogados Associados  Warde Advogados
2023-05-08T07:39-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-08/anuario-justica-brasil-2023-lancado-stf-nesta-quarta
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Opinião
Negreiros e Albuquerque: 220 anos de Marbury vs. Madison
Duzentos e vinte anos passaram, mas Marbury vs. Madison permanece como baliza para o sistema de controle de constitucionalidade de muitos países. "A Law repugnant to the Constitution is void" (uma lei contrária à Constituição é nula). Com essas palavras, em 1803, nos autos do caso Marbury vs. Madison, o lendário Chief Justice Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, declarou inconstitucional uma lei aprovada pelo Congresso estadunidense e sancionada pela Casa Branca, apesar de a Constituição americana nada dizer sobre controle de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional [1]. Em 1801, após Aaron Burr, candidato dos federalistas, ter sido derrotado pelo republicano Thomas Jefferson, nas eleições para a Presidência da República, o então presidente dos Estados Unidos, John Adams, federalista, aprovou o chamado Judiciary Act, criando novos cargos de juízes (circuit judges). No apagar das luzes de seu mandato, Adams correu contra o tempo para nomear e empossar juízes, antes que a oposição assumisse a presidência. O episódio ficou conhecido como o caso dos juízes da meia-noite [2]. Diante disso, em reação, os republicanos revogaram o judiciary act, em 1802, extinguindo os novos cargos de juiz e exonerando os juízes que haviam sido nomeados por Adams, por acreditar que ele havia usado suas prerrogativas de forma fraudulenta, aparelhando o Poder Judiciário para atuar de forma parcial, em favor dos federalistas. Por outro lado, os republicanos sustentaram que a revogação citada violou a independência judicial insculpida na Constituição americana. A celeuma foi parar na Suprema Corte, mediante a proposição de três ações judiciais. Duas foram propostas por juízes afastados (circuit judges), Reed e Stuart. A outra, foi proposta por William Marbury, que havia sido nomeado para um cargo menos relevante, Juiz de Paz, mas não tinha tomado posse, tendo em vista que o Secretário de Estado, James Madison, recusava-se a dar-lhe posse. Reed desistiu do pleito, então a Suprema Corte passou para o julgamento do Marbury vs. Madison. Nesse contexto, o Justice Marshall, seguiu o raciocínio do artigo nº 78 da obra O Federalista de James Madison, Alexander Hamilton e John Jay [3], que, por sua vez, versaram no sentido de que "a interpretação das leis é o terreno próprio e particular dos tribunais" e que "uma Constituição é, de facto, e assim deve ser olhada pelos juízes, uma lei fundamental". Diante disso, anotaram que "pertence-lhes (aos tribunais) averiguar o seu significado, bem como o significado de qualquer lei particular procedente do corpo legislativo" e arremataram que "a Constituição deve ser preferida ao decreto (do legislativo)", ou seja, deve prevalecer a intenção do povo, constante na Constituição, à intenção dos seus agentes eleitos. Marshall, assim, exarou a sua decisão, estabelecendo que "the particular phraseology of the constitution of the United States confirms and strengthens the principle, supposed to be essential to all written constitutions, that a law repugnant to the constitution is void", ou seja, a fraseologia particular da Constituição dos EUA confirma e fortalece o princípio, supostamente essencial a todas as constituições escritas, de que a lei contrária à Constituição é nula. Com essa decisão, o chief justice John Marshall consagrou o princípio da judicial review americana, importante estrutura do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) da República, e passou a influenciar todas as democracias do mundo com seu histórico julgamento. _____________________ Referências bibliográficas BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. Estados Unidos da América. Marbury v. Madison (1803). Disponível em: https://www.archives.gov/milestone-documents/marbury-v-madison#page-header HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista, 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. [1] Estados Unidos da América. Marbury v. Madison (1803). Disponível em: https://www.archives.gov/milestone-documents/marbury-v-madison#page-header [2] BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. [3] HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista, 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
2023-05-08T06:05-0300
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Lançamento em Brasília
Livro conta histórias dos mutirões carcerários do CNJ
O livro "O Cárcere da Agonia: a Superação dos Sobreviventes", que relata histórias por trás dos mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que mudaram o judiciário brasileiro, vai ser lançado nesta terça-feira (4/5) em Brasília.  Com prefácio do ministro Gilmar Mendes, a obra, assinada pelo escritor José Louzeiro, pelo pesquisador André Di Ceni e pelo advogado Marcos Meira, traz também relatos jurídicos do trabalho nos presídios do país. "Ouso dizer que a presente obra, além do resgate histórico, marca, no Brasil, o trabalho de vigilância e de revisão das prisões, que deve ser permanente e interinstitucional para que os casos emblemáticos trazidos à lume passem cada vez mais a serem exceções, e não regra", diz o ministro Gilmar Mendes no prefácio. As palavras resumem, em poucas linhas, um trabalho de 15 anos do CNJ, agora registrado em livro. O convite ao ministro Gilmar Mendes, aliás, não é por acaso. A base do livro é o trabalho do CNJ iniciado em 2008, sob a gestão do magistrado, nos já históricos mutirões carcerários em que mais de 20 mil presos provisórios foram libertados só nos dois primeiros anos de trabalho. A ideia foi corrigir a omissão do Poder Judiciário em prisões cautelares com prazos excessivos. No livro, coube ao advogado Marcos Meira levar os aspectos jurídicos à obra, que conta a história de personagens reais que enfrentaram a violência e negligência do Estado brasileiro. "Há um aspecto humano muito forte nos mutirões carcerários. É a Justiça sendo feita em seu conceito mais nobre. E o que a obra faz é mostrar como aquelas situações eram degradantes e atentavam contra a dignidade, mas tão importante quanto isso: eram inconstitucionais. O encarceramento em massa em condições precaríssimas é um verdadeiro estado de coisas inconstitucionais", diz Meira em nota.  "O problema carcerário no Brasil  encontra na figura do ministro Gilmar Mendes o seu maior defensor, demonstrado em suas decisões, manifestações e mesmo no acolhimento de egressos do sistema em seu próprio gabinete. É uma demonstração de sensibilidade social que deveria contagiar todos os poderes constituídos da República",  completa o autor. Lançamento: "O Cárcere da Agonia" (Contracorrente) Data: terça-feira (9/5), às 19h Local: Sede do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), SGAS II St. de Grandes Áreas Sul 607 Módulo 49 - Asa Sul, Brasília
2023-05-09T14:58-0300
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Fábrica de Leis
Legística: o que temos a aprender com os demais países lusófonos
O Brasil tem uma longa — porém nem sempre perene — tradição de grandes estudiosos da Legística (a "arte de preparar a lei", como define Rodolfo Pagano [1]). Desde os estudos pioneiros de Aurelino Leal, ainda no século 19, passando pelo genial legado de Victor Nunes Leal, até chegar aos autores que forjaram a técnica legislativa e a teoria da legislação atuais, como Gilmar Ferreira Mendes [2], Fabiana Menezes Soares [3], Ives Gandra da Silva Martins Filho [4], além dos trabalhos acadêmicos e práticos de juristas como José Levi Mello do Amaral Júnior e Esperidião Amin. Tudo isso desaguou na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998 (Lei de Técnica Legislativa) e nas regras de Legística material inseridas gradualmente na Constituição (ADCT, artigos 113 e 114) e na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000). A novíssima geração dos pesquisadores e estudiosos da Legística tem, porém, um grande desafio: alinhar o Brasil também com o que há de mais moderno em termos de prática da legislação no resto do mundo. Para essa tarefa, olhar para o que têm feito os (demais) países lusófonos pode ajudar. Nesse contexto, vale ressaltar a criação, em 2017, por iniciativa da Universidade de Lisboa (mediante ideia do professor Carlos Blanco de Morais, ele mesmo uma autoridade inequívoca em Legística, em nível mundial), do Grupo de Formulação de Regras Comuns de Legística para os Países e Regiões Lusófonos ("Grupo de Lisboa"). Contando com um representante de cada país de Língua Portuguesa, e também com representante da Região Administrativa Autônoma de Macau (China), o citado grupo reúne-se bianualmente para discutir a formulação e a implementação de regras de Legística formal e material que valham para todos os países-membros da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e também para Macau. Os trabalhos, previstos para serem concluídos no próximo biênio, devem resultar em um tratado com regras de Legística gerais e também na reformulação das leis de Legística internas de cada um dos países: ou seja, nossa Lei Complementar nº 95, de 1998, deve sofrer mudanças substanciais nos próximos anos. Mas o que há de tão diferente entre a Legística no Brasil e nos demais países lusófonos? Comecemos por uma visão geral. Todos os demais países de Língua Portuguesa adotam a tradição legislativa de Portugal, a qual é em alguns pontos um pouco distinta da nossa. Nesse aspecto, portanto, o Brasil é um tanto "isolado" do que se faz em outros países que falam o Português. Por outro lado, estamos muito mais avançados que a média em questões como a transparência dos trabalhos legislativos, a rastreabilidade dos textos legais e a participação popular na formulação de leis. Resta saber em quais pontos podemos "beber da fonte" dos países-irmãos, em termos de Legística. Quanto à Legística material (definição sobre quais as soluções que a lei deve dar a determinado problema, isto é, o estudo sobre qual o conteúdo que a lei deve ter), o Brasil está ainda num estágio muito rudimentar. Se Portugal (em 2009) foi advertido pela OCDE por não adotar regras de avaliação de impacto legislativo suficientes e respondeu com um programa governamental chamado "Legislar Melhor", no Brasil a situação é ainda mais dramática. Desde 2000, a LRF impõe a avaliação de impacto financeiro de leis que criem despesa de caráter continuado ou que tragam renúncia fiscal; essa regra, contudo, só foi posta "à vera" quando foi constitucionalizada pela EC nº 95, de 2016, transformando-se no atual artigo 113 do ADCT. Como, no entanto, advertiu o professor Manuel Cabugueira na reunião de 2021 do "Grupo de Lisboa", isso é apenas o início de uma exigência que precisaria ainda levar em conta questões como os custos econômicos da regulação para as empresas, os custos diretos e indiretos de implementação da lei para a administração pública e os particulares... enfim, a avaliação meramente financeira é apenas um primeiro e preliminar passo para o Brasil, que ainda está muito longe do "estado da arte" em termos de Legística material (a qual, como adverte Melissa Terni Mestriner, precisa também levar em conta questões ambientais, sociais, de gênero, etc.). Quanto à Legística formal, há muitas questões nas quais o Brasil ainda adota soluções diversas das de outros países culturalmente próximos. Há convergências em relação à necessidade de clareza da lei, ao uso da ordem direta, à revogação de normas sempre de forma expressa, à remissão que busca privilegiar a segurança jurídica... Mas existem também variados aspectos em que a legislação brasileira poderia ainda evoluir: - o uso de algarismos romanos para numerar os incisos é algo único do Brasil, o que torna especialmente complicada a enumeração com listas maiores; poderia muito bem ser substituído tal sistema pelo uso de algarismos arábicos (hoje usados para a enumeração de terceiro nível, muito raramente utilizada), como faz a maioria absoluta dos países do mundo (e todos os países lusófonos, à exceção de nós mesmos); - a inexistência de um "preâmbulo", assim entendido como uma "exposição de motivos" do texto legal aprovado, em cumprimento ao dever de transparência e de justificação inerente a qualquer produção legislativa; na Lei Complementar nº 95, de 1998, considera-se preâmbulo o texto que indica "o órgão ou instituição competente para a prática do ato e sua base legal" (artigo 6º), nada havendo que disponha sobre a explicação do emissor da norma sobre o conteúdo e a necessidade da lei; - a utilização do tempo verbal no futuro do presente, hoje não só admitida ao lado do presente do indicativo (artigo 11, I, d, da Lei Complementar nº 95, de 1998), como praticamente majoritária nos textos legais brasileiros; nisso estamos completamente isolados: é até considerado um fator indicativo de "estágio rudimentar" da legislação o uso do tempo verbal futuro; isso porque, se é verdade que todo legislador legisla para o futuro, também o é que o receptor da norma a lê no seu (dele) presente; ademais, o tempo futuro privilegia semanticamente o aspecto do "ser" ("o contrato conterá cláusula..."), ao passo que o presente do indicativo reforça o caráter de dever-ser inerente a qualquer norma jurídica ("o contrato deve conter cláusula..."); é bem verdade que aqui se tem uma questão cultural (países algo-saxônicos costumam usar os verbos modais...), mas não custa alinharmos nossa legislação com o que os demais países de Língua Portuguesa vêm fazendo de bom; - a baixíssima utilização no Brasil das codificações e leis de consolidação, que trazem sistematicidade e segurança jurídica, além de promoverem a depuração de normas obsoletas ou tacitamente revogadas; a última grande consolidação entre nós foi... a CLT, de 1943! Justiça seja feita ao Poder Executivo, que nos governos Temer e Bolsonaro e mesmo neste início de governo Lula 3 vem empreendendo esforços para fazer diversos "revogaços" na legislação, especialmente em nível infralegal. Em linhas gerais, portanto, é preciso que a próxima (atual?) geração de estudantes e estudiosos de Legística dê seguimento a esse diálogo entre o Brasil e seus irmãos lusófonos; tanto para exportarmos boas práticas nossas, como a legislação online em tempo real, os programas de participação popular como o E-Cidadania do Senado e o E-Democracia da Câmara dos Deputados; mas também para aprendermos com as experiências multifacetadas de realidades extremamente díspares, para que possam aperfeiçoar nossas regras de Legística formal e material. Vida longa ao "Grupo de Lisboa", portanto, e que as regras lá formuladas possam ser implementadas na legislação brasileira o quanto antes! [1] PAGANO, Rodolfo. Introduzione alla legistica. L'arte di preparare le leggi. Milano: Giuffrè, 2004. [2] MENDES, Gilmar Ferreira. Questões fundamentais de técnica legislativa. Revista de. Direito Constitucional e Internacional, v. 2, jan. 1993. [3] SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da legislação - formação e conhecimento da lei na idade tecnológica. Porto Alegre: Sérgio Antônio. Fabris, 2004. [4] MARTINS FILHO, Ives Gandra. Consolidação e redação das leis. Revista LTr: legislação do trabalho, v. 63, n. 3, p. 297–299, mar., 1999.
2023-05-09T09:05-0300
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O triunfo da civilidade
Rosa Weber: A delicadeza da democracia e a clava forte da Justiça
*Artigo publicado no Anuário da Justiça Brasil 2023, que será lançado nesta quarta-feira, dia 10 de maio, no Supremo Tribunal Federal. A publicação ficará disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para acessar o site) a partir das 18h e já está à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar) Em 12 de setembro de 2022, quando assumi a Presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, expressei o desejo de que todos vissem na solenidade uma celebração da democracia e do primado das liberdades. Minhas primeiras palavras foram de reverência incondicional à autoridade suprema da Constituição e das leis da República; de crença inabalável na superioridade ética e política do Estado Democrático de Direito; de prevalência do princípio republicano e suas naturais derivações, com destaque para a essencial igualdade entre as pessoas; de estrita observância da laicidade do Estado brasileiro. Essa a minha profissão de fé como magistrada, disse eu naquele momento. Tempos depois da minha posse como chefe do Poder Judiciário brasileiro, na abertura do Ano Judiciário de 2023, no mesmo plenário do Tribunal, totalmente reconstituído depois da invasão criminosa do dia 8 de janeiro, por uma turba insana movida pelo ódio e pela irracionalidade, reafirmo minha profissão de fé como juíza e a ela acresço, em reforço, o que erigi como norte da atual administração desta Casa: a proteção da jurisdição constitucional e da integridade do regime democrático, ou, mais simplesmente, a defesa, diuturna e intransigente, da Constituição e do Estado Democrático de Direito. As instalações do Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, igualmente sedes dos pilares da democracia brasileira, foram alvo de ataque golpista e ignóbil, dirigido com maior virulência contra esta Suprema Corte. Seguramente porque ela, ao fazer prevalecer em sua atuação jurisdicional a autoridade da Constituição, se contrapõe a toda sorte de pretensões autocráticas. Possuídos de ódio irracional, quase patológico, os vândalos, com total desapreço pela res publica e imbuídos da ousadia da ignorância, destroçaram bens públicos sujeitos a proteção especial, como os tombados pelo patrimônio histórico, mobiliário, tapetes e obras de arte. Também em sanha deplorável estilhaçaram vidraças, espelhos e luminárias, quebraram painéis, bancadas e mármore, rasgaram retratos e livros, destruíram equipamentos digitais e de áudio e vídeo, câmeras, computadores e impressoras, engendrando um cenário de caos a provocar sentimento de profunda repulsa diante de tamanha indignidade. Mas advirto. Não destruíram o espírito da democracia. Não foram e jamais serão capazes de subvertê-lo porque o sentimento de respeito pela ordem democrática continua e continuará a iluminar as mentes e os corações dos juízes desta Corte Suprema, que não hesitarão em fazer prevalecer sempre os fundamentos éticos e políticos que informam e dão sustentação ao Estado Democrático de Direito. Que os inimigos da liberdade saibam que no solo sagrado deste Tribunal o regime democrático, permanentemente cultuado, permanece inabalável. Frustrado restou o real objetivo dos que assaltaram as instituições democráticas: o ultraje só poderia resultar, como resultou, no enaltecimento da dignidade da Justiça, e no fortalecimento do valor insubstituível do princípio democrático, jamais no aviltamento do Poder Judiciário. Intensa a repulsa e irrestrita a solidariedade de todos — autoridades e sociedade civil — já nas primeiras horas que se seguiram à violência criminosa, reforçando a união dos Poderes, de todo inabalados os valores superiores da Justiça e da democracia. Moldada em cerâmica de Petrópolis, por Alfredo Ceschiatti, na escultura também vandalizada à frente da Corte, a Justiça sobreleva e perdura, pois, habita o espírito das instituições democráticas, e não a argamassa ou os tijolos de seus prédios. As instalações físicas de um Tribunal podem até ser destruídas, mas a elas se sobrepõe — e se mantém incólume —, a instituição Poder Judiciário, em seu elevado mister de dizer e tornar efetivo o Direito, viabilizando a vida em sociedade, realizando o valor Justiça. Não sabiam os agressores de 8 de janeiro que o prédio-sede do Supremo Tribunal Federal, na leveza de suas linhas e na transparência de seus vidros, enquanto símbolo da democracia constitucional é absolutamente intangível à ignorância crassa da força bruta. De todo inútil o intento que perseguiam: a destruição do patrimônio físico da Suprema Corte que, na verdade, é patrimônio do povo brasileiro, é patrimônio da humanidade! Para os que, consumidos pela fogueira da irracionalidade, tangidos pelo pérfido fanatismo ou dominados pelo fundamentalismo de sua triste visão de mundo, distorcem maliciosamente o conceito de liberdade e o próprio sentido das palavras, tão a gosto de espíritos totalitários, como na prática da novilíngua, atribuindo à destruição do patrimônio público conteúdo outro que não os de ignomínia e vergonha, digo novamente: é inútil, pois mesmo que desejassem destruir mil vezes o Supremo Tribunal Federal, subsistiria incólume o sentimento de reverência desta Casa pelo Estado Democrático de Direito, e mil e uma vezes reconstruiríamos seu prédio, como fizemos agora, sem interromper um só instante o exercício da jurisdição, graças à tenacidade dos que respeitam as instituições e amam a democracia. Isso, entretanto, advirto, não desfigura a invasão criminosa nem atenua a gravidade do ataque covarde, nunca antes perpetrado contra as instalações desta Suprema Corte — seja ao longo do Império, seja na República. Se alguma dúvida restasse sobre o sentido do que digo, assevero, em nome do Supremo Tribunal Federal, que, uma vez erguida da justiça a clava forte sobre a violência cometida em 8 de janeiro, os que a conceberam, os que a praticaram, os que a insuflaram e os que a financiaram serão responsabilizados com o rigor da lei nas diferentes esferas. Só assim estará reafirmada a ordem constitucional, com a observância ao devido processo legal e resguardadas, a todos os envolvidos, as garantias do contraditório e da ampla defesa, como exige e prevê o processo penal de índole democrática. O busto de Rui Barbosa, o patrono dos advogados brasileiros, de relevância ímpar para esta Casa, vilipendiado neste ano de 2023 em que se rememora o centésimo aniversário de sua morte, voltou a repousar altaneiro no hall, em novo pedestal, sem a restauração do dano sofrido, cicatriz estampada no bronze como lembrança às presentes e futuras gerações de que nem os vultos ilustres desta Nação, como o grande Rui, estão imunes à malta irresponsável, em evidente demonstração de que a ignorância — que nada reconhece, nada respeita, nada provê e se volta, como algoz, em seu vazio substancial, até contra os que buscam iluminá-la —, nada mais é do que terreno infértil, incapaz de germinar as sementes de que florescem os valores fundamentais da liberdade e da democracia. O Estado Democrático de Direito, cerne da República, com suas ideias nucleares de liberdade e responsabilidade, nunca é uma obra completa. E a democracia, conquista diária e permanente que se aperfeiçoa por meio da evolução do Estado Democrático de Direito, a cada dia desafiado, a democracia, por ser plural, pressupõe diálogo constante e tolerância com as diferenças, em convivência pautada pelos mecanismos constitucionais de promoção, nas arenas política e social, de amplo debate para a formação de possíveis consensos, garantido o respeito às regras do jogo e assegurado a todos os cidadãos um núcleo essencial de direitos e garantias que não podem ser transgredidos nem ignorados. Tempos verdadeiramente perturbadores de maniqueísmos e deformações inaceitáveis, que tantas divisões impuseram à comunhão nacional, exigem cuidado, atenção, resistência e resiliência das instituições, em especial do Poder Judiciário, objeto de constantes ataques. Sempre oportuno enfatizar que o STF — guardião da Constituição não porque se arrogue este papel, e sim por expressa delegação da Constituinte (CF art. 102) —, detém, em matéria de interpretação constitucional e considerados os objetivos precípuos do Direito de pacificação social e segurança jurídica, o monopólio da última palavra, como há mais de um século já o proclamava o grande Rui, como Senador da República, em histórico debate parlamentar com Pinheiro Machado. Atua, assim, esta Corte Suprema como órgão de encerramento das controvérsias constitucionais, exercendo a relevantíssima função contramajoritária, que significa a salvaguarda dos direitos fundamentais, notadamente na proteção das minorias, em especial as mais vulneráveis. Os juízes e juízas brasileiros honram a toga que vestem e, mercê da sua independência e comprometimento com as instituições, são garantes da democracia em nosso país e da preservação da supremacia da Constituição da República. Um Brasil inclusivo e igualitário, de ordem, progresso — está na nossa bandeira — e de paz, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia e comprometida com a solução pacífica das controvérsias, como orienta o preâmbulo da Constituição Cidadã de 1988, é o que almejamos. Vamos caminhar com serenidade e equilíbrio para cumprir os objetivos traçados na Carta Magna. Olhos postos na entrega de prestação jurisdicional efetiva e qualificada, na coesão do Poder Judiciário, no respeito e harmonia entre os Poderes, na união e fortalecimento das instituições e na defesa do Estado Democrático de Direito consagrado no artigo primeiro da nossa Constituição! * Condensado do discurso de Abertura do Ano Judiciário de 2023 Lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2023 Quando: Quarta-feira, 10 de maio, às 18h Onde: Salão Branco do Supremo Tribunal Federal. Praça dos Três Poderes, Edifício-sede, Brasília – DF Versão digital (a partir do dia 10 de maio): http://anuario.conjur.com.br (gratuita) Versão impressa: Livraria ConJur (R$ 40)
2023-05-10T08:14-0300
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respeito jurisprudencial
Cultura de precedentes é desafio para STJ, diz ministro Ribeiro Dantas
Um dos principais desafios do Superior Tribunal de Justiça é implantar a cultura de respeito aos precedentes jurisprudenciais. A afirmação foi feita pelo ministro Ribeiro Dantas durante o 5º Congresso de Reestruturação e Recuperação Empresarial, organizado pela Comissão de Falência e Recuperação Judicial da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso.  "A dificuldade que temos hoje é implantar uma cultura de respeito aos precedentes jurisprudenciais. O STJ tem procurado isso, e no caso que interessa à Lei de Falência e Recuperação Judicial, a 2ª Seção de Direito Privado, tem definido muitos parâmetros nessa área. Esse passo tem sido muito importante para a fixação da jurisprudência no país todo", explicou. Também palestrante, o ministro Raul Araújo reforçou que cabe ao STJ decidir pelo mais acertado nas instâncias ordinárias. "Naturalmente que as instâncias judiciais ordinárias, 1° e 2° graus, têm toda autonomia para adotarem seus entendimentos acerca desses temas. Quando os recebemos e ali chegam com maturidade suficiente, com reflexões que são muito consideradas por nós, como há mais de uma solução para problemas idênticos, temos que deliberar qual o tribunal, qual o órgão da instância ordinária está com o entendimento mais acertado." A cultura da resolução consensual nos processos que tratam da recuperação judicial foi destacada pela presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT), desembargadora Clarice Claudino, e pelo presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Poder Judiciário de Mato Grosso, desembargador Mário Kono. Atualmente, o Judiciário de Mato Grosso dispõe de um Centro de Resolução de Conflitos para fomentar a solução pré-processual nas recuperações e a solução consensual, tanto antes quanto durante o processo. A transparência no processo recuperacional foi outro tema discutido. Para a juíza da Anglizey Solivan de Oliveira, da 1ª Vara Regional e Especializada em Recuperação Judicial e Falência de Cuiabá, este é o principal elemento do processo. "Todos os atos do Judiciário devem ser expostos, publicados. Todas as garantias processuais das partes precisam ser publicizadas. É muito importante a correta aplicação da lei. Todas as pessoas envolvidas — advogados, administradores, juízes, Ministério Público, servidores — precisam compreender o que é a lei e compreender como aplicá-la em benefício da empresa e da sociedade." A banalização do instituto da recuperação judicial também foi debatida, após apontamento do ex-ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que defendeu uma análise mais rigorosa por parte do Judiciário em torno das questões que envolvam o próprio negócio ou a atividade desenvolvida pelo autor do pedido. Com informações da assessoria de imprensa do Congresso de Reestruturação e Recuperação Empresarial.
2023-05-11T20:46-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-11/cultura-precedentes-desafio-stj-ministro-ribeiro-dantas
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Estúdio ConJur
Obra aprofunda debate sobre métodos online de resolução de conflitos
Com o objetivo de aprofundar a relação entre tecnologia e processo, sobretudo a partir da criação de mecanismos e sistemas online focados na prevenção, na gestão e na resolução de conflitos — os chamados métodos de online dispute resolution (ODR) —, o advogado Ricardo Dalmaso Marques acaba de lançar o livro Métodos online de resolução de conflitos (ODR): processo, tecnologia, acesso à justiça e devido processo legal (Editora Revista dos Tribunais). A obra é fruto de sua tese de doutorado, defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Participaram da banca avaliadora os professores Carlos Alberto Carmona, Juliana Domingues, Fernando Gajardoni, Carlos Affonso Souza, Luciano Benetti Timm, e Ricardo Aprigliano. O prefácio do livro é assinado por Carmona, com apresentação do ministro do Superior Tribunal de Justiça Ricardo Villas Bôas Cueva. Marques atualmente é head de Privacidade e Proteção de Dados da Meta, na América Latina e no Canadá. Já teve passagens por Mercado Livre e Pinheiro Neto Advogados.
2023-05-11T14:19-0300
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Senso Incomum
Do Direito Desenhado ao senso comum institucionalizado
A coluna hoje é fragmentada. Em drops. Fazendo um sarcasmo, digamos que se trata de uma coluna desenhada e que pode ser mais resumida ainda. Tempos pós-modernos. 1. E a esquerda chilena pensava que bastava proibir o mosquito de picar e os ventos de entufar Leio que a população chilena elegeu um Congresso Constituinte de direita-extrema-direita. Com maioria absoluta. Foi o troco ao projeto de Constituição rejeitado por maioria acachapante não faz muitos meses. Triste. Mas mais triste é a chance perdida. Empolgaram-se os ramos identitários dos mais variados e colocaram tudo na Constituição. Faltou estratégia. Causas justas nem sempre podem ser esfregadas na cara do conservadorismo. Resultado: a extrema-direita acordou. E vai dar o troco no novo texto. Sobre isso o meu amigo Arnóbio Rocha escreveu interessante artigo no GGN, mostrando que a ultradireita chilena é um legado dos movimentos de 2010, 11, 12 e 13 ocorridos no mundo. Tem razão. E, é claro, aqui no Brasil a turma de 2013 não só acordou a extrema direita como engendrou o imaginário da "lava jato". Que deu no que deu. Portanto, cuidado com o que desejam os progressistas brasileiros. Volta e meia vejo alguém pedindo nova Constituinte no Brasil. Maravilha. Fico pensando na grande dúvida que haverá na votação final do texto: o cargo de carrasco para executar a pena de morte (que será introduzida na nova CF) será por concurso ou por indicação DAS? Imaginem as propostas de deputados como Zé Trovão e Major Wilson. A ver. Sem h. 2. Mientrastanto, foi lançado o Direito Constitucional Desenhado Vi nas redes que foi lançado o Direito Constitucional Desenhado. É um livro e também um método, diz o autor. Vamos todos para Estocolmo. E dizem que vem aí o resumo desse Direito Constitucional Desenhado — para aqueles que acham desenho "textão". O resumo do resumo. E no final, o resumão. Mastigado. Mais as aulas sobre lei seca (que não é sobre balada segura). Como disse uma causídica "especialista" em inteligência artificial em programa de TV domingo à noite, o ChatGPT é legal porque com ele dá para fazer petições mais rápido. Bingo. Binguíssimo. Vamos ganhar o prêmio Ig-Nobel. Sim, sei que já havia o "Seja F... em Direito Constitucional". Best seller. Interessante é que não aparece o "Seja F... em Direito do Consumidor". E nem Direito Civil Desenhado. Por que, raios, essa implicância com o direito constitucional? Espero que não apareça o "Seja F... em Teoria do Direito". Bom, já existe o Direito Processual Sem as Partes Difíceis (ou chatas, não lembro bem). Tem também o Descomplicando o Direito Constitucional. Uma coisa é comum em todos esses "jus mastigamentos": o descumprimento do "Fator Água Mineral". Sim, porque no Brasil só quem cita a fonte, mesmo, é a garrafa de água mineral. Os descomplicadores fazem como o ChatGPT. Juntam tudo, mastigam e devolvem "descomplicadamente". Vendo os desenhos e os vídeos, tem-se a impressão de que o constitucionalismo foi inventado pelo... autor dos desenhos. E assim o mundo munda. Depois nos queixamos quando um caso de menos de dois gramas de maconha — com pena de quase 8 anos — chegue ao STF. Ou uma juíza que nega direitos previdenciários porque uma foto mostrou que uma cama estava sem arrumar (e por isso ela calculou, por indução, que havia mais uma pessoa morando na casa). Eu li a decisão. Depois nos queixamos, com alunos que estudam (n)isso, que tenhamos no futuro gente formada nesse "ambiente jus tóxico". E nos queixamos quando perdemos uma causa com base em um enunciado feito em workshop em hotéis na praia e desse enunciado não podemos recorrer...! Sim, "Juizados Especiais desenhados" — eis aí minha sugestão para os autores que navegam nessas águas mansas das simplificações de coisas complexas. Outra sugestão: "Direito Recursal Desenhado" — para mostrar como um agravo em REsp é julgado monocraticamente... Ou "Desenhando os robôs jurídicos". Ou "O artigo 489 do CPC em legal design". Ainda: um livro sobre o "Conceito de Teratologia Jurídica em dois minutos". É isso. Passei do limite de texto pós-moderno. Peço sinceras escusas, como dizia aquele famoso (ex-)magistrado.
2023-05-11T08:00-0300
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Opinião
Fernando Aguillar: Técnicas pedagógicas gamificadas para o Direito
Compare duas situações corriqueiras durante um curso de graduação em Direito. Na primeira, um professor de Ética profissional da advocacia entra em sala de aula, monta seu powerpoint (ou apaga a lousa e se mune de um giz) e começa a expor a lista de prerrogativas dos advogados contida no artigo 7º do Estatuto da Advocacia. Vamos imaginar também que os estudantes são dedicados, motivados, apesar de já estarem no último semestre do curso, fazerem estágio, terem que concluir seu TCC, suas horas de atividades complementares e estarem às vésperas de fazer a segunda fase do Exame da OAB. São 21 incisos e 24 parágrafos. Apesar de toda a motivação e disposição dos estudantes e talento pedagógico do professor, é provável que a atenção da plateia se disperse logo nos primeiros parágrafos. A partir daí nada do que o professor disser penetrará no cérebro do estudante, por mais habilidoso que seja o mestre e por mais dedicados que sejam os estudantes. Agora, imagine, ainda nessa primeira situação, o seguinte método de ensinar a mesma matéria: o professor cria uma situação fática em que o estudante se coloca na posição de advogado e pede para que ele reaja diante das diversas circunstâncias que podem envolver o recurso a uma prerrogativa da advocacia. O aluno-advogado então é colocado diante de um delegado que lhe recusa o direito de acesso ao cliente preso, porque não tem procuração; diante de um servidor do tribunal que não lhe permite o acesso aos autos de um processo que não corre em sigilo; ou então recebe uma ordem de prisão de um juiz durante uma audiência. Agora suponha que essas reações sejam mensuradas por critérios objetivos e, a cada reação correta do aluno-advogado, ele seja recompensado com pontos. E que esses pontos vão se acumulando ao longo das diversas atividades pedagógicas e comparados com o desempenho de um colega que está resolvendo o mesmo caso. O engajamento dos estudantes para essa segunda abordagem pedagógica é muito mais eficiente, porque não leva o estudante a decorar a matéria, mas a aprender pela experiência. E se errar, poderá aprender com seu próprio erro. Agora imaginemos a segunda situação usual no aprendizado do Direito. O mesmo professor de Ética, uma semana antes da aula descrita na primeira situação, exorta os alunos a lerem, em boas obras de doutrina, sobre o tema das prerrogativas advocatícias. No primeiro cenário, o (bom) estudante vai à biblioteca (ou acessa a biblioteca virtual) e busca um dos livros recomendados. Inicia a leitura pelo sumário e busca ali a referência ao assunto que precisa estudar. Vai até o capítulo correspondente e inicia sua leitura linear do início ao fim. A chance de que esse estudante se desmotive ao longo desse processo é enorme. A chance de que retenha menos do que o necessário para se preparar para a aula futura é maior ainda. Não é culpa do aluno, nem da obra. O método é desestimulante. Não há respostas a serem buscadas no livro, não há desafios instilados na mente do estudante, além do de se manter acordado durante a leitura. Compare agora com a seguinte alternativa pedagógica para a mesma segunda situação. Primeiro, o estudante deve ler uma sequência de trechos previamente selecionados pelo professor, que respondem direta ou indiretamente aos diversos aspectos daquele problema criado pelo professor na primeira situação acima. O aluno-advogado lerá os textos com objetivos previamente definidos: ele precisa encontrar respostas ali para o problema hipotético criado pelo professor. Segundo, para acompanhar se o aluno-advogado está mesmo lendo e entendendo o texto, para cada texto selecionado se apresentam diversos testes de compreensão e interpretação do texto. Nada além de cobrar do aluno-advogado que demonstre ter entendido bem o dito pelo autor naquele trecho específico. Se apontar corretamente o que disse o autor, sua pontuação aumentará. Ele terá a sensação de que está acumulando saberes, terá um rigor maior na leitura do trecho, e estará preocupado não apenas com a nota que terá ao final da atividade, mas também com o seu oponente, que poderá somar mais pontos do que ele. As duas situações demonstram posturas pedagógicas bastante distintas. A primeira se filia a uma tradição secular no Direito, tem sido relativamente bem-sucedida através de gerações e é a predominante nos cursos de direito no Brasil. A segunda é uma forma nova, chamada de gamificação, que se insere num conjunto de técnicas chamadas de metodologias ativas e que visam suscitar maior engajamento do estudante. Mas ainda tem poucos adeptos, quando comparada com a primeira técnica, a tradicional. A primeira metodologia se encontra em crise, porque novas gerações de estudantes manifestam em relação a ela uma resistência explícita, que gerações anteriores sentiam, mas não ousavam declarar. A segunda metodologia vem acenar com a possibilidade de despertar no estudante o desejo de se engajar intensamente no trabalho de estudar Direito. A diferença fundamental entre a metodologia tradicional de ensinar o Direito e a metodologia ativa de gamificação: a primeira dá as respostas aos alunos antes que eles saibam sequer o que são as perguntas. A segunda apresenta primeiro as perguntas aos alunos, depois os incumbe de achar as respostas e os auxilia e motiva no processo. Técnicas pedagógicas por meio de jogos A gamificação é o uso, no processo pedagógico, de elementos típicos de jogos, como pontuações, badges, rankings, premiações e desafios, com o objetivo de obter dos alunos maior engajamento no estudo. A possibilidade de o jogador-aluno acompanhar seu progresso, competir com os colegas e vivenciar a sensação de realizar uma aspiração o ajudam a manter o foco e a motivação. No caso do Direito, cujo ambiente profissional é fortemente relacionado à competição (ganha-se ou perde-se uma ação judicial, por exemplo) o paralelismo é ainda mais evidente. Os professores Rafael Savin e Vania Ribas Ulbricht, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), escreveram um precursor artigo já em 2008, em que sustentam que os jogos digitais preparados para o contexto educacional, incluindo alguns tipos de simuladores, são chamados de jogos educacionais ou jogos sérios (serious games). "Normalmente", prosseguem os autores, "quando se divulga a utilização de jogos educacionais, há um destaque para o poder motivador dessa mídia. Mas o potencial deles vai muito além do fator 'motivação', pois ajudam os estudantes a desenvolverem uma série de habilidades e estratégias e, por isso, começam a ser tratados como importantes materiais didáticos" (Gros, 2003)[1] Num seminal artigo publicado em 2016, o professor Daniel M. Ferguson, da Fowler School of Law, Chapman University, avaliou a contribuição que a técnica de gamificação pode aportar ao aprendizado do Direito. Baseado na obra de Salen e Zimmerman, Ferguson afirmou que "há muitas definições concorrentes para o que constitui um jogo, mas uma definição aceita é que um jogo é um sistema no qual atores participam de um conflito artificial, definido por regras, que conduzem a um resultado quantificável" [2]. Ferguson aceita como ponto de partida que os jogos usam conflitos artificiais porque eles permitem o uso da abstração e permitem aos jogadores que errem.  Os jogadores sabem que os obstáculos são artificiais, o que provoca neles uma reação diferente daquela que ocorreria numa situação real. Na situação real, quando tememos errar ou falhar, se desencadeia uma forte ativação neuroquímica que nos deixa nervosos ou nos faz querer fugir e nos fechar emocionalmente. Como os jogos são por definição suscetíveis de resolução e oferecem aos jogadores um ambiente seguro para cometer erros, a falha passa a ser uma parte fundamental do aprendizado. O jogo incorpora o erro como parte fundamental do seu funcionamento. Aplicado à educação, o recurso da gamificação trata o erro como parte do processo de aprendizado. E isso tem um impacto muito interessante sobre outro componente do processo educacional que se encontra em crise atualmente: as provas. Até hoje, dentro do sistema tradicional de ensino, os alunos devem ser capazes de, no dia e hora marcados, demonstrar que retiveram os ensinamentos ao longo do curso. Acertando ou errando, seu desempenho será definido e sua nota somente pode ser alterada em combinação com as outras avaliações do semestre letivo. Esse sistema está em crise pelos mesmos motivos que o sistema de ensino impositivo, baseado na voz de autoridade do professor, também está: as novas gerações não aceitam com tanta docilidade como as anteriores a hierarquia automática entre professor e aluno. Provas de oportunidade única são consequência natural do sistema impositivo de ensino. Quando este é contestado, leva de roldão suas demais articulações, como as provas. Mas pergunto: o fim do processo pedagógico é o de mensurar o aproveitamento do aluno ou é o de que este aprenda? O sistema tradicional de provas de oportunidade única se justifica como forma de constranger o aluno a estudar. Mas e se o professor não consegue mais suscitar no aluno o temor reverencial para que estude? A resposta é que se o estudante for estimulado a se dedicar por outras maneiras, não impositivas, a aprender, não importa a quantidade de tentativas que ele leva para tanto. Se ele aprender, dou por cumprida a missão de ensiná-lo. Na gamificação posso criar, assim, métodos de avaliação inteligentes que são tolerantes ao erro e que não deixam de motivar o estudante. Alguém vai objetar, com razão, dizendo que se eu permitir ao estudante que tente tantas vezes quantas ele quiser, até achar a resposta boa, ele simplesmente adotará a postura de "chutar" a resposta, sem qualquer dedicação. À objeção respondo: a gamificação tem recursos para tornar artificialmente escassas as oportunidades de acerto. Pode condicionar, por exemplo, a oportunidade de correção do erro à demonstração de que estudou mais, fazendo outros exercícios que, em princípio, não faria espontaneamente. Mas que, no contexto do jogo, se sente estimulado a resolver, apenas para ganhar o direito de corrigir o erro que cometeu. Esses são apenas alguns exemplos de como utilizar a gamificação no processo pedagógico. Eles são tão numerosos quanto a capacidade criativa do professor. Todas as habilidades que se deseje desenvolver podem ser articuladas com a lógica dos jogos. Com isso, a gamificação é uma estratégia pedagógica que manipula positivamente o estudante, para que treine diversas habilidades e competências não porque foram impostas pelo professor, mas porque o aluno deseja espontaneamente fazê-lo. Estado de flow e educação jurídica O psicólogo húngaro Mihály Csikszentmihályi dedicou sua carreira acadêmica a estudar os processos mentais que ele depois batizou de "estado de flow". Ele queria saber como os melhores atletas, artistas e profissionais alcançavam o alto nível de desempenho que os havia tornado justamente célebres. Depois de inúmeras entrevistas, ele desenvolveu o conceito de que o estado de flow é aquele em que alguém se encontra de tal forma imerso e concentrado numa dada atividade, que se desvencilha de outros pensamentos, não sente o tempo passar, deixa de lado preocupações autorreferenciais. Um dos fundadores da chamada Psicologia Positiva, Csikszentmihályi diz que os melhores momentos em nossas vidas não são os momentos de relaxamento e passividade. Eles ocorrem, ao contrário, quando o corpo e a mente de alguém são levados aos limites num esforço voluntário para realizar algo difícil, mas que vale a pena [3]. O estado de flow é aquele que se alcança na busca dedicada de um objetivo que se encontra ligeiramente acima de nossa capacidade. E essa dificuldade é a razão pela qual, ao obtermos o que desejamos, nos sentimos recompensados e vivamente estimulados. Para o psicólogo húngaro, os jogos são por excelência uma experiência de flow. O desejo de vencer, o temor de perder, o desafio aos seus próprios limites, a vontade de superação, presentes no jogo, são uma espécie de simulacro das situações reais na atividade profissional jurídica. As técnicas de gamificação incluem elementos que fortalecem essa disposição para a ação, materializados por pontuações, rankings, comparações, badges, que mantêm o jogador em permanente estado de alerta, engajado, envolvido. Um dos maiores desafios que todo professor de Direito sente é o de transformar textos técnicos duros, minuciosos e áridos em objeto de interesse por parte dos alunos. Além da diferença de maturidade, o que faz com que o professor se entusiasme com os mesmos textos que o aluno despreza é que o professor sabe a utilidade daqueles conceitos. Os alunos, ainda não. Ao simular a posição do profissional do Direito, os jogos proporcionam um ambiente em que essa diferença entre o professor e o aluno é atenuada. Porque ao se vivenciar no jogo o que o profissional deve enfrentar num caso concreto, os conceitos deixam de ser mera abstração e passam a ocupar um espaço de concretude muito mais visível ao aluno. Assim, combinando casos práticos que precisam ser resolvidos autonomamente pelo aluno com o material de apoio previamente selecionado para que a tarefa seja factível, a gamificação permite que o aluno se engaje no aprendizado, sem que seja simplesmente abandonado à própria sorte. Se os novos estudantes de Direito reivindicam métodos mais dinâmicos para o aprendizado do Direito, envolvendo-os na resolução de problemas concretos, a gamificação pode ser utilizada como valioso auxiliar da aula expositiva, que continua sendo necessária, bem entendido. Mas a pura exposição sistemática de conceitos e classificações ou de textos legais encontra-se profundamente desgastada e é objeto de justificadas críticas pelos estudantes. Uma aula expositiva, após os alunos terem se exercitado em jogos de aprendizagem jurídica como os descritos acima, muda completamente de clima e também de rendimento pedagógico. Para aqueles que ainda não se convenceram do caráter sério da ferramenta gamificação, é preciso dizer que os conteúdos do que se ensina não precisam necessariamente ser mudados em uma única vírgula. A gamificação, em algumas de suas vertentes, só constitui uma nova forma de ensinar os melhores conteúdos do Direito [4]. É chegado o momento de dar ouvidos aos novos estudantes de Direito, não para reduzir a complexidade do Direito, mas para criar uma comunicação mais fluida com as densas disciplinas de formação profissional, valendo-nos de novas técnicas. Isso exige consciência da instituição, treinamento de professores e de estudantes. E sua implementação é uma medida de elevação da qualidade da educação jurídica. [1] Jogos Digitais Educacionais: Benefícios e Desafios, in Cinted-UFRGS Novas Tecnologias na Educação, V. 6, Nº 2, Dezembro, 2008. [2] FERGUSON, Daniel M. The Gamification of Legal Education: Why Games Transcend the Langdellian Model and How They Can Revolutionize Law School, 19 Chap. L. Rev. 629 (2016). Disponível em: http://digitalcommons.chapman.edu/chapman-law-review/vol19/iss2/10. Acesso em: 20.04.2023. [3] CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow: The Psychology of Optimal Experience, Nova Iorque, Harper-Collins, 2008. [4] Para um minucioso levantamento de casos de aplicação de técnicas de gamificação no ensino jurídico no Brasil, v. Anne Karoline Bandeira Bonfim Leal e Francisco Kelsen de Oliveira, Ensino de Direito, aprendizagem baseada em jogos e gamificação na Educação Profissional e Tecnológica: uma revisão sistemática de literatura, in Revista Labor V. I nº 25, Universidade Federal do Ceará, 2021. Disponível em http://www.periodicos.ufc.br/labor/article/view/60225/196726, Aceso em: 23.04.2023.
2023-05-11T06:06-0300
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Paradoxo da Corte
Carência da ação possessória derivada de relação locatícia
O juiz, ao construir a ratio decidendi e aplicar as "normas legais" ao caso concreto, dispõe de absoluta liberdade, no contexto dos fatos que individualizam a pretensão do autor e a exceção oposta pelo demandado, e que constituem, respectivamente, a causa petendi e a causa excipiendi. Ocorre que a qualificação jurídica desenhada pelo autor e secundada pelo réu nunca é definitiva e, consequentemente, nada impede a livre eleição de fundamentos jurídicos que o órgão judicante entenda incidentes no caso concreto. Embora o nomen iuris (rótulo) e/ou fundamento legal porventura declinado pelo autor na petição inicial possa influenciar a convicção do julgador, nada impede que este requalifique juridicamente a demanda, emoldurando-a em outro dispositivo de lei ou mesmo em outra categoria jurídica (e. g.: contrato de parceria para contrato de representação comercial). A função jurisdicional é detentora, pois, do poder-dever de examinar os fatos que lhe são submetidos nos quadrantes de todo o ordenamento jurídico, ainda que determinada norma ou categoria jurídica não tenha sido mencionada pelas partes. Desse modo, o juiz não só pode como deve, sem alterar os fatos expostos, imprimir o enquadramento jurídico que entender mais adequado, circunscrito ao pedido deduzido pelas partes. Cumpre, portanto, reconhecer que essa premissa, sintetizada pelo velho brocardo da mihi factum dabo tibi ius, está a revelar que, no drama do processo, a delimitação do factum e a individuação do ius correspondem, em princípio, a atividades subordinadas à iniciativa de diferentes atores. Enquanto a alegação e a comprovação do fato são incumbência dos litigantes, a aplicação do Direito é apanágio do juiz! Como bem explica José Roberto dos Santos Bedaque, em relação ao julgamento extra petita, "situação real revela a importância de determinadas inovações legislativas, desde que compreendidas segundo os princípios da instrumentalidade da forma, do contraditório e da economia processual. O vício pode ser ignorado em sede recursal, não obstante sua gravidade, mediante aplicação analógica do artigo 1.013, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, pois a situação pode ser equiparada à extinção do processo sem julgamento do mérito, em que o juiz também não examina os fundamentos de mérito deduzidos pelo autor como causa de pedir" (Efetividade do Processo e Técnica Processual, 3ª edição, São Paulo, Malheiros, pág. 515). Tal concepção é consagrada não apenas na doutrina, mas também nos tribunais, em especial na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Examinando essa importante questão, a 4ª Turma, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.587.128/MG, com voto condutor do ministro Luis Felipe Salomão, assentou que: "Não há falar em decisão surpresa quando o magistrado, diante dos limites da causa de pedir, do pedido e do substrato fático delineado nos autos, realiza a tipificação jurídica da pretensão no ordenamento jurídico posto, aplicando a lei adequada à solução do conflito, ainda que as partes não a tenham invocado (iura novit curia) e independentemente de oitiva delas, até porque a lei deve ser do conhecimento de todos, não podendo ninguém se dizer surpreendido com a sua aplicação. À luz dos artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil/73, atuais, 141 e 492 do Código de Processo Civil/15, o vício de julgamento extra petita não se vislumbra na hipótese do juízo a quo, adstrito às circunstâncias fáticas (causa de pedir remota) e ao pedido constante nos autos, ao proceder à subsunção normativa com amparo em fundamentos jurídicos diversos dos esposados pelo autor e refutados pelo réu. O julgador não viola os limites da causa quando reconhece os pedidos implícitos formulados na inicial, não estando restrito apenas ao que está expresso no capítulo referente aos pedidos, sendo-lhe permitido extrair da interpretação lógico-sistemática da peça inicial aquilo que se pretende obter com a demanda, aplicando o princípio da equidade". Assim, por exemplo, se o autor ajuizar uma ação rotulada de despejo, gerada pelo esbulho causado pelo possuidor direto, nada obsta a que o juiz decida como se tivesse sido aforada uma ação genuinamente possessória, desde que atendidos os pressupostos de admissibilidade desta demanda, não se vislumbrando qualquer prejuízo ao demandado. No entanto, a recíproca não é verdadeira, como restou decidido pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recentíssimo julgamento do Recurso Especial nº 1.812.987/RJ, da relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, num caso em que foi ajuizada ação de reintegração de posse fundada em relação ex locato. A locação foi denunciada mediante notificação visando à desocupação do imóvel para uso próprio. Tendo resistido a tal pleito, o locador, entendendo que o comportamento da locatária configurava esbulho, aforou a referida ação de natureza possessória. O pedido foi julgado procedente em primeiro grau e, na sequência, pelo TJ-RJ, a despeito de ter constado do acórdão que a ação adequada seria a de despejo. Não obstante, em consonância com os termos do acórdão, por força do princípio da mihi factum tibi ius, não havia qualquer vício em julgar a ação possessória como se fosse ação de despejo. Ao prover o recurso especial, entendendo inviável a fungibilidade entre a ação possessória e a ação de despejo, a aludida 4ª Turma asseverou, com inegável acerto, que: "Embora o pedido da reintegração de posse e da ação de despejo seja a posse legítima do bem imóvel, trata-se de pretensões judiciais com natureza e fundamento jurídico distintos, pois, enquanto a primeira baseia-se na situação fática possessória da coisa, a segunda se fundamenta em prévia relação contratual locatícia, regida por norma especial, o que consequentemente impossibilita sua fungibilidade". Ademais, no pedido de retomada para uso próprio, o artigo 47, parágrafo 1º, da Lei nº 8.245/91, estabelece requisitos específicos para a adequação da ação de despejo, que devem ser comprovados pelo autor da demanda. Assim, segundo o voto do ministro Antonio Carlos Ferreira, "ao se permitir o ajuizamento de ação possessória em substituição da ação de despejo, nega-se vigência ao conjunto de regras especiais da Lei de Locação, tais como prazos, penalidades e garantias processuais". Daí o provimento do recurso especial, por negativa de vigência ao artigo 5º, caput, da Lei nº 8.245/91, determinando-se, com fundamento no artigo 485, inciso IV (rectius: VI), do Código de Processo Civil, a extinção da ação de reintegração de posse por inadequação do meio processual utilizado pelo demandante.
2023-05-12T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-12/paradoxo-corte-carencia-acao-possessoria-derivada-relacao-locaticia
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Opinião
Mônica Santos e Rita Cortez: Comemorar o 13 de Maio?
Lazzo Matumbi, ou Lázaro Ferreira, ativista e expoente da música negra baiana, em composição repleta de simbolismos, destacou o dia seguinte ao histórico 13 de Maio: "Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir. Levando a senzala na alma, subi a favela, pensando em um dia descer, mas eu nunca desci. Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia. Um dia com fome, no outro sem o que comer. Sem nome, sem identidade, sem fotografia. O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver. No dia 14 de maio, ninguém me deu bola. Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver. Nenhuma lição, não havia lugar na escola. Pensaram que poderiam me fazer perde, mas minha alma resiste, o meu corpo é de luta. Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu. A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa, eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu. Será que deu pra entender a mensagem?" O artista traduziu o que todo homem e mulher negros no dia 13 de Maio sentem na alma. A distorcida e maltratada história do Brasil insiste em colocar a população negra na invisibilidade. Na realidade, o país ainda se recusa a reconhecer plenamente a sua identidade africana. O 13 de maio de 1888 é data histórica, a assinatura da Lei Áurea, que aboliu "oficialmente" a escravidão no Brasil. Contudo, o ato da princesa Isabel nem de longe trouxe a verdadeira liberdade para os escravos mantidos cativos por quase 400 anos da nossa história. O regime escravista no Brasil foi o mais duradouro do mundo. O escritor Laurentino Gomes sintetiza as consequências dessa longevidade: "o genocídio do negro brasileiro em andamento hoje é silencioso, não declarado oficialmente. Mas nem por isso é menos forte ou palpável. Ele está exposto no número de mortes violentas, no abuso policial, no racismo, nas penitenciárias, nos corredores do SUS, nas escolas, no desemprego, na cara da fome, nas pessoas em situação de rua, na impossibilidade de se ter uma vida digna. E, também, há o genocídio da memória". Respeitáveis historiadores afirmam que Ruy Barbosa, no final do século 19, mandou queimar todos os documentos sobre a escravidão, talvez com a intenção de fazer com que o horror das torturas e dos maus tratos de toda espécie impingidos, pudessem desaparecer das nossas memórias. Uma vez libertos, os antigos escravos mereciam receber uma indenização ou ajuda para se reintegrarem à sociedade. Ao contrário disso, foram desconsiderados na tentativa de lidar com as sequelas de séculos de opressão, discriminação e violência, sem nenhuma compensação ou proteção do Estado. A abolição não surgiu no nosso cenário político acompanhada de reformas sociais profundas que pudessem garantir direitos e oportunidades iguais para todos os cidadãos negros brasileiros. O racismo e a desigualdade persistem como forças estruturais na nossa sociedade, perpetuando a exclusão e a marginalização dos negros. Que se registre o 13 de Maio, porém nunca dissociado dos dias que se seguiram, para lembrarmos que o ato oficial da abolição da escravidão no Brasil não pode ser visto como o fim da luta pela liberdade e pela igualdade. É imperioso para a evolução do nosso país resgatar a verdade e a memória através da implantação da justiça transicional, reafirmando a necessidade da reparação de todos os resultados e implicações sociais geradas pela escravidão. Concluímos a citando de novo a imprescindível obra de Lazzo Matumbi: "Será que deu pra entender a mensagem? Se ligue no Ilê Aiyê. Se ligue no Ilê Aiyê. Agora que você me vê. Repare como é belo e o nosso povo lindo. Repare que é o maior prazer. Bom pra mim, bom pra você. Estou de olho aberto. Olha moço, fique esperto que eu não sou menino. Será que deu pra entender a mensagem?"
2023-05-13T09:17-0300
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academia
Opinião
Gabriela Wanzo: O método de negociação de Harvard
1. Introdução O método de negociação de Harvard, denominado Principled Negotiation, é conhecido por ser um dos métodos mais eficazes de negociação. Foi desenvolvido por William Ury e Roger Fisher com o objetivo de aperfeiçoar o programa de negociação Global Negotiation Project, da faculdade de Direito de Harvard, a fim de que as partes cooperem entre si para alcançar uma solução mutuamente benéfica. O método se baseia em técnicas acessíveis, que podem ser aplicadas facilmente por qualquer pessoa que almeja uma negociação bem-sucedida. 2. A negociação segundo William Ury e Roger Fisher De acordo com Ury e Fisher, as partes em negociação devem se relacionar como parceiras ao invés de adversárias, estabelecendo uma relação construtiva e de longo prazo. É necessário que as partes envolvidas voluntariamente escolham a negociação como método de resolução do conflito. As partes negociam porque acreditam em conseguir um resultado mais proveitoso do que aceitando determinada proposta ou se submetendo a uma disputa formal com regras e/ou procedimentos, como um processo judicial ou arbitragem. 2.1. Características de uma negociação As características de uma negociação são: (1) a presença de duas ou mais partes, entre indivíduos ou grupos; (2) a existência de um conflito; (3) a escolha voluntária pela negociação; (4) a inclinação para concessões recíprocas; e (5) a preferência por negociar um acordo sob o governo da vontade própria. 2.2. A finalidade do método de negociação de Harvard A finalidade da Principled Negotiation é conquistar acordos que atendam aos objetivos e necessidades de todos. Ao enxergar o outro como um parceiro, diversamente de como um adversário, as diferenças são minimizadas e os interesses mútuos se destacam. Para Fisher e Ury, além de coerente e eficaz, um bom acordo é aquele que melhora o relacionamento entre as partes. O seu método de negociação é baseado na premissa de ser rígido com o problema, mas tolerante com as pessoas [1]. Em vez de atacar umas às outras, as partes conjuntamente atacam o problema. 3. A indispensabilidade da preparação A qualidade da preparação anterior à negociação influencia diretamente como ela será conduzida e o seu resultado. Quanto mais complexa a questão, maior deverá ser o tempo de preparo. As negociações são significativamente mais eficazes quando há dedicação à preparação anterior ao diálogo. 3.1. Identificando os objetivos: separando as pessoas do problema O primeiro passo é definir os objetivos da negociação e os principais problemas que possam impedir que eles sejam alcançados. Identificar os objetivos pessoais e os da outra parte influencia a escolha de estratégias de forma direta e indireta. É preciso ponderar quais questões serão discutidas e analisar o problema de forma objetiva, separando essa discussão das pessoas envolvidas. Há negociações que envolvem um único problema e negociações mais complexas. 3.2. Validando e antecipando os interesses e necessidades de cada lado As partes devem ter a capacidade de compreender e atender aos interesses do outro, antecipando as suas necessidades e o que verdadeiramente buscam. Deve aprofundar-se nos fatores e razões pelas quais as partes realizam determinados pedidos. Se ambas as partes entenderem os fatores motivadores da outra, poderão reconhecer possíveis compatibilidades de interesses que lhes permitam desenvolver novas soluções com probabilidade de consenso maior ou mais interessante. As posições se referem à coisa concreta que a parte afirma querer. Os interesses dizem respeito às necessidades intangíveis que direcionam a posição. Estes podem incluir preocupações, medos, necessidades, desejos e aspirações. Todos motivam as posições. 3.3. Considerando soluções alternativas: Batna e Watna Há situações em que as partes têm apenas duas opções: chegar a um acordo com a outra parte ou não chegar a acordo algum. O Batna e o Watna têm o intuito de criar uma terceira opção: encontrar uma solução alternativa. O Batna (Best Alternative to a Negotiated Agreement) é a melhor alternativa para um acordo. O Watna (Worst Alternative to a Negotiated Agreement) é a pior alternativa. Na Principled Negotiation, além de celebrar o acordo, o objetivo é ultrapassar a melhor alternativa. 3.4. Avaliando e selecionando soluções alternativas exequíveis Quando interesses opostos estão envolvidos, é imprescindível utilizar critérios objetivos para resolver as desavenças. O ideal é que antes de avaliar as opções, as partes conjuntamente definam os critérios. As soluções devem ser avaliadas considerando qualidade, padrões e aceitabilidade. Quando os envolvidos participam no desenvolvimento dos critérios preestabelecidos, este processo torna-se mais fácil. 3.5. Elaboração de estratégias e planejamento A forma de apresentação do caso ao outro negociador deve fornecer fatos e argumentos de apoio ao posicionamento, antecipando e refutando os contra-argumentos. A estruturação inclui fatores relacionados à ordem de apresentação das questões, local da negociação, forma de iniciá-la, tempo de duração, método de registro dos acordos etc. Esses fatores irão determinar a forma em que a outra parte irá receber as propostas apresentadas. 4. Rumo ao acordo: a negociação Um dos principais desafios é mudar o jogo do confronto entre as partes para um formato de resolução de problemas lado a lado, transformando o oponente em um parceiro de negociação. Frequentemente, as pessoas deixam as suas emoções e o desejo de vencer obscurecer o seu julgamento. Ury descreve algumas táticas que podem auxiliar neste processo e romper as barreiras que impedem a cooperação: (i) go to the balcony; (ii) step to their side; (iii) reframe; (iv) build them a golden bridge; e (v) use power to educate[2]. 4.1. Não reaja: Go to the Balcony A reação é agir sem pensar. Para evitar que isso ocorra, Ury criou a técnica Go to the Balcony. Quando há uma negociação difícil, Ury propõe que a parte dê um passo para trás, recomponha-se e avalie a situação de forma objetiva. Balcony é uma metáfora para a atitude mental de desprender-se da situação e avaliar o conflito como um terceiro imparcial. Ao distanciar-se das emoções e reações naturais, torna-se mais fácil focar no objetivo da negociação. 4.2. Não discuta: Step to Their Side É natural que as partes se exaltem e entrem em um ciclo de discussões infrutíferas. Devido às suas experiências, as pessoas esperam que o outro lado apresente um ataque ou resista às propostas apresentadas. Para contornar essa situação, Ury recomenda o uso de técnicas para desarmar o outro antes de debater o problema. O segredo para apaziguar o outro é ter a reação contrária ao esperado. Deve-se ir ao lado da outra parte, o que causa desorientação e a torna mais receptiva a uma mudança de abordagem. Em suma, ficar ao lado do outro representa três condutas: ouvir, reconhecer e concordar. A escuta ativa tem um papel primordial. É importante reconhecer os sentimentos do outro, apresentar confiança em seu projeto e, quando necessário, oferecer um pedido de desculpas. A palavra-chave em uma negociação é "sim". Cada concordância faz com que a tensão diminua e as partes estejam mais abertas a diferentes propostas. 4.3. Não rejeite: Reframe Depois de estabelecer um ambiente mais propício e favorável à negociação, o próximo passo é virar o jogo. Ao invés de rejeitar a fala do oponente, é melhor aceitar e reformular para ter uma oportunidade de falar sobre o problema. O objetivo é mudar o jogo para que haja uma solução conjunta de problemas. Há diversas vantagens ao reformular. Toda fala está sujeita à interpretação. Portanto, deve-se procurar uma percepção positiva. Como as pessoas tendem a se concentrar no resultado da negociação, elas podem não perceber a mudança sutil do processo. 4.4. Não force: Build a Golden Bridge O processo é muito importante, assim como a forma em que as ideias e soluções são apresentadas. É preciso guiar o outro através da ponte conjuntamente construída de forma a garantir que ele não recue. Isso significa envolver a outra parte na elaboração do acordo e estruturação das soluções a fim de que ele sinta que construiu o negócio. Deve-se guiar o outro para tomar as decisões que gostaria que ele tomasse. Quando as pessoas acreditam que a ideia é delas tornam-se muito mais propícias a aceitar e implementar o acordo. A Golden Bridge é uma construção que deve iniciar-se do lado do oponente e aos poucos, afastar-se de suas ideias e aproximar-se do meio-termo, ultrapassando o não. 4.5. Não agrave: Use Power to Educate O detentor da vantagem (e do poder) deve utilizá-lo de forma a educar o outro em vez de forçá-lo. Deve-se visar à satisfação mútua, não à vitória de apenas uma parte. Há sempre uma maneira das partes vencerem em conjunto. Ainda que seja possível ganhar de qualquer forma, é importante que haja negociação. Um resultado imposto ao outro consiste em um resultado instável. É mais fácil garantir que um acordo seja respeitado se as partes estiverem satisfeitas com ele. O propósito não é a vitória imposta por um poder, mas sim o contentamento alcançado através de uma negociação superior. [1] URY, William. Getting Past No: Negotiating in Difficult Situations. Nova Iorque: Bantam Dell, 2007, p. 5. [2] URY, William. Getting Past No: Negotiating in Difficult Situations. Nova Iorque: Bantam Dell, 2007.
2023-05-13T07:12-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-13/gabriela-wanzo-metodo-negociacao-harvard
academia
Direito Civil Atual
Teorema de Coase, custos de transação e negociação entre as partes
Em 1960, o renomado periódico acadêmico The Journal of Law and Economics, da Universidade de Chicago, publica o artigo "The problem of social cost", escrito pelo economista britânico Ronald Coase.[1] O texto abordou o impacto das externalidades no mercado, bem como o papel do Direito nessa questão.[2] Além de ser um dos trabalhos que levou o autor a ganhar o Nobel de Economia em 1991, trata-se um contributo importantíssimo para a ciência jurídica. O momento da publicação coincide com as eleições presidenciais estadunidenses de 1960, tendo o democrata John F. Kennedy vencido o republicano Richard Nixon numa disputa acirrada e controversa. Na ocasião, Coase, que havia se mudado da Inglaterra para os Estados Unidos em 1951, exercia a docência na Universidade da Virgínia, sendo um homem de hábitos visivelmente tranquilos, mas de um pensamento que, obviamente, não era indene ao cenário de tensão político-econômica. Aficionado pela economia no âmbito dos serviços públicos, Ronald Coase vinha estudando a Comissão Federal de Comunicações (FCC), órgão criado em 1934 durante a política do New Deal e que regula a indústria de telecomunicações e radiodifusão nos EUA. O resultado dessa pesquisa foi publicado em 1959 e enfatizou a alocação do espectro de radiofrequência com base no sistema de preços e na concessão do serviço ao maior lance. [3] Inicialmente, uma parte dos economistas de Chicago considerou que o estudo se baseara em premissas equivocadas, pois, afinal, que espécie de direitos estaria sendo transferida ao licitante vencedor? Então, Ronald Coase reuniu-se com esses renomados economistas (entre eles, Milton Friedman, George Stigler e Aaron Director) e não somente provou a adequação de seus argumentos sob a perspectiva de um sistema de direitos de propriedade, como também recebeu um convite para publicar essas conclusões no "The Journal of Law and Economics". Surgiu, assim, o artigo "The problem of social cost", cuja aceitação foi instantânea e é, ainda hoje, o texto mais referido na teoria econômica, especialmente por conter o famoso Teorema de Coase. Em demanda de atender àquele periódico de Chicago e de elucidar alguns pontos trabalhados pelo grande economista Arthur Pigou, da Universidade de Cambridge, "O problema do custo social" esclarece que não basta o standard segundo o qual certos tipos de imposições governamentais (por exemplo, os impostos) refrearão atores do mercado cujas ações tenham efeitos prejudiciais (fatores externos negativos) sobre terceiros. Se os custos de transação forem zero (ou quase zero), as negociações entre as partes levarão a acordos que maximizem a riqueza, independentemente da atribuição inicial de direitos. Se houver liberdade de negociação entre as partes, se os direitos de propriedade estiverem bem definidos e os custos de transação forem zero ou muito baixos, o que importa realmente será a alocação ótima desses recursos. Essa é a base do Teorema de Coase, assim nomeado por George Stigler, já que nunca ocorrera a Ronald Coase emprestar seu próprio nome às suas deduções lógicas. Observe-se o célebre caso Sturges v Bridgman, julgado em 1879 pela Court of Appeal da Inglaterra e País de Gales e de teor ainda contemporâneo, que foi analisado por Coase em "O problema do custo social". Em Westminster, mais especificamente na Wigmore Street, uma confeitaria funcionava há mais de seis décadas. O sr Bridgman, um dos herdeiros e confeiteiro, utilizava, como era usual nesse tipo de estabelecimento, moedores e pilões industriais para a feitura de pães, bolos e afins. Um dia o sr. Sturges, médico, adquiriu um imóvel na Wimpole Street, quase esquina com a Wigmore Street, passando este e aquele a serem confrontantes de fundos dos respectivos terrenos. Decorridos oito anos sem nenhuma intercorrência entre os vizinhos, o médico construiu um consultório no fundo do seu terreno, quando começou a se incomodar com o barulho produzido pelas máquinas e instrumentos da confeitaria. Disposto a utilizar integralmente o seu espaço, o sr. Sturges ajuizou uma ação contra o confeiteiro, objetivando proteger seu direito ao silêncio. A defesa aduziu que a confeitaria estava em funcionamento há décadas, sem qualquer reclamação da vizinhança, e que o novo morador falhou ao não analisar as imediações antes de adquirir um imóvel no local. Nesse confronto entre o direito do sr. Bridgman usar as máquinas e o direito do sr. Sturges a ter silêncio durante as consultas, a Court of Appeal julgou procedente o pedido do médico, sob o fundamento de que o fato de a confeitaria ser mais antiga na localidade não mitigava o direito do médico invocar o uso e o gozo plenos de sua propriedade. Ronald Coase é um crítico obstinado de decisões judiciais desse padrão, as quais implicam altos custos de transação e são insensíveis ao impacto econômico daquilo que foi decidido. O médico teve o seu silêncio respeitado, enquanto um estabelecimento tradicional foi obrigado a fechar as portas, a demitir empregados, a perder a clientela — ou, na melhor das hipóteses, a procurar outro local para instalar-se — tão somente porque alguém (sem a mesma função econômica na sociedade local) reclamou do barulho num determinado ponto do terreno. Não seria mais vantajoso economicamente a confeitaria pagar uma quantia ao médico pelo silêncio turbado em alguns períodos do dia, construir uma parede com isolamento acústico ou comprar-lhe o terreno no todo ou em parte? Não seria mais simples o médico, mediante indenização, transferir seu consultório para a frente de seu terreno ou, talvez, pagar à confeitaria para que diminuísse o uso das máquinas durante o expediente das consultas? Em termos de zoneamento, o que seria mais apropriado para a região: uma confeitaria ou um consultório médico? O Judiciário cumpriria melhor sua função se estimulasse acordos economicamente benéficos entre as partes, e não se limitasse a aplicar a lei ao caso concreto? Ronald Coase sustenta que "se as transações de mercado fossem sem custo, importaria apenas (sem considerar questões de equidade) que os direitos das várias partes sejam bem definidos e os resultados de ações judiciais fáceis de prever"; porém, "a situação é muito diferente quando as transações de mercado são tão dispendiosas que dificultam uma modificação do regime de direitos estabelecido pelo ordenamento jurídico".[4] As consequências irrefletidas das decisões judiciais sobre pessoas estranhas à lide (externalidades) representam uma decorrência da utilização cada vez mais frequente e incompatível de recursos escassos. O embate entre a utilidade e o prejuízo da atividade empresarial é, todavia, inerente à vida contemporânea, devendo alguns desconfortos (como o barulho), desde que não excedam o razoável e não configurem grave dano, serem contornados em nome do bem comum, do proveito econômico e da melhor utilização possível do direito em questão —porque, quase sempre, há um ganho coletivo para compensar certas perdas, a exemplo da geração de empregos e da valorização imobiliária. Postas essas primeiras questões sobre o pensamento de Coase, serão tratados, nos próximos dias, alguns desdobramentos dessa vertente, em particular os referentes aos danos ambientais, aos contratos de direito privado, aos direitos de propriedade e aos impactos econômicos das leis e decisões judiciais. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] Patrícia Cândido Alves Ferreira é pós-doutoranda em Direito Civil, doutora e mestra pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). [4] COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito..., op. cit., p. 119.
2023-05-15T09:02-0300
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Opinião
Fachin e Arruda: Lições constitucionais contra a erosão da democracia
Proteger o Estado democrático de Direito e propiciar condições básicas para permitir a continuidade do processo democrático: eis aí o labor essencial para defender os fundamentos da República Federativa do Brasil e realizar princípios e direitos básicos na perspectiva da dignidade humana. Em 333 páginas, "A Constituição e Sua Reserva de Justiça — uma teoria sobre os limites materiais ao poder de reforma", obra de 1999 relançada em 2023 pelo professor doutor Oscar Vilhena Vieira, fortifica em torno de cláusulas superconstitucionais a defesa da democracia. A editora WMF Martins Fontes reeditou uma obra que já nasceu um clássico e presta assim, nesta edição segunda, um serviço à comunidade jurídica e ao País. Legisladores, julgadores e doutrinadores do Direito nela encontram um contributo refinado para o Direito Constitucional brasileiro. Oscar Vilhena demonstra que as dimensões dos afazeres dos intérpretes em páginas refinadas, analíticas, bem pensadas e bem escritas, como, aliás, consta do prefácio assinado pelo ministro Luís Roberto Barroso. O professor é, afinal, uma inteligência empregada em favor do Brasil. Há alguns anos, seu trabalho doutrinário sobre o Supremo Tribunal Federal vem mudando a forma como as reflexões acadêmicas passaram a perceber a Corte. Os diálogos construtivos e críticos tem sido objeto de meditação e debate. Conceitos criados por ele, como o de Supremocracia, são hoje base para as principais reflexões sobre os limites da jurisdição constitucional no país. Com efeito, consistem em pressupostos de compreensão sine qua non para quem deseje se dedicar ao estudo dos temas da democracia, da Jurisdição Constitucional e dos Direitos Fundamentais. A obra é jornada com método e percurso. O texto se abre numa caixa de diálogo para haurir uma autêntica reserva de justiça constitucional. Para chegar às conclusões da obra, a partir do pensamento de Jürgen Habermas, Joseph Raz e Stephen Holmes, Oscar Vilhena faz o leitor percorrer os fundamentos teóricos das limitações constitucionais que resguardam os direitos das futuras gerações de se autogovernarem, principalmente diante de ameaças autocráticas. Pedimos licença, neste escrito a modo de algoritmo de síntese, de caráter acadêmico, para enaltecer a território elevado no qual se situa o autor, aquele reservado aos intelectuais íntegros e generosos. Como evidenciou em recente evento que organizamos em nosso gabinete (a 25ª edição da Hora de Atualização, com expoentes da vida acadêmica), é um jurista que, sem favor algum, habita região que faz intercambiar conhecimentos e experiência, aquela que congrega a teoria à práxis, como bem demonstra seu trabalho à frente da Conectas. Da releitura que viemos de realizar, veio em nós uma recensão que busca ser fiel à metodologia e à luminosa didática que o leitor encontrará ao ler pela primeira vez ou ao revistar esse clássico[1]. O trabalho divide-se em capítulos bem estruturados, como a introdução apresenta. Primeiramente, detém-se sobre a forma com a qual o pensamento político moderno buscou fundamentar a supremacia da Constituição, perpassando a doutrina de John Locke, Emmanuel J. Sieyès e Madison, bem como Jefferson e Thomas Paine. Numa segunda etapa, trata dos problemas que se associam à adoção de Constituições por diversos sistemas políticos. Na sequência, analisa as questões práticas que emergem da adoção das limitações ao poder de reforma constitucional. Especificamente, trata das jurisprudências constitucionais dos Estados Unidos, da Alemanha e do Brasil, observando o controle da constitucionalidade de emendas às respectivas Constituições. Nos capítulos finais, a partir do pensamento de John Rawls, John Hart Ely e Habermas, constrói um argumento sólido para justificar como as limitações materiais à possibilidade de alteração da Constituição podem escapar das armadilhas do jusnaturalismo ou do positivismo normativista e suas inerentes contradições. Ao revisitar as teorias do constitucionalismo e direito natural em Locke, Oscar Vilhena demonstra que a contradição entre direito natural e necessidade humana de construção baseada no contrato social remontam a Hobbes, passando por Rousseau. Evidencia-se, assim, como a teoria do contrato social contém a origem da ideia de poder constituinte. Aponta-se, desse modo, como a insuficiência da ideia de direito natural como amparo para a superioridade da Constituição sobre as decisões da maioria fez com que o fundamento da supremacia fosse encontrado em outro lugar. Afinal, argumenta o autor, por mais democrático que seja um procedimento constituinte, ele não é suficiente para o modelo ideal de deliberação democrática tal como descrito por Rousseau. Portanto, aceitar a supremacia não escapa da contradição de apenas transferir a soberania para outra classe, ou seja, naquela quadra histórica rousseauniana, da monarquia para a burguesia. A experiência constitucional norte-americana (sem olvidar que até 1808 a Constituição norte-americana protegia a escravidão) foi, desse modo, inaugural; na medida em que estabeleceu rito próprio para as emendas, pelo qual tornou-se possível alterar o texto da Constituição, conforme as necessidades impostas pela história. Dedica-se, então, ao poder de reforma constitucional e ao modo como a experiência norte-americana engendrou um mecanismo que tornasse possíveis mudanças pacíficas na estrutura básica do sistema político. Nesse sentido, aponta a criação dos processos de emenda constitucional pode ser considerada, nas palavras do autor, a institucionalização de um contínuo processo revolucionário. Logicamente também houve conflitos nesse processo e o autor indica que as dificuldades para as alterações da Constituição norte-americana levaram a Suprema Corte daquele país a enfrentar o papel de atualização do conteúdo do texto, construindo uma interpretação do texto original, gerando, como é sabido, problemas tanto teóricos, quanto práticos e ainda controvérsias no campo político. Explorando a história norte-americana, narra como a rigidez de 1787 trouxe obstáculos para a concretização do processo de igualdade racial, mas também política e social nos Estados Unidos. A escravidão, o New Deal e o processo de impeachment oferecem o pano de fundo para análise da rigidez da Constituição e como ela pode resultar em bloqueio de medidas de incremento democrático oriundas do Poder Legislativo. Há contraponto. Para isso, toma como ponto de partida a crise da República de Weimar, a ascensão "constitucional" de Adolf Hitler ao poder e a subversão da Constituição de Weimar e a tragédia que todos conhecem. Eis aí o risco: o perigo de erosão do sistema democrático contido na garantia meramente formal do constitucionalismo, ou seja, daquele que admite qualquer transformação do conteúdo da Constituição, desde que realizada dentro de seus próprios limites formais. Oscar Vilhena argumenta, com acerto, que ninguém pode ser ingênuo a ponto de entender que a ascensão do nazismo poderia ter sido, por si só, evitada se a Constituição de Weimar fosse dotada de cláusulas superconstitucionais. Ainda assim, não se pode fechar os olhos, como aponta o autor, para o fato de que a interpretação majoritária da Constituição de Weimar favoreceu a inicial ascensão de Hitler pelos caminhos legais; conclui, desta forma, que é preciso que os pressupostos essenciais ao sistema democrático sejam retirados da esfera de deliberação majoritária. E essa preservação deve se dar com o escopo de evitar uma erosão democrática. Esta é a lição que nos deixa, na visão de Vilhena, na perspectiva do constitucionalismo, por nós sublinhada, a experiência nazista: a simples regra da maioria não basta para assegurar uma associação política baseada na igualdade e na autonomia dos indivíduos. É preciso mais. O nazismo, o totalitarismo, os prenúncios de protótipos do velho fascismo e das novas velhas ditaduras, encapsulas em vernizes de defesa da própria democracia e da liberdade de aniquilar, impõem ao Direito uma demanda ética de respeito aos direitos humanos, de salvaguarda dos direitos fundamentais e de respeito aos pressupostos substantivos e não meramente formais. Não há verdadeiro Estado de Direito sem democracia. A Constituição é a morada dessa condição de possibilidade das liberdades, da justiça e da igualdade. É uma fortaleza obstativa da reforma que vise afetar ou abolir o Estado de Direito democrático. Encontra-se também no livro, por isso mesmo, uma visão em retrospecto dos procedimentos de emenda e dos limites ao poder de reforma constitucional no Brasil. Revisitando a experiência das Constituições brasileiras e mesmo a história nacional, o autor dirige arguto olhar para este caminho, que deságua em 1988. Afinal, nas palavras de Oscar Vilhena Vieira, a aplicação de um texto tão amplo e complexo como o de 5 de outubro de 1988 não poderia deixar de trazer uma série de dificuldades. As tensões estão por toda a parte, como repisa José Afonso da Silva, citado pelo autor. O estudo não poupa o leitor da monumental tarefa que cabe ao intérprete, bem como da necessidade de construção de uma teoria da interpretação consistente, que evite a discricionariedade arbitrária, totalmente incompatível, na visão do autor e por nós endossada, com a meta de governo das leis, ou, para usar a expressão em inglês, rule of law. O estudo ainda nos leva para um exame de casos da Suprema Corte norte-americana que se detiveram em questões procedimentais, em escolha de caminho que optou por evitar o controle substantivo do poder de reforma outorgado aos órgãos políticos, uma vez já demonstrado o cumprimento das formalidades necessárias e exigidas para emenda à Constituição. A atuação e a contenção são duas faces da mesma moeda. Por isso, propõe um exame atilado da experiência alemã, perpassando os casos da "Privacidade de Comunicação" — "BVerfGE 1", de 1970, da "Reforma Agrária" — "BVerfGE 84", de 1991 e o do "Tratado da União Europeia" — "BvergGE 89", de 1993. O autor aponta, a partir deste exame, que não é possível dizer que a Corte tenha desenhado limites para o poder reformador, ou seja, que não há, em suas palavras, uma linha precisa de interpretação que decorra das decisões do Tribunal Constitucional Alemão. Nada obstante, prestigia o dever de contenção. É como Ulisses determinando aos seus homens que o amarassem ao mastro da embarcação para não sucumbir ao encanto das sereias. Esse equilíbrio e vigor sinalizam alerta, porque além da autovinculação cumpre atender, num Tribunal guardião da Constituição, para o caráter supraindividual do poder de reforma, especialmente em sede de controle de constitucionalidade. Por essa e outras razões, o autor traça um rico percurso sobre a jurisprudência brasileira do controle de constitucionalidade, a partir do julgamento sobre o Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF, ADI 926/93 e ADI 939/93), bem como sua interrelação com o tema do federalismo, analisando, de forma percuciente, os votos proferidos nos casos. Ações e decisões mais recentes poderiam ser agregadas a esse acervo. O caminho percorrido nos capítulos 6 a 8, por meio da análise dos casos submetidos às cortes americana, alemã e brasileira deságua no capítulo 9, no qual o autor transporta o leitor a verificar as grandes dificuldades contidas em implementar adequadamente as limitações ao poder de reforma constitucional. Trata-se, em verdade, como demonstra o autor, de enfrentar o dilema da aplicação do direito, que demanda a compreensão, por parte da autoridade estatal imbuída deste poder, do significado dos significantes contidos nas normas jurídicas. Assim, analisando o pensamento de Hart (Herbert. L.A., na obra sobre o conceito de Direito), Montesquieu, Kelsen, entre outros clássicos, em análise detida e profunda, Oscar Vilhena demonstra as dificuldades inerentes ao trabalho do intérprete da Constituição. A Constituição, sendo o estatuto do político, faz a ponte entre o universo jurídico e o não jurídico, nas palavras do autor. Contudo, como escreve Vilhena, "deve o intérprete constitucional recorrer aos princípios da argumentação racional para alcançar a devida compreensão do conteúdo aberto das cláusulas superconstitucionais, isto é, fundamentar e justificar as razões, uma obrigação de índole constitucional (Constituição da República, artigo 93, inciso IX)". Aponta o texto para o caminho necessário de apresentar alternativas para enfrentar os problemas específicos da interpretação e aplicação dos dispositivos que limitam o poder de reforma, que vem carregados de aspectos não jurídicos. Oscar Vilhena então conduz o leitor ao pensamento de Ronald Dworkin e à necessidade de perquirir uma resposta correta, dentro do Direito, bem como o melhor caminho para alcançá-la. É no capítulo 10 que a obra descortina ao leitor o pensamento de John Rawls em sua Teoria da Justiça, na qual defende que estabelecer padrões morais passa por uma construção racional e não de uma pressuposição. Didaticamente, descreve o modelo contratual aplicado por Rawls para demonstrar os princípios de justiça e o procedimento por ele desenhado para produzir resultados sempre justos. Assim, num primeiro estágio, o modelo de Rawls compreende indivíduos racionais distantes do mundo real por um "véu de ignorância", que os mantém afastados da possibilidade de pensar estrategicamente sobre o resultado das decisões que devem tomar. Nessa posição, chamada original, as pessoas devem escolher princípios maneira imparcial, já que ignoram qual status irão ocupar ao serem inseridos na sociedade. Na visão de Rawls, estes indivíduos deveriam buscar ampliar sua liberdade e minorar os efeitos das diferenças a que todas as pessoas estão arbitrariamente submetidas. O engenhoso mecanismo de Rawls torna-se de fácil apreensão ao leitor graças à explicação iluminada. De forma criativa, a obra conduz ao examinar como, a partir dos princípios da justiça, seria possível estabelecer uma Constituição que conteria procedimentos justos para a tomada de decisão e elementos substantivos para o controle de eventuais resultados injustos decorrentes de seus procedimentos. Vilhena demonstra como, ao assumir a teoria da aplicação do Direito, tal como proposta por Dworkin, Rawls compreende que o papel dos tribunais está em interpretar a Constituição da melhor forma possível, por meio de seu texto, precedentes e princípios. Oscar Vilhena advoga que, neste ponto, Rawls vai além de Dworkin, ao propor que o fundamento das decisões judiciais, quando necessário, também se encontre em uma concepção política de justiça. O contraponto às visões de Dworkin e Rawls vem na alternativa apresentada por John Hart Ely, que estaria em procurar fora do texto constitucional o preenchimento do conteúdo das normas abertas. Nesse percurso, porém, Ely não cede à alternativa do direito natural. Ao propor que a busca desses valores interpretativos esteja na própria democracia, Ely preserva a integridade do próprio processo democrático. Vilhena Vieira faz um balanço crítico da função dos tribunais como fortalecedores da democracia, a partir do pensamento de Ely. Assim, não apenas na função contramajoritária, mas também na preservação das liberdades que envolvam participação política, como liberdade de expressão, consciência, associação, voto universal e igualitário, aí está a função do Judiciário. Vilhena demonstra como o pensamento de Ely é engenhoso e não guarda contradição com o regime democrático, guiando o leitor por uma revisitação dos fundamentos da teoria e formulações de Ely, essenciais para compreensão do poder dos juízes nas democracias constitucionais. O capítulo derradeiro sustenta que os direitos fundamentais e a separação de poderes constituem, para além de limites, estruturas que habilitam o surgimento de uma esfera de decisão pública, nas palavras do autor, na qual cidadãos livres e bem-informados podem decidir seus próprios destinos, sem interferências arbitrárias do Estado ou de outros indivíduos. Se democracia e Constituição não se confundem, precisam, ao mesmo tempo, conviver. Enquanto a primeira diz, quando menos, com o respeito ao voto da maioria, em síntese, a segunda é limite ao poder estatal. O autor descortina as tensões inerentes ao convívio entre democracia e Constituição, na medida em que o controle de constitucionalidade cabe a juízes não eleitos, dilema que os autores americanos enfrentaram e que se repetiu no Brasil, com a adoção do controle de constitucionalidade. A obra de 1999, ora reeditada, traz caminhos e soluções para essas questões, a partir da doutrina e da experiência internacional e aponta, no pensamento de Stephen Holmes e de John Hart Ely, soluções para este dilema entre democracia e a Constituição, desde que, como ensina o autor, a Suprema Corte limite tão somente o indispensável. Inexiste, por definição, unanimidade na inteligência do saber acadêmico. A dúvida e o debate são motores que produzem combustão às ideias. Dissensos doutrinários são próprios do ambiente acadêmico e jurisdicional de cariz democrático. O importante é a comunhão com a visão emancipatória e transformadora do Direito, lócus que eleva as mais pungentes questões da contemporaneidade no que se diferencia doxa e episteme. O livro se instala num espaço dialógico e contam-se mais de duas décadas desde a primeira edição, no entanto os dilemas não poderiam ser mais atuais diante do conteúdo da publicação. A experiência revela que a Constituição de 1988 tem resistido aos duros testes a que foi submetida. Havendo risco efetivo (como, de fato, ainda há) à democracia e à independência do Poder Judiciário, as respostas que 1988 oferece são categoricamente democráticas. A leitura se recomenda, porquanto contém lições imprescindíveis para quem pretende arrostar os desafios novos e as ofensivas insepultas contra a democracia constitucional brasileira. Rememorar 08 de janeiro pretérito é suficiente memorabilia da infâmia para preservar de 5 de outubro de 1988 os fundamentos da República Federativa do Brasil. [1] Remetemos o leitor também ao artigo da lavra do próprio autor: VIEIRA, Oscar Vilhena, Constituição como reserva de justiça. Revista Lua Nova, SÃO PAULO, v. 42, p. 42, 1997.
2023-05-16T09:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/fachin-arruda-licoes-constitucionais-erosao-democracia
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Contas à Vista
Descumprimento do atual PNE pode comprometer o próximo plano
Na forma do artigo 12 [1] da Lei 13.005, de 25 de junho de 2014, até o final deste semestre deve ser enviado o projeto de lei do Plano Nacional de Educação (PNE) relativo a 2025/2035. Aludido projeto deverá incluir diagnóstico, diretrizes, metas e estratégias para o próximo decênio. A despeito desse comando legal e do lastro constitucional da matéria (artigo 214 da CF/1988), falta pouco tempo e quase nenhum debate amplo tem sido empreendido com a sociedade a respeito do planejamento decenal da educação pública brasileira. A bem da verdade, o PNE 2014/2024 concluirá seus nove primeiros anos de vigência daqui a cerca de um mês, com um quadro crônico de descumprimento das suas principais metas e estratégias. Trata-se de impasse normativo de significativa grandeza termos um plano setorial de tamanha relevância, cuja densificação cotidiana não se verifica. Para além dos limites impostos pela pandemia da Covid-19 e da anistia conferida pela Emenda 119/2022, o descumprimento da maioria das obrigações a termo fixadas no PNE guarda íntima relação com a baixa aderência das leis orçamentárias dos diversos entes da federação com o planejamento da educação. Ora, a esse respeito, não é demasiado lembrar o artigo 10 da Lei 13.005/2014: "O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução." Parafraseando Umberto Eco, o nome da rosa reside na colossal contradição entre o elevado nível de inadimplemento das metas e estratégias do PNE, de um lado, e a existência de recursos vinculados à política pública educacional, notadamente o piso em manutenção e desenvolvimento do ensino e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), regulados, respectivamente, pelos artigos 212 e 212-A da Constituição Federal de 1988, de outro lado. É inegável que o descumprimento do atual PNE constrange e delimita o espaço de debates do próximo PNE. Para aprender com os erros do plano vigente e formular um próximo plano educacional que seja amplamente executado e devidamente fiscalizado, todas as instâncias competentes de controle precisam chamar para si a responsabilidade de avaliar as razões pelas quais não se assegurou financiamento adequado ao cumprimento das metas e estratégias do PNE. Revela-se imprescindível, ao nosso sentir, contrastar as despesas discricionárias computadas nos recursos vinculados à educação com o risco de descumprimento das metas e estratégias do PNE em cada ente da federação, impondo sobre aquelas uma presunção relativa de irregularidade, somente passível de ser afastada por meio de motivação circunstanciada. Desde a promulgação da Lei 13.005/2014, defendemos que as metas e estratégias do PNE perfazem obrigações legais de fazer que devem orientar substantivamente o conteúdo do dever de gasto mínimo em educação e a aplicação dos recursos do Fundeb (artigo 10 da Lei 13.005/2014). Como tal, não deveriam ser preteridas por despesas discricionárias alheias ao planejamento educacional. Tal dever de motivação é necessário, para que seja possível evidenciar o custo de oportunidade da execução orçamentária educacional quando são realizados, por exemplo, gastos em subfunções alheias à atribuição municipal, como ensino médio e superior; aquisição de material apostilado, a despeito da gratuidade do Programa Nacional do Livro Didático; contratação de servidores comissionados e temporários computados na folha da educação, mas cedidos a outros entes políticos etc. Insistimos em denunciar que o núcleo do problema reside no desvio dos recursos educacionais para atender a finalidades outras que não aquelas identificadas como metas e estratégias do respectivo planejamento setorial, em afronta — reiteramos — ao artigo 10 da Lei 13.005/2014. Segundo balanço feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação [2], é inquestionável o elevado nível de descumprimento das suas metas e estratégias, conforme demonstra a imagem a seguir: O alto nível de descumprimento do PNE decorre, em grande medida, do fato de que muitos gestores passam despesas discricionárias à frente das obrigações de fazer fixadas no correspondente planejamento setorial. Tal inversão de prioridades compromete não só o alcance do planejado, mas também fragiliza o debate acerca da qualidade do gasto público em educação. É premente que seja imposto, de forma ampla e ostensiva, o dever de aderência do executado em face do planejado, salvo motivação que objetivamente circunstancie os eventuais desvios de rota. Essa, aliás, é a dimensão conceitual do que foi inscrito no §10 do artigo 165 da Constituição de 1988, pela Emenda 100/2019, a pretexto de impositividade orçamentária. Não se trata de mera aferição contábil-matemática a análise acerca do dever de aplicação do piso em manutenção e desenvolvimento do ensino, bem como da aplicação dos recursos do Fundeb, previstos, respectivamente, nos arts. 212 e 2012-A da Constituição de 1988. Há obrigações substantivas definidas no planejamento educacional que orientam qualitativamente os rumos da execução orçamentária dos recursos vinculados ao setor, tal como expresso no artigo 10 da Lei do PNE. Falta, porém, às instâncias competentes de controle e à sociedade promoverem a evidenciação da inversão de prioridades e impor o ônus agravado de motivação, para fins de correção das distorções alocativas que comprometem a política pública de educação na federação brasileira. Eis o constrangimento que se abateu sobre o atual PNE e que pode vir a comprometer a consistência e a tempestividade do debate em torno do PNE 2025/2035, que deveria começar já agora em junho de 2023. [1] Cujo inteiro teor é o seguinte: "Art. 12. Até o final do primeiro semestre do nono ano de vigência deste PNE, o Poder Executivo encaminhará ao Congresso Nacional, sem prejuízo das prerrogativas deste Poder, o projeto de lei referente ao Plano Nacional de Educação a vigorar no período subsequente, que incluirá diagnóstico, diretrizes, metas e estratégias para o próximo decênio." [2] CAMPANHA Nacional pelo Direito à Educação. Balanço Nacional do Plano Nacional de Educação 2022. Cartilha eletrônica. 2022, p. 29. Disponível em https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/00_BalancoPNE_Cartelas2022_ok_1.pdf (acesso em 19/4/2023).
2023-05-16T08:00-0300
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Direito Digital
O papel das redes: espaço democrático ou antidemocrático
Finalizando a apresentação dos temas debatidos no Seminário Democracia e Plataformas Digitais, será revisitado, agora, o último painel, denominado "O papel das redes: espaço democrático ou antidemocrático", composto pelos docentes Floriano Marques e Maria Paula Dallari Bucci; Alexandre Freire, da Anatel, e pelo deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do Projeto de Lei 2.630, o qual institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.   O painel teve início com a fala do deputado Orlando Silva, o qual relembrou o início do processo de construção, no ano de 2020, do Projeto de Lei das Fake News que tramita no Senado, alvo unânime de críticas por parte da sociedade civil, de organismos internacionais e multilaterais no que se refere à precariedade do debate que havia acontecido no Senado. No entanto, destacou que o mesmo não se deu com relação ao debate acontecido na Câmara, pois reconhece que as dezenas de audiências, reuniões e oitivas com especialistas da indústria e representantes da sociedade civil forneceram um aporte seguro quanto ao fluxo do debate. Silva apontou que o esforço inicial de votação do projeto de lei ocorreu em 31 de março de 2022, oportunidade em que houve uma tentativa de requerimento de urgência, o qual permitiria o exame direto do projeto pelo plenário. No entanto, a votação alcançou 249 votos favoráveis e 207 contrários, sendo que para aprovação seriam necessários 257 votos. O deputado interpretou o resultado da votação como uma demonstração de que "Deus é brasileiro". Isso porque, na visão do deputado, entre março de 2022 até os dias atuais surgiram algumas novidades importantes no cenário brasileiro. A primeira delas diz respeito à travessia do processo eleitoral, a qual produziu lições e até uma surpreendente integração. A segunda refere-se à introdução de um padrão global, sobretudo pela aprovação do Ato dos Serviços Digitais (União Europeia) [1], que inevitavelmente passou a ser uma fonte de inspiração e de resolução de polêmicas entre o que se debatia no Congresso e as barreiras oferecidas pelas plataformas digitais. Em terceiro lugar, o deputado destacou a importância do perfil do governo eleito nas últimas eleições, tendo em vista que o atual apresenta um viés regulatório, diametralmente oposto ao anterior. E, por fim, ressaltou um quarto fator importante para situarmos o debate: o dia 8 de janeiro, uma quase tragédia brasileira, mas que produz valiosas lições de como a legislação brasileira deve prever mecanismos para estruturar procedimentos. Orlando ressalta que o famoso projeto de lei não se trata de regulação de plataformas e circunscreve o objeto do projeto a uma pequena parte da atividade nas redes sociais, a qual será posta em xeque a partir das sugestões públicas do governo de alargar um pouco mais o escopo da proposta ao incorporar temas como streaming, o que certamente será um desafio a ser enfrentado, sobretudo com relação às obrigações de transparência. Assim, o relator ressaltou que há um compromisso majoritário do Parlamento brasileiro no que tange à consciência de que a liberdade de expressão é um bem essencial para a democracia. No entanto, não vislumbra o estabelecimento de parâmetros para a moderação de conteúdo como um ato que confrontaria a liberdade de expressão. Pelo contrário, relembra que há um capítulo, no projeto de lei, vinculado e dirigido para a obrigação de transparência e que esta temática sempre foi uma preocupação já na origem da elaboração do projeto e que continua sendo muito importante em todos os debates já feitos e futuros. A discussão acerca do alcance artigo 19 do Marco da Civil da Internet [2] também foi abordado pelo parlamentar. A sua fala demonstrou que o referido artigo, nos termos que está posto hoje, é insuficiente e que o grande desafio é encontrar a justa medida para garantir o desenvolvimento e, ao mesmo tempo, impedir a propagação de conteúdos ilegais. De acordo com ele, uma das saídas seria o desenvolvimento dos mecanismos de inteligência artificial na operação das plataformas para garantir eficiência na moderação de conteúdos ilegais. Encerrando sua apresentação, Silva ainda apresentou dois tópicos que, em sua opinião, merecem cuidadosa atenção. Primeiro que, apesar de adotar publicamente uma postura antipunitivista, reconhece que os pontos alvos de proteção do PL têm que ser objeto de um dever de cuidado — em casos como crimes de racismo, contra a saúde pública, estímulos ao suicídio, etc. — e que, nestes casos, defende a necessidade de um tipo penal específico, até porque, estruturas são organizadas para que, de modo sistemático, se produza desinformação. E, em segundo lugar, que a ideia de regulação das plataformas digitais no Brasil, nesse campo restrito ora abordado, deve possuir uma capacidade autorregulatória a ser desenvolvida e cada vez mais potencializada, uma espécie de "autorregulação regulada". Em seguida, a palavra foi passada para a docente Maria Paula Bucci, a qual iniciou sua fala com suas impressões acerca da internet que estamos vivenciando, aquela que está desafiando a nossa democracia. Com isso, destacou que a transição que estamos atravessando no mundo se dá pela existência de dois planos distintos: o mundo físico e o mundo virtual, estando ambos em crise. O primeiro, em decorrência dos eventos ambientais climáticos e o segundo, pelo desfalecimento da promessa de uma internet libertária. A esse respeito, relembrou duas leituras feitas que chamaram sua atenção. Primeiro, o livro da jornalista Maria Ressa, prêmio Nobel da Paz de 2022, no qual a autora relata o começo das atividades do seu jornal em 2011 em parceria com o Facebook, época em que a polarização era um componente do negócio e o Facebook, inclusive, lucrava com ela. Além disso, também relembrou o livro de Shoshana Zuboff A Era do Capitalismo de Vigilância (2021), em que a autora demarca o que foi o começo do Google, vista inicialmente como uma empresa libertária e filiada a certos princípios democráticos, até que se viu em um momento de crise e entrou em uma via de exploração comercial sem volta. Ambas as leituras são contextualizadas pela docente com a relação que pode ser feita entre o funcionamento de empresas e a crucial necessidade de discussões e aprimoramentos, não apenas sobre projetos de leis, mas também em projetos e propostas normativas do Poder Executivo e nas universidades. Também traçou paralelos entre os dois livros citados e a fala do ministro Alexandre de Moraes. Para a docente, o ministro foi muito didático no sentido de remeter à responsabilização de uma maneira muito direta e muito pragmática em relação à lei, recomendando que a lei não desça às minúcias e que ela aproveite a experiência das empresas, inclusive da cooperação que está havendo entre as empresas e o poder público. A esse respeito, inclusive, a professora cita o livro de Eugênio Bucci A Super Indústria do Imaginário (2021), relacionando o modus operandi das empresas com as três ideias apresentadas pelo deputado Orlando Silva. A primeira diz respeito à assimetria existente na posição que as empresas ocupam, já que elas veem tudo, conhecem tudo e têm acesso a todos os dados dos usuários. Em contraposição, inexiste qualquer tipo de reciprocidade nessa relação, já que os dados das empresas não estão disponíveis ao público, estão sob um véu de sigilo total. E, finalmente, a chamada "retenção viciante do público" que causa o aprisionamento da imaginação. Esses são os três aspectos estruturantes do modelo de negócio de uma empresa, que denotam a urgência de se ter algo que se contraponha a esse poder excessivo. A partir desta relação é que a docente finalizou sua provocação abordando a importância do projeto de lei do deputado Orlando Silva e, sobretudo, a urgência de se debater de forma profunda e compromissada com os ideais democráticos uma regulação da internet. O ponto de convergência nos discursos é o de que existe uma crise a nível global em relação ao uso inapropriado da internet, sendo premente, portanto, a criação de parâmetros relacionados à responsabilidade e necessidade de transparência por parte das grandes empresas de tecnologia. Trata-se, sem dúvida, de um grande desafio, mas nada impossível, tendo em vista, sobretudo, as experiências internacionais.   Referências: BUCCI, Eugênio. A superindústria do imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. Belo Horizonte: Autentica, 2021. (Ensaios). BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 10 maio 2023. EUROPEAN PARLIAMENT. European Parliament Legislative Resolution Of 5 July 2022 On The Proposal For A Regulation Of The European Parliament And Of The Council On A Single Market For Digital Services (Digital Services Act) And Amending Directive 2000/31/Ec (Com(2020)0825 – C9-0418/2020 – 2020/0361(Cod)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0269_EN.html. Acesso em: 10 maio 2023. ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: ‎ Intrínseca, 2021. 800 p. Tradução de: George Schlesinger. [1] EUROPEAN PARLIAMENT. European Parliament Legislative Resolution Of 5 July 2022 On The Proposal For A Regulation Of The European Parliament And Of The Council On A Single Market For Digital Services (Digital Services Act) And Amending Directive 2000/31/Ec (Com(2020)0825 – C9-0418/2020 – 2020/0361(Cod)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0269_EN.html. Acesso em: 10 maio 2023. [2] Segundo o qual: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
2023-05-16T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/direito-digital-papel-redes-espaco-democratico-ou-antidemocratico
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Estúdio ConJur
Dotti Advogados lança e-book 'Licitações e Contratos Administrativos'
A Lei 8.666 foi feita para regulamentar um ambiente de compras públicas que hoje se encontra superado pelo tempo. A despeito das adaptações legislativas ao longo de sua vigência, a norma tornou-se incapaz de oferecer soluções condizentes com a complexidade das demandas que foram surgindo depois de sua edição. A nova Lei das Licitações surge para suprir essas lacunas, com muitos dispositivos novos. Por meio de Medida Provisória, a Lei 8.666/93 segue em vigor até 30 de dezembro de 2023. A partir dessa data, as licitações e os contratos administrativos passarão a ser regidos exclusivamente pelo novo ordenamento — a Lei 14.133. Para esclarecer os pontos da nova legislação a Dotti Advogados, está lançando o e-book "Licitações e Contratos Administrativos", um conteúdo técnico que reúne clareza e densidade e que estará disponível gratuitamente no site do escritório a partir de 3 de maio. "O e-book busca facilitar a consulta das principais inovações da lei para todos que queiram compreendê-la e aplicá-la", explica o advogado André Meerholz, que integra o núcleo de Direito Administrativo do escritório e que coordenou a produção do livro. O advogado Francisco Zardo, sócio do escritório e coordenador do núcleo, destaca a excelência profissional de todos os que colaboraram para a produção da obra. "Temos uma equipe de destacada formação acadêmica que conseguiu, em textos curtos, apresentar as principais novidades da Lei 14.133 para empresas e pessoas físicas que se relacionam com a administração pública", ressalta. Rogéria Dotti, também sócia do escritório, frisa que estar na vanguarda do estudo de toda e qualquer atualização legislativa é prática que está no DNA da Dotti Advogados. "Também nos mantemos atualizados sobre a jurisprudência dos tribunais superiores, de modo a melhor orientar a aplicação do direito. Com o advento da nova lei das licitações não foi diferente. Por iniciativa do Dr. André Meerholz elaboramos uma obra com os principais dispositivos da nova lei. Vale a pena conferir", recomenda.
2023-05-18T10:06-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/dotti-advogados-lanca-book-licitacoes-contratos-administrativos
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Senso Incomum
Indignamo-nos no varejo e nos omitimos no atacado? (parte 2)
Eis a continuidade da discussão sobre "os limites do Judiciário" ou "limites da decisão judicial". Para quem não leu a primeira parte, leia aqui. Impressiona que esse tema não impressione. Tempos "pós-modernos". Tudo é instantâneo. Indignamo-nos no varejo e nos omitimos no atacado. De todo modo, invoco o "princípio da caridade epistêmica", de autores consagrados como Blackburn e Davidson. O presente texto deve ser lido sob essa luz. Assim, como se sentem as partes e os advogados? O que gostariam de dizer e não dizem, em face de uma cotidianidade adversa e hostil em que: a) Todos os dias o advogado está submetido a todo tipo de autoritarismo, arbitrariedade (disfarçada de discricionariedade). b) O juiz profere uma decisão manifestamente ilegal e o ônus é do causídico. c) Precedentes (que não sabemos bem o que são) são desrespeitados. Ou "respeitados ad hoc". O CNJ edita a Resolução nº 134 para "recomendar que as decisões sejam fundamentadas". d) O que significa "pretensão de simples revisão de prova"? Isso vale para o STF também. e) Robôs eliminam recursos, como snipers epistêmicos. f) E quando o tribunal se equivoca rotundamente, o causídico tem de correr atrás do prejuízo — isso quando o sistema não possui uma armadilha que impede a reversão. g) E os recursos julgados monocraticamente? Em nome da celeridade? h) De que modo um REsp pode ser julgado monocraticamente, na hipótese, por exemplo, de que o tribunal de piso tenha absolvido um réu? Como reverter (e por vezes, monocraticamente) uma decisão desse jaez sem revisar a matéria fática? Como examinar isso monocraticamente e, por vezes, dar provimento a agravo em casos em que o REsp foi inadmitido na origem? Veja-se a Súmula nº 568: "O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema". De que modo é possível chegar à conclusão de que a decisão recorrida malfere "entendimento dominante acerca do tema" sem revisitar a prova? i) Como saber se a decisão violou a posição dominante do STJ sem entrar no exame da prova quando a tese da absolvição, por exemplo, foi insuficiência de provas ou inexistência de provas? Para dizer que há provas não tem de examinar o conteúdo probatório? Não se trata, aqui, de uma questão de contradição performativa? Para que eu possa dizer que algo é, não preciso, antes, saber o que a coisa é? j) E, por vezes, quando a prova é juridicamente mal avaliada e o STJ deveria intervir (porque não é o mesmo que revolver a própria prova), esgrime-se a Súmula 7? Vou dar um exemplo: se em um acórdão se afirma que o motorista agiu sem culpa ao dirigir seu veículo a 120 km por hora quando colidiu com outro que vinha na preferencial, não se irá dizer que contra tal decisão não cabe REsp sob o argumento de que se "trata de matéria de fato". O que há, nesse caso, é erro quanto ao conceito jurídico de culpa, o que significa erro na valorização jurídica do fato. l) E o que dizer do SPJE (supremo poder dos juizados especiais), que aniquila direitos todos os dias de seca à meca e do Oiapoque ao Chuí? Cito só uma mazela, trazida pelo advogado Diego Schuster: "enquanto no rito ordinário a ação rescisória se apresenta como mais um caminho para se combater decisões 'rebeldes', sendo possível até mesmo atacar aquelas decisões que aplicam um precedente sem observar a questão discutida no processo, ou seja, sem fazer a devida distinção, no microssistema do JEF as decisões são inquebráveis, sendo possível ao juiz escolher respeitar, ou não, os precedentes de observância obrigatória". m) Existiria um poder absoluto do "microssistema dos juizados especiais" no Brasil? O ponto esquecido e banalizado pela comunidade jurídica é: quais são os direitos das partes e dos advogados nesse sistema de justiça que se estabeleceu no Brasil? Numa palavra final, impressiona que nada disso abala o imaginário jurídico. De fato, o menino de 18 anos, Étienne de la Boétie, tinha razão.
2023-05-18T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/senso-incomum-indignamo-varejo-omitimos-atacado-parte
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Interesse Público
Crônica jurisprudencial sobre um "polimorfismo organizatório"
Na última semana, a ConJur noticiou dois julgamentos dos principais sodalícios do país, a versar a temática do regime jurídico das empresas estatais. Na ADPF 896, ministra Rosa Weber, o Plenário do STF negou pedido da Minas Gerais Administração e Serviços S.A. (MGS), empresa pública de capital fechado, para que seus débitos judiciais fossem submetidos ao regime constitucional dos precatórios. De acordo com o voto da ministra relatora, a empresa estatal mineira não desenvolve exclusivamente serviços públicos essenciais, mas exerce atividade econômica em regime concorrencial, pelo que se deve subordinar ao sistema geral de execuções judiciais e não ao sistema fazendário privilegiado. Já a 2ª Turma do STJ apreciou o REsp 2.036.038/RJ, ministro Francisco Falcão, proferindo decisão segundo a qual o regime dos precatórios é plenamente aplicável à Rio Trilhos (Companhia de Transportes sobre trilhos do Estado do Rio de Janeiro), sociedade de economia mista prestadoras de serviço público próprio do Estado, de natureza não concorrencial. O STJ reformou acórdão do TJ-RJ que afastava, ao argumento de se tratar de sociedade de economia mista, a impenhorabilidade de bens da estatal. Os julgados do STF e do STJ alinham-se à tendência jurisprudencial, que vem de se sedimentar nos últimos tempos (ver, por todos, os Temas 235 [1], 508 [2], 532 [3] e 1.140 [4] do STF), de reconhecer que a organização administrativa brasileira é caracterizada por um polimorfismo organizatório [5], que ultrapassa as raias do Decreto-lei 200/67. Verdade seja dita. A doutrina brasileira, na esteira das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello [6], há bastante tempo já sustentava uma dicotomia entre empresas estatais exploradoras de atividade econômica e empresas estatais prestadoras de serviços públicos, reconhecendo-lhes diferenças em relação ao regime jurídico aplicável. E isso, convém complementar, a despeito da existência de empresas estatais, alheias a essa dualidade (atividade econômica/serviço público), dedicadas ao exercício de atividades, tais como: planejamento econômico (Empresas Brasileira de Pesquisa Energética), fomento estatal (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), fiscalização (Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte — BHTrans). Deveras, esse rol de atividades detectáveis no universo das empresas estatais brasileiras revela que o regime jurídico aplicável a elas não decorre apenas de disposições constitucionais ou da Lei 13.303/16 (Estatuto Jurídico das Empresas Estatais), senão também, e tão importante quanto, de uma análise pormenorizada, entre outros aspectos, das leis de criação e do tipo de atividade que desempenham, além de sua submissão ou não a um regime concorrencial. Também emblemáticas, ao mister, as decisões do STF a respeito das autarquias profissionais (ADC 36, da ADI 5.637, ADPF 367), corporações que sempre foram tradicionalmente estudadas com perfil de autarquias e subordinadas a regime predominantemente público. Na oportunidade, o STF decidiu acertadamente que "os Conselhos profissionais gozam de ampla autonomia e independência; eles não estão submetidos ao controle institucional, político, administrativo de um ministério ou da Presidência da República, ou seja, eles não estão na estrutura orgânica do Estado. Eles não têm e não recebem ingerência do Estado nos aspectos mais relevantes da sua estrutura — indicação de seus dirigentes, aprovação e fiscalização da sua própria programação financeira ou mesmo a existência, podemos chamar, de um orçamento interno", [concluindo que] "merece ser franqueado ao legislador infraconstitucional alguma margem de conformação na discriminação do regime aplicável a esses entes, entendida a necessidade de se fazer incidir certas exigências do regime jurídico de direito público, na linha do afirmado na ADI 1.717, mas bem entendida também a importância de se identificar aspectos que destoam do regime puro de Fazenda Pública" [7]. As orientações jurisprudenciais citadas ao longo deste ensaio admitem a noção de polimorfismo organizatório em cada uma das unidades federativas, a demonstrar que, não obstante o tratamento legislativo dado às entidades da administração indireta em nível federal e além (v.g., Decreto-lei 200/67, artigos 4º e 5º), particularidades sobressaem e dependem sempre das opções políticas feitas pelo legislador ordinário. Há tempos escrevi (aqui na ConJur) que o regime jurídico das administrações públicas no Brasil é híbrido e variável, a mesclar elementos, institutos e conceitos de direito público e de direito privado, aspectos de legalidade e de autonomia das vontades. E que a maior ou menor incidência das regras de direito público e de direito privado nas relações travadas pelas administrações públicas depende de fatores como: (a) da pessoa jurídica que exerce a atividade administrativa (sujeito), seja ela pertencente ou não à administração pública; (b) do tipo de atividade administrativa desenvolvida (regulação, polícia, serviços públicos, atividade econômica, fomento); (c) do instrumento jurídico utilizado para efetivar a ação administrativa (ato ou contrato); (d) da finalidade perseguida pela atividade administrativa; (e) dos direitos e interesses legitimamente envolvidos nessa persecução [8]. Com efeito, a utilização de formas múltiplas de atuação pelo Estado (ou em pareceria com o Estado), vinculadas ao enfrentamento das necessidades concretas da administração pública, conduz à imprescindibilidade de se raciocinar em torno da existência de variados meios ou formas (polimorfismo) para atingir finalidades públicas que o ordenamento prescreve ao Estado. Não se trata de alcançar relevantes fins públicos por quaisquer meios, como adverte argutamente Fabrício Motta [9], mas de alcançá-los por meios legítimos e variados, consideradas fundamentalmente as consequências práticas das decisões (artigo 20 da Lindb). [1] Tema 235: "Os serviços prestados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, inclusive aqueles em que a empresa não age em regime de monopólio, estão abrangidos pela imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º)". [2] Tema 508: "Sociedade de economia mista, cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, e que, inequivocamente, está voltada à remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, não está abrangida pela regra de imunidade tributária prevista no art. 150, VI, 'a', da Constituição, unicamente em razão das atividades desempenhadas." [3] Tema 532: "É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial." [4] Tema 1.140: "As empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição Federal, independentemente de cobrança de tarifa como contraprestação do serviço." [5] Essa vertente teórica é trabalhada mais amiúde em excertos doutrinários estrangeiros. Em Portugal, vale conferir: MOREIRA, Vital. Administração Autónoma e Associações Públicas. Coimbra: Almedina, p. 256. Na França, existem arestos do Conseil d’État e do Tribunal de Conflitos a versar sobre o conceito de ‘atos administrativos editados por organismos privados’, respectivamente, o arrêt Morand (1946) e o caso Barbier (1968). Nos EUA, são delegadas a privados tarefas públicas como a gestão de prisões, a elaboração de códigos e regramentos para o exercício de atividades econômicas, a certificação e qualificação de instituições (por ex. escolada privadas e hospitais), o licenciamento e a regulação de atividades (ver, sobre o tema, GONÇAVES, Pedro Antônio Pimenta da Costa. Entidades Privadas com Poderes Públicos: o exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008. p. 60-73). [6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 1995. p. 104 e segs. [7] Antes mesmo da decisão final do STF, ver aqui na ConJur: FERRAZ, Luciano. Regime Jurídico aplicável conselhos profissionais está nas mãos do STF. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-mar-02/interesse-publico-regime-juridico-conselhos-profissionais-maos-stf. Acesso em 16.05.2023. [8] FERRAZ, Luciano. Regime Jurídico das Administrações Públicas é Híbrido. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-abr-14/interesse-publico-regime-juridico-aplicavel-administracoes-publicas-hibrido. Acesso em 16.05.2003. [9] MOTTA, Fabrício. Prefácio à obra de FERRAZ, Luciano. Controle e Consensualidade, Belo Horizonte: Forum, 2019.
2023-05-18T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/interesse-publico-cronica-jurisprudencial-polimorfismo-organizatorio
academia
Paradoxo da Corte
Coisa julgada material sobre a sentença arbitral parcial
O artigo 23, parágrafo 1º, da Lei de Arbitragem, autoriza os árbitros a proferirem, no curso do processo, sentenças parciais. Assim, quando alguma questão de natureza processual ou de mérito, no iter procedimental, encontrar-se "madura" e oportuna para julgamento, o tribunal arbitral, a exemplo do que ocorre no processo estatal (artigo 356 do Código de Processo Civil), pode prolatar ato decisório incidental, denominado, ex vi legis, sentença parcial. Como bem ensina Ovídio Baptista da Silva, a sentença parcial em nada difere da sentença final, inclusive no que se refere à coisa julgada e apenas se distingue desta por não encerrar definitivamente a controvérsia. Tanto na sentença final quanto na sentença parcial o juiz ou árbitro se pronuncia sobre o objeto do litígio, de tal modo que o ponto decidido não mais poderá ser controvertido pelas partes e tampouco o julgador sobre ele poderá emitir um julgamento divergente, na fase decisória de conclusão do processo (Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença, Rio de Janeiro, Forense, 2001, pág. 2021. V., ainda, Guilherme Cardoso Sanchez, Sentenças Parciais no Processo Arbitral, dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da USP, 2013, pág. 44 e segs.). Reproduzindo o artigo 471 do Código de Processo Civil revogado, o artigo 505 do diploma vigente preceitua que: "Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide". Como já tive oportunidade de escrever acerca dessa verba legal, é até intuitivo que, diante da segurança jurídica decorrente da formação da coisa julgada, o que foi decidido por ato decisório incidental não é passível de ser novamente objeto de julgamento. E isso deve ocorrer tanto no âmbito do mesmo processo, quanto, igualmente, em processo sucessivo (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 7, 3ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2021, pág. 234). Assim sendo, no que toca à arbitragem, proferida sentença parcial de mérito, no curso do respectivo procedimento, transita ela em julgado, adquirindo o status de coisa julgada material para todos os efeitos jurídicos. Passada em julgado a sentença parcial, assim como a sentença final, adquire ela uma nota característica, qual seja, a imutabilidade. Por esta perspectiva é preciso conceber a coisa julgada como instituto culminante de uma atividade, de uma atividade eminentemente teleológica, o processo. Deste modo, decisão imutável e indiscutível é aquela — parcial ou final — que atingiu estágio definitivo de estabilidade, sob o ponto de vista do comando emitido por determinado órgão detentor do poder de julgar – estatal ou arbitral. A essência da coisa julgada reside exatamente na imutabilidade da sentença parcial ou final. Enquanto a sentença é a resposta ao pleito deduzido pelas partes, a coisa julgada material, por sua vez, coincide com o momento no qual a tutela arbitral é prestada. Deriva desse fenômeno um duplo aspecto revestido de significativa conotação jurídica: de um lado, as partes não mais poderão submeter novamente a matéria decidida à apreciação de órgão investido de jurisdição (efeito positivo) e, de outro, o juiz ou o árbitro tem o dever de não reexaminar a controvérsia, já decidida, em sucessiva oportunidade (efeito negativo) (cf. Ugo Rocco, L'autorità della Cosa Giudicata e i suoi Limiti Soggettivi, Roma, Athenaeum, 1917, pág. 437). Com a formação da coisa julgada material, todas as questões que ficaram decididas principaliter na sentença arbitral parcial tornam-se imutáveis e indiscutíveis, não podendo ser reexaminadas ou mesmo desprezadas pela sentença final. Ora, isso significa que se o tribunal arbitral proferiu uma sentença parcial, por força do denominado efeito negativo da coisa julgada, jamais poderá desrespeitá-la. Caso o tribunal arbitral, em sucessiva decisão, deixe de considerar o que antes fora por ele decidido, inquinará de vício insanável a ulterior decisão, simplesmente porque resultará violada a coisa julgada que se formara sobre o precedente ato decisório. E, nesta hipótese, caberá ação de nulidade da sentença arbitral parcial, dada a ofensa à coisa julgada, que é protegida por cláusula pétrea, nos termos do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição, com a seguinte redação: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". E esta deve ser ajuizada, na dicção do parágrafo 1º do artigo 33 da Lei nº 9.307, "no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos". Este é, inclusive, o entendimento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do recente julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.143.093/MT, da relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, com arrimo em precedente da 3ª Turma, ao assentar que: "A ação anulatória destinada a infirmar a sentença parcial arbitral — único meio admitido de impugnação do decisum — deve ser intentada de imediato, sob pena de a questão decidida tornar-se imutável, porquanto não mais passível de anulação pelo Poder Judiciário, a obstar, por conseguinte, que o Juízo arbitral profira nova decisão sobre a matéria. Não há, nessa medida, qualquer argumento idôneo a autorizar a compreensão de que a impugnação ao comando da sentença parcial arbitral, por meio da competente ação anulatória, poderia ser engendrada somente por ocasião da prolação da sentença arbitral final. Tal incumbência decorre da própria lei de regência (Lei n. 9.307/96, inclusive antes das alterações promovidas pela Lei n. 13.129/2015), que, no § 1º de seu art. 33, estabelece o prazo decadencial de 90 (noventa dias) para anular a sentença arbitral. Compreendendo-se sentença arbitral como gênero, do qual a parcial e a definitiva são espécies, o prazo previsto no aludido dispositivo legal aplica-se a estas, indistintamente" (REsp nº 1.519.041/RJ, relator ministro Marco Aurélio Bellizze).
2023-05-19T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-19/paradoxo-corte-coisa-julgada-material-sentenca-arbitral-parcial
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Observatório Constitucional
Em busca de um ethos no constitucionalismo brasileiro
No intuito de identificar se há um ethos no constitucionalismo brasileiro e qual seria sua relevância, esta reflexão pretende trazer uma perspectiva constitucional pátria, com foco, sobretudo, no atual paradigma, estabelecendo paralelo com o livro do professor Alexander Tsesis, Constitucional Ethos, recém-traduzido para o português. O objetivo é compreender se o constitucionalismo brasileiro, devido aos seus respectivos contextos históricos e complexidades, possui um ethos e entender o quão suscetível a mudanças e ameaças ele é. É certo que a Constituição brasileira está muito distante da Constituição dos Estados Unidos. Assim, apesar de a ideia de ethos ter sido construída sob a análise da Constituição dos Estados Unidos da América, o intento é promover um estudo comparativo uma vez que sua existência é viva e contextualizada, conectada aos sujeitos e sujeitas que formam a noção plural de "povo". "Ethos" é um termo que se origina do grego e é usado para descrever os valores, crenças e caráter moral de uma pessoa, grupo ou sociedade. No contexto do Direito Constitucional e da teoria constitucional, refere-se ao conjunto de valores fundamentais, princípios e ideais que permeiam uma Constituição ou ordem constitucional. É a expressão do espírito ou identidade de um sistema constitucional, refletindo as aspirações e os compromissos fundamentais de uma sociedade. O livro Constitutional Ethos, de Alexander Tsesis, oferece uma análise profunda do espírito subjacente à ideologia constitucional e seu papel na formação e interpretação da Constituição dos Estados Unidos. O autor explora como os princípios e valores subjacentes à Constituição moldam a cultura política americana e influenciam a evolução do Direito Constitucional. Tsesis examina diversos tópicos, incluindo liberdade de expressão, igualdade, privacidade e direitos fundamentais, destacando a importância de compreender o espírito constitucional para uma interpretação e aplicação adequadas da Constituição. A referida obra, ainda, destaca a necessidade de preservar e fortalecer o ethos constitucional como uma base sólida para a democracia e a proteção dos direitos fundamentais. Como aduz Tsesis em seu livro, o ethos da Constituição não é uma "criação textual", mas um "princípio de justiça que o grupo coletivo, comumente referido como 'o povo', reconhece ter status normativo superior a qualquer maioria contemporânea" [1]. O ethos não é, portanto, o mero texto escrito da Constituição; representa, nas palavras de Tsesis, "um princípio que capacita indivíduos a prosperar buscando suas missões de vida únicas, ao mesmo tempo em que mantém padrões coercitivos para que o governo promova políticas provavelmente alcançar bens coletivos" [2]. Assim, conforme afirma o autor mencionado, o ethos da Constituição deve abranger a pluralidade social que compõe "nós, o povo" de modo contextualizado. Tsesis demonstra que o ethos — que decorre justamente das ideias e antecedentes históricos que desembocaram na promulgação da Constituição norte-americana — obriga os três poderes do governo e legitima o exercício do poder em todos os níveis. É no axioma da proteção dos direitos e do alcance do bem comum que repousa o espírito da Constituição que deve ser sempre considerado em sua leitura e aplicação. Uma das principais teses da obra é que mesmo as leis promulgadas por maiorias populares não têm autoridade, a menos que estejam de acordo com o axioma central do constitucionalismo, qual seja: a proteção dos direitos para o bem comum. Este princípio de governança constitucional sintetiza a proteção dos direitos individuais decorrentes da Declaração de Independência e do Preâmbulo, antecedendo a própria Constituição norte-americana. Embora Constitutional Ethos, de Alexander Tsesis, se concentre no contexto constitucional dos Estados Unidos da América, seu conteúdo também tem relevância para o direito brasileiro. Assim como nos EUA, identificar e compreender o ethos constitucional brasileiro é fundamental para a interpretação e aplicação corretas da Constituição. A preservação e fortalecimento do espírito constitucional no Brasil são essenciais para garantir uma sociedade justa, democrática e respeitadora dos adágios da dignidade humana. Por não haver uma única Constituição brasileira, é difícil ou até mesmo impossível estabelecer um ethos estável e perene no constitucionalismo brasileiro. A Constituição, por certo, não é resultado do Big Bang, como se o tempo nem mesmo existisse antes dela. Ela é a forma jurídica pela qual uma sociedade politicamente organizada expressa sua autonomia. "Uma constituição é sempre a tradução do equilíbrio político de uma sociedade em regras fundamentais" [3], ensina Caio Prado Jr. A história constitucional brasileira é bastante complexa, tanto pela sucessão formal de oito modelos constitucionais, quanto pelos fatos políticos que influenciaram e antecedem cada uma delas. Houve muitas Constituições brasileiras [4] (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969, 1988), sendo que das últimas sete no período republicano: quatro promulgadas (1891, 1934, 1946, 1988) e três impostas (1937, 1967, 1969 [5]). No espírito do constitucionalismo, não pode haver ethos senão onde houver democracia. Assim, ao perquirir a partir de nossos textos constitucionais democráticos, não se pode encontrar, de acordo com a teoria de Alexander Tsesis, um ethos constitucional brasileiro comum entre essas Constituições. Senão vejamos: A Constituição de 1891 foi resultado de uma ruptura de cima para baixo. A Constituição de 1934 foi brevíssima e sucumbiu ao Regime do Estado Novo de Getúlio Vargas em 1937. Na tentativa de restabelecer a democracia novamente, a Constituição de 1946 foi promulgada, comprometida com o ideal democrático do Estado de Direito, mas, não conseguiu pacificar a democracia brasileira por muito tempo, surgindo outra ruptura em 1964 com o golpe civil-militar. Após mais de duas décadas de ditadura, a democracia formal foi restabelecida. A Constituição atual surge como marco da transição democrática, ainda em andamento, e que permitiu o restabelecimento do Estado de Direito e a tutela reforçada dos direitos humanos. O resultado — o texto da Constituição Brasileira de 1988 — foi um pacto provisório entre as inúmeras forças políticas em disputa no regime de transição. Nota-se que as Constituições democráticas no Brasil surgiram devido a fraturas institucionais. Do Império à República, da República Velha ao Estado Novo, do Estado Novo à Terceira República, desta à ditadura civil-militar e, finalmente, à democracia. À luz dessa observação, não se pode afirmar a existência de um ethos inexaurível que subjaz à tradição constitucional democrática brasileira. Pelo menos, não como imanente na ordem constitucional pátria, ou seja, não como um espírito comum entre as Constituições promulgadas, como a vontade do "povo", aqui tomado na sua acepção complexa. Voltamos, então, os olhos ao presente para nos concentrar na Constituição de 1988, e repetir a pergunta se há ethos na atual Constituição brasileira. A proteção constitucional contemporânea é, como dito, fruto e motivo da transição (necessária e ainda inacabada e em curso), na medida em que se enraíza na tríade: preservação da democracia, Estado de direito e promoção dos direitos humanos. Esta ampliação de horizontes constitucionais corrobora com a inclusão e o empoderamento dos direitos, especialmente para grupos vulneráveis e desfavorecidos, que, por sua vez, é a chave para a consolidação democrática e a transição justa para a democracia. Com quase 35 anos de idade, nosso texto constitucional ainda é jovem e enfrentou, e enfrenta, testes difíceis. Foi alterada 128 vezes pela via constituinte derivada, o que, de todo modo, coloca em questão sua permanência saudável no tempo. Diante dessa plasticidade constitucional, pode ser também bastante difícil extrair um ethos da Constituição de 1988, porque, em nossa tradição, ao contrário da tradição norte-americana, a Constituição está abrindo o caminho, e não pavimentando algo que já estava pronto. Considerando que uma Constituição não nasce como Constituição, mas se torna; ela é uma declaração contextualizada dotada de um sentido performativo [6]. Assim será também o ethos, refletindo os valores enraizados na Constituição de 1988, como a dignidade humana, a igualdade, a liberdade e a solidariedade. O ethos não segue (não é uma consequência) o texto da Constituição, mas o texto da Constituição o revela. Como afirma Alexander Tsesis, "O ethos constitucional não é, no entanto, uma criação textual. Refere-se, antes, ao princípio de justiça que 'o povo', reconhece ter um status normativo mais elevado do que qualquer maioria contemporânea" [7]. Todavia, reconhece-se difícil estabelecer o que significa "o povo" e de que forma seu espírito é reflexionado na Constituição. Se não houve tempo para a fundação de um ethos fortalecido no constitucionalismo brasileiro até agora, que enfrentou atritos e retrocessos, o ethos constitucional brasileiro pós-88, é gestado no sentido do bem comum, dos direitos do povo, do bem-estar, visando a uma sociedade plural e com respeito às outras e aos outros. Voltamos a Alexander Tsesis quando ele afirma que "o ethos constitucional é um princípio que capacita os indivíduos a prosperar ao buscar suas próprias missões de vida únicas, ao mesmo tempo em que mantém padrões coercitivos para que o governo avance políticas capazes de alcançar bens coletivos" [8]. Experienciamos nos últimos anos um teste da democracia e legitimidade do constitucionalismo brasileiro com o populismo autoritário que tomou conta do cenário político. Ainda que a desdemocratização recente tenha deixado marcas profundas, a institucionalidade constitucional sobreviveu, quiçá pavimentando o ethos no horizonte constitucional futuro no Brasil, impedindo inclusive os avanços autoritários do amanhã. É de extrema importância identificarmos o ethos do constitucionalismo brasileiro para enfrentar e refrear os retrocessos autocratas vividos e ainda vivos como ameaças à nossa democracia. Um ethos constitucional sólido é essencial para fortalecer os princípios democráticos, a proteção dos direitos humanos e a preservação das instituições republicanas. A clareza e a firmeza do nosso espírito constitucional são fundamentais para construir uma sociedade justa, inclusiva e livre, na qual os valores democráticos prevaleçam sobre qualquer tentativa passada ou futura de retrocesso autoritário. [1] Alexander Tsesis. Constitutional Ethos: Liberal Quality of the Common Good (Oxford University Press, 1rd edn, NY, 2017, p. 85. [2] Id. [3] PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império (Brasiliense, 13th edn, SP, 1993, 48). [4] O objetivo da presente reflexão não é traçar a história do constitucionalismo brasileiro, por isso o texto explora apenas os textos constitucionais. [5] Pela sua extensão e materialidade, apesar da forma de emenda constitucional, pelas funções e sentidos que essa apresentação assume como Constituição, consideramos a emenda constitucional de 1969 como uma verdadeira constituição. [6] DERRIDA, Jacques. Declarations of independence. In: ROTTEMBERG, Elizabeth (ed.). Negotiations: interventions and interviews, 1971-2001. Stanford: Stanford Univ. Press, 2002. p. 46-54. p. 47. [7] Ibid. p. 85. [8] Id.
2023-05-20T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-20/observatorio-constitucional-busca-ethos-constitucionalismo-brasileiro
academia
mestrado e doutorado
Fórum de Integração Brasil Europa vai premiar dissertações e teses
O Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe) está anunciando o lançamento do Prémio FIBE, uma distinção que visa reconhecer dissertações de mestrado e teses de doutoramento que contribuam para fomentar a proximidade cultural, econômica, política e social do Brasil com a Europa. Poderão concorrer ao Prémio FIBE dissertações e teses inéditas, que tenham sido aprovadas em qualquer instituição de ensino superior nos últimos 24 meses e que estejam redigidas em português, inglês ou espanhol. Os mestrandos destacados na 1ª, 2ª e 3ª colocação vão receber prêmios de 625 euros, 375 euros e 250 euros, respetivamente, além de ter seus trabalhos publicados na coletânea do Prémio FIBE. Já as três melhores teses de doutoramento receberão prêmios de 1250 euros, 750 euros e 500 euros respectivamente, também com edição impressa em livro. A publicação será uma parceria entre a Editora Almedina e o Selo Fibe. As inscrições seguem até o dia 31 de julho. A iniciativa é uma parceria FIBE, FGV e IDP. Os trabalhos serão julgados por especialistas de reconhecidos méritos acadêmicos, no Brasil e em Portugal. Confira os integrantes do júri: O regulamento e a página de inscrições podem ser acessados no site da Fibe.
2023-05-22T14:22-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-22/forum-integracao-brasil-europa-premiar-dissertacoes-teses
academia
Estúdio ConJur
Cinco livros de advogados da banca Wald serão lançados em 29/5
No dia 29 de maio, acontece o lançamento simultâneo de cinco livros com contribuições de profissionais do escritório Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados. Será lançada a 20ª edição de Direito de Família, do sócio e fundador do escritório, professor Arnoldo Wald, em coautoria com a advogada Priscila Corrêa da Fonseca. Também sairá a 15ª edição de Direito das Coisas, de Wald e das advogadas Patrícia Iglecias e Liliana Minardi Paesani, e a 17ª edição de Direito das Sucessões, de Wald, em coautoria com os advogados Marcus Vinicius Vita, Ana Elizabeth Cavalcanti e Liliana Minardi Paesani. Além disso, será lançado o livro Os desafios da modernização da Arbitragem e da Mediação no século XXI, coordenado por Wald e pelos advogados Riccardo Torre e Leticia Zuccolo, com a contribuição de diversos profissionais do do escritório. A quinta obra é Proteção ao Meio Ambiente no Brasil: Passado, presente e futuro - estudos em homenagem a Patrícia Iglecias, reunindo artigos homenageando a advogada.  O evento conjunto para convidados acontece no Solar Fábio Prado do Museu da Casa Brasileira, na Avenida Brigadeiro Faria Lima, 2.705, em São Paulo, das 19h às 21h30. Retrato das obras O livro Direito de Família está totalmente atualizado. As mudanças atingiram o cerne da matéria, as estruturas e até alguns dos seus princípios básicos. São tratados na obra os seguintes assuntos: união homoafetiva; o direito de visita reclamada pelos avós; a incidência da pensão; o casamento putativo e a ampliação dos conceitos e modalidades de separação, inclusive a extrajudicial ou consensual; o reconhecimento dos filhos tidos fora do casamento; as ações de investigação de paternidade e maternidade; a própria ação negatória de paternidade; regime de bens; filiação natural ou adulterina da união estável e a adoção. A obra também aborda a evolução mais recente do direito, analisando as normas legais e os acórdãos dos tribunais superiores. A 15ª edição de Direito das Coisas trata do estudo da disciplina, abrangendo as normas que regulam as relações jurídicas entre o indivíduo e os bens sobre os quais exerce o seu poder. O destaque é a atualização legislativa e jurisprudencial. Há um quadro sintético ao final de cada capítulo. Direito das Sucessões aborda as características da matéria no ordenamento brasileiro. Também há atualização legislativa e jurisprudencial, além de quadros sintéticos ao final de cada capítulo. Na obra Os desafios da modernização da Arbitragem e da Mediação no século XXI, Wald aponta o futuro da arbitragem com o seguinte objetivo: “Construir novas respostas às indagações da doutrina e da jurisprudência, superando as discussões teóricas para fazer da arbitragem uma ferramenta útil, que possa conciliar a justiça no caso concreto com a velocidade e a eficiência das suas decisões”.  Proteção ao Meio Ambiente no Brasil conecta a visão acadêmica e experiência profissional dos autores em uma só obra. Celebrando os seus 30 anos de carreira, a professora Patrícia Iglecias, com a contribuição como coordenadores de Fernanda Abreu Tanure, Jorge Gouveia e Caroline Marques Leal Jorge Santos, organizou esse livro com 40 artigos. Os textos foram produzidos por 69 autores, nas seguintes áreas: clima e questões globais; gestão e legislação ambiental; proteção à biodiversidade e aos recursos naturais; diagnóstico e monitoramento da qualidade ambiental; e controle ambiental. Os artigos são assinados por advogados, engenheiros, economistas, biólogos, químicos, geólogos e outros profissionais.
2023-05-23T17:05-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/cinco-livros-contribuicoes-advogados-banca-wald-serao-lancados-295
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Opinião
David de Siena: Por que os ataques em escolas se repetem
O termo mass attack, na criminologia, se refere a um tipo de ataque violento em massa que pode ser realizado por um indivíduo ou grupo. É caracterizado por atos violentos contra muitas vítimas, em um curto período e em um local específico, como escolas, igrejas, cinemas ou outros espaços públicos. Ao contrário do termo massacre, que é frequentemente utilizado de forma genérica para descrever qualquer ataque violento com múltiplas vítimas, o termo mass attack é mais específico e se concentra nas características do próprio ataque, incluindo suas motivações, táticas e impacto psicológico na sociedade. O conceito de mass attack é importante para a criminologia, pois ajuda a entender melhor como esses eventos ocorrem, quem são os perpetradores, suas motivações e como desenvolver estratégias de prevenção e intervenção mais eficazes para evitar futuros incidentes. A literatura criminológica sobre mass attacks é predominantemente estadunidense, pois os Estados Unidos têm uma taxa relativamente alta de tiroteios em massa em comparação com outros países. Esses eventos recebem grande atenção da mídia e do público em geral e têm impacto significativo na sociedade e na política do país. Além disso, as universidades americanas têm um número significativo de pesquisadores e acadêmicos dedicados ao estudo da criminologia e da violência em massa, o que contribui para a produção de pesquisas e estudos sobre o assunto. No entanto, é importante notar que, com o aumento dos casos de violência em massa em outros países, como na Europa e América Latina, a literatura criminológica sobre o assunto tem se expandido para incluir mais pesquisas internacionais. O massacre na Columbine High School, em 1999, estabeleceu um contexto de excepcionalidade para a segurança nas escolas dos EUA, já que esse evento foi um ataque extremista com potencial lesivo em massa. Esse massacre gerou um movimento de culto à morte em torno dos autores, chamados de columbiners, que admiram o caso e compartilham sua admiração em fóruns e redes sociais. No entanto, os motivos para os tiroteios em escolas no Brasil parecem estar ligados a outras temáticas além da subcultura de Columbine. Tiroteios em escolas não são exclusivos dos EUA, sendo um problema global que exige ações preventivas e de segurança adequadas em todo o mundo. Os ataques em campus universitários nos EUA têm sido principalmente realizados por pessoas ligadas à própria instituição, como alunos, ex-alunos, funcionários ou pessoas afiliadas a grupos sociais dos alunos e funcionários. Além disso, os autores dos ataques têm histórico de comportamento problemático e podem estar enfrentando problemas de saúde mental ou problemas sociais mais amplos que os levam a realizar esses ataques. É crucial compreender o comportamento dos agressores para prevenir futuros ataques e desenvolver estratégias de segurança eficazes. Peter Langman (2009) examinou as motivações, pensamentos e comportamentos dos atiradores de escolas, oferecendo uma análise psicológica e social de como esses eventos ocorrem. Langman argumenta que a violência em massa nas escolas é um fenômeno complexo e multifacetado que resulta de uma interação de fatores individuais e sociais, incluindo o isolamento social, o bullying, o acesso a armas de fogo e a influência da mídia. Em Extreme Killing: Understanding Serial and Mass Murder (2019), James Alan Fox aborda a motivação e os fatores envolvidos nos casos de homicídios em série e homicídios em massa. O autor identifica características comuns entre os perpetradores desses crimes, como sentimentos de raiva, frustração, vingança ou rejeição, especialmente quando se sentem injustiçados ou rejeitados. O isolamento social e a dificuldade em estabelecer relações interpessoais também são comuns, muitas vezes devido à falta de compreensão ou apoio social adequado. Problemas psicológicos, como transtornos de personalidade ou psicopatia, podem aumentar o risco de cometer tais crimes, pois esses indivíduos têm dificuldade em controlar impulsos violentos. O acesso a armas de fogo e outros meios de cometer o crime é um fator relevante, já que esses homicídios geralmente envolvem o uso de armas de fogo, facilmente disponíveis em países com leis permissivas. Experiências traumáticas na infância, como abuso ou negligência, também podem ser um fator de risco, afetando o desenvolvimento emocional e psicológico. Fantasias violentas prévias ou comportamentos agressivos também podem indicar um potencial de risco, pois esses indivíduos podem estar dessensibilizados à violência ou ter uma predisposição para ela. Os perpetradores de homicídios em série e homicídios em massa geralmente planejam cuidadosamente seus crimes, com antecedência e organização meticulosa. Por fim, a busca por atenção ou para promover uma causa específica pode ser um fator motivador para alguns perpetradores, que buscam notoriedade e reconhecimento por seus atos. Nesta esteira, Lankford et al. (2019) afirmam que, em sua maioria, os eventos fatais de mass attack podem ser previstos por comportamentos anteriores ao fato, como expressão de pensamentos violentos intencionais, interesse específico em assassinatos em massa, antecedentes criminais (incluindo infrações menores) e interesse na aquisição e uso de armas de fogo. Esses comportamentos, quando ocorrem em conjunto e em um curto espaço de tempo, podem indicar um risco aumentado de comportamento violento. Por exemplo, se uma pessoa começar a fazer postagens alarmantes nas redes sociais, adquirir armas, expressar ideações suicidas e apresentar comportamento agressivo, esses sinais combinados podem ser preocupantes e justificar uma intervenção imediata. É importante estar atento a esses comportamentos e levá-los a sério para ajudar a prevenir a violência. Em termos mais amplos, Turanovic e Siennick (2021) associam a violência escolar ao comportamento delinquente/antissocial, TDAH e abuso infantil. Jovens com sintomas de TDAH ou que sofreram abuso físico, sexual ou negligência têm maior propensão a se envolverem em comportamentos agressivos e violentos na escola. O estudo também destaca que a rejeição pelos colegas, a percepção de violência como aceitável ou justificável e a associação com pares desviantes aumentam a probabilidade de envolvimento em comportamentos violentos. Por outro lado, jovens sociáveis, que demonstram comportamentos pró-sociais e frequentam escolas com clima positivo, têm menor probabilidade de cometer violência escolar. A aceitação e preferência social pelos pares são os fatores mais protetores contra a vitimização escolar, indicando que jovens bem aceitos têm menor probabilidade de serem vítimas de bullying ou violência. Outros fatores preditores de vitimização escolar incluem vitimização prévia, vitimização pelos pares e experiência de múltiplas formas de vitimização. Lankford e Silva (2021) analisaram a trajetória de perpetradores de tiroteios em massa nos EUA, desde o tiroteio na Columbine High School, em 1999. Os dados revelaram que o contato com profissionais de saúde mental geralmente ocorreu muitos anos antes dos ataques e terminou antes dos mesmos. A presença de doença mental foi identificada como constante na vida dos perpetradores, mas não necessariamente um fator determinante para os ataques. Problemas no trabalho e na escola também estiveram presentes na trajetória dos perpetradores, começando antes dos ataques e continuando até mais próximo do momento deles. Os autores destacam a importância de intervenções por parte de empregadores e educadores para prevenir esses ataques. A aquisição de armas de fogo geralmente ocorreu em estágios posteriores, após o interesse dos perpetradores em cometer assassinato em massa e, sendo assim, os autores sugerem que Erpos (extreme risk protection orders), também conhecidos como red flag laws podem ajudar a reduzir a ocorrência desses ataques, proibindo a venda de armas de fogo para indivíduos explicitamente perigosos. De acordo com o US Secret Service (2019), é difícil distinguir falsos alarmes de evidências preditivas de um potencial ataque violento em massa. No entanto, há uma prevalência de comportamentos observados que podem indicar a predisposição para tais ataques. O estudo identificou fatores estressantes na vida dos autores desses ataques, sendo que pelo menos um desses fatores ocorreu nos cinco anos que antecederam o ataque em todos os casos analisados. Esses fatores incluem problemas em relacionamentos familiares ou românticos, dificuldades no trabalho ou estudos, contatos com a polícia devido a atos violentos direcionados a outras pessoas e questões pessoais, como falta de moradia ou perda em competições. Podem aumentar a vulnerabilidade emocional e o estresse, indicando um risco potencial para comportamentos violentos futuros. Os motivos principais para os ataques são desavenças em relação a conflitos pessoais ou no trabalho, surtos e agravamentos de problemas de saúde mental e motivação ideológica. Curiosamente, houve uma redução nos ataques motivados por razões religiosas ou ideológicas nos EUA entre 2017 e 2018. Mesmo quando a motivação para o ataque era declarada ou percebida, os autores apresentavam sintomas de transtornos mentais, como depressão, sintomas psicóticos e tendências suicidas. Em análise crítica, Pittaro (2007) avaliou a teoria do controle social de Hirschi, em relação à violência escolar, argumentando que, em resposta aos tiroteios em massa, muitas escolas nos Estados Unidos criaram políticas de tolerância zero rigorosas para prevenir ataques baseados em escolas, embora a literatura sugira que essas políticas não são eficazes. Nesse sentido, destacou que a pesquisa sobre assédio entre colegas, como bullying e vitimização, é importante para entender os sintomas e riscos associados à agressão física, verbal e relacional entre estudantes. Nessa esteira, Hollister e Scalora (2015) afirmam que as escolas e universidades nos EUA costumam adotar medidas de segurança física caras e políticas de tolerância zero para combater o risco de violência direcionada. No entanto, o uso de tecnologia não tem sido eficaz na prevenção de ataques violentos em massa, que são raros e, portanto, difíceis de detectar. Por essa razão, é necessário adotar uma abordagem mais pontual e preventiva. De acordo com os autores, uma trajetória comportamental em direção à violência intencional é um fator significativo que precede quase todos os ataques direcionados. Portanto, uma das melhores formas de prevenção é que profissionais de segurança do campus trabalhem em conjunto com profissionais de assistência psicossocial para identificar e intervir em comportamentos ameaçadores que possam indicar violência previsível. Por essa razão, a prevenção comportamental deve ser a principal medida de intervenção, com iniciativas que possam ser implementadas desde a fase escolar e exigem a colaboração interna e externa da universidade, por meio de projetos de extensão. Através do estudo sistemático de casos, as instituições de ensino superior dos EUA e Canadá concluíram que as equipes de intervenção comportamental são as medidas mais efetivas para prevenir a violência direcionada. Em particular, os ataques em escolas como Columbine e Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, têm sido objeto de muita pesquisa e análise na criminologia, devido à sua natureza chocante e devastadora. Esses incidentes envolvem geralmente jovens que têm fácil acesso a armas de fogo e que apresentam comportamento agressivo e/ou isolamento social. Além disso, há uma tendência de que esses atiradores procurem atenção da mídia e o impacto emocional que seus atos podem ter na sociedade. Por esses motivos, a criminologia tem se dedicado a entender melhor as características desses perpetradores, suas motivações e como identificar precocemente indivíduos em risco de cometer tais atos. A compreensão desses fatores pode ajudar a desenvolver políticas e programas de prevenção mais eficazes para impedir futuros incidentes. _______________ Referências: FOX, J. A. Extreme Killing: Understanding Serial and Mass Murder. Sage Publications, 2019. HOLLISTER, B. A.; SCALORA, M. J. Broadening campus threat assessment beyond mass shootings. Aggression and Violent Behavior, v. 25, Part A, p. 43-53, nov./dez. 2015. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1359178915000907. Acesso em: 16 mai. 2023. LANGMAN, P. Why kids kill: Inside the minds of school shooters. Palgrave Macmillan, 2009. LANKFORD, A.; ADKINS, K. G.; MADFIS, E. Are the Deadliest Mass Shootings Preventable? An Assessment of Leakage, Information Reported to Law Enforcement, and Firearms Acquisition Prior to Attacks in the United States. Journal of Contemporary Criminal Justice. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1043986219840231. Acesso em: 16 mai. 2023. LANKFORD, A.; SILVA, J. R. The timing of opportunities to prevent mass shootings: a study of mental health contacts, work and school problems, and firearms acquisition. Journal of Interpersonal Violence. Disponível em: https://doi.org/10.1080/09540261.2021.1932440. Acesso em: 16 mai. 2023. PITTARO, M. L. School Violence and Social Control Theory: An Evaluation of the Columbine Massacre. International Journal of Criminal Justice Sciences, v. 2, nº 1, p. 1-12, jan. 2007. TURANOVIC, J. J.; SIENNICK, S. E. The Causes and Consequences of School Violence: A Review. National Institute of Justice. Disponível em: https://www.ojp.gov/pdffiles1/nij/302346.pdf. Acesso em: 16 mai. 2023. U.S. SECRET SERVICE. Mass Attacks in Public Spaces — 2018. U.S. Assessment Center, Department of Homeland Security. Disponível em: https://www.secretservice.gov/data/press/reports/USSS_FY2019_MAPS.pdf. Acesso em: 16 mai. 2023.
2023-05-23T15:25-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/david-siena-ataques-escolas-repetem
academia
Fábrica de Leis
Serão os legisladores substituídos por inteligência artificial?
Neste mês foi amplamente divulgado na imprensa que, nos próximos cinco anos, "legisladores e oficiais judiciários" são duas das profissões "mais ameaçadas" [1] e com "postos de trabalho que devem desaparecer" [2] em razão dos sucessivos avanços tecnológicos, como análises de big data, cloud computing e, em especial, a inteligência artificial (IA). Em razão de ter ficado bastante intrigado com a notícia e pela sensibilidade do tema para o futuro da democracia, escrevo este texto em primeira pessoa. Como professor de direito constitucional e pesquisador das suas interfaces com a crescente digitalização da esfera pública e privada, diversas questões já se projetaram na minha mente, mas antes de procurar as respostas, consultei as fontes das notícias. Trata-se da recente pesquisa publicada pelo Fórum Econômico Mundial, "Future of Jobs Report – 2023" [3]. Na página 30 do documento consta efetivamente a informação: das dez profissões com as maiores previsões de redução de postos de trabalho nos próximos cinco anos, estima-se uma redução de 25% dos "legislators and officials", juntamente com outras profissões como assistentes de caixa, assistentes de correspondência e atendentes bancários. Deixo aqui registrada mais uma das minhas paixões e vocações acadêmicas: a metodologia de pesquisa científica e do direito. Fiz a análise do relatório como um todo para entender o que significa aquele número e a perspectiva por ele trazida. A pesquisa é robusta, foi iniciada em 2015 e está em sua quarta edição. A metodologia utilizada foi, no período de novembro de 2022 a fevereiro de 2023, a aplicação de surveys com 44 questões (entrevistas por escrito com questões pré-definidas) com 803 "grandes empresas multinacionais ou empresas mais locais que são de relevância em razão da quantidade de empregados ou receita" localizadas em 46 países, incluindo o Brasil. A classificação das profissões foi feita com base em duas fontes: a Occupational Information Network (O*NET) do Departamento do Trabalho dos EUA [4] e International Standard Classification of Occupations (Isco) [5] da Organização Internacional do Trabalho e ambas adotam "legislator" no sentido de agentes públicos responsáveis pela tomada de decisões sobre políticas públicas, inclusive mediante aprovação de leis e outros atos regulatórios. Diante dessas características metodológicas, a pesquisa é transparente em relação às suas limitações: "Como tal, há três áreas do futuro dos empregos que se encontram fora do objeto deste relatório; nomeadamente, o futuro dos empregos no que se refere às atividades de pequenas empresas, do setor público e do setor informal" [6]. Essa explicação é de fundamental importância para se entender que a mencionada pesquisa expressamente reconhece que não está tratando de profissões do setor público, entre elas, a dos parlamentares, que têm por trabalho a elaboração das normas jurídicas legislativas e a fiscalização das atividades do poder público em sentido amplo. Resta, então, a dúvida sobre o que exatamente se intenta dizer com a informação veiculada no relatório. De todo modo e para além do relatório acima, já há algumas posições provocativas nesse sentido. David Levy, autor de livros sobre IA e empresário do setor, projeta que em algumas décadas os legisladores serão robôs, considerando que poderiam "saber tudo" de economia, saúde, medicina e outras áreas de atuação do poder público [7]. Cesar Hildalgo, pesquisador de IA e professor atualmente na Universidade de Toulouse, apresentou uma ideia de um representante virtual, por meio do qual cada pessoa teria um sistema de IA que seria o representante político individual de suas preferências [8]. O debate filosófico e técnico sobre o potencial e limites da IA simular ou resolver questões complexas de modo semelhante à inteligência humana já é grande e não tenho capacidade nem oportunidade de enfrentá-lo neste espaço. Ressalto apenas, de um lado, que há diversas limitações da IA. Para mencionar alguns aspectos conhecidos do debate que ainda ganham maior relevância quando se pensa na elaboração de normas jurídicas em uma sociedade democrática, sabe-se que os sistemas de IA, pela sua estrutura, tendem a reforçar vieses e preconceitos, que não são capazes de fazer avaliações contextuais mais abrangentes como um ser humano, que podem criar "alucinações" e outros fatos manifestamente falsos. De outro lado, há características únicas da experiência humana que a afasta das inferências algorítmicas. Em obra em que enfrenta diversas dessas questões, Frank Pasquale, um dos mais influentes pensadores das questões éticas e jurídicas decorrentes do desenvolvimento tecnológico, sintetiza: "Uma forma de vida humana é frágil, contida em um corpo físico mortal, delimitada no tempo e irreproduzível in silico" [9]. Para contribuir com o debate sobre os limites e possibilidades da utilização dos sistemas de IA nas atividades legislativa, destaco uma questão prévia que me parece central: qual é o significado da prática social de elaborar normas jurídicas por meio de parlamentos em uma democracia? Novamente a literatura é vasta, mas faço alguns apontamentos. Não se deve partir da compreensão de que a única e exclusiva função dos Parlamentos é fazer leis "melhores", ainda que no sentido muito amplo de atingimento de determinadas finalidades que lhes é atribuída (seja pelos parlamentares seja pelos intérpretes da lei já editada). É claro que elaborar leis com clareza, objetividade e com conteúdo normativo que busque trazer efeitos positivos para a sociedade é um dos grandes objetivos da atividade legislativa. Fazer leis em uma democracia não é um exercício filosófico, em que se debatem o bom e o bem apenas pelo prazer da discussão, mas uma empreitada coletiva também destinada a resolver problemas concretos no aqui e agora. Contudo, a elaboração das leis jamais pode ser reduzida a uma atividade meramente técnica ou instrumental, no sentido de ser elaborada exclusivamente por especialistas. A elaboração das leis em uma democracia é marcada por uma forte politicidade, ou seja, a característica de ser fruto de uma confrontação de visões de mundo diferentes, que implicam valores e preferências que resultam de circunstâncias pessoais e culturais decorrentes de uma experiência "frágil, contida em um corpo físico mortal, delimitada no tempo" — para retomar as palavras de Pasquale. Arrisco dizer que nem mesmo um sistema de IA que "soubesse tudo" sobre política, direito, economia e outras áreas do conhecimento humano seria capaz de reproduzir a experiência coletiva política, inclusive a de elaboração de normas jurídicas em um ambiente democrático, em que prioridades, tradeoffs, e alternativas devem ser objeto de uma escolha coletiva. Outro ponto relevante nesse debate é afastar uma visão idealizada de democracia direta, em que as principais decisões políticas deveriam ser tomadas por votação de todos os interessados. Como aponta Nadia Urbinati [10], a atividade de representação política e as atividades parlamentares são realizadas a partir de uma dinâmica social constante, em que milhares ou milhões de pessoas participam em maior ou menor grau da atribuição de sentidos às diversas propostas em discussão pública. Isso é fundamental para compreender que não há uma vontade pré-constituída dos representados em face dos representantes: na verdade, o processo comunicativo de construção de preferências políticas é muito mais complexo e passa pela contínua interação entre representantes e representados. Mesmo que houvesse um sistema de IA capaz de traduzir minhas preferências políticas em determinado momento sobre todas as milhares de questões normativas a serem resolvidas nos parlamentos — o que é largamente duvidoso —, a construção de preferências é um processo contínuo e dependente da própria atividade política representativa. Isso decorre, entre outros, do que se denomina o caráter deliberativo das democracias contemporâneas, em que — de modo muito simplificado — há troca de razões dentro e fora dos parlamentos para que seja tomada uma decisão [11]. Em outras palavras, é a participação do indivíduo nas diferentes esferas da vida pública e privada que forma suas preferências e não somente um exercício abstrato de razão individual desconectado das demais pessoas. Pode e deve haver incentivos e mecanismos para a participação social direta no exercício do poder político, sem necessariamente abolirem-se as instâncias representativas. Em face dessas observações, devem ser afastadas ideias de substituição dos legisladores ou de completa automação das atividades parlamentares por absoluta incompatibilidade com a prática política democrática contemporânea. Isso não quer dizer que as novas tecnologias e a IA não devam ser utilizadas como ferramentas de assistência para as atividades legislativas. Nesta coluna, Fabiana Soares já trouxe questionamentos, possibilidades e exemplos de utilização de sistemas de IA para a avaliação de políticas públicas e sua incorporação em uma política legislativa [12]. Já há algum tempo, existem propostas e iniciativas interessantes no campo da redação legislativa elaboradas por programas de computador, denominadas de "legismática" por Wim Voermans [13], e que ganham novas dimensões com os large language models (LLMs) como o ChatGPT e outros modelos. Essas iniciativas podem ser importantes ferramentas acessórias nas atividades legislativas e serão objeto de análise nesta coluna em futuras oportunidades. [1] https://www.estadao.com.br/economia/sua-carreira/futuro-do-trabalho-profissoes-criadas-e-eliminados/ [2] https://forbes.com.br/carreira/2023/05/futuro-do-trabalho-23-das-profissoes-devem-se-modificar-ate-2027/ [3] https://www.weforum.org/reports/the-future-of-jobs-report-2023/ [4] https://www.onetonline.org/link/summary/11-1031.00 [5] https://www.ilo.org/public/english/bureau/stat/isco/isco08/index.htm [6] Fórum Econômico Mundial, "Future of Jobs Report – 2023", p. 62 [7] https://www.dailystar.co.uk/news/latest-news/robot-politicians-replace-humans-white-20316678 [8] https://www.youtube.com/watch?v=CyGWML6cI_k [9] Frank Pasquale, New Laws of Robotics: Defending Human Expertise in the Age of AI, Cambridge, Harvard Press, 2020, p. 211. [10] Veja-se sua principal obra sobre o tema, Representative Democracy: Principles and Geneology, Chicago University, 2006 [11] Sobre as diversas correntes e visões sobre a democracia deliberativa, veja-se André Bächtiger, John S. Dryzek, Mark E. Warren (orgs.), The Oxford Handbook of Deliberative Democracy, Oxford, Oxford University, 2018. [12] https://www.conjur.com.br/2023-fev-21/fabrica-leis-avaliacao-legislativa-inteligencia-artificial-politica-legislacao e https://www.conjur.com.br/2023-mai-03/fabrica-leis-avaliacao-cumprimento-lei [13] Voermans Wim, Computer-assisted legislative drafting in the Netherlands: the LEDA-system. Palestra proferida em junho de 2002, disponível em: https://ial-online.org/wp-content/uploads/2019/07/Voermans-Legimatics.pdf
2023-05-23T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/fabrica-leis-serao-legisladores-substituidos-inteligencia-artificial
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Território Aduaneiro
Interposição fraudulenta e as sanções ao importador ostensivo
A interposição fraudulenta é tipificada no artigo 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976, na redação da Lei nº 10.637/2002, que considera dano ao erário as infrações relativas às mercadorias "estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros", conforme redação da Lei nº 10.637/2002. Na importação, a infração é configurada nos casos de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, do comprador ou do responsável pela operação, por meio de simulação subjetiva ou de fraude à lei. A sua caracterização pressupõe a coalescência de quatro elementos: (1) o conluio entre as partes (importador ostensivo e o importador oculto); (2) o negócio aparente ou simulado (a importação aparente, que é declarada para as autoridades aduaneiras); (3) o negócio oculto ou dissimulado (a importação oculta); e (4) o intuito de enganar o Fisco ou de afastar a incidência de preceito legal proibitivo [1]. Trata-se de infração sujeita a uma das sanções mais gravosas do direito positivo brasileiro: a pena de perdimento. Essa — quando a mercadoria já foi consumida, revendida ou não for localizada — é convertida em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, conforme previsto no artigo 23, § 1º e § 5º, do Decreto-Lei nº 1.455/1976. Dessa forma, o importador oculto — na condição de proprietário da mercadoria — é o destinatário legal da pena de perdimento, isto é, aquele que deve sofrer os efeitos patrimoniais negativos previstos pela ordem jurídica. Já o importador ostensivo — como parte hipossuficiente cooptada para a prática do ilícito pelo economicamente mais forte — é penalizado com uma multa mais branda, prevista no artigo 33 da Lei nº 11.488/2007: "A pessoa jurídica que ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de terceiros com vistas no acobertamento de seus reais intervenientes ou beneficiários fica sujeita a multa de 10% do valor da operação acobertada, não podendo ser inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais)", sendo que, nesta hipótese "(...) não se aplica o disposto no art. 81 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996" [2]. Porém, como ressaltado, em caso de não-localização, de revenda ou de consumo do produto, o § 3º do artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976 prevê a conversão da pena de perdimento em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria importada. Essa sanção substitutiva também tem como sujeito passivo o importador oculto, tal qual ocorre com a pena substituída (perdimento). Não obstante, as autoridades aduaneiras têm responsabilizado solidariamente o importador ostensivo com fundamento no artigo 95, I, do Decreto-Lei nº 37/1966 ("Art. 95 - Respondem pela infração: [...] I - conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática, ou dela se beneficie"). Entende-se que, ao servir de "presta-nome" para o real destinatário, o importador ostensivo ou aparente concorre para a prática da infração. Assim, apesar de não ser o destinatário legal da pena, com a conversão do perdimento em multa, acaba respondendo pela sanção. Essa cumulação é controversa na jurisprudência. No final do ano de 2017, dirimindo divergência entre Turmas de Julgamento [3], a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf admitiu a validade da aplicação simultânea das sanções: "DANO AO ERÁRIO. INFRAÇÃO. PENA DE PERDIMENTO. CONVERSÃO EM MULTA. VALOR DA MERCADORIA. LEI 10.637/02. CESSÃO DE NOME. INFRAÇÃO. MULTA. DEZ POR CENTO DO VALOR DA OPERAÇÃO. LEI 11.488/07. RETROATIVIDADE BENIGNA. IMPOSSIBILIDADE. Na hipótese de aplicação da multa de dez por cento do valor da operação, pela cessão do nome, nos termos do art. 33 da Lei nº 11.488/2007, não será declarada a inaptidão da pessoa jurídica prevista no art. 81 da Lei 9.430/96. A imposição da multa não prejudica a aplicação da multa equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias, pela conversão da pena de perdimento dos bens, prevista no art. 23, inciso V, do Decreto-Lei nº 1.455/76. Descartada hipótese de aplicação do instituto da retroatividade benigna para penalidades distintas" [4]. Após essa decisão, foi aprovada a Súmula Carf nº 155: "A multa prevista no art. 33 da Lei nº 11.488/07 não se confunde com a pena de perdimento do art. 23, inciso V, do Decreto Lei nº 1.455/76, o que afasta a aplicação da retroatividade benigna definida no art. 106, II, 'c', do Código Tributário Nacional". Com isso, a matéria foi consolidada no âmbito do contencioso administrativo. No Judiciário, por sua vez, os Tribunais Regionais Federais (TRF) da 4ª Região [5] e da 3ª Região têm julgados acompanhando essa interpretação [6]. Contudo, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu que o importador oculto deve responder apenas pela pena do artigo 33 da Lei nº 11.488/2007: "TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPORTAÇÃO MEDIANTE INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA DE TERCEIROS. CONVERSÃO DA PENA DE PERDIMENTO DE BENS NA MULTA PREVISTA NO ART. 23, V E § 3º, DO DECRETO-LEI N. 1.455/1976. PENALIDADE APLICÁVEL APENAS AO IMPORTADOR OCULTO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA COM O ART. 33 DA LEI N. 11.488/2007. 1. A controvérsia veiculada nos presentes autos diz respeito à aplicação, em caráter solidário, da multa prevista no § 3º do art. 23 do Decreto-Lei n. 1.455/1976 ao importador ostensivo na hipótese de importação mediante interposição fraudulenta de terceiros efetiva (art. 23, V, do Decreto-Lei n. 1.455/1976) e presumida (§ 2º do Decreto-Lei n. 1.455/1976 e art. 33 da Lei n. 11.488/2007), quando da impossibilidade da aplicação da pena de perdimento prevista no § 1º de referido decreto. 2. A interpretação sistemática de referidos dispositivos denota que os casos de importação mediante interposição fraudulenta de terceiro - irrelevante seja ela efetiva ou presumida - admite a aplicação primeira da pena de perdimento de bens e, na sua impossibilidade, consequente aplicação da multa correspondente ao valor da operação ao importador oculto (§ 3º do Decreto-Lei n. 1.455/1976), bem como a aplicação da multa de 10% do valor da operação ao importador ostensivo (art. 33 da Lei n. 11.488/2007). 3. A lógica adotada pelo Tribunal de origem faz todo o sentido, uma vez que, com a pena de perdimento da mercadoria decorrente da interposição fraudulenta — seja ela efetiva ou presumida —, o patrimônio que realmente se busca atingir pertence ao importador oculto. Ora, se a própria pena de perdimento decorre justamente da conclusão de que houve interposição fraudulenta, ou seja, de que a importação que se realiza foi custeada por outra pessoa em desacordo com a legislação de regência, é forçoso concluir que a finalidade da norma, no seu conjunto, é atingir o patrimônio do real importador. 4. Tem-se que não foi por outra razão que o legislador, buscando também submeter o importador ostensivo a uma sanção, estipulou a multa de 10% do valor da operação quando ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de terceiros com vistas ao acobertamento de seus reais intervenientes ou beneficiários (art. 33 da Lei n. 11.488/2007). 5. Registre-se, por fim, que não procede a alegativa fazendária de que a multa prevista no § 3º do Decreto-Lei n. 1.455/1976 seria aplicada somente quando houver cessão de nome pelo sócio ostensivo, pois a compreensão é que em toda e qualquer importação mediante interposição fraudulenta o importador se vale do seu nome para a realização das operações de comércio exterior de terceiros" [7]. Na esteira desse precedente, destaca-se a liminar deferida pelo TRF da 1ª Região, no qual, de acordo com a exegese adotada pelo relator, o artigo 33 da Lei nº 11.488/2007 estabeleceu pena mais branda para a interposição fraudulenta de terceiros, sem ressalvar a possibilidade de aplicação concomitante de outras penalidades já previstas em lei: "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORDINÁRIA. OPERAÇÕES DE IMPORTAÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO. INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA. DECRETO-LEI 1.455/76, ART. 23. APLICAÇÃO DE PENALIDADE MAIS BRANDA. LEI 11.488/2007, ART. 33. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO SUPERIOR A DEZ POR CENTO DO VALOR DA OPERAÇÃO ACOBERTADA. POSSIBILIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. 1. 'O art. 33 da Lei 11.488/2007 estabeleceu pena mais branda (multa) para a interposição fraudulenta de terceiros, sem ressalvar a possibilidade de aplicação concomitante de outras penas já previstas em lei. Assim sendo, não se justifica mais a decretação do perdimento do bem unicamente com base nesse fundamento (...). 2. Na espécie, a pretensão da agravante é de que seja determinada a suspensão da exigibilidade de 90% (noventa por cento) da totalidade do crédito tributário resultante do PAF n. 12466.723650/2011-08. O Juízo de origem deferiu parcialmente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, tendo sido determinada a suspensão da exigibilidade de 90% (noventa por cento) do crédito tributário discutido, decorrente de infração à norma do art. 23, V do Decreto-Lei n. 1.455/76, relativamente à importação de mercadorias no período compreendido entre 09/02/2007 e 27/07/2010, embora no auto de infração impugnado no feito principal aquele período se estenda até 15/02/2011. 3. No Tribunal, o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal foi deferido 'para determinar a suspensão da exigibilidade do valor correspondente a 90% crédito tributário originado do PAF n. 12466.723650/2011-08', tendo o Relator asseverado que "se efetivamente ocorrida a infração, a sanção a que a agravante estaria sujeita corresponderia a multa de 10% (dez por cento) do valor da operação acobertada. Convicção que autoriza concluir, ainda que neste juízo de preambular exame da pretensão ajuizada, que há fortes indícios de que é ilegal a sanção no valor em que aplicada, para todo o período em que a infração foi identificada. Hipótese que evidencia a ocorrência de plausibilidade jurídica necessária e suficiente para autorizar a suspensão da exigibilidade do crédito constituído, relativamente ao valor que exceder ao percentual de 10% (dez por cento), sobre o valor da operação de importação" [8]. Trata-se de interpretação acertada. Em primeiro lugar, porque o importador ostensivo — ao servir como "testa-de-ferro" — é coautor da mesma infração praticada pelo importador oculto. A cessão de nome não é uma ação autônoma, mas parte integrante e indissociável da conduta vedada e sancionada pelo ordenamento jurídico. Logo, não há que se cogitar de concurso formal. O que se tem é uma unidade de fato e uma pluralidade de tipos infracionais concorrentes de aparente aplicabilidade: o § 3º do artigo 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976 e o artigo 33 da Lei nº 11.488/2007. O concurso aparente é afastado por meio do critério lógico da especialidade. Esse, como se sabe, estabelece que — havendo mais de um tipo infracional com elementos em comum — aplica-se aquele com o maior número de atributos especializantes. O artigo 33 afasta a incidência do § 3º do artigo 23, V, porque descreve especificamente a conduta do importador ostensivo que cede o seu nome para acobertamento da operação de comércio exterior praticada por terceiros. A Lei nº 11.488/2007 — em função da dimensão reduzida do benefício auferido pelo importador ostensivo e da hipossuficiência econômica própria de quem se presta ao papel de testa-de-ferro — estabeleceu uma sanção específica, proporcional à gravidade de sua atuação, valorada objetivamente em 10% [9]. Ademais, a pena de perdimento — transformada em multa substitutiva — não pode resultar em uma consequência jurídica mais gravosa para o sujeito passivo. A responsabilidade pelo perdimento cabe ao importador oculto. Este, na condição de proprietário da mercadoria, é o destinatário legal da sanção, vale dizer, quem deve sofrer os efeitos patrimoniais negativos previstos pela ordem jurídica. A conversão — que nada mais é do que uma hipótese de inaplicabilidade por perda do objeto da pena de perdimento — não pode alterar essa realidade normativa, fazendo com que o importador ostensivo responda cumulatividade por ambas as sanções. A esse - antes e após a conversão — cabe apenas a multa de dez por cento do artigo 33 da Lei nº 11.488/2007. Do contrário, para a mesma infração, a pena substitutiva apresentaria uma dimensão maior que pena substituída [10]. Portanto, embora o Carf tenha admitido a cumulação das penalidades, a matéria está longe de ser pacífica no Poder Judiciário. Espera-se que a confirmação da exegese adotada pela 2ª Turma do STJ no REsp 1.632.509/SP, no acórdão transcrito acima, relatado pelo eminente ministro Og Fernandes. [1] Sobre o tema, cf.: SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 509 e ss.; SEHN, Solon. Comentários ao regulamento aduaneiro: infrações e penalidades. 3. ed. São Paulo: Aduaneiras, 2023, p. 109 e ss. [2] “Art. 81. Poderá ser declarada inapta, nos termos e condições definidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, a inscrição no CNPJ da pessoa jurídica que, estando obrigada, deixar de apresentar declarações e demonstrativos em 2 (dois) exercícios consecutivos. (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)”. [3] 3ª S. 1ª C. 2ª TO. Acórdão nº 3102-00.662. S. 24/05/2010; e 3ª S. 4ª C. 2ª TO. Acórdão nº 3402-002.362. S. 23/04/2014. [4] Carf. CSRF. 3ª T. Acórdão nº 9303-006.000. S. 29/11/2017. [5] TRF4. 1ª T. Ac 5015668-94.2017.4.04.7205. Publicação em 21/11/2018. [6] TRF3. 4ª T. ApCiv 5024327-39.2017.4.03.6100. e-DJF3 de 06/03/2020. [7] STJ. 2ª T. REsp 1632509/SP. Rel. Min. Og Fernandes. DJe 26/06/2018. [8] TRF-1ª R. 8ª T. AG 0008663-45.2015.4.01.0000. Rel. Des. Fed. Marcos Augusto de Sousa. e-DJF1 24/02/2017. [9] SEHN, Curso..., op. cit., p. 521. [10] SARTORI, Angela; DOMINGO, Luiz Roberto. Dano ao erário pela ocultação mediante fraude – a interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio exterior. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; SARTORI, Angela; DOMINGO, Luiz Roberto (Coord.). Tributação aduaneira à luz da jurisprudência do CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. São Paulo: MP-APET, 2013, p. 64.
2023-05-23T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/territorio-aduaneiro-interposicao-fraudulenta-sancoes-importador-ostensivo
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Opinião
Manoel Carlos de Almeida Neto: O colapso das constituições
A resistência de alguns chefes de estados modernos em aceitar Constituições escritas remonta aos séculos 18 e 19 e foi imortalizada em uma célebre frase de Frederico Guilherme 4º, rei da Prússia entre 1840 e 1861. O contexto era a Primavera dos Povos, período revolucionário de lutas contra as monarquias absolutistas europeias. No discurso de abertura do primeiro parlamento, em 1948, o rei rejeitou a constituição: "Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que, nem no presente, nem para o futuro, permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita, como se fosse uma Providência". Do Império ao período republicano, o Brasil teve um número elevado de Constituições, que foram promulgadas, outorgadas ou simplesmente decretadas. A quantidade comprova a existência de "fatores reais de poder", identificados primeiro pelo sociólogo polonês Ferdinand Lassalle, em 1863. Esses fatores compõem uma espécie de Constituição paralela não escrita, caótica e incontrolável, com força para modificar a realidade político-jurídica, derrubando textos constitucionais, seja para restaurar o Estado democrático de Direito, seja para usurpá-lo em deploráveis golpes. O espírito dual do nosso constitucionalismo foi bem capturado por Konder Comparato, quando ele afirma que, desde 1824, sempre tivemos duas Constituições, "a oficial e a subliminar", mesmo durante os regimes autoritários. A aversão ao texto constitucional escrito não se limita aos governantes autocráticos. Ela também tem ressonância nos variados grupos de poder, com interesses legítimos ou ilegítimos, que respiram uma atmosfera de inconformismo constitucional permanente. Ou seja, um sentimento atemporal em busca de revogar a Constituição vigente. Compreender essa realidade é uma das chaves para decifrar a caótica profusão de constituições, um fenômeno perturbador para a estabilidade social, econômica e democrática do país. Alguns países têm Cartas Magnas longevas, como os Estados Unidos (1789), Holanda (1814), Noruega (1814), Bélgica (1831), Dinamarca (1849), Argentina (1853) e outros. Já o Brasil teve várias Constituições escritas: uma Constituição alienígena, que durou 24 horas, uma Emenda Constitucional integral, 21 Leis Constitucionais, nove Atos do Comando Supremo da Revolução, 17 Atos Institucionais e 105 Atos Complementares. O país também teve poderosos decretos que não tinham o título formal de Constituição, mas que tinham natureza constitucional e, não raro, evocavam o poder constituinte para usurpar a soberania popular. Por isso, é errado afirmar que no Brasil vigoraram só sete Constituições formais, como dizem os sites da Câmara e do Senado. Na realidade, foram no mínimo 14 textos com supremacia no ordenamento jurídico, investidos de força constituinte de fato ou de direito, com o objetivo de instaurar uma nova ordem política. A começar pela primeira Constituição a vigorar no Brasil, a espanhola, de Cádiz, aplicada por 24 horas, entre os dias 21 e 22 de abril de 1821. "La Pepa", como era conhecida, foi jurada e publicada por decreto de dom João 6º, em razão da vontade liberal e da pressão do povo reunido na Praça do Comércio, no Rio de Janeiro, mas morreu pelo autoritarismo de um novo decreto real, no qual o príncipe regente alegou ter sido enganado por anarquistas mal-intencionados. Após derramar o sangue dos revolucionários com a força das baionetas, o rei regressou a Portugal depois de 14 anos de fuga, desde que Napoleão havia invadido o reino português, em 1807. Em seguida, tivemos a Carta nativa de 1824, que foi fruto do processo de Independência e era um texto genuinamente brasileiro. Além dos três Poderes clássicos redesenhados por Montesquieu, ela previa um quarto Poder arbitral, acima de todos os outros, o moderador, exercido diretamente pelo imperador. Após a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a monarquia sentiu o sabor da popularidade, mas foi obrigada a enfrentar os reflexos do establishment de fazendeiros escravocratas. Sem falar de fatores de poder insatisfeitos com o Império, encarnados nos barões, viscondes, banqueiros, marqueses e militares que não conseguiam mais esconder o ideário republicano e federalista. Nascia a República e morria, aos 65 anos, o mais longevo texto constitucional do Brasil. A nova ordem foi formalizada na Carta emergencial, outorgada pelo Decreto 1, de 1889, que pôs fim ao Império e conferiu autonomia aos estados-membros, com subordinação ao pacto federativo. Essa Carta vigorou por um ano e três meses, até a promulgação da Constituição republicana, de 1891, que tinha um ideário federalista e aprimorou o desenho do mapa político do país. Ela durou quatro décadas, até que movimentos revolucionários do início dos anos 1930 derrubaram a república dos marechais e das oligarquias paulista e mineira. Apagavam-se as luzes da República Velha e se acendiam os novos e velhos fatores reais de poder que gravitavam em torno de Getúlio Vargas. O então presidente iniciava sua era de domínio, na qual promoveu profundas e significativas transformações no país. Foi um governo de 15 anos consecutivos, entre 1930 e 1945, com três textos constitucionais. O primeiro foi a Carta provisória, outorgada pelo Decreto 19.398, no começo da Era Vargas. Ela vigorou até a Constituição revolucionária, promulgada em 1934, mas que teve brevíssima duração, porque seus líderes abraçaram o retrocesso. As bandeiras progressistas que criavam diretos e do conservadorismo nacionalista foram sobrepujadas pelo autoritarismo que outorgou a Carta fascista de 1937. Com o discurso de produzir um "Estado Novo", o texto extinguiu a Justiça Eleitoral. Era uma Constituição influenciada pela pregação catastrófica do teórico político alemão Carl Schmitt pela hegemonia do Executivo. Ou seja, tinha uma natureza autoritária, inspirada no fascismo que ascendia pelo mundo, com Hitler, Mussolini e Salazar, Franco Antonescu, Miklos Horthy e Józef Piłsudski . Também chamada de "polaca", a Carta com texto do jurista Francisco Campos e seu então chefe de gabinete Carlos Medeiros manteve Vargas no poder até a redemocratização do país, em 1945. Após o fracasso do Estado Novo, a Constituição liberal de 1946 fez reviver o regime democrático. Mas foi minada por conspirações, levantes militares e a mobilização de elites conservadoras — culminando na queda do presidente João Goulart em 1964, em nome da suposta revolução. Em 9 de abril daquele ano, o regime militar publicou o primeiro Ato Institucional. Era uma Carta outorgada por um triunvirato militar que representava o autoproclamado "Poder Constituinte originário da Revolução Vitoriosa". O texto não só mutilava a Constituição de 1946, mas, de fato, instituía uma nova ordem constitucional no país — outra vez por obra da dupla Francisco Campos e Carlos Medeiros, mentores da Carta fascista de 1937. Na sequência, em outubro, a ditadura publica uma nova Carta autoritária, o AI-2, que passa a ocupar o topo das normas do Estado e mantém o texto de 1946 subordinado e despedaçado. Com a democracia em colapso, o governo subscreve a censora Lei de Imprensa e e baixa o AI-4. O novo Ato Institucional convocou o Congresso para aprovar a Carta Constitucional de 1967, um texto outorgado por um Legislativo mutilado e tão submisso que usou uma medida insólita para cumprir o prazo de votação determinado pela ditadura: os congressistas paralisaram o relógio da Câmara, para fraudar o inexorável tempo. O artifício foi registrado por Pedro Aleixo nos anais da constituinte e pela Folha, em um texto sob o título "Relógio da Câmara parou". Para os militares, aquela Constituição não era suficiente para garantir seu projeto autoritário. Por isso, em 13 de dezembro de 1968, o regime editou o mais nefasto texto constitucional que já vigorou no Brasil: a carta ditatorial chamada de AI-5, que aprofundou o autoritarismo. O AI-5 ficou em vigor, como uma espécie de Constituição-sombra, até sua revogação, em 1978. Vale lembrar que, nesse intervalo, veio em 1969 a Carta emendada, pela inusitada fórmula da Emenda Constitucional número 1, com 200 artigos embutidos no 1º, revogando integralmente o texto de 1967, para incorporar a ele o conteúdo dos atos institucionais. Ao todo, foram nove Atos do Comando Supremo da Revolução, 17 Atos Institucionais e 105 Atos Complementares. Todos com natureza constitucional, investidos do autoproclamado poder constituinte originário e revolucionário. Essas normas serviram para legalizar o regime por 21 anos, até o raiar da democracia com o movimento das Diretas Já, em 1985, e a promulgação da Constituição cidadã de 1988 — uma das quatro Constituições legítimas da história do Brasil, ao lado das de 1891, 1934, 1946, 1988. Além de consolidar a redemocratização, novo texto fortaleceu as instituições e afirmou o rol de direitos e garantias dos cidadãos, para impedir o retrocesso do obscurantismo. É uma Carta com espírito progressista, que promove a recuperação e a criação de direitos essenciais, para a elevação do padrão civilizatório da sociedade. Em 2019, no julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão após condenação em segunda instância, o ministro Ricardo Lewandowski sustentou que a Constituição de 1988 não é uma mera folha de papel que pode ser rasgada sempre que contrariar forças políticas de momento. É preciso atenção permanente para identificar movimentos autoritários e policialescos que se camuflam em bandeiras do conservadorismo —como a proteção da ordem, a moralidade, a liberdade, a propriedade e a família — para perverter esses preciosos anseios sociais. E que o fazem para assaltar a soberania popular, os direitos civis e políticos, além de tentar subordinar o Legislativo e o Judiciário ao Executivo. O que esses movimentos buscam é um retrocesso civilizatório, tentando desacreditar as instituições para arregimentar fatores reais de poder e derrubar a Constituição democrática. É fundamental repudiar o autoritarismo, preservar as instituições democráticas, a classe política como expressão da soberania popular, a imprensa livre, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público e o Poder Judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, a quem os constituintes de 1988 confiaram a guarda da Constituição.
2023-05-23T06:05-0300
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Escritos de Mulher
Resolução 487 do CNJ e a política antimanicomial do Judiciário
A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil, pela primeira vez, em 4/7/2006, por violação de direitos humanos. Trata-se do Caso Ximenes Lopes versus Brasil, no qual foram pronunciadas as violações de direitos humanos de portadores de sofrimento mental. Em 1999, após três dias de internação em unidade médica de saúde mental, Damião Ximenes Lopes foi morto e estava com sinais de tortura e maus tratos. No mesmo ano, seus familiares apresentaram o caso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que por sua vez apresentou a demanda para a corte, em 2004. Após a condenação, por violação do direito à vida, à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial, a corte supervisionou o cumprimento da sentença pelo Estado brasileiro, e uma das determinações era, conforme o ponto resolutivo 08, continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos na própria sentença. Quinze anos após a condenação, em audiência de supervisão, realizada em abril de 2021, em razão do descumprimento desta reparação, a corte indicou o Conselho Nacional de Justiça como órgão mediador relativo à execução das políticas públicas de saúde mental do país. O CNJ, atento ao ponto resolutivo 08 da sentença da corte, formou comissão para realização de estudos e medidas voltadas à superação das dificuldades relativas à promoção e saúde, em maio de 2021 (da qual participei). Importante observar que em janeiro do mesmo ano, o CNJ já havia dado um importante passo na temática de direitos humanos, pois criou a Unidade de Fiscalização e Monitoramento das Deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização (DMF) do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, com a edição da Resolução CNJ nº 364/2021, sabedor de que o Estado brasileiro tinha determinações pendentes de cumprimento e que são do âmbito do Poder Judiciário. A referida comissão apresentou seu relatório e, por fim, o CNJ editou a Resolução 487, de 15/2/2023, que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com deficiência e a Lei 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança. O fato é que a realidade mostra que o Brasil ainda age ao arrepio da Lei Antimanicomial. E, nesta fase, parece que nada no Brasil escapa às chamadas fake news, pois pululam inverdades, conforme noticiado pelo CNJ, em rede social, tais como: pessoas criminosas serão soltas em 12 meses; pessoas condenadas por crimes graves se beneficiam da política antimanicomial; nunca mais pode haver internação, mesmo nos casos graves; o hospital de custódia é o melhor lugar para receber pessoas em medidas de segurança; pessoas que estão em hospitais psiquiátricos ficarão livres para fazer o que bem quiserem. Pois bem, o CNJ esclareceu que: a) A resolução não cria nada novo, apenas exige que o Estado cumpra regras e leis vigentes há anos no país para que o tratamento de saúde seja realizado em local adequado, que seja especializado e bem estruturado; b) A resolução só diz respeito a quem não tinha consciência de seus atos, situação atestada pós avaliação de equipe de saúde especializada. A lei considera essas pessoas inimputáveis e isso precisa ser reconhecido dentro do processo e assim julgado por um magistrado; c) A opção de internação segue como opção se outras medidas disponíveis não são suficientes. A internação pode s estender pelo tempo que for necessário segundo cada caso, sempre a partir da avaliação dos profissionais de saúde; d) A resolução determina que a medida seja cumprida em local capaz de ofertar tratamento de saúde exigido, com equipes e técnicos preparados para tal. e) A resolução aponta a elaboração de projetos terapêuticos singulares, permitindo o acompanhamento de cada caso por serviços públicos especializados, com a participação da equipe multidisciplinar do Judiciário, das equipes conectoras do sistema de saúde e Judiciário. Alguns estados da federação, no âmbito do Judiciário, já cumprem a Lei Antimanicomial, faz muitos anos, como o estado de Goiás, que tem programa próprio e que mostra dados consistentes de sucesso do projeto. O CNJ está cumprindo seu papel e muitos tribunais estão a desenvolver atividades de capacitação, por meio de suas escolas de magistratura, tão necessárias para que barreiras e preconceitos sejam vencidos em relação às pessoas que apresentam transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial. Neste sentido, nos próximos dias 15 e 16 de junho, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR), realizará o Seminário Internacional de Saúde Mental: Possibilidades para a Efetivação da Política Antimanicomial na Interface com o Poder Judiciário. Já a Emerj realiza no dia 26/5 o Seminário Política Antimanicomial — Do Poder Judiciário e seus Diálogos Necessários — Resolução 487/2023 do CNJ. O Judiciário está arregaçando as mangas para cumprir suas obrigações internacionais, regionais, constitucionais e legais, e isso precisa ser saudado com ênfase, por todos que efetivamente têm compromisso com a dignidade humana.
2023-05-24T18:39-0300
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Garantias do Consumo
Impressões sobre a proposta brasileira para um marco legal da IA
Em tempos de ChatGPT e de debates sobre o poder das plataformas, dos algoritmos e big data, o futuro exige cautela, superar a autorregulação [1] e desenvolver mínimos de proteção ou governança global [2]. Como afirma Sartor, a inteligência artificial (IA) "precisa" do Direito, pois só assim poderá ser centrada na pessoa humana [3]. O presente texto reúne impressões iniciais sobre a proposta para um marco legal da inteligência artificial (PL 2.338/2023), que deve ser fortemente defendido, pois coloca o Brasil entre os países que possuem regulação geral sobre o tema, regulando os riscos desta tecnologia e consagrando a proteção dos consumidores. Assim, mister destacar, primeiramente, que essa proposta se insere em tendência global de regulamentação dos riscos envolvendo a IA, superando regras anteriores soft law e limitadas a princípios (a exemplo do PL 21/2020). Segundo, que os direitos consagrados na proposta estão, em linha gerais, sintonizados com o espírito da proposta europeia de regulação da inteligência artificial (AI Act, COM 2021/206 final), muitas vezes considerada como potencial modelo global na matéria [4]. a) A crescente regulamentação da inteligência artificial no contexto internacional A proposta brasileira de um marco legal da inteligência artificial se insere num contexto global de crescentes discussões sobre governança da IA [5]. Mesmo antes do surgimento das propostas recentes de regulação da IA, tais tecnologias já estavam sujeitas a um arcabouço jurídico [6]. Em muitas jurisdições, elas são regidas, inter alia, por regras de proteção de dados pessoais, de direitos humanos, do consumidor, direito constitucional, entre outras. As regras existentes, porém, são muitas vezes insuficientes para responder aos desafios que surgiram ou se intensificaram com a difusão acelerada da IA nos últimos anos, em razão da crescente disponibilidade de dados (big data), pela crescente capacidade computacional de microprocessadores e também com o desenvolvimento e difusão das técnicas de aprendizado de máquina (machine learning) [7]. Esses elementos facilitaram a difusão de ferramentas automatizadas para fornecer avaliações, recomendações e prescrições para decisões de entidades públicas e privadas que têm efeitos jurídicos, tais como as relacionadas à entrada de imigrantes em determinada jurisdição [8], detecção de fraude fiscal [9], liberdade condicional para réus na Justiça Criminal [10], classificação de risco de crédito [11], entre outras. Ao mesmo tempo em que a automatização traz benefícios, fornecendo elementos para facilitar o trabalho humano, também traz desafios, como a potencial falta de transparência e inteligibilidade sobre como recomendações são geradas, falta de acurácia e robustez dos resultados em certos casos, tendência a incorporar discriminação ou vieses na análise dos dados, violação de regras de proteção de dados pessoais, entre outros. A necessidade de responder a esses desafios de uma fase de difusão mais intensa da IA, inicialmente, foi respondida não por leis estatais, mas por meio de soft law [12]. Em primeiro lugar, por códigos de autorregulamentação de entidades privadas desenvolvendo sistemas de inteligência artificial [13]. Em segundo lugar, diferentes entidades internacionais ou intergovernamentais elaboraram princípios éticos gerais para regular a matéria, como a OCDE [14] e a Unesco [15]. Em terceiro lugar, entidades da indústria (como a IEEE) começaram a estabelecer standards técnicos que especificam e dão significado a princípios abstratos como transparência, explicabilidade e não-discriminação no campo da IA [16]. Apesar de sua importância, esses instrumentos, isoladamente, compartilham uma limitação: sua implementação depende da adoção voluntária pelas entidades implementando a IA. Não há mecanismos para impor juridicamente seu cumprimento. Para responder a essa limitação, diferentes jurisdições ou entidades supranacionais estão em processo de elaboração de propostas cogentes, em diferentes moldes, para regular riscos trazidos pela utilização da IA. Dentre as diferentes iniciativas, a proposta europeia (AI Act, 2021) [17], é considerada por muitos como potencial modelo global para regulações sobre a matéria. b) Os direitos estabelecidos na proposta brasileira de um marco legal da IA Nesta seção, realizamos comparação preliminar entre os direitos estabelecidos na proposta brasileira e a proposta europeia (2021) [18], e, mais amplamente, com outras disposições pertinentes no direito europeu. O artigo 5 do marco legal da IA estabelece as disposições gerais a respeito dos direitos garantidos a pessoas afetadas por sistemas de inteligência artificial, em seguida elaborados nos artigos 6 a 12 da proposta. Primeiramente, é consagrado o direito de usuários de sistemas de IA à informação prévia quanto às suas interações com sistemas de IA (Artigo 5, I e 7). Há um requisito de conformidade similar, por exemplo, no Artigo 52 da proposta europeia sobre "Obrigações de transparência aplicáveis a determinados sistemas de inteligência artificial", que no seu inciso I estabelece que "Os fornecedores devem assegurar que os sistemas de IA destinados a interagir com pessoas singulares sejam concebidos e desenvolvidos de maneira que as pessoas singulares sejam informadas de que estão a interagir com um sistema de IA". Segundo, o marco consagra o direito "a explicação sobre a decisão, recomendação ou previsão tomada por sistemas de inteligência artificial" (artigo 5, II em conjunto com artigo 8). No contexto da União Europeia, alguns consideram que um direito à explicabilidade de decisões automatizadas já tinha sido estabelecido pelo Regulamento sobre Proteção de Dados Pessoais, embora até hoje haja controvérsia sobre a existência desse direito [19]. No contexto do projeto europeu, o artigo 13 estabelece um requisito de conformidade em relação a sistemas de IA de alto risco, ao determinar que estes "devem ser concebidos e desenvolvidos de maneira que assegure que o seu funcionamento seja suficientemente transparente para permitir aos utilizadores interpretar o resultado do sistema e utilizá-lo corretamente". Em seguida, o marco legal, no seus Artigo 5, III e IV, e 9 a 11, estabelece o "direito de contestar decisões ou previsões de sistemas de inteligência artificial que produzam efeitos jurídicos ou que impactem de maneira significativa os interesses do afetado", bem como o "direito à determinação e à participação humana em decisões de sistemas de inteligência artificial, levando-se em conta o contexto e o estado da arte do desenvolvimento tecnológico". Esses direitos, intimamente ligados, já haviam sido estabelecidos, no caso europeu, pelo Regulamento sobre Proteção de Dados Pessoais, no seu artigo 22, III, resguardando aos usuários afetados por decisões automatizadas com efeitos jurídicos (que fossem autorizadas no contexto da regulação) o "direito de, pelo menos, obter intervenção humana por parte do responsável, manifestar o seu ponto de vista e contestar a decisão". Na proposta europeia, a supervisão humana é estabelecida como requisito de conformidade, ademais, em relação a sistemas de alto risco, no seu Artigo 14. A existência de um direito à contestação também é estabelecido no recentemente aprovado Regulamento Europeu sobre Serviços Digitais, em relação às decisões automatizadas de plataformas digitais e prestadores de serviços intermediários que possam afetar seus usuários. Em quarto lugar, o marco legal estabelece o "direito à não-discriminação e à correção de vieses discriminatórios diretos, indiretos, ilegais ou abusivos". No caso europeu, há várias diretivas anti-discriminação, aplicáveis a diferentes tipos de casos, com potencial efeito em relação a recomendações tomadas por sistemas de IA. Ademais, a Convenção Europeia de Direitos Humanos contém disposição vedando a discriminação (Artigo 14). Finalmente, o Marco legal consagra um "direito à privacidade e à proteção de dados pessoais, nos termos da legislação pertinente" (Artigo 5, VI), estabelecendo uma referência à legislação brasileira sobre proteção de dados pessoais. Na Europa, o Regulamento Europeu sobre Proteção de Dados Pessoais se aplica a temas com potenciais efeitos sobre sistemas de IA (vide Case C-511/18, Corte de Justiça da União Europeia). De maneira mais ampla, o marco legal também segue a opção da proposta europeia de estabelecer diferentes regras para distintos sistemas de IA conforme a classificação do seu grau de risco, estabelecendo um equilíbrio entre a necessidade de regulamentação legal e proteção dos usuários com a liberdade para inovar. Pois se a inovação e a transformação tecnológica devem contribuir para o desenvolvimento da sociedade, não devem limitar os direitos já conquistados pelos consumidores e titulares dos dados. Balanço de forças e diálogo de fontes que o marco legal da inteligência artificial terá que fazer levando em conta potenciais futuras normas com efeito sobre os riscos emergentes no âmbito digital (vide a proposta de emenda constitucional estabelecendo que "o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica"), bem como os direitos humanos, tema ao qual pretendemos voltar em outra oportunidade.   Referências bibliográficas ALMEIDA, V.; SCHERTEL MENDES, L.; DONEDA, D. On the development of AI Governance Frameworks, in IEEE Internet Computing, 2023, vol. 27, Issue 1, p. 70-74. AMARILES, D. R.; BAQUERO, PM, Promises and limits of law for a human-centric artificial intelligence, Computer Law & Security Review, Volume 48, 2023, p. 8, disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0267364923000067. AMARILES, D. R. Algorithmic Decision Systems Automation and Machine Learning in the Public Administration. In: The Cambridge Handbook of The Law of Algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. p. 291ss. ANGWIN, Julia; LARSON, Jeff; MATTU, Surya; KIRCHNER, Lauren. Machine bias. ProPublica. 23.05.2016. Acesso em: 23.04.2023. DEMPSEY, Mark; MCBRIDE, Keegan; HAATAJA, Meeri; BRYSON, Joanna. Transnational digital governance and its impact on artificial intelligence. In: The Oxford Handbook of AI Governance. Oxford University Press, 2022. DERAVE, C., GENICOT, N., & HETMANSKA, N. (2022). The Risks of Trustworthy Artificial Intelligence: The Case of the European Travel Information and Authorisation System. European Journal of Risk Regulation, 13(3), 389-420. FLORIDI, L. The End of an Era: from Self-Regulation to Hard Law for the Digital Industry. Philos. Technol. 34, 619–622 (2021). https://doi.org/10.1007/s13347-021-00493-0 KATZ, Daniel Martin. Quantitative Legal Prediction – or – How I Learned to Stop Worrying and Start Preparing for the Data Driven Future of the Legal Services Industry. Emory Law Journal, Vol. 62, 2013, p. 913 e ss. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2187752. MARQUES, C. L.; BAQUERO, P. M. Global governance strategies for transnational consumer protection: New perspectives to empower societal actors, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 143/2022, p. 167 – 188, Set - Out / 2022. SARTOR, Giovanni. L´intelligenza artificiale e il diritto, Torino: Giappichelli Ed, 2022. SHI, S., TSE, R., LUO, W. et al. Machine learning-driven credit risk: a systemic review. Neural Comput & Applic 34, 14327–14339 (2022). https://doi.org/10.1007/s00521-022-07472-2 SMUHA, Nathalie A. ; AHMED-RENGERS, Emma; HARKENS, Adam; LI, Wenlong; Maclaren, James; PISELLI, Riccardo; YEUNG, Karen. How the EU Can Achieve Legally Trustworthy AI: A Response to the European Commission’s Proposal for an Artificial Intelligence Act. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3899991 [1] ALMEIDA, V.; SCHERTEL MENDES, L.; DONEDA, D. On the development of AI Governance Frameworks, in IEEE Internet Computing, 2023, vol. 27, Issue 1, p. 70-74. [2] MARQUES, C. L.; BAQUERO, P. M. Global governance strategies for transnational consumer protection: New perspectives to empower societal actors, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 143/2022, p. 167 – 188, Set - Out / 2022. [3] SARTOR, Giovanni. L´intelligenza artificiale e il diritto, Torino: Giappichelli Ed, 2022, p. 139. [4] https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20230505IPR84904/ai-act-a-step-closer-to-the-first-rules-on-artificial-intelligence . Acesso 15.05.2023) [5] 2023 Stanford AI Index Report, p. 267-268. Disponível em: https://aiindex.stanford.edu/wp-content/uploads/2023/04/HAI_AI-Index-Report_2023.pdf. Acesso em: 24.04.2023. [6] Dempsey, Mark & Mcbride, Keegan & Haataja, Meeri & Bryson, Joanna. Transnational digital governance and its impact on artificial intelligence. In: The Oxford Handbook of AI Governance. Oxford University Press, 2022. [7] Katz, Daniel Martin. Quantitative Legal Prediction – or – How I Learned to Stop Worrying and Start Preparing for the Data Driven Future of the Legal Services Industry. Emory Law Journal, Vol. 62, 2013, p. 913 e ss. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2187752. Acesso em 23.04.2023. [8] Derave, C., Genicot, N., & Hetmanska, N. (2022). The Risks of Trustworthy Artificial Intelligence: The Case of the European Travel Information and Authorisation System. European Journal of Risk Regulation, 13(3), 389-420. [9] Amariles, D. R. Algorithmic Decision Systems Automation and Machine Learning in the Public Administration. In: The Cambridge Handbook of The Law of Algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. p. 291 e seguintes. [10] ANGWIN, Julia; LARSON, Jeff; MATTU, Surya; KIRCHNER, Lauren. Machine bias. ProPublica. 23.05.2016. Acesso em: 23.04.2023. [11] Shi, S., Tse, R., Luo, W. et al. Machine learning-driven credit risk: a systemic review. Neural Comput & Applic 34, 14327–14339 (2022). https://doi.org/10.1007/s00521-022-07472-2. [12] Floridi, L. The End of an Era: from Self-Regulation to Hard Law for the Digital Industry. Philos. Technol. 34, 619–622 (2021). https://doi.org/10.1007/s13347-021-00493-0. [13] Por exemplo, “AI at Google: Our Principles”, disponível em: https://blog.google/technology/ai/ai-principles/. [14] "OECD AI Principles", disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449. [15] "Unesco Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence", disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000380455. [16] European Commission, AI Watch: AI Standardisation Landscape, disponível em: https://www.standict.eu/sites/default/files/2021-07/jrc125952_ai_watch_task_9_standardization_activity_mapping_v5.1%281%29.pdf. [17] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A52021PC0206 [18] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A52021PC0206. [19] Sobre a controvérsia, veja Amariles, DR & Baquero, PM, Promises and limits of law for a human-centric artificial intelligence, Computer Law & Security Review, Volume 48, 2023, p. 8, disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0267364923000067.
2023-05-24T10:30-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-24/garantias-consumo-impressoes-proposta-brasileira-marco-legal-ia
academia
Opinião
André Brayner: O novo marco normativo da Lei Paulo Gustavo
O Decreto nº 11.525, que regulamenta a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195, de 8 de julho de 2022), foi lançado no último dia 11 de maio, na Bahia, onde também ocorreu seminário sobre o decreto, incentivando o debate com a sociedade civil sobre este importante marco legal. Aqui, parabenizo, independentemente de eventuais divergências ao Ministério da Cultura (MinC), pelo esforço e compromisso no diálogo com a sociedade civil e pela criação de Secretaria Nacional específica para dar apoio aos estados e municípios. O desafio será enorme e um dos mais complexos — contribuir com a atualização de procuradorias municipais, estaduais e assessorias jurídicas para que possam priorizar a efetivação de política pública e o uso dos novos marcos legais. É preciso uma correta exegese jurídica, por meio de interpretação teleológica do arcabouço normativo em nosso dispor para efetivar os direitos culturais! Muitos aspectos merecem destaque no Decreto nº 11.525/2023 — 1. simplificação do plano de ação; 2. possibilidade de remanejamento, na hipótese de não haver quantitativo suficiente de propostas; 3. previsão e limites para contratações de consultoria; 4. destinação específica para garantir acessibilidade cultural; 5. medidas de democratização por meio de ações afirmativas; 6. obrigatoriedade em consolidar os sistemas de cultura ou a implantá-los, entre outros. Para fins de evidenciar a necessidade do diálogo com as procuradorias, vamos eleger um dos aspectos mais centrais para este debate — a forma de prestar contas das ações desenvolvidas pelos trabalhadores de cultura para o Estado e, principalmente, para a sociedade. Antes de apontar os aspectos da norma em questão é preciso compreender qual o objetivo de solicitar prestações de contas de projetos culturais. A resposta mais simples seria — para evitar desvios do recurso público, mas esta explicação está incorreta e ela justifica um estado punitivista, que está mais preocupado em condenar do que em promover direitos. A resposta mais adequada para uma democracia é porque a sociedade deve saber como o recurso foi investido e quais os benefícios (resultados) foram obtidos. É preciso — e venho insistindo nisso — fazer a transição do accountability financeiro para o accountability de resultados. Os técnicos dos estados precisam ser capazes de gerar relatórios de inteligência para avaliar o efetivo impacto da política pública, o quantum de economia tem sido estimulado a partir da cultura, avaliar indicadores. Muito mais do que solicitar certidões negativas em contratações com terceiros realizadas por agentes culturais, solicitar cotação de preços nas contratações realizadas por instituições culturais para execução de suas ações não é prioritário e demonstra a incapacidade de a gestão pública focar no que importa — quanto a Lei Paulo Gustavo vai contribuir com o enfrentamento ao racismo, por exemplo, conforme objetiva o disposto no artigo 17, LC no 195 [1]. Atualmente é mais fácil prestar contas de obras públicas do que de projetos culturais [2]. Ora, vamos convir que se o Estado fomenta a produção audiovisual, ela precisa receber e avaliar a qualidade do produto desenvolvido e não se preocupar se houve mais gasto com o roteirista e menos gasto com edição. Pedir três orçamentos para serviços de libra não é necessariamente mais adequado do que contratar profissional mais qualificado cujo valor é pouco maior do que o de uma empresa recém-criada. Parece-nos importante adicionar que o modo de execução destes recursos [3], os instrumentos jurídicos firmados [4] e os relatórios de prestação de contas [5] deverão observar o disposto no Decreto no 11.453, de 23 de março de 2023, o novo decreto do fomento, que é um excelente marco normativo para mitigar as críticas acima apresentadas. (Sugiro inclusive para quem tenha interesse em aprofundar o tema - aula sobre decreto de fomento [6], ministrada por importante membro da AGU). O Decreto nº 11.453, de 23 de março de 2023, estabelece o seguinte: "Art. 9º Os chamamentos públicos das políticas culturais de fomento observarão o disposto nesta Seção, exceto na hipótese de haver previsão de outro procedimento específico em regime jurídico aplicável ao instrumento escolhido pela administração pública". Ou seja, poderá ser aplicado a Lei nº 13.019 para a celebração de parcerias para a consecução de atividades culturais, bem como para realização de consultorias, exceto para atividades de execução exclusiva do Estado, por óbvio [7]; premiação cultural; bolsas culturais; termo de execução cultural e termo de compromisso cultural e em situação excepcionalíssima na contratação de bens e serviços comuns e não finalísticas a Lei nº 14.133 [8]. Ora, o primeiro desafio aqui será com base em análise estratégica definir quais instrumentos utilizar, pois a forma de prestar contas, a incidência tributária e os procedimentos para parceirização ou contratação variam, em certa medida, pela escolha. Aqui, como garantir os instrumentos mais eficazes quando na maioria das vezes as procuradorias sequer conhecem o arcabouço normativo pertinente ao fomento cultural? Acredito que a contratação de consultorias, especialmente de entidades especializadas em gestão cultural poderá ser determinante. Com vistas em aprimorar os mecanismos de prestação de contas com base no objetivo de fato do fomento cultural é que a lei — e agora o decreto — já estabelecem a possibilidade de dispensar prestação de contas de projetos de menor complexidade, mediante relatório após visita in loco, como forma de monitoramento pela equipe da administração pública. Esta modalidade é excelente para projetos com pouco recurso e dificuldades técnicas na elaboração de relatório. É possível haver prestação de informações com base em relatório exclusivamente de execução do objeto. Aqui, deverá o ente federativo elaborar com cautela quais são as informações imprescindíveis. A ideia deste relatório não deve ser de mero atesto do cumprimento, mas de contribuir com a avaliação posterior da ação por meio de dados. Dever-se-ia tratar de b.i. (business intelligence) da administração pública, de modo que devem ser inseridos nestes — avaliação de impacto, quantitativos dos beneficiados direta e indiretamente da política pública, avaliação dos cidadãos beneficiados sobre a ação cultural, apontamentos das principais dificuldades, sugestões para aprimoramento. Estas modalidades apenas poderão ocorrer quando o apoio recebido tiver valor inferior a R$ 200 mil [9]. A prestação de contas com relatórios de cumprimento de objeto e de execução financeira poderá ser aplicada a projetos mais complexos e devem ser cobrados quando não for comprovado o cumprimento do objeto, quando houver denúncia de irregularidade sobre a execução da ação cultural e quando o valor total do projeto for superior a R$ 200 mil reais. Por mais que haja críticas a algumas normas e interpretações – e as tenho – é evidente o verbete: O MinC voltou! Existe indubitavelmente um esforço na criação deste arcabouço normativo (sobre o qual comentei brevemente com base em um dos pontos) com a edição dos decretos — nº 11.525/2023 e nº 11.453/2023. Agora, por mais que haja avanços normativos, a aplicação destes avanços em favor da efetivação dos direitos culturais dependerá muito da capacidade de planejamento e inteligência na exegese da norma por parte de estados e municípios. Trata-se de legislações recentes, de alto impacto e complexas. Agora é o tempo de debater direitos culturais com as assessorias jurídicas e com as procuradorias, pois não será suficiente dialogar com gestores e estabelecer minutas padrões, embora imprescindível.   Notas [1] Art. 17. Na implementação das ações previstas nesta lei complementar, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão assegurar mecanismos de estímulo à participação e ao protagonismo de mulheres, de negros, de indígenas, de povos tradicionais, inclusive de terreiro e quilombolas, de populações nômades, de pessoas do segmento LGBTQIA+, de pessoas com deficiência e de outras minorias, por meio de cotas, critérios diferenciados de pontuação, editais específicos ou qualquer outro meio de ação afirmativa que garanta a participação e o protagonismo desses grupos, observadas a realidade local, a organização social do grupo, quando aplicável, e a legislação relativa ao tema. [2] Observe, caro leitor, que estranho: quando se trata de licitação para execução de obras, por exemplo, em que uma das partes está ali para lucrar e o Estado pelo serviço, o controle é feito por medição, por entregas e não cobra-se ‘lista de fornecedores’, orçamentos que a empresa contratada exigiu de terceiros, homologação e adjudicação de objetos a serem comprados, mas sim os resultados. Já nas parcerias na cultura em que os aportes são em regra extremamente tímidos, o resultado já não importa. Ou seja, constitui-se parceria, novamente meramente exemplificativo, para realização de carnaval com 15 bandas, 5 oficinas e 7 intervenções artísticas. Todas acontecem, mas aqui o Leviatã não se importa com o resultado. Ora, o Estado atesta a realização das atividades, financiou sua realização, mas querem exigir a devolução integral por atraso na prestação de contas? Por que a entidade não cumpriu uma formalidade nas cotações de preço? Trata-se de enriquecimento ilícito do Estado. Esta questão, aliás, é bem difundida no judiciário, mas muito poucas entidades possuem assessoria jurídica que possa reverter estas condenações. BRAYNER, André. O Leviatã contra a Cultura: O enriquecimento ilícito do Estado nas parcerias com a sociedade civil. (Disponível em https://www.ibdcult.org/post/o-leviat%C3%A3-contra-a-cultura-o-enriquecimento-il%C3%ADcito-do-estado-nas-parcerias-com-a-sociedade-civil) [3] Art. 11. A execução dos recursos de que trata este Decreto pelos entes federativos ocorrerá por meio de procedimentos públicos de seleção, observado o disposto no Decreto nº 11.453, de 2023. [4] Art. 4º. Os recursos a que se refere o inciso II do caput do art. 2º serão disponibilizados conforme os procedimentos previstos no Decreto nº 11.453, de 2023, de acordo com a modalidade de fomento [...]. [5] Art. 27. Para fins do disposto neste Decreto, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar regulamento com os procedimentos necessários à aplicação dos recursos recebidos no âmbito do ente federativo, observado o disposto na Lei Complementar nº 195, de 2022, neste Decreto, nos regulamentos e nas instruções normativas e orientações editadas pelo Ministério da Cultura. [...] IV - minutas de relatórios de prestação de informações e de pareceres técnicos de análise desses relatórios, conforme o disposto no Decreto nº 11.453, de 2023 [6] Disponível em https://www.youtube.com/live/yWauFaZr1jk?app=desktop&feature=shares [7] O disposto no art.18, § 1º parece-nos óbvio demais ao vedar a delegação de competências exclusivas do Poder Público e com potencial para causar confusão conceitual. Deixemos aqui registrado — cultura não é de competência exclusiva e a definição destas atividades não é subjetiva, mas decorre por determinação constitucional ou legal, tais como segurança pública, diplomacia, tributação, arrecadação e fiscalização de tributos federais. [8] Na execução de recursos de que trata esta Lei Complementar não se aplica o disposto no art. 184 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Art.19 Lei Paulo Gustavo (LC no 195/2022) [9] Decreto nº 11.453, de 2023. Art. 51. A metodologia de prestação de contas dos programas, dos projetos e das ações culturais financiados com recursos do mecanismo de incentivo fiscal será estabelecida a partir de matriz de risco adotada pelo Ministério da Cultura, observados os seguintes procedimentos: I - nos projetos cujo montante dos valores captados seja de pequeno porte, a definição da categoria de prestação de informações aplicável ao caso concreto observará o disposto nos art. 29 a art. 34; II - nos projetos cujo montante dos valores captados seja de médio porte, o relatório de execução do objeto e o relatório de execução financeira serão exigidos em todos os casos, vedada a adoção da categoria de prestação de informações in loco; e III - nos projetos cujo montante dos valores captados seja de grande porte, o relatório de execução do objeto e o relatório de execução financeira serão exigidos em todos os casos e haverá plano de monitoramento específico para a ação cultural. Art. 29. O agente cultural que celebrou o termo de execução cultural prestará contas à administração pública por meio das seguintes categorias: I - prestação de informações in loco; II - prestação de informações em relatório de execução do objeto; ou III - prestação de informações em relatório de execução financeira. Art. 30. A prestação de informações in loco poderá ser realizada quando o apoio recebido tiver valor inferior a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), nos casos em que a administração pública considerar que uma visita de verificação será suficiente para aferir o cumprimento integral do objeto.
2023-05-24T06:34-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-24/andre-brayner-marco-normativo-lei-paulo-gustavo
academia
Estúdio ConJur
Medina Guimarães lança obra para fomento de áreas de atuação
O escritório Medina Guimarães Advogados lança, neste mês de maio, sua primeira obra coletiva — Prática jurídica cível: estudos avançados sobre grandes temas do Direito contemporâneo. Fruto do trabalho de treze advogados da banca, o livro representa o viés acadêmico que compõe a essência do Medina Guimarães, conjugando teoria e prática. De acordo com as organizadoras do livro, Nida Saleh Hatoum, sócia-diretora da área de Recuperação Estratégia de Crédito Bancário, e Mariana Barsaglia Pimentel, sócia-diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório, a escolha dos temas guardou relação, especialmente, com as afinidades teóricas e práticas de cada um dos autores. Eles escreveram sobre questões do dia a dia da advocacia, em paralelo com pesquisas desenvolvidas no âmbito acadêmico. Para Nida Hatoum, o lançamento da primeira obra coletiva é motivo de muito orgulho e felicidade para todos do escritório. “Trata-se de um projeto antigo que pôde se concretizar e que reflete, de modo muito especial, a maneira como o escritório busca conjugar a atividade profissional com a atividade acadêmica, desde a sua fundação.” “A promoção da obra coletiva revelou-se como medida de especial importância no contexto do escritório que, permanentemente, incentiva a atividade acadêmica dos colaboradores. A consolidação da obra coletiva, composta por diversos advogados, não só incentivou a escrita dos textos pela equipe, como também proporcionou um espaço legítimo e importante de exposição de estudos”, diz Mariana Pimentel. A obra tem textos sobre temas que, para além da necessária atividade acadêmica, promovem soluções efetivas para os casos propostos pelos advogados que discorrem sobre assuntos nas áreas de Direito do Agronegócio, Direito Empresarial, Inteligência Forense, Direito Civil e Processual civil, Direito Tributário e Direito de Família.
2023-05-25T17:57-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-25/medina-guimaraes-lanca-obra-fomento-areas-atuacao
academia
Justiça e segurança
O poder do Ministério da Justiça: da repressão às drogas às redes
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2023, lançado no dia 10 de maio, no Supremo Tribunal Federal. A publicação está disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para acessar o site) e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar). Flávio Dino foi escolhido para estar à frente da pasta mais antiga do Executivo Federal. Aos 54 anos, o ministro acumula experiência nas três esferas de poder: foi juiz federal por 12 anos, depois deputado federal pelo Maranhão, estado que também governou por dois mandatos e, ainda, presidiu a Embratur. Eleito senador por seu estado em 2022, está licenciado do cargo. Em seu discurso de posse no ministério, Flávio Dino apontou os eixos de sua atuação: o combate às desigualdades, a proteção à Constituição e a defesa da democracia, o controle de armas, o combate aos crimes ambientais, a garantia aos direitos digitais e ao consumo e a cooperação federativa. Na ocasião, fez um chamamento especial aos policiais: “Não pode existir antinomia entre a nossa visão política de estruturação da paz e a ação policial. Ao contrário, queremos que todos os policiais no nosso país considerem este ministério seu. Não importa o voto de ontem ou o voto de amanhã; o que importa é o cumprimento do dever funcional de acordo com os ditames da lei e da hierarquia e da disciplina.” O recado não foi à toa; veio de uma crescente preocupação com as polícias. Durante seu mandato na Presidência da República, Jair Bolsonaro decidiu acoplar também a pasta da Segurança Pública ao Ministério da Justiça e se vangloriava do contato e da abertura que mantinha com as forças de segurança. Foi durante a gestão de Anderson Torres no Ministério da Justiça que a Polícia Rodoviária Federal desvirtuou completamente suas funções ao fazer operações atípicas, sobretudo em estados do Nordeste, justamente na data do segundo turno das eleições presidenciais, 30 de outubro de 2022. Em março, um episódio ainda mais lamentável havia ocorrido: um homem de 38 anos morreu após ser preso no porta-malas de uma viatura da PRF com um dispositivo de fumaça. O caso aconteceu no município de Umbaúba, em Sergipe. Torres, como de costume, limitou-se a fazer uma publicação em uma rede social informando ter determinado a abertura de investigação. O relatório de gestão mais recente do Ministério da Justiça, já publicado na gestão Flávio Dino, critica a baixa implementação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), previsto na Lei 13.675/2018, e fragilidades no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSP). “A gestão pretérita foi totalmente omissa na criação de políticas públicas para atendimento às vítimas da violência”, diz o documento, que cita uma auditoria de monitoramento do Tribunal de Contas da União em que consta a falta de priorização de ações de prevenção à criminalidade na elaboração do PNSP. Tão logo assumiu o cargo, Flávio Dino enfrentou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Coube a ele coordenar a atuação do governo federal e das forças policiais na repressão ao ataque antidemocrático e a posterior investigação do caso. Para ele, a Polícia Militar do Distrito Federal “não cumpriu aquilo que estava escrito no planejamento operacional da Secretaria de Segurança Pública”. Por suposta omissão e conivência com os atos terroristas, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres está preso preventivamente desde 14 de janeiro de 2023 – ele havia assumido o cargo de secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. A principal medida adotada pela nova gestão foi determinar o recadastramento de armas de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), que chegou a 80% – equivale a mais de 613 mil armas, a maior parte delas de uso permitido, segundo o ministério. Aquelas que não forem recadastradas ficarão sujeitas a apreensão administrativa e remessa à Polícia Federal. Além da clara restrição à circulação de armas, o processo regulatório se contrapõe ao governo anterior. O sistema penitenciário, reconhecido pelo Supremo como um “estado de coisas inconstitucional”, também estará entre as prioridades. Na primeira semana de governo houve uma mudança no Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que foi substituído pela Secretaria Nacional de Políticas Penais. A pasta terá as mesmas competências do Depen, mas contará com nova estrutura regimental. Terá cinco diretorias: Executiva, de Políticas Penitenciárias, do Sistema Penitenciário Federal, de Inteligência Penitenciária, e de Cidadania e Alternativas Penais, além da Corregedoria-Geral. Flávio Dino defendeu mais de uma vez a manutenção dos presídios federais e reforçou a importância de investimento em aparelhos policiais dos estados. “A questão é o que se passa nos presídios estaduais porque, hoje, as facções criminosas nasceram e se nutrem no sistema penitenciário. Estamos vendo uma escalada, não apenas na quantidade, mas na qualidade, na ousadia da atuação dessas associações criminosas”, afirmou durante participação em evento do Instituto de Advogados de São Paulo (Iasp). A primeira indicação para comandar a nova secretaria declinou do convite por “questões familiares de natureza pessoal”. Coronel da PM de São Paulo, Nivaldo Restivo enfrentava resistências, dentre outros pontos, por ter participado da operação na Casa de Detenção do Carandiru, em 1992, em que morreram 111 presos – nenhuma morte foi diretamente imputada a ele. Com a desistência, foi nomeado o advogado e policial Rafael Velasco, marcando a primeira vez que um policial penal comanda a pauta penitenciária no Executivo Federal. O leque de temas sob responsabilidade do Ministério da Justiça é diversificado, dando conta da repressão às drogas até a proteção de povos indígenas. Outra frente será reforçada com foco nas políticas de defesa do consumidor e de repressão a crimes digitais. Neste contexto, o 8 de janeiro acendeu um alerta acerca da instrumentalização das redes sociais para a organização de atos criminosos. O comandante da pasta faz parte da corrente favorável a ampliar a regulação e as políticas de moderação para impedir que as redes virem espaço isento de punições. “A liberdade de expressão não está em risco quando se regula. Ao contrário: defender a liberdade de expressão é regulá-la, porque diz respeito ao desenho e ao conteúdo do Direito, é fixar fronteiras entre uso e abuso. Liberdade de expressão sem responsabilidade não é liberdade de expressão, é crime. (...) O algoritmo é humano e por isso mesmo é preciso tratar-se de regulação, que é algo humanamente programado e reprogramável”, disse. ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2023 Assista ao evento de lançamento Edição: 2023 Número de Páginas: 261 Editora: Consultor Jurídico Versão impressa: R$ 40, na Livraria ConJur (clique aqui para comprar) Versão digital: acesse pelo site anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário da Justiça Anunciaram nesta edição Apoio FAAP – Fundação Armando Alvares Penteado Anunciantes Advocacia Fernanda Hernandez Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia Basilio Advogados Bottini & Tamasauskas Advogados Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil D'Urso & Borges Advogados Associados David Rechulski Advogados Dias de Souza Advogados Erik Pereira Advogados Feldens Advogados Fontes Tarso Ribeiro Advogados Fux Advogados Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados Gustavo Uchôa Advogados Heleno Torres Advogados Hesketh Advogados JBS S.A. Leite, Tosto e Barros Advogados  Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno – Advogados  Machado Meyer Advogados  Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia  Mendes, Nagib & Luciano Fuck Advogados Milaré Advogados  Moraes Pitombo Advogados  Nelio Machado Advogados  Nepomuceno Soares Advogados  Nery Sociedade de Advogados  Pardo Advogados & Associados  Prevent Senior  Sergio Bermudes Advogados  SOB – Sacramone, Orleans e Bragança Advogados  Tavares & Krasovic Advogados  Thomaz Bastos, Waisberg, Kurzweil Advogados Tojal Renault Advogados  Walter Moura Advogados Associados  Warde Advogados
2023-05-25T08:23-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-25/poder-ministerio-justica-repressao-drogas-redes-sociais
academia
Senso Incomum
As lavas do Vesúvio, o caso Vini Jr. e fuga para as montanhas
Todos já sabemos dos episódios ocorridos no estádio do Valencia Futebol Clube no domingo último. A malta entonou coro de "mono", "mono" contra Vinicius Jr. Na confusão, a vítima foi expulsa. Incrível. O inusitado foi a entrevista do técnico Ancelotti. A repórter perguntou sobre o jogo. Ele perguntou se ela queria falar mesmo disso. Ela disse que sim. Ele redarguiu: prefiro falar de outra coisa. Quero falar do que ocorreu aqui. A repórter insistiu em falar de futebol. E ele: "— falar de futebol? Vamos falar de racismo. Vamos falar de La Liga. Vamos falar do que ocorreu". Veja-se: um crime contra a dignidade humana acabara de ser cometido por milhares de réus nas arquibancadas. E a repórter queria saber... do jogo. Da bola. Ancelotti respondeu "por princípio". Arché. Falar de quê? De bola? Que bola? Para a repórter, as lavas do Vesúvio desciam cobrindo a tudo e a todos..., mas ela preferia arrumar o quadro de Van Gogh na parede. Assim caminha a humanidade. Chove nas cabeceiras do rio no alto da serra; as águas descem; chove há muitos dias. E nós nos surpreendemos com... a enchente. O combate ao racismo é algo que deve ser feito por princípio. Não tem "mas". A Espanha necessita "se olhar". Nós também. La Liga de Futebol precisa de um divã. Quantas vezes esses episódios já ocorreram? Carlo Ancelotti matou a pau. Ganhou muitos pontos. Até para ser nosso técnico de futebol. Post scriptum: E o senador Magno Malta quer defesa dos macacos e reclama da imprensa por criticar racismo E o dublê de pastor e político, Magno Malta, do Espírito Santo (vejam a importância da vírgula), cleptou a cena no plenário do Parlamento. Enquanto o mundo criticava o episódio do racismo ocorrido contra Vinicius Jr, ele criticava a imprensa. Afinal, a imprensa critica porque vende anúncios ou algo assim, disse. Depois do vídeo de Dallagnol fazendo uma fake news contra o projeto das fake news, o senador Malta fez o pronunciamento da década. Ao que deu para entender, para ele os macacos restaram prejudicados no episódio. Ele pergunta: "Cadê os defensores da causa animal que não defendem o macaco?" Pois é, senador. Onde foi que erramos? E por que insistimos em não estocar comida? Oh, céus! E por que não fugimos para as montanhas? Por que não seguimos o conselho do filósofo contemporâneo I. Maiden, em seu best seller "Run to the Hills", cujo subtítulo é "Why will God send the second flood to catch the foolish?" Quem ler direitinho a coluna ganhará um exemplar! Autografado pelo filósofo. Outro livro recomendado: "How sarcasmos can save you" (Como o sarcasmo pode te salvar). Ou um em português: "Fora do sarcasmo não há saída". Há ainda um clássico: "Por que devemos pentear macacos", 35ª. tiragem. Talvez mais um, escrito em resposta: "Por que macacos não gostam de ficar com os cabelos desalinhados". Em quadrinhos e capa dura.
2023-05-25T08:00-0300
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Interesse Público
Gestão democrática do ensino público e participação popular
A luta para que a educação pública desenhada na Constituição saia do mundo dos sonhos para se tornar realidade é sempre feita de muitas batalhas. No momento em que escrevemos este texto, uma nova ameaça está em curso: trata-se da proposta de inclusão dos valores devidos pela União a título de complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) entre as despesas limitadas pelo novo regime fiscal (discutido no Projeto de Lei Complementar n° 93/2023). A questão assume contornos ainda mais graves diante da necessidade de recuperar as diversas perdas impostas pela pandemia Covid-19 ao aprendizado e à saúde física e mental de crianças e adolescentes, demandando — por óbvio — incremento de recursos [1]. O incremento do debate sobre a educação pública, de certa forma, reflete o início de maior amadurecimento da sociedade civil a respeito do reconhecimento da importância da educação para a plena liberdade do cidadão e para o desenvolvimento do país, cabendo ao Estado diversas atuações para tanto. Essa busca de maior maturidade acompanha o crescimento do sentimento cidadão, com o foco centrado no reconhecimento de que todo poder emana do povo e em seu proveito deve ser exercido — o Estado deve servir o cidadão, e não se servir dele. O primado do cidadão e da sociedade que os congrega é refletido por meio de um robustecimento do conteúdo dos princípios republicano e democrático para reconhecer que neles residem não somente as possibilidades de votar e concorrer a cargos eletivos como também de exercer, em toda plenitude, o controle social da administração pública. Falar em controle social é reconhecer o poder de fiscalização que a Constituição atribui aos cidadãos para exigir o cumprimento de determinadas regras por parte das instituições, poderes e agentes estatais. Trata-se de controlar, ou seja, de verificar se as diversas atividades estão sendo realizadas em conformidade com as leis e com o interesse público. A participação, por sua vez, deve ser vista como uma noção inseparável da democracia, sem se confundir com nem substituir o exercício do poder por meio de representantes eleitos. Falar em participação ou em democracia participativa implica reconhecer as diversas possibilidades que o cidadão possui de participar, diretamente, das decisões envolvendo os interesses públicos. Diogo de Figueiredo Moreira Neto [2] reconhece em três obstáculos especiais que comprometem os ideais de participação popular: a apatia política, a acracia política e a abulia política. Apatia política é reconhecida na falta de estímulo estatal para a participação cidadã, sobretudo no que se refere à ausência de transparência, informação e canais de comunicação eficientes. A acracia política, por seu turno, se refere à falta de qualificação da população para efetivamente possibilitar sua participação, não sendo suficiente meras participações formais. Finalmente, a abulia política se liga à recusa cidadão em participar por descrença no Estado – há um sentimento de que as manifestações, quando existentes, não serão verdadeiramente consideradas nas decisões do Estado. Controle social e participação transformam em realidade o princípio da gestão democrática do ensino público, permitindo a ampla atuação social na efetivação da educação, direito de todos e dever do Estado e da família (Constituição Federal, artigos 205 e 206). Na educação, os conselhos sociais podem ser reconhecidos como instrumentos e cooperação e atuação da sociedade nos processos decisórios e no controle das políticas públicas. A referência a conselhos sociais envolve, como regra, Conselho de Acompanhamento e Controle Social do Fundeb (CACS-Fundeb), Conselho de Alimentação Escolar (CAE) e Conselho Municipal de Educação (CME). Não é exatamente fácil convencer um cidadão ou cidadã a participar de um conselho social, mesmo com a ciência da importância de sua atuação para a qualidade da educação pública. Há necessidade de tempo, de conhecimento e de disposição para enfrentar resistências do próprio Estado que deve dar sustentação aos conselhos. Do belo mundo das boas intenções para a dura vida real há um caminho permeado de obstáculos e de desconhecimento que, de certa forma, torna mais árdua a busca pela qualidade da educação. Esse cenário nos estimulou a elaborar um guia didático escrito de forma simples, porém completa, para auxiliar a instalação e funcionamento dos conselhos sociais. Trata-se da publicação "Conselhos sociais e gestão democrática da educação: guia prático para o aperfeiçoamento das ações de acompanhamento e fiscalização", editada pela Atricon e lançada durante o V Simpósio Nacional de Educação, realizado em Goiânia (GO). A publicação eletrônica, acessível de forma gratuita [3], reconhece a primazia cidadã na educação pública e a essencialidade da atuação dos conselhos. Criação, elaboração de regimento interno, planejamento, organização e registro das atividades são alguns dos tópicos abordados. Atenção especial é dedicada à compreensão do financiamento das ações de manutenção e desenvolvimento do ensino e controle da aplicação do mínimo de recursos exigido na Constituição. A identificação de boas práticas de acompanhamento e fiscalização, ao lado da orientação para elaboração de denúncias e prestação de contas, conferem ao guia a praticidade que se espera para um assunto que não pode mais esperar. Com essa iniciativa, o sistema de controle externo brasileiro, liderado pela Atricon, reconhece seus deveres e compromissos de colaborar com a qualidade das políticas públicas educacionais. A pretensão é ajudar a enfrentar os obstáculos identificados por Diogo de Figueiredo Moreira Neto para a plena participação: ofertar o conhecimento necessário para estimular o cidadão a participar, por um lado, e por outro cobrar do Estado que garanta a efetividade dessa participação. [1] A Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), o Instituto Rui Barbosa (IRB) e o Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação (Gaepe-Brasil) divulgaram um manifesto em defesa da retirada dos repasses da União Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb): https://atricon.org.br/entidades-que-representam-tribunais-de-contas-se-manifestam-pela-retirada-do-fundeb-do-novo-marco-fiscal/ [2] MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Direito da Participação Política. Rio de Janeiro: Renovar,1992. [3] https://atricon.org.br/publicacoes/#conselhos-sociais-e-gestao-democratica-na-educacao-guia-pratico-para-o-aperfeicoamento-das-acoes-de-acompanhamento-e-fiscalizacao/1/
2023-05-25T08:00-0300
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Opinião
Rafael Andrade: Full disclosure, 90 anos regulando capitais
A história das sociedades anônimas (ou companhias) é bastante turbulenta. Desde o surgimento das primeiras sociedades com características semelhantes ao que hoje conhecemos como sociedades anônimas — qual seja, a Companhia das Índias Orientais, fundada no século 17 pelo governo holandês e que, surpreendentemente para os dias de hoje, gozava de privilégios estatais como a emissão de própria moeda e declaração de guerra —, esse tipo societário está envolto em disputas, fraudes e bolhas, suscitando paixões das mais acaloradas [1]. Exemplo famoso de suspeição com essas sociedades veio de Adam Smith, para quem a biografia das companhias não teria muitos capítulos: para algum sucesso, em sua opinião, elas dependeriam da concessão de privilégio de exclusividade e, ainda assim, serviriam apenas para exercer atividades produtivas cujas operações poderiam "ser reduzidas ao que se chama rotina, ou a tal uniformidade de método que comporte pouca ou nenhuma variação" [2]. Felizmente para os que estudam e advogam com as sociedades anônimas, o economista que revolucionou a teoria econômica, ao menos neste ponto, tropeçou. Mas a apreensão de Smith, assim como de outros que se insurgiram contra as sociedades por ações ao longo dos anos, não é de todo descabida. Afinal, as suas duas características mais marcantes — a limitação de responsabilidade de seus sócios e a divisão de seu capital social em papéis voltados à livre negociação — romperam com importantes paradigmas das formas associativas da época, em que o patrimônio dos sócios, muitas vezes pertencentes a um mesmo núcleo familiar, respondia ilimitadamente pelas obrigações perante os credores. A possibilidade de livre negociação de ações, aliás, deu azo à toda sorte de especulação. É bastante conhecido, por exemplo, a bubble mania vivenciada nas primeiras décadas do século 18, na Inglaterra, na esteira do então (aparente) sucesso envolvendo a South Sea Company, cujas ações com valor nominal de 100 libras eram vendidas, em janeiro de 1720, por 129 libras; em maio, por 550 libras; em agosto, por 1.050 libras, mas que, em outubro, após o estouro da bolha, caíram para o valor de 140 libras. Uma história de bolha especulativa marcada por euforia, pânico, assimetria informacional e corrupção. E tudo ao mesmo tempo em que, na França, o banco fundado por John Law — talvez o "homem mais rico da história" e inventor do sistema monetário moderno — acentuava o seu declínio [3]. As fraudes e bolhas em que as companhias foram inseridas ensejaram a criação de diversas leis restringindo, ou até proibindo, sua constituição. Na Inglaterra, por exemplo, a Bubble Act, editada em 1720 com o (alegado [4]) intuito de conter o avanço de companhias especulativas, proibiu a sua constituição naquele país — sua revogação somente ocorreu em 1825. Em muito, o resgate das companhias do limbo a que haviam sido relegadas, mesmo após seu início no mínimo turbulento, se deu por um imperativo fático. Em decorrência dos efeitos da revolução industrial, os comerciantes, agora no papel de industriais, não mais conseguiam atender às suas constantes necessidades de arrecadação de recursos para investimento no desenvolvimento de suas atividades por meio do uso das ferramentas jurídicas então disponíveis para tanto, como a reunião de recursos com outros industriais (na forma de sociedades de pessoas) ou a obtenção de empréstimos para financiamento. Foi assim que, ante a crescente necessidade de capital, as companhias reavivadas pelos particulares. O retorno não foi sem percalços ou desconfianças: muitas jurisdições passaram a exigir que a criação de companhias fosse precedida de uma autorização prévia estatal, o que foi sendo paulatinamente abandonado. É o caso do Brasil [5], cujo Código Comercial de 1850, inspirado no modelo francês, previa que "as companhias ou sociedades anônimas (...) só podem estabelecer-se por tempo determinado, e com autorização do Governo, dependente da aprovação do Corpo Legislativo quando hajam de gozar de algum privilégio, e devem provar-se por escritura pública, ou pelos seus estatutos, e pelo ato do Poder que as houver autorizado" (artigo 295), exigência que foi abolida três décadas depois, em 1882, pela Lei nº 3.150. Full disclosure como pilar da regulação do mercado de capitais No início do século 20, seguindo a linha protecionista adotada por muitas jurisdições após as inúmeras fraudes envolvendo as sociedades anônimas, praticamente todos os estados norte-americanos possuíam, em alguma medida, leis que ficaram conhecidas como blue sky laws, visando à proteção dos investidores do mercado de capitais e que, em alguns casos, exigiam prévia autorização administrativa para a emissão de ações. Ocorre que, como se sabe, a presença dessas leis não foi suficiente para evitar a especulação que culminou no crash de 1929 da Bolsa de Nova York [6]. No cenário de depressão e desemprego que seguiu àquele evento, assumiu como presidente Franklin Roosevelt, que tomou posse sob a promessa de introdução de medidas voltadas à recuperação da economia norte-americana (o chamado New Deal), dentre elas, uma regulação mais firme do mercado de capitais em âmbito federal. Nesse contexto, travou-se uma disputa entre dois grupos acerca do melhor caminho a ser seguido. De um lado, havia os defensores da edição de uma lei federal nos moldes das blue sky laws, com a introdução de regras exigindo o prévio controle estatal do mérito dos negócios que se pretendia financiar por meio do mercado de capitais; de outro, na linha da doutrina do Justice Brandeis de que "a luz do sol é o melhor desinfetante", estavam aqueles que defendiam a proteção dos investidores por meio da publicidade das informações sobre os emissores. A escolha foi um meio-termo entre as posições: ao mesmo tempo em que se decidiu pela criação de um órgão federal para a supervisão do mercado de capitais a Securities and Exchange Commission ou SEC — e a exigência de registro perante o órgão regulador, entendeu-se que não lhe caberia avaliar o mérito dos empreendimentos, mas tão-somente zelar para que os emissores disponibilizassem aos investidores todas as informações necessárias à correta avaliação e precificação do investimento. De posse dessas informações, então, caberia ao investidor tomar sua decisão quanto ao negócio. Na mensagem enviada ao Congresso submetendo sua proposta de lei — que se transformou no Securities Act de 1933 —, escreveu o presidente Roosevelt: "Apesar da existência de muitas leis estaduais, o público no passado tem sofrido graves perdas pelas práticas que não são nem éticas nem honestas por parte de muitas pessoas e companhias que vendem valores mobiliários. Certamente, o Governo Federal não pode e não deve tomar qualquer ação que possa ser entendida como aprovando ou garantindo que os valores mobiliários emitidos são bons, no sentido de que o seu valor será mantido ou de que as propriedades que representam produzirão lucros. Temos, entretanto, a obrigação de insistir que cada emissão de novos valores mobiliários a serem vendidos no comércio interestadual seja acompanhada de plena publicidade e informação, e que nenhum elemento essencialmente importante e ligado à emissão fique encoberto para o público comprador. Esta proposta adiciona à regra antiga do caveat emptor a doutrina ulterior de "que o vendedor também se comporte". Ela põe sobre o vendedor o ônus de dizer toda a verdade. Ela deve impulsionar as negociações honestas em valores mobiliários e, portanto, fazer retornar a confiança pública. A finalidade da legislação por mim sugerida é proteger o público com o mínimo possível de interferência nos negócios honestos. (...) O que procuramos é a volta a entendimento mais claro da antiga verdade de que aqueles que administram bancos, companhias e outras entidades que manipulam ou usam dinheiro de outras pessoas são agentes fiduciários agindo por conta de terceiros." [7] Está aí, portanto, a origem do que hoje conhecemos como o sistema do full disclosure, pedra angular da atual regulação do mercado de valores mobiliários, adotado nas mais diversas jurisdições ao redor do globo, inclusive, no Brasil. E, mesmo após tantos anos, o que se percebe é que, apesar de todos os percalços vivenciados esse segmento mundo afora e dos inúmeros desvio identificamos nas últimas décadas, o princípio de que a ampla transparência representa a base fundamental da regulação do mercado de capitais continua cada vez mais consolidado. [1] Para uma narrativa a respeito da evolução das sociedades anônimas, ver LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 3-22. [2] SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas. Vol II. Trad.: Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 225. [3] Para uma descrição sobre a fascinante história de John Law, bem como dos percalços da South Sea Company, vide STATHERN, Paul. Uma Breve História da Economia. Trad.: BORGES, Maria Luiza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 39-66. [4] Adicionando uma reviravolta à história das companhias, Ron Harris conclui, em estudo de 1994, que o verdadeiro propósito da Bubble Act foi impedir a constituição de outras companhias para evitar o direcionamento de investimentos para outras sociedades que não a South Sea Company. Segundo o autor: "Thus the wording of the act and the contemporary context of interests and discourses favor the third explanation: that the BA [Bubble Act] was a special-interest legislation for the SSC [South Sea Company], which controlled its framing and its passage" (HARRIS, Ron. The Bubble Act: Its Passage and Its Effects on Business Organization. The Journal of Economic History, vol. 54, nº 3, 1994, pp. 623, disponível em www.jstor.org/stable/2123870). [5] A exigência de prévia autorização estatal para a constituição das sociedades anônimas já constava de decreto promulgado em 1849, o qual Mariana Pargendler considera ser a primeira lei societária do Brasil. Para uma exposição sobre a evolução histórica do direito societário brasileiro, vide PARGENDLER, Mariana. Evolução do Direito Societário: Lições do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 41-119. [6] Para uma ótima narrativa sobre os eventos que culminaram na quebra da bolsa, vide o sempre lembrado "The Great Crash, 1929", de John Kennedy Galbraith (Mariner Book). [7] LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 138-139.
2023-05-26T11:17-0300
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Observatório Constitucional
Dez anos da CGM-SP: avanços e desafios do compliance público
Na administração pública há três espécies de controle: (1) externo, vinculado ao Poder Legislativo auxiliado pelo Tribunal de Contas, (2) o interno, exercido pelos sistemas de controle interno, e, por fim, (3) o controle social, executado pela sociedade, previstos na Constituição de 1988, na seção IX do capítulo I do Título IV. Os artigos 70 a 74 esclarecem os princípios do controle interno e externo, assim como, suas finalidades: "Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. (...) Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União (...) (...) Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional" Nesta toada, a Constituição reafirmou os primeiros passos de controle que versavam sobre tomada de conta por bens e valores, derivadas de leis financeiras, como Lei nº 4.320/1964, e, de igual modo reforçou projetos e avanços, como a lei complementar nº 101/2000, voltada para a responsabilidade na gestão fiscal na sua concretização de institutos como Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei Orçamentária Anual. No entanto, o restrito tema de prestação de contas vinculadas apenas às discussões dos gastos e receitas, com ausência de outros eixos de controle, resultou na necessidade de criações normativas, especialmente, em razão do crescimento de programas de compliance no Brasil e mundo, e surgimento também de regras internacionais, como (1) Convenção de Viena; (2) Declaração de Princípios do Comitê da Basileia; (3) UK Bribery Act; (4) Foreign Corrupt Practices Act; (5) Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Perante o desafio da governança pública, tivemos os avanços internos a partir das seguintes leis: Lei de Improbidade (nº 8.429/1992); Lei de Concorrência Desleal (nº 9.279/1996); Lei de Lavagem de Dinheiro (nº 9.613/1998); Lei de Defesa da Concorrência (nº 12.529/2011); Lei Brasileira Anticorrupção nº (12.846/2013); Decreto nº 8.420/2015; Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011), Lei de Conflitos de Interesses (nº 12.813/2013); Lei das Estatais (nº 13.303/2016), Decreto nº 9.203/2017. Nesse sentido, Marcelo Pereira dos Santos aponta que esse grau de gerenciamento alocados nos normativos tornou viável o controle dos atos e aprimorou o accountability [1]. Entretanto, como dizia Drummond "Os lírios não nascem das leis" [2]. A literatura mais moderna já indica que os programas baseados também em valores (values-based) são mais eficientes e efetivos do que programas exclusivamente baseados conforme obediência a regras e Direito (compliance-based). Ou seja, o compliance deve ir além da técnica, são necessárias crenças e objetivos compartilhados para que de fato ele ocorra, pois, aliás, a grande verdade é que apenas um grupo minoritário é potencialmente corrupta ou age deste modo, o que generaliza treinamentos, imposições e sanções a todos [3]. Na esteira da construção da cultura Marco Assis elenca três linhas do controle interno: (1) prevenir com a) engajamento da alta gestão, b) organização e estruturação do compliance, c) políticas e procedimentos, d) comunicação do programa; e) centralização das informações, f) treinamento, g) integração com processos e pessoas; (2) detectar com a) jurídico e processo, b) auditorias rotineiras, c) análise de compliance, d) controles de compliance; (3) responder com a) conduta e consequências, b) rastreabilidade e reporte, c) efetividade do monitoramento. Além disso, ele elenca os pilares de: 1) suporte da alta administração; 2) avaliação de riscos; 3) código de conduta; 4) controle internos; 5) treinamento e comunicação; 6) gestão de terceiros (due diligence); 7) canal de denúncia; 8) investigações internas; 9) auditoria e revisão de melhorias [4]. Nesta perspectiva, a administração pública combate aquilo que é a corrupção na acepção latu sensu e dilemas éticos, como: (1) suborno de funcionário público (Artigo 317, 333 do Código Penal); (2) suborno de funcionário público estrangeiro e de organizações públicas internacionais (Artigo 337-B); (3) desfalque, apropriação indébita ou outro desvio de propriedade por um funcionário público (Artigo 312); (4) troca de influência (Artigo 332); (5) abuso de funções (Artigo 319, Artigo 319-A); (6) enriquecimento ilícito; (7) suborno do setor privado; (8) desvios de propriedade no setor privado (Artigo 168); (9) lavagem de dinheiro (artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro); (10) ocultação (Artigo 180); (11) obstrução de justiça (Artigo 329-A); (12) conviver com atos antiéticos; (13) adoção de atalhos antiéticos para atingir metas; (14) denunciar um ato antiético cometido por um colega; (15) receber presentes de modo ilegal; (16) receber informações confidenciais e as utilizar. Por outro lado, Rodolfo Macedo do Prado indica outras categorias: (1) solicitação de suborno (bribery); (2) exigência de suborno (extorsion); (3) troca de favores (exchange of favors); (4) nepotismo (nepotism), (5) favorecimento discriminatório (cronyism); (6) fraude judicial (judicial fraud); (7) fraude contábil (accounting fraud); (8) fraude eleitoral (electoral fraud); (9) fraude em serviço público (public service fraud); (10) apropriação indébita (embezzlment); (11) cleptocracia (kleptocracy); (12) tráfico de influência (influence peddling); (13) conflitos de interesse (conflicts of interest) [5] Neste amadurecimento de ideias e organizações examinamos consolidações de estruturas de controladorias com suas diferenças e semelhanças, que devem ser analisadas e estudadas ao longo do tempo para que a formulação da política pública seja a mais assertiva possível. A Controladoria do Estado do Espírito Santo, por exemplo, é chamada de Secretaria de Controle e Transparência, semelhante à da cidade do Rio de Janeiro, a qual se chama Secretaria de Transformação Digital e Integridade Pública. Essa, porém, não tem todas as atribuições de uma controladoria, existente também na cidade do Rio com as competências de contabilidade, auditoria e controle, corregedoria, excluindo, portanto, a parte preventiva da secretaria [6]. Outra ressalva é que em alguns lugares, como a Bahia, a Controladoria é restrita à Auditoria-Geral, vinculada à Secretaria da Fazenda [7]. Destaque também que nem toda controladoria é "guarda-chuva" de todas as funções e cargos. Por exemplo, a Controladoria de Minas Gerais não possui vínculo direto com a Ouvidoria Geral, diferentemente da Controladoria do Município de São Paulo. Aliás, essa última também carrega um núcleo de proteção de dados, algo novo e que também é debatido em estrutura das controladorias [8]. Para essas e outras questões é que o Conselho Nacional de Controle Interno (ConaciI), com apoio da CGU, mobiliza a construção de gestão pública eficiente e assertiva através de eventos, parcerias, assembleias com vista de harmonizar melhores práticas, estudos e estrutura. Vale dizer que cada controladoria possui seu próprio nivelamento e desafio, porém, ressaltamos dois corriqueiros: (1) estabelecimento de gestão de riscos e (2) a consolidação de níveis de Modelo IA-CM, que, em apertada síntese, é o conjunto de práticas que reconhece fundamentos necessários para auditoria interna efetiva. Na gestão de riscos se sublinha os estudos da Controladoria do Estado de Goiás, a qual indicou as seguintes adversidades: (1) internalização da cultura de gestão de riscos em todos os níveis hierárquicos da organização; (2) cronograma de curto prazo para implantação de gestão de riscos; (3) percepção de que o processo de gestão de riscos fosse atividade da Controladoria; (4) falta comprometimento e apoio da alta gestão; (5) execução do processo de gerenciamento dos riscos; (6) disseminação as boas práticas alcançadas com a gestão de riscos [9]. Em suma, as controladorias hoje se estruturam nos eixos de: (1) auditoria interna; (2) integridade e prevenção; (3) corregedoria; (4) ouvidoria geral; (5) transparência. Eles são as que organizam coordenações e diretorias. Cumpre apontar que recentemente a CGU modificou sua organização, incluindo a secretaria de integridade privada [10]. Trato inovador que aguardaremos novos resultados e políticas públicas. A Controladoria Geral do Município de São Paulo preenche esses eixos com inúmeros destaques nos anos. O Programa de Metas 2021-2024 contempla o Índice de Integridade, em sua Meta 75 – SP Eficiente, cujo objetivo da referida meta era alcançar 7,37 pontos do índice de integridade da Administração Direta até 2024 [11]. Ocorre que esta foi superada em junho de 2022, tendo agora em dezembro de 2022 o valor de 7,94 [12]. Atenta-se à complexidade e ao trabalho árduo, visto que o Índice é composto por nove indicadores: (1) Programa de Integridade e Boas Práticas; (2) Transparência Ativa; (3) Transparência Passiva, no que tange ao acesso à LAI; (4) Atendimento a reclamações protocoladas na Ouvidoria; (5) Atendimento às recomendações de auditorias realizadas; (6) Existência de responsável pelo controle interno; (7) Proporção de contratos emergenciais por contratos totais; (8) Proporção de cargos comissionados pura por cargos totais; (9) proporção de pregões eletrônicos por pregões totais. Entre outros feitos: (1) realizamos o primeiro Acordo de Leniência na história da Cidade de São Paulo; (2) ganhamos o prêmio Não Aceito Corrupção, do instituto de mesmo nome, na categoria de Governança; (3) o PIBP (Programa de Integridade e Boas Práticas) da maior cidade do Brasil, no ano de 2022, conquistou a adesão de 100% dos órgãos da administração direta, que corresponde a 56 órgãos entre secretarias e subprefeituras; (4) o Centro de Formação em Controle Interno no ano de 2022 recebeu cerca de 11.500 inscrições de servidores públicos municipais e membros da sociedade civil, foram oferecidos 15 cursos de formação de diversas temáticas; (5) no primeiro semestre de 2022 foi lançada a nova plataforma de transparência para dados de obras públicas municipais, o Portal Obras Abertas; (7) com o TCM-SP, fechamos Acordo de Cooperação e trabalhos realizados em conjunto, em especial, a utilização dos alertas do Sistema Ariel; (8) na auditoria interna de 30% em 2020 para 87% em 2022 do nível 2 do IA-CM; (9) a política de descentralização da Ouvidoria Geral por meio de ponto de atendimento em nove Descomplicas em várias regiões da cidade; (10) atribuição de monitoramento da política de transparência passiva apoiada em quatro dimensões : gestão do sistema de registro de pedidos de informações e-sic; tratamento dos dados para a estruturação do ITP – Índice de Transparência Passiva e (11) aplicação efetiva da Lei nº 12.486/2013 (Lei Anticorrupção), com instauração de processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas contra mais de 130 (centro e trinta) empresas, com expressiva expertise sobre o tema no cenário nacional. Isto posto, o controle não busca somente medidas ao combate da corrupção, mas, também, aquilo que Bresser Pereira aponta como administração gerencial, cujo objetivo é (1) o controle por resultados; (2) administração voltada para o atendimento do cidadão; (3) descentralização de recursos e atribuições para níveis políticos regionais e locais [13]. Destaca-se, por fim, o aspecto democrático e constitucional do controle interno para clara efetivação de direitos e accountability, tendo-se como foco a prevenção como instrumento eficaz para combate à corrupção e ferramenta para uma gestão íntegra. [1] SANTOS, Marcelo Pereira dos. Governança e compliance na administração pública direta. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 20 [2] Poema Nosso Tempo [3] CARVALHO, Victor Aguiar de. Corrupção empresarial e administração pública. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p.247-51. [4] ASSIS, Marcos. Compliance como implementar. São Paulo: Trevisan Editora, 2018, p.28.42 [5] PRADO, Rodolfo Macedo do. Combate à corrupção e whistleblowing: uma análise de sua eficiência. Leme-SP: Mizuno, 2022. [6] Disponível: https://controladoria.prefeitura.rio/wp-content/uploads/sites/29/2022/01/Estrutura-da-CGM-03-08-2021.pdf. Acesso em: 14.05.2023. [7] Disponível: https://www.sefaz.ba.gov.br/administracao/controle_interno/manual_auditoria_governamental_AGE.pdf. Acesso em: 14.05.2023. [8] Disponível: https://cge.mg.gov.br/a-cge/organograma e https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/controladoria_geral/a_cgm/index.php?p=142874. Acesso em: 14.05.2023. [9] ZILLER, Henrique Morais; BORGES, Maria Nunes Silva; CRISPIM, Luís Henrique; CASTRO, Adriano Abreu de. A gestão de riscos na prática: conceitos, desafios e resultados no Estado de Goiás. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 77. [10] Disponível: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/01/cgu-ganha-nova-estrutura-para-aprimorar-o-combate-a-corrupcao-e-a-execucao-das-politicas-publicas#:~:text=A%20nova%20estrutura%20inclui%20tamb%C3%A9m,monitoramento%20e%20capacita%C3%A7%C3%A3o%20dos%20%C3%B3rg%C3%A3os. Acesso em: 14.05.2023 [11] Disponível: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/governo/arquivos/programa_de_metas/programa-de-metas-2021-2024/pdm.relatorio.versao.final.participativa.pdf. Acesso em: 15.05.2023 [12] Disponível: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/controladoria_geral/InformativoIndiceIntegridade_Boletim01_23_publicacao_21_03_2023.pdf. Acesso em: 15.0.5.2023 [13] PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista Serviço Público, ano 47, volume 120, número 1, 1996.
2023-05-27T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-27/observatorio-constitucional-dez-anos-cgm-sp-avancos-desafios-compliance-publico
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Dissimetrias e Punitivismos
Georghio Tomelin defende doutorado com avaliação de Lewandowski
O professor Georghio Alessandro Tomelin defendeu, no último dia 9, o doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com a tese "Dissimetrias e Punitivismos: um outro discurso a partir de Foucault". Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal e titular de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Ricardo Lewandowski estava entre os integrantes da banca avaliadora. Trata-se do segundo doutorado de Tomelin. O primeiro foi em Teoria do Estado, pela USP. A banca também foi integrada pelos professores Salma Tannus Muchail (orientadora e titular de Filosofia da PUC-SP); Pedro de Souza (titular de Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina); Silvia Pimentel (titular de Filosofia do Direito da PUC-SP); e Márcio Alves da Fonseca (pró-reitor de pós-graduação da PUC-SP). O objetivo do trabalho foi mostrar que existe um movimento de desigualdade plantado dentro das práticas não discursivas da isonomia no Direito. Há padrões de inclusão dos acusados nas instituições disciplinares de sequestro a partir de um cardápio de soluções preestabelecidas antes mesmo dos respectivos casos concretos. "A noção de igualdade formal sozinha não explica a instauração ora da ordem, ora da desordem, em casos similares. São os ilegalismos, e não a tipicidade pretensamente cerrada, que coordenam a aplicação do sistema punitivo (administrativo, criminal, entre outros)", diz Tomelin.
2023-05-29T12:49-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-29/georghio-tomelin-defende-doutorado-avaliacao-lewandowski
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Opinião
Lenio Streck: VAR anula o gol de Rony, assim como mata o futebol
Uma coisa insustentável na área jurídica parece que deu certo no futebol: o anarco-textualismo. Foi o que aconteceu com a anulação do gol do atacante Rony, um feito estético, um gol de placa, por causa de  milímetros de (um pretenso) impedimento. Quanta tolice. Há uma coisa básica em qualquer interpretação, inclusive quando se trata na arbitragem futebolística: o telos. Ou seja: para que serve (qual é a finalidade) uma norma jurídica (mesmo que seja uma regra de futebol)? É de irritar o que acontece com a farra da ignorância do VAR. Para explicar o que é "anarco-textualismo" (há um verbete do meu dicionário Senso Incomum que explica isso), uso um clássico exemplo: se uma lei proíbe que se leve cães na plataforma do trem, pareceria ridículo, patético e nescial que, por serem proibidos cães, houvesse passe livre para ursos, jacarés e quejandos. E seria muito bizarro que se proibisse a um cego que levasse o seu cão-guia. Ou até mesmo que uma criancinha levasse seu cão Yorkshire. Ora, a lei que proíbe cães proíbe animais que causem perigo aos passantes. Simples. Assim como uma regra que proíbe of side no futebol tem o objetivo de impedir que o atacante leve vantagem sobre a zaga. Milímetros que somente são visíveis por alta tecnologia e com duvidosa linha computacional não podem ser enquadrados como infringência da regra do impedimento. Aliás, centímetros na frente são invisíveis ao olho humano. Se o são, não trazem vantagem ao atacante. Impossível aferir. O VAR deveria analisar concretamente se houve vantagem. Nem vou falar de alguns pênaltis patéticos que são marcados todos os domingos por causa do toque de mão.   Não fosse por outra coisa, futebol é ludicidade. Esporte ludopédio. Não deve dar azo a tecnocracias e árbitros tecnocratas que nunca chutaram uma melancia na vida. Urgente. Ou acabamos com essa pouca vergonha antiesportiva ou ela acaba com o ludopédio. Parece que o gol de Rony foi a gota d1água. Foi o limite. A última fronteira. Proponho uma ludo-hermenêutica. Já chegam os estragos feitos pelo textualismo (ou anarco-textualismo) no direito. Se não acreditarem em mim, leiam Shakespeare. A peça Medida por Medida. Ali o néscio do Ângelo condena Cláudio à morte fazendo o uso do VAR. Não vou dar spoiler sobre o que disse o bardo.
2023-05-29T10:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-29/lenio-streck-var-anulou-gol-rony-anarco-textualismo
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Olhar econômico
Concentração, desconcentração e decadência da área central de SP
Múltiplas foram as circunstâncias subjacentes à evolução vertiginosa da cidade de São Paulo e à decadência de sua área central 1. A industrialização no Brasil é fenômeno relativamente recente, iniciado somente no século 20 (governos Vargas e JK). A política de substituição de importações foi a principal responsável por seu surgimento, por volta de 1930; e por seu impulsionamento, desde 1970. Embora suas origens tenham-se dado no Nordeste (e. g. fabrico de alimentos e manufatura de tecidos (lembre-se do affaire Delmiro Gouveia e Machine Cotton); a industrialização desenvolveu-se, concentrada e principalmente, em São Paulo e colateralmente no Rio de Janeiro, motivada pela força político-econômica, bem como pelas estruturas remanescentes do ciclo cafeeiro, existentes na região. Fundamental para o predomínio da cidade de São Paulo, foi a rede de estradas de ferro, [Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (1867) e da Companhia Paulista: Jundiaí a Campinas (1872), Ituana (1873), Mogiana (1875) e Sorocabana (1879), que acorriam à capital e a ligavam ao Porto de Santos; bem como da Estrada de Ferro do Norte (1877), que a unia ao Rio de Janeiro]. A construção de estradas de rodagem também floresceu devido a incentivo legislativo, datado de 1852. Por outro lado, durante o ciclo cafeeiro, São Paulo acolheu bancos, seguradoras, exportadoras, empresários e numerosos habitantes, que dela fizeram, inclusive, um centro consumidor. Forte efeito multiplicativo teve a duplicação da capacidade energética, no segundo quartil do século 20, propiciado pelo capital estrangeiro. O crescimento da capital da Província de São Paulo foi explosivo. Apenas 20 anos intermedeiam a cidade provinciana do final do século 19, da urbe próspera da década de 1920. Indício importante desse crescimento foi seu aumento populacional: (i) 9.000 habitantes, ao tornar-se cidade, em 1711; (ii) 32 mil, em 1872; (iii) 239 mil, em 1900; (iv) 1,326 milhão, em 1940; (v) 3,8 milhões, ao tornar-se a maior cidade brasileira, em 1960; (vi) 8,387 milhões, em 1980; (vii) 10,405 milhões, quatrocentos e cinco mil, no ano 2000; e (viii) 11,9 milhões, em 2021. Em cem anos (1921 a 2021), a população paulistana cresceu 20 vezes; sendo que havia mais do que quintuplicado em sessenta anos (1950 a 2010). O Sétimo Recenseamento Geral do Brasil (1960) comprovou possuir São Paulo indústria robusta e diversificada; potente setor terciário (60% do pessoal empregado); comércio vultoso e especializado; proeminente atividade financeira; e respeitáveis centros de pesquisa e institutos universitários. Em suma, havia-se tornado a capital brasileira mais populosa (quase 4 milhões de habitantes), afluente (10% da riqueza brasileira) e protagônica do país. O crescimento populacional, fruto dos contingentes imigratórios e da vigorosa migração interna: (i) aumentou, extraordinariamente, a premência por habitação; e (ii) impeliu processo de urbanização descontrolado; com os corolários do aumento de preços de terrenos, da pujante verticalização (iniciada pelo Sampaio Moreira (1924) e o Martinelli (1929), do encortiçamento, da favelização, do excesso de lixo, da poluição de rios e da atmosfera, do congestionamento, do aumento da desigualdade social, dos problemas de segurança pública etc. A modernização (destruir para construir) foi, igualmente, elemento determinante, que, sob o pálio de moldar a cidade ao presente e prepará-la para o futuro, pôs abaixo dezenas de prédios históricos, construiu grandes avenidas, praças, viadutos, anéis viários etc. Após longo processo de concentração econômico-industrial, São Paulo, passou a sofrer, desde 1970 (com pico na década de 1990, em razão da abertura econômica e do avanço técnico-científico), o fenômeno inverso, por força, inter alia, dos incentivos do governo federal, para que a industrialização se alastrasse pelo interior do Brasil [e. g. Sudene (1959), Sudam (1966) e Zona Franca de Manaus (1966)]. A desconcentração econômico-industrial fez-se sentir, intensamente, na região metropolitana paulistana, modificando-a e alargando-a; além de levar a industrialização para cidades, que bordeavam as rodovias. A cidade de São Paulo e seu centro, em fins do século 20, tinham-se modificados, grandemente, diferenciando-se, em muito, de sua aparência em meados desse século. Desconcentração industrial paulista não significou desindustrialização, pois, no presente século, São Paulo, além de manter considerável parcela industrial, mormente de alta tecnologia, é o maior centro de serviços complexos, dependentes de tecnologia de ponta, como comunicação e informática. O crescimento de São Paulo e o evolver das mudanças por que passaram a cidade e seu centro, propiciaram: (i) de um lado, a criação de uma das maiores megalópoles do universo, capital de um estado federado, que conduz o Brasil (o listel do brasão paulistano é bem apropriado: non ducor duco — conduzo, não sou conduzido); e (ii) de outro, a decadência do centro. A segunda metade do século 20 assistiu ao esvaziamento e a deterioração da área central: a) novos subcentros (avenidas Paulista, Brigadeiro Faria Lima e Luís Carlos Berrini) atraíram bancos, sede de grandes indústrias e comércio; b) inúmeros prédios foram subutilizados e abandonados; c) milhares de famílias mudaram-se para bairros recém abertos, alguns exclusivamente residenciais; d) logradouros e praças aptas a serem pontos de lazer e de convergência de pessoas, tornaram-se terminais de ônibus, que substituíram os bondes como transporte de massa; e e) o centro diminuiu seu protagonismo histórico, deixando de ser o local em que as pessoas gostavam de passear, ir às compras etc. A pandemia acelerou o fechamento de lojas, a pichação dos prédios a desertificação das ruas, os furtos, o aumento dos moradores de rua (32 mil atualmente, muitos morando em barracas), e a deposição de lixo nas calçadas. O centro significa muito para São Paulo, pois lá a cidade foi fundada e aconteceram fastos marcantes como a aclamação de Amador Bueno, a instalação da primeira faculdade de direito do País, a realização da Semana de Arte Moderna, as manifestações que originaram o MMDCA e a Revolução Constitucionalista de 1932 etc. Ademais seu potencial simbólico, comercial e turístico é relevante. A despeito de tudo, o centro continua atrativo, vivaz, plural, criativo e responsável por quase 20% dos empregos formais da cidade. Não é de hoje que o poder público vem levando a cabo projetos para reerguê-lo, sendo instrutivo e interessante analisá-los.   1 Rodas, João Grandino, "O centro de São Paulo precisa ser reabilitado" e "São Paulo do século 16 ao 20: de cidade adormecida por 300 anos a megalópole", Revista Eletrônica ConJur, respectivamente, de 10 de abril e de 24 de abril de 2023.
2023-05-29T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-29/olhar-economico-concentracao-desconcentracao-decadencia-area-central-sao-paulo
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Crime dos crimes
Debate entre juristas compara combate à lavagem no Brasil e Alemanha
Na última semana, juristas se reuniram em Berlim, capital alemã, para tratar do crime de lavagem de dinheiro sob uma perspectiva comparada entre Brasil e Alemanha. Sob a coordenação do professor Luís Greco, catedrático de direito penal da Universidade de Humboldt, nomes importantes do Direito brasileiro, como o ministro do STJ Rogerio Schietti, o jurista Pierpaolo Cruz Bottini e a desembargadora Simone Schreiber, e do Direito alemão, como os professores Thomas Rönnau e Martin Heger, debateram temas relacionados ao crime. Os debates foram iniciados com uma exposição de Rönnau, que é professor e catedrático da Bucerius Law School, em Hamburgo, sobre a legislação alemã e a realidade da lavagem de dinheiro naquele país. O docente apresentou números sobre a baixa persecução penal e condenação e afirmou que a Alemanha seria um paraíso para a lavagem de capitais, dada a cultura de utilização de dinheiro vivo em larga escala, ao contrário de outros países da Europa. No mesmo painel, o professor da Uniersidade de Lisboa, Alaor Leite, apresentou a legislação portuguesa e sua característica mista de prevenção e repressão, enquanto o advogado Ciro Chagas, pesquisador visitante na Universidade de Humboldt, trouxe ao debate o tema das criptomoedas e sua relação com a lavagem de capitais. Após a exposição do advogado criminalista Juliano Breda sobre a redação da lei brasileira de lavagem de dinheiro, os debates giraram em torno das diferenças entre as legislações nos países, em especial sobre o fato de que a normativa brasileira tem como eixo central a ocultação, enquanto as leis dos países europeus são, por vezes, mais abrangentes, prevendo a mera aquisição de bens de origem ilícita como ato de lavagem de dinheiro. Autolavagem e contaminação de bens No dia seguinte, o advogado Andrea Marighetto, especializado em Direito Comercial Comparado, trouxe a perspectiva civil sobre o fenômeno da lavagem de dinheiro, enquanto o advogado Guilherme Góes, doutorando na Universidade de Humboldt, discorreu sobre o problema da contaminação de bens, ou seja, a identificação de origem ilícita de determinado patrimônio em que parte dos bens é produto do crime e outra tem proveniência lícita. O professor da Fundação Getulio Vargas Adriano Teixeira tratou da autolavagem de bens, tema que despertou debates sobre a legitimidade de criminalizar a ocultação e dissimulação quando quem pratica tais atos é a mesma pessoa que executa o crime anterior. Essa situação, mais uma vez, mereceu analises sob a perspectiva brasileira e a alemã. No segundo painel, os advogados Pierpaolo Cruz Bottini e Alamiro Velludo, que também são professores de Direito Penal na Universidade de São Paulo, debateram os elementos subjetivos da lavagem de dinheiro. Velludo tratou da chamada "cegueira deliberada", concluindo que tal instituto é de difícil aplicação no Brasil, e Bottini defendeu que a lavagem de dinheiro existe somente quando o agente tem a intenção de restituir o bem à economia com aparência lícita. Em outras palavras, o jurista afirmou que a mera ocultação não caracteriza o delito em questão. Na mesmo debate foi levantada a questão da necessidade de controles mais rígidos de compliance sobre capitais vindos do exterior, em especial aqueles provenientes de estruturas sem beneficiários finais identificados. Depois, a desembargadora Simone Schreiber tratou de questões de prova, ponderando que a demonstração da existência do crime antecedente é essencial para a caracterização da lavagem de dinheiro, enquanto o ministro do STJ, Rogerio Schietti, discorreu sobre as medidas cautelares nos processos sobre crimes da mesma natureza, apontando os requisitos que devem ser observados pelos magistrados para a decretação de prisões e constrições patrimoniais.  O advogado Ademar Borges, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), expôs questões sobre a extraterritorialidade do crime de lavagem de dinheiro, criticando decisões judiciais que admitem a persecução penal no Brasil de ilícitos praticados no exterior. Já no terceiro dia do evento, o tema foi a recuperação de ativos, com palestras do professor catedrático da Universidade Humboldt, Martin Heger; do procurador da República, Henrique de Sá Valadão; e da advogada da União Carolina Yumi, que apresentou a política do Departamento de Recuperação de Ativos do ministério da Justiça nesse setor. No segundo painel, a advogada Ana Carolina Carlos de Oliveira, doutora em Direito Penal, apresentou questões criticas a respeito da prevenção à lavagem de dinheiro. O também advogado Felipe Carvalho voltou ao tema dos criptoativos e expôs medidas necessárias de regulamentação, enquanto Janice Santin, advogada e douturanda na Universidade Humboldt de Berlim, discorreu sobre a proteção do wistleblower e sua repercussão na prevenção e repressão à lavagem de dinheiro. Por fim, no último painel, o procurador do Ministério Público de São Paulo, Fernando Capez, tratou do diálogo entre a seara criminal e a administrativa. No campo em discussão, a juíza federal Ana Paula Vieira de Carvalho discorreu sobre o bin in idem entre a persecução por improbidade e por corrupção ou lavagem de dinheiro, enquanto a advogada Natasha do Lago cuidou da possibilidade de concurso aparente entre a lavagem e o crime antecedente. Os debates foram acirrados sobre os casos de corrupção e lavagem de dinheiro, principalmente sobre os requisitos para que se reconheça a autonomia do segundo em relação ao primeiro, e as hipóteses de concurso de crimes. Os debates revelaram a profundidade e a necessidade de discussão sobre cada um dos temas. As diferentes legislações e as distintas abordagens jurisprudenciais revelam realidades diferentes, mas que se comunicam, uma vez que o crime muitas vezes tem caráter transnacional e as autoridades de cada país devem cooperar para investigar e punir sua prática. No entanto, a falta de diálogo acaba por levar a confusões conceituais, a um excesso de controle sobre condutas não muito relevantes e uma falta de rigor para com operações mais perigosas. O seminário foi um primeiro passo para novas reflexões e para a realização de outros debates, que possibilitem uma troca de experiências com resultados práticos para a racionalização da prevenção e repressão à lavagem de dinheiro.
2023-05-30T14:47-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/dialogo-entre-juristas-compara-combate-lavagem-brasil-alemanha
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Direitos humanos
Prêmio CNMP-Corte IDH recebe inscrições a partir de 12 de junho
Foi publicado nesta segunda-feira (29/5) no Diário Oficial da União o edital do Prêmio CNMP-Corte IDH, que irá premiar teses de doutorado e dissertações de mestrado defendidas em 2022.  A premiação oferecida pelo Conselho Nacional do Ministério Público terá duas categorias distintas, com prêmios para a melhor tese de doutorado e a melhor dissertação de mestrado sobre direitos humanos, com ênfase na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e em sua jurisprudência. As inscrições poderão ser realizadas exclusivamente por meio de envio de formulário, assinado e digitalizado, em conjunto com os documentos exigidos no edital enviados para o e-mail: [email protected], até o dia 12 de julho de 2023. Clique aqui para ler o edital
2023-05-30T08:28-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/premio-cnmp-corte-idh-recebe-inscricoes-partir-12-junho
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Fábrica de Leis
Desafios de um modelo de regulação em rede contra as fake news
Em face dos recentes desdobramentos da tramitação do Projeto de Lei das Fake News (PL nº 2.630/2020), tem circulado a notícia de que a Anatel, agência cotada para regular o conteúdo das plataformas digitais no Brasil, propôs modelo de fiscalização baseado em blockchain compartilhado por uma comunidade de checagem. Segundo a proposta defendida pela agência, a fiscalização de conteúdo das plataformas digitais ficaria a cargo de um grupo composto por veículos jornalísticos, agências de fast-checking, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), big techs e organizações da sociedade civil que atuam no combate à notícias de conteúdo falso (fake news) e discurso de ódio na internet. Essencial à solução proposta pela Anatel é o fato de que a agência não estaria atuando sozinha nessa atividade regulatória, já que compartilharia a fiscalização do conteúdo das plataformas com os demais atores que comporiam o referido grupo de checagem. A criação de uma rede de regulação contornaria, portanto, as objeções parlamentares à atuação da agência como regulador de conteúdo das plataformas digitais. A solução proposta pela Anatel nada mais é do que um modelo de regulação em rede, em que atores privados (quasi-regulators) participam da atividade regulatória em coordenação com órgãos reguladores estatais. Uma rede de regulação, em sentido lato [1], nada mais é do que um conjunto de entidades responsáveis por regular conjuntamente determinada atividade ou setor. Em uma mesma rede regulatória podem atuar, por exemplo, entidades supranacionais estatais e não estatais, agências reguladoras nacionais e entidades privadas com ou sem fins lucrativos. Redes de regulação não são propriamente uma novidade no Brasil. Elas se manifestam, por exemplo, em situações em que órgãos reguladores dependem da atuação de entidades privadas certificadoras para autorizar o uso e comercialização de produtos industriais (e.g. aparelhos para as telecomunicações, produtos para a saúde) [2]. A própria Anatel figura entre as entidades da administração pública que conta com a atuação de entidades privadas, a quem denomina de Organismos de Certificação Designados (OCDs), para certificar produtos para as telecomunicações que desejam ser comercializados. É só após concluída a certificação de um produto para telecomunicações por uma OCD que a Anatel homologa o seu uso e a venda. Na área ambiental, há muito tempo se atribuiu a agentes regulados a responsabilidade por apresentar estudos de impacto ambiental em processos de licenciamento, bem como avaliar e monitorar a segurança de processos produtivos potencialmente degradadores do meio ambiente (e.g. barragem de mineração). Essas atividades de certificação, monitoramento e avaliação, acessórias ao poder de polícia, têm em comum o fato de que são exercidas por entidades privadas cuja atuação deve ser conformada a normas editadas por órgãos estatais como Anatel, Inmetro, Ministério do Meio Ambiente e Agência Nacional de Mineração (ANM). Entidades privadas não estatais podem, ainda, exercer atividades ainda mais centrais para a regulação. Esse é o caso da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que exerce atividade normativa de forma exclusiva e com expresso reconhecimento legal. O modelo de regulação em rede apresenta promissoras vantagens. Redes de regulação são caracterizadas por baixa intervenção estatal e normalmente estão atreladas a modos mais inventivos de regulação, reunindo não apenas atores estatais com não estatais, mas também misturando estratégias regulatórias variadas (e.g. divulgação de informações, incentivos econômicos, naming and shaming etc). Por essa razão, modelos de regulação em rede estão normalmente associados ao que Gunningham e Grabosky denominaram de smart regulation, que pode se revelar mais adaptável a rápidas transformações sociais e tecnológicas. A implementação de um modelo de regulação em rede pode, além disso, ser menos custosa. Isso ocorre não só porque a regulação assume um aspecto mais responsivo, no qual há seletividade no emprego de estratégias regulatórias mais rígidas (e.g. comando e controle), mas também porque os custos da regulação são compartilhados entre o Estado e atores privados. É já bastante conhecido o argumento de John Braithwaite de que um modelo de regulação em rede poderia ser uma solução especialmente adequada para países em desenvolvimento, cujas estruturas administrativas estatais dispõem de menores recursos para regular setores chave da economia. Há, no entanto, diversos riscos atrelados à implementação de um modelo de regulação em rede. O principal deles é o da assimetria de informação entre o regulador estatal e as entidades privadas atuantes na rede de regulação. Se um determinado modelo de regulação depender integralmente das informações geradas e divulgadas por atores privados, e se o ente regulador estatal não tiver condições de avaliar de forma tempestiva a veracidade das informações recebidas, tal como ocorreu nos recentes desastres ambientais envolvendo barragens de mineração em Minas Gerais [3], o ambiente regulatório se torna notavelmente fragilizado. Além disso, mesmo que as informações prestadas por agentes privados estejam corretas, arranjos regulatórios entre entes estatais e não estatais podem falhar se os primeiros não dispuserem de capacidade institucional para gerenciar grandes volumes de dados e, assim, oferecer respostas rápidas e ações concretas para prevenir e remediar comportamentos indesejados. Um modelo de regulação em rede também pode apresentar sérios desafios de coordenação regulatória [4]. Problemas de coordenação tendem a ser menores [5] em redes de regulação hierárquicas, tais como as mencionadas acima em que um regulador estatal (e.g. Inmetro) define as regras e políticas que deverão ser aplicadas pelos demais reguladores que compõem a rede (e.g. organismos de certificação acreditados). Em redes não hierárquicas, no entanto, a conciliação de interesses entre atores com capacidades, recursos, habilidades, culturas regulatórias e responsabilidades jurídicas distintas pode ser revelar extremamente desafiadora para garantir a efetividade das políticas regulatórias e promover sua legitimidade. Nem todos os atores em uma rede de regulação não hierárquica são capazes de fazer uso dinâmico e responsivo de estratégias regulatórias, as quais devem constantemente ser revistas e adaptadas às rápidas transformações econômicas e sociais. Além disso, ainda que o funcionamento dessa rede de regulação possa ser orientado por regras e procedimentos de tomada de decisão previamente definidos (o que parece ser o caso da nova rede de regulação proposta pela Anatel), haverá sempre o risco de que seus membros utilizem esses processos estrategicamente de modo a apenas promover seus interesses organizacionais. Decisões tomadas por redes de regulação são, portanto, potencialmente mais suscetíveis a problemas de equidade, legitimidade e transparência do que decisões tomadas em ambientes regulatórios tradicionais. Os processos de aprendizagem e de detecção de falhas em estruturas regulatórias não convencionais apresentam uma complexidade muito maior do que em esquemas regulatórios tradicionais. Modelos de regulação em rede, em razão do seu alto grau de sofisticação, podem desonerar o Estado de parte dos custos regulatórios, mas podem, em contrapartida, incrementar a complexidade do processo regulatório, tornando-o muito mais custoso do que ele aparenta ser. Baldwin observa, com razão, que os custos de implementação de análise de impacto regulatório e de avaliação de resultado regulatório de normas implementadas por redes regulatórias podem ser consideravelmente mais altos do que aqueles incorridos em ambientes regulatórios hierárquicos e centralizados no Estado. A premissa de que um modelo de regulação em rede é necessariamente menos custoso pode, portanto, não se confirmar na prática. Não pretendo, com este artigo, rejeitar de plano a proposta de regulação em rede defendida pela Anatel, mas tão somente alertar para o fato de que modelos de regulação em rede não são panaceia para questões regulatórias, e que, portanto, devem ser muito bem planejados se tiverem a pretensão de resolver problemas complexos como aqueles envolvidos na regulação das plataformas digitais no Brasil. [1] Há um sentido mais restrito de rede, que se refere a modo de organização não hierárquico. Em sentido lato, no entanto, admite-se que uma rede de regulação possa assumir forma hierárquica, conforme demonstro a seguir. [2] Uma análise detalhada dessas atividades pode ser encontrada aqui. [3] Uma análise dessa e de outras falhas regulatórias envolvendo o rompimento da barragem 1 do Córrego do Feijão, em Brumadinho, pode ser consultada aqui. [4] Uma análise introdutória, porém precisa, dos problemas de coordenação regulatória envolvendo redes de regulação pode ser consultada aqui. [5] Problemas de coordenação podem persistir mesmo em redes reconhecidamente hierárquicas, especialmente se elas tiverem estrutura complexa (e.g. redes de regulação envolvendo atores públicos e privados de diferentes níveis federativos).
2023-05-30T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/fabrica-leis-desafios-modelo-regulacao-rede-fake-news
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Direito Digital
IA generativa: pedido de moratória e urgência de regulamentação
Medo, insegurança, incerteza, especulação. Esses termos não são novidade para quem já acompanha o debate acerca do desenvolvimento e uso da inteligência artificial. A potencialidade da IA tem despertado questionamentos ao redor do globo, alguns críveis e outros alarmistas. Dentre as vozes do debate há magnatas, bilionários e até intelectuais de grande renome. Há quase uma década, o físico Stephen Hawking se manifestou [1] acerca da alta probabilidade de a IA ser uma ameaça para a humanidade: a ameaça real à humanidade não deveria ser pensada como um agente externo, mas interno. O físico teórico defendia que o mal pode ser fruto de nossas próprias criações, como é o caso da IA. O sucesso em criar inteligência artificial seria o maior evento na história da humanidade, mas, infelizmente, também poderia ser o último, a menos que aprendêssemos a evitar seus males. Os cientistas já apontavam que todos nós deveríamos nos perguntar o que podemos fazer para aumentar as chances de potencializar os benefícios da inteligência artificial, evitando os seus riscos [2]. Em outro artigo, Hawking [3] voltou a afirmar que a tecnologia precisa ser controlada para que não acabe destruindo a espécie humana. O verdadeiro risco da AI não residiria em uma "essência maldosa", mas em sua competência [4]. Isso porque um sistema de IA pode ser extremamente eficaz em alcançar seus objetivos e, caso esses objetivos não estejam alinhados com os nossos enquanto sociedade, podemos ter sérios problemas. Também apoiaram esse discurso, dentre outros, Bill Gates e Elon Musk. Enquanto o primeiro (Rawlinson, 2015), há quase dez anos, já afirmava não entender o fato de as pessoas não estarem ainda preocupadas com a possibilidade de a AI ser uma ameaça, o segundo sempre esteve convencido de que nós devemos ter muito cuidado a respeito da inteligência artificial, sendo ela a maior ameaça à nossa existência. Para Musk, deveria haver regulamentação sobre a questão, seja em nível nacional ou internacional, apenas para termos certeza de que não faremos algo que ponha nossa existência em risco, quando da criação de sistemas de IA [5]. A tensão voltou à tona com a popularização da IA generativa [6] e com o fato de ela estar sendo utilizada em larga escala, após o lançamento do gerador de imagens Dall-E e do gerador de textos ChatGPT, ambos desenvolvidos pela OpenAI. Muitas das capacidades da IA ainda não eram perceptíveis pelo usuário comum, o que fazia com que o debate sobre o desenvolvimento e o uso da IA não recebessem tanta atenção. A facilidade de acesso à IA possibilitada por essas e outras aplicações inclusive fez com que o tema se tornasse recorrente na mídia. Recentemente, em março deste ano, uma carta aberta denominada "Pausem Experimentos Gigantes de IA" [7] causou alvoroço no mundo da tecnologia — e fora dele — principalmente por ter sido assinada por milhares de indivíduos (hoje, na data de escrita deste artigo, a carta conta com 27.565 assinaturas), incluindo algumas "personalidades", como Elon Musk, Steve Wozniack, Yuval Harari e Tristan Harris. A carta defende, entre outros pontos, que os sistemas de IA (com inteligência artificial que competiria com a humana) podem representar riscos profundos para a sociedade e a humanidade como um todo. Destaca-se como causa desses riscos, por exemplo, o fato de IAs estarem se tornando concorrentes diretos dos humanos em tarefas gerais. Assim, a carta pede que todos os laboratórios de IA parem imediatamente — por pelo menos seis meses — o treinamento de sistemas de IA mais poderosos que o GPT-4. Apesar de a carta resgatar argumentos válidos de preocupações passadas, ela tem sido vista como polêmica por alguns, principalmente devido a dois pontos: 1. Possíveis intenções não declaradas: A carta é uma iniciativa do Future of Life Institute, organização que tem como um de seus consultores externos o bilionário Elon Musk. Além de já haver doado milhões de dólares para fins de pesquisa, o próprio Musk tem demonstrado interesse em investir no desenvolvimento da IA. Para muitos, esse fato por si só tornaria o pedido da carta suspeito. Ainda, Musk criou uma empresa de inteligência artificial denominada X.AI, para competir com a OpenAI [8] por meio de um sistema concorrente já batizado de TruthGPT [9]. Segundo o bilionário, o objetivo é uma IA que busque ao máximo a verdade e entenda a natureza do universo. 2. Prazo arbitrário: Não se sabe os motivos pelos quais a carta estipula um prazo de seis meses de pausa no desenvolvimento de IAs. O receio do desenvolvimento e uso da IA sem parâmetros regulatórios é real (e de certa forma antigo). Contudo, o prazo indicado na carta parece insuficiente para sanar a questão regulatória. Não sendo suficiente para melhor regular o desenvolvimento de IAs, retorna-se à questão: poderia o discurso de cautela (que é válido e necessário) estar sendo utilizado para alcançar concorrentes que, hoje, estão em vantagem na corrida mercadológica? Uma conclusão, contudo, é clara: a tendência mundial em prol da regulamentação da inteligência artificial torna-se cada vez mais necessária. Pausar por completo o desenvolvimento de sistemas de IA parece impossível, mas há maneiras de mitigar riscos. Para amenizar os possíveis danos e consequências de sistemas de IA uma medida necessária é não nos demorarmos mais que o necessário na regulamentação da matéria. No Brasil, o debate sobre a IA se intensifica. Os frutos gerados incluem o Projeto de Lei n° 2.338, de 2023, que dispõe sobre o uso de inteligência artificial e se pauta na abordagem de riscos adotada também pela Europa na proposta do AI Act. Os benefícios da IA são muitos, mas não regular essa tecnologia adequadamente pode, de um lado, causar danos evitáveis (se pouco regulada) e, de outro, atrasar o desenvolvimento de aplicações tecnológicas relevantes (se excessivamente engessada). [1] Em um artigo em coautoria com outros pesquisadores- Max Tegmark, Stuart Russell e Frank Wilczek [2] HAWKING, Stephen; RUSSELL, Stuart; WILCZEK, Max Tegmark; Frank. Transcendence looks at the implications of artificial intelligence - but are we taking AI seriously enough? 2014. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/science/stephen-hawking-transcendence-looks-atthe-implications-of-artificial-intelligence-but-are-we-taking-9313474.html>. Acesso em: 18 mai. 2023.RAWLINSON, Kevin. Microsoft's Bill Gates insists AI is a threat. 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/news/31047780. Acesso em: 18 maio 2023. [3] WHIPPLE, Tom. Stephen Hawking on humanity (and Jeremy Corbyn): The physicist is hopeful for the future - as long as the Labour leader goes. 2017. Disponível em: <http://www.thetimes.co.uk/edition/news/hawking-on-humanity-and corbynjk88zx0w2>. Acesso em: 18 mai. 2023. [4] GRIFFIN, Andrew. Stephen Hawking: Artificial intelligence could wipe out humanity when it gets too clever as humans will be like ants: AI is likely to be "either the best or worst thing ever to happen to humanity," Hawking said, "so there's huge value in getting it right". 2015. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/life-style/gadgets-and-tech/news/stephen-hawkingartificial-intelligence-could-wipe-out-humanity-when-it-gets-too-clever-as-humansa6686496.html>. Acesso em: 18 mai. 2023. [5] GIBBS, Samuel. Elon Musk: artificial intelligence is our biggest existential threat. 2014. Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2014/oct/27/elon-musk-artificialintelligence-ai-biggest-existential-threat>. Acessoem: 18 mai. 2023. [6] A IA generativa usa um tipo de aprendizado de máquinas mais profundo, denominado de redes adversárias generativas (generative adversarial networks ou GANs, na sigla em inglês). [7] Future of Life. Pause Giant AI Experiments: An Open Letter. 2023. Disponível em: https://futureoflife.org/open-letter/pause-giant-ai-experiments/. Acesso em: 18 maio 2023. [8] VERGE, The. Elon Musk founds new AI company called X.AI. 2023. Disponível em: https://www.theverge.com/2023/4/14/23684005/elon-musk-new-ai-company-x. Acesso em: 18 maio 2023. [9] SAUER, Megan. Elon Musk now says he wants to create a ChatGPT competitor to avoid 'A.I. dystopia'—he’s calling it 'TruthGPT'. 2023. Disponível em: https://www.cnbc.com/2023/04/19/elon-musk-says-he-wants-to-create-chatgpt-competitor-called-truthgpt.html. Acesso em: 18 maio 2023.
2023-05-30T08:00-0300
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Opinião
Afonso e Biasoto: Pisos para uma federação heterogênea
Os efeitos das políticas públicas podem, paradoxalmente, contrariar as boas intenções que as inspiraram. É crucial, portanto, que os formuladores dessas políticas, especialmente no campo social, tenham um cuidado meticuloso. Um exemplo que ilustra essa realidade pode ser a implementação do novo piso salarial nacional da enfermagem. Assim como já ocorreu com a fixação da taxa de juros na Carta Magna original, de 1988, estabelecer um valor salarial único em todo o país pode ter consequências indesejadas. Entre elas, a deterioração das relações de trabalho, a piora nas condições de emprego e a desorganização das entidades que atuam na área da saúde, especialmente as de menor porte e aquelas presentes em locais mais remotos ou regiões distantes do país. Ancorada na Emenda Constitucional nº 124/2022, a Lei 14.434, do mesmo ano, fixou o piso salarial nacional em R$ 4.750 para os enfermeiros do país. Para técnicos de enfermagem e para auxiliares, os pisos variam entre 70% e 50% desse valor. Diversas análises e simulações dos economistas alertaram para os impactos, sobretudo sobre as finanças de estados e municípios, além de entidades filantrópicas e empresas privadas de saúde de menor porte. Acionado, o Supremo Tribunal Federal (STF), lucidamente, pediu aos interessados estudos mais aprofundados. Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais — 2021), as ocupações afetadas pela nova lei representam 1.408.584 profissionais enfermeiros apenas do setor privado, sendo que 55,2% (ou 778.233) se encontravam abaixo do novo piso. O destaque maior é dos profissionais técnicos de enfermagem, que estão 68,7% (ou 559.124) abaixo do piso estipulado. Essa fonte de dados indica que o custo da implantação do novo piso seria de cerca de R$ 12,5 bilhões anuais. As entidades privadas seriam as mais impactadas, enfrentando um aumento anual de despesas da ordem de R$ 4,8 bilhões. Por sua vez, as entidades da administração pública teriam que desembolsar, adicionalmente, cerca de R$ 4 bilhões. As entidades sem fins lucrativos sofreriam um impacto financeiro de aproximadamente R$ 3,5 bilhões. Considerando que o Sistema Único de Saúde (SUS), além de fornecer serviços por meio da rede pública, também contrata serviços das redes privada e filantrópica, e o valor total adicional necessário excederia os R$ 7,9 bilhões anuais. Para financiar esses custos adicionais, foi promulgada a Emenda nº 127, em 22 de dezembro de 2022. Essa emenda autoriza o orçamento federal a realocar recursos de fundos originalmente destinados a outras finalidades, a fim de compensar as perdas financeiras dos governos regionais, das entidades filantrópicas e dos prestadores de serviços que atendem pelo menos 60% de seus pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Com a promulgação da Lei 14.581 em 11 de maio de 2023, o Fundo Social se comprometeu a transferir R$ 7,3 bilhões para sustentar os pagamentos aos profissionais do SUS. No entanto, três questões principais geram um clima de forte tensão: a) A incerteza sobre a continuidade dessas transferências, que agora estão sob o escrutínio do controle de expansão do gasto fiscal; b) A maneira como esses recursos se refletirão nos contracheques dos trabalhadores; c) A pressão exercida por trabalhadores que já recebiam salários acima do piso e por profissionais de outras ocupações que demandam aumentos salariais. Além disso, as estimativas indicam que os valores necessários excedem os R$ 7,9 bilhões, e outros cálculos sugerem montantes ainda maiores. É importante chamar a atenção para o fato de que não se trata de um aumento de custos homogêneos, porque a implementação do piso afeta de forma bastante desigual a rede de saúde como um todo. Na maioria dos Estados brasileiros com renda per capita inferior, a distância dos salários atuais em relação ao piso é elevada, e vai requerer pesados aportes de recursos. Podemos dizer que há uma questão federativa subjacente. Num quadro geral, as indicações eram de grandes riscos de geração de turbulências no setor privado, onde poucas garantias estão postas. Vale notar que há grande presença de clínicas e hospitais de pequeno porte dentre as entidades que registram grande massa de diferenças entre os salários pagos e o novo piso. Os estados como Roraima, Piauí, Pernambuco e Sergipe, por exemplo, serão os mais afetados e poderão ser perdidos mais que 70% dos postos de trabalho, nas ocupações relativas ao piso. Um pequeno ensaio com base na Rais, mostra que, se todos os vínculos do setor privado, que superam 50% de aumento de custos na implantação do piso fossem encerrados, teríamos então cerca de 245 mil postos de trabalho perdidos, nada menos que 27,7% dos vínculos existentes atualmente. A tabela a seguir ilustra o montante de novos recursos que cada unidade federativa precisará alocar para manter seus trabalhadores empregados e para cumprir os valores do piso salarial. Para exemplificar o caso mais crítico, a Paraíba, no setor privado e nas ocupações de interesse, terá que mobilizar um valor adicional de 59% além dos pagamentos de salários atuais. Por fim, a disparidade regional entre o piso salarial e os salários atuais é bastante acentuada. Este fenômeno não surpreende, pois é inerente a uma federação como a brasileira, estruturada para administrar diferenças notáveis em aspectos políticos, sociais e econômicos entre suas regiões e até localidades. Há tempos isso tem sido equacionado com soluções que dão respostas diferentes para problemas muito diferentes. O exemplo do salário básico da economia é um caso histórico. Como é inegável e inevitável que empregadores tenham condições muito diferentes para pagar salários em distintos locais, foi estabelecida uma política de salário-mínimo que faculta a cada estado fixar um valor superior ao nacional, para pagamento de tais valores. Em face da vasta heterogeneidade regional do Brasil e das incertezas sobre os impactos nos custos, principalmente considerando as condições sustentáveis de financiamento do piso salarial de enfermagem, uma alternativa viável seria adotar a mesma abordagem do salário mínimo nacional. Essa opção permitiria uma diferenciação regional e, talvez, até mesmo entre as entidades contratantes, facilitando assim o progresso rumo a uma remuneração mais justa, garantindo segurança para o trabalhador e responsabilidade para com o sistema público. Promover uma modulação do processo de implantação do piso nacional é possível. Pode-se fixar um prazo de, por exemplo, doze anos, para que pisos estaduais realizem a convergência para o piso nacional. Desta forma, as diferenças regionais seriam reconhecidas, mas a dinâmica do setor saúde estaria ganhando movimento no sentido da implantação de uma valorização ao profissional, que é pertinente. Caso um estado, em uma avaliação individual, identifique que possui condições para acelerar o processo, será concedida a ele a opção de promover uma expansão mais acentuada do seu piso salarial através de legislação estadual. Vale frisar que a política de regionalização do salário mínimo conseguiu acomodar a realidade de uma federação heterogênea. As decisões no sentido da modulação de políticas conseguiram colocar os objetivos no horizonte palpável, sem destruir os atores sociais e econômicos. Por que então não se pode repetir soluções bem-sucedidas neste caso?
2023-05-30T06:06-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/afonso-biasoto-pisos-federacao-heterogenea
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Estúdio ConJur
Perspectivas e desafios das reformas tributárias será lançado na 5ª
O livro Perspectivas e desafios das reformas tributárias será lançado nesta quinta-feira (1º/6), a partir das 19 horas, no IDP Asa Sul, em Brasília, com a presença de vários dos mais de 30 autores. Coordenada pelos tributaristas Daniel Corrêa Szelbracikowski e Laís Khaled Porto, a obra traz artigos inéditos que tratam da reforma tributária brasileira por meio da pluralidade de ideias que propõem o aperfeiçoamento, a simplificação e a equalização do sistema fiscal. Entre os autores, destacam-se nomes como Bernard Appy (secretário extraordinário da Reforma Tributária, do Ministério da Fazenda), Gilmar Mendes (ministro do Supremo Tribunal Federal e também autor do prefácio da obra), além de tributaristas como Hugo Funaro, Hamilton Dias de Souza, Mary Elbe Queiroz, Mário Costa e Tiago Conde Teixeira. O livro é fruto de jornada de debates sobre o tema, no âmbito do Grupo de Estudos Democracia e Instituições: Crises e Desafios, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). A obra tem textos escritos por acadêmicos renomados e profissionais de relevo no tema, juristas e economistas, todos protagonistas do debate nacional acerca do assunto. Os artigos esmiúçam as possibilidades e desafios das mais variadas reformas no âmbito constitucional e infraconstitucional, seja no que tange à tributação do consumo, do patrimônio ou da renda.
2023-05-31T19:40-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mai-31/perspectivas-desafios-reformas-tributarias-lancado
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Opinião
Alexandre Couto: O que aprendi com Marbury v. Madison
Em fevereiro deste ano, o caso Marbury v. Madison completou seu 220º aniversário. Os doutores Gustavo Troccoli Carvalho de Negreiros e Pedro Filipe Araújo de Albuquerque já publicaram nesta ConJur um bem elaborado resumo sobre esse julgado[1]. As contribuições foram bastante pertinentes. Contudo, neste breve artigo, tentarei ir além e analisar algo mais profundo, que consiste na própria natureza da revisão judicial e seu caráter contramajoritário (ou não), e no que a história por trás do caso Marbury pode nos ensinar sobre essas questões. O debate sobre a revisão judicial passou a ganhar forma quando, na Inglaterra, em 1610, o famoso juiz sir Edward Coke, no julgamento do Dr. Boham's case — no qual um cidadão chamado Thomas Boham havia processado o Royal College of Physicians de Londres, por tê-lo multado e prendido sem autorização legal — decidiu que "[...] quando um ato do parlamento for contrário à razão comum, ou repugnante, ou impossível de ser realizado, o direito comum irá controlá-lo e julgar tal ato vazio" [2] Como já é conhecido, a Revolução Gloriosa, em 1688, consagrou a supremacia do Parlamento inglês. Portanto, a doutrina de Coke perdeu força no Velho Mundo. Contudo, baseado nessa decisão, o juiz sir William Blackstone, no livro mais influente da era da fundação dos Estados Unidos, Commentaries of the Law of England, de 1765-1769, estabeleceu sua décima regra de construção jurisprudencial, que dispõe: Por fim, atos do parlamento que forem impossíveis de serem realizados, não possuem validade: e se deles surgirem colaterais e absurdas consequências, manifestamente contrárias à razão comum, eles serão, com consideração a essas consequências colaterais, vazios [3]. Foi justamente com base nessa regra que Alexander Hamilton, um dos pais fundadores da Constituição dos Estados Unidos, no Federalista 78, trouxe a famosa arquitetura do controle de constitucionalidade realizado pelo Judiciário: "[...] É muito mais razoável supor que os tribunais foram concebidos para serem um corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com o intuito de, entre outras coisas, manter esta última dentro dos limites traçados para a sua autoridade. A interpretação das leis é o terreno próprio e particular dos tribunais. Uma Constituição é, de facto, e assim deve ser olhada pelos juízes, uma lei fundamental. Portanto, pertence-lhes averiguar o seu significado, bem como o significado de qualquer lei particular procedente do corpo legislativo. Se vier a dar-se o caso de existir uma divergência irreconciliável entre as duas, a que tem obrigatoriedade e validade superior deve, sem dúvida, ser preferida, ou, por outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao decreto, a intenção do povo à intenção dos seus agentes. Nem tão pouco esta conclusão não supõe de modo algum uma superioridade do poder judicial sobre o legislativo. Supõe apenas que o poder do povo é superior a ambos, e nos casos em que a vontade da legislatura, declarada nos seus decretos, está em oposição à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem ser governados pela última mais do que pela primeira." [4] Com essas questões em mente, analisemos agora o contexto em que surgiu Marbury, um caso que ocorreu em meio à polarização política presente no início da fundação dos EUA. De um lado, havia os Federalistas, liderados por Alexander Hamilton e John Adams, a favor da ratificação da Constituição, e mais conservadores. Do outro, estavam os Antifederalistas, mais liberais e contrários à ratificação da Constituição. Embora os antifederalistas tenham perdido a disputa política em um momento inicial, fundaram depois o partido Democrata-Republicano, que viria a ser a nova potência política do país, tendo como principais expoentes Thomas Jefferson, Aaron Burr (que viria a tirar a vida de Alexander Hamilton, em um duelo) e James Madison. A primeira sucessão presidencial americana, após George Washington, deu-se pelo federalista John Adams, que tomou atitudes autoritárias durante seu mandato, entre elas o famoso Ato de Sedição e Estrangeiro — uma tentativa de criminalizar a oposição, já que ele dava ao presidente o poder de aprisionar estrangeiros considerados perigosos e punir tipógrafos contrários à sua administração [5]. O autoritarismo dos federalistas fez com que eles sofressem derrotas na eleição de 1800, tanto no Poder Executivo — assumindo a Presidência o republicano Thomas Jefferson, ocorrendo aí a primeira sucessão presidencial entre partidos opositores da história — e também no Poder Legislativo. Os federalistas, então, apostaram sua última cartada no último braço que restava: o Judiciário. Assim, em fevereiro de 1801, nos últimos dias do mandato de John Adams, o Congresso aprovou o Judiciary Act of 1801, nomeando 42 juízes de paz. Porém, o trâmite final (Executivo, Senado) da aprovação dos juízes de paz do Distrito de Columbia se deu [apenas] em 3 de março de 1801, e a posse de Thomas Jefferson no cargo de presidente da República ocorreu no dia seguinte, o que dava a Adams menos de 24 horas para preparar a documentação de 42 juízes de Paz [6]. O presidente Thomas Jefferson, então, determinou que seu secretário de Estado, James Madison, não concedesse posse aos que restavam. Quatro dos prejudicados — William Marbury, Dennis Ramsay, Robert Townsend Hooe e William Harper, por meio do advogado Charles Lee, propuseram um writ of mandamus (mandado de segurança) contra James Madison, na Suprema Corte, afirmando que esta teria competência para julgar o caso, pois assim dispunha a Seção 13 do Judiciary Act of 1789. O caso viria a ser apreciado pelo Juiz John Marshall, que havia sido secretário de Estado de John Adams e nomeado chefe da Suprema Corte também por Adams. Analisando-se o caso à luz da polarização entre federalistas e democrata-republicanos, não se deve deixar de ter em mente que os jeffersonianos eram famosos por avaliar as instituições muito mais por suas realizações — se uma instituição não fizesse o que se esperava, os democrata-republicanos a rejeitavam em favor de outra [7]. Como os federalistas estavam enfraquecidos politicamente, caso o então Chefe da Suprema Corte Juiz Marshall tivesse acolhido o pedido dos nomeados, provavelmente o Executivo simplesmente não levaria a decisão da Suprema Corte em consideração, o que a enfraqueceria e daria mais poder ainda aos jeffersonianos. Além disso, a Suprema Corte estava sendo atacada pelos democrata-republicanos: o juiz Samuel Chase, de ideologia federalista e crítico da oposição, estava sofrendo um impeachment, e o Congresso, de maioria democrata-republicana, havia aprovado o Judiciary Act of 1802, que reorganizava o Poder Judiciário. Cercado, o juiz Marshall então se eximiu de julgar o mérito do caso, afirmando que a Seção 13 do Judiciary Act of 1789, que dispunha da competência da Suprema Corte para julgar o caso, conflitava com o artigo III, seção 2, parágrafo 2, da Constituição Federal dos EUA[8]. No acórdão, a Corte realiza 3 perguntas: "1º. Tem o requerente o direito à comissão que demanda? 2º. Se tiver o direito, e esse direito tiver sido violado, as leis do país proporcionam-lhe um remédio? 3º. Se lhe proporcionam um remédio, é este uma ação expedida por essa corte?" [9] O acórdão responde às primeira e segunda perguntas de forma positiva: o requerente tem direito à comissão que demanda, e as leis do país proporcionam-lhe uma ação. Porém, essa ação não deve ser julgada pela Suprema Corte, pois, como já se explicou, existe um conflito entre uma Lei Estatutária (o Judiciary Act of 1789) e a Constituição, devendo, portanto, ser reconhecida a prevalência desta última. Desta forma, fica consagrado, como provavelmente o principal precedente de toda a história da Suprema Corte americana (se não, de todas as cortes constitucionais do mundo), o seguinte entendimento: "Então, a particular fraseologia da Constituição dos Estados Unidos confirma e fortalece o princípio, suposto ser essencial a todas as constituições escritas, de que uma lei repugnante à Constituição é vazia; e que as cortes, tanto quanto outros departamentos, são ligados a este instrumento." [10]. Destarte, o caso Marbury v. Madison torna-se o primeiro exemplo de controle de constitucionalidade realizado por uma corte constitucional. Apesar de Marbury, atualmente, ter um enorme prestígio, o fato é que, como explica o professor Robert Lowry Clinton, a decisão não teve relevância na época: os jornais falaram muito pouco a respeito, e até os tribunais não lhe concederam importância [11]. Além disso, segundo o professor Larry D. Kramer, o Dr. Boham’s case foi muito pouco citado na américa [12], e o juiz William Blackstone era a favor da supremacia parlamentar, e não, judicial [13]. Além disso, o famoso Federalista 78 não foi incluído na série de artigos federalistas que foram publicados nos periódicos da época, o que veio a ocorrer apenas em maio de 1788, na publicação do segundo volume de O Federalista, tarde demais para ter alguma influência sobre a Convenção de Ratificação, onde a maioria dos participantes ainda pensava em termos de constitucionalismo popular, e não, de supremacia judicial [14]. Em suma, segundo Lary D. Kramer, as poucas defesas da revisão judicial se davam no sentido de funcionar como um substituto à resistência popular [15]. Nesse sentido, indaga-se: porque então Marbury tornou-se um superprecedente? O que está por trás da "canonização" desse caso? Depois de Marbury, a Suprema Corte americana apenas veio a realizar a revisão judicial novamente 62 anos depois, em 1865, no Dred Scott v. Sandford [16], no qual o tribunal decidiu a favor da escravidão - talvez a mais errônea decisão da história de todas as cortes constitucionais. Após a Guerra Civil, em 1896, no caso Plessy v. Ferguison [17], a Suprema Corte considerou constitucionais leis segregacionistas que estabeleciam a doutrina "separate but equal" ("separados, mas iguais"). Em 1905, o caso Lochner v. New York [18] — no qual a Suprema Corte considerou inconstitucional uma lei que proibia a jornada de trabalho por mais de dez horas, sob o argumento da liberdade de contratação — deu origem à era Lochner, quando o tribunal decidiu pela inconstitucionalidade de uma série de leis trabalhistas que limitavam a jornada de trabalho. Em 1934, tiveram início os julgamentos dos New Deals cases, decidindo-se pela inconstitucionalidade dos programas de recuperação econômica, de inspiração keynesiana, impostos pelo presidente Franklin Delano Roosevelt. Finalmente, depois de mais de um século de julgamentos contrários aos Direitos Fundamentais pelo órgão que deveria protegê-los, em 1954, após o julgamento do caso Brown v. Board of Education of Tupeka [19], que decidiu pela inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas do sul dos Estados Unidos, iniciou-se um período conhecido pelo mais forte ativismo liberal em toda a história da Suprema Corte americana, enquanto esta foi presidida pelo juiz Earl Warren, nomeado chefe da Suprema Corte pelo presidente Dwight D. Eisenhower. É justamente nesse contexto, de uma corte atuante, que se inicia o processo de canonização de Marbury. Como explica Lowry Clinton, até 1958 o caso Marbury foi citado como precedente para a revisão judicial apenas dez vezes. Entre 1958 e 1983, porém, o precedente foi citado com essa finalidade 50 vezes [20]. O real motivo para esse brusco aumento na utilização desse caso como fundamento para a revisão judicial foi o fato de a Suprema Corte americana ter necessitado encontrar, de alguma forma, uma legitimação para a forte atuação que ocorreu nas decisões antissegregacionistas. Assim, em 1958, no caso Cooper v. Aaron, envolvendo segregação racial nas escolas, é que a Suprema Corte, citando Marbury, afirmou: "[...] Esta decisão [Marbury] declarou o princípio básico de que o judiciário federal é supremo na exposição da lei da Constituição, e esse princípio sempre foi respeitado por esta Corte e pelo País, como uma permanente e indispensável característica de nosso sistema constitucional" [21], Nesse sentido, conforme explicação de Keith Whittington e Amanda Rinderle, o caso "[...] Cooper v. Aaron transformou Marbury no moderno símbolo de poder judicial, e elevou o argumento de John Marshall a uma diferente dimensão, em direção ao standard judicial dentro da retórica legal no fim do século 20" [22]. A análise do caso Marbury demonstra o óbvio que se evita afirmar: as cortes constitucionais não são órgãos completamente independentes da política. Ora, ficou claro que a decisão tomada em Marbury ocorreu dessa forma pois o Juiz John Marshall não teria condições de vencer um conflito político contra os democrata-republicanos, liderados por Thomas Jefferson, que estava com uma alta popularidade. Além disso, durante a maior parte da história da Suprema Corte americana, Marbury não foi considerado um caso importante, tendo sido "requentado" para assim garantir-se legitimidade aos casos antissegregacionistas julgados pela Corte Warren. Outra questão interessante a ser considerada, não a respeito especificamente do caso Marbury, mas da própria estrutura da corte constitucional, é que, apesar de esse órgão ser pensado para agir com um caráter contramajoritário, não há como desprezar o fato de que seus juízes são nomeados por um presidente eleito por uma maioria, sabatinados por um Senado também eleito por uma maioria, e julgam com base em um documento (a Constituição) que foi o resultado da vitória de uma maioria em algum momento. Há, portanto, um paradoxo que não pode ser negado. Não defendo aqui, obviamente, que os juízes constitucionais devem deixar de decidir conforme princípios jurídicos, passando a adotar explicitamente, em suas decisões, uma argumentação política. Acredito ser importante que esse órgão não perca seu caráter de juridicidade. Tampouco defendo que a corte constitucional deva ser abolida, pois acredito que esse órgão exerce uma importante função no sistema de freios e contrapesos. Contudo, ressalto que não há como deixar de reconhecer o óbvio que muitas vezes evitamos: a corte constitucional não é um órgão completamente independente da política, e isso fica evidenciado no próprio contexto envolvendo o caso Marbury e sua canonização. [1] NEGREIROS, Gustavo Troccoli Carvalho de; ALBUQUERQUE, Pedro Filipe Araújo de. 220 anos de Marbury v. Madison. In: Revista Consultor Jurídico, 8 de maio de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mai-08/negreiros-albuquerque-220-anos-marbury-vs-madison#author>. Acesso em 24 de maio de 2023. [2] Tradução livre, nossa. In: Dr. Boham's Case, 8 Co. Rep. 113b, 118b, 77 Eng. Rep. 644, 652 (1610). [3] Tradução livre nossa. In: BLACKSTONE, William. Blackstone's commentarires. Vol I [1803]. Nova Iorque: August M. Kelly, Publisheres, 1969, p. 90-91. [4] HAMILTON, Alexander. Federalista 78. In: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY John. O Federalista. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 685-686. [5] LEPORE, Jill. Estas Verdades: a história da formação dos Estados Unidos. Tradução: André Czarnobai e Antenor Savoldi Jr. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 186-187. [6] SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2021, p. 101. [7] CLINTON, Robert Lowry. Marbury v. Madison and Judicial Review. Lawrence: University Press of Kansas, 1989, p. 81. [8] "Em todos os casos concernentes a embaixadores, outros ministros e cônsules, e naqueles em que um estado se achar envolvido, a Suprema Corte exercerá jurisdição de primeiro grau. Em todos os outros casos anteriormente citados, a Suprema Corte terá jurisdição de apelação, tanto de direito como de fato, com exceções e sob normas que caberá ao congresso estabelecer". Tradução livre, nossa. [9] Tradução livre, nossa. In: Marbury v. Madison — 5 U.S. 137 (1803), p. 154. [10] Tradução livre, nossa. In: Marbury v. Madison — 5 U.S. 137 (1803), p. 180. [11] CLINTON, Robert Lowry. Marbury v. Madison and Judicial Review. Lawrence: University Press of Kansas, 1989, p. 102. [12] KRAMER, Larry D. The People Themselves: popular constitutionalism and judicial review. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004, 20. [13] KRAMER, Larry D. The People Themselves: popular constitutionalism and judicial review. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004, 35. [14] KRAMER, Larry D. The People Themselves: popular constitutionalism and judicial review. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004, 78-81. [15] KRAMER, Larry D. The People Themselves: popular constitutionalism and judicial review. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004, 92. [16] Dred Scott v. Sandford – 60 U.S. 407 (1865). [17] Plessy v. Ferguson 163 U.S. 537 (1892). [18] Lochner v. New York — 198 U.S. 45 (1905). [19] Brown v. Board of Education of Tupeka 347 U.S. 483 (1954). [20] CLINTON, Robert Lowry. Marbury v. Madison and Judicial Review. Lawrence: University Press of Kansas, 1989, p. 123. [21] Tradução, livre, nossa. Cooper v. Aaron 358 U.S. 1 (1958), p. 18. [22] Tradução, livre, nossa. WHITTINGTON, Keith; RINDERLE, Amanda. Making a Mountain Out of a Molehill? Marbury and the Construction of the Constitutional Canon. In: Hastings Constitutional Law Quartely, Forthcomin, fev. 2012, p. 825.
2023-06-01T18:22-0300
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Senso Incomum
"A coisa do é de hoje": o ovo da serpente estava ali, em 2013
Já muitos nem lembram. O estopim inicial dos protestos ocorreu em São Paulo, no dia 6 de junho de 2013: um grupo de manifestantes se reuniu para protestar contra o aumento da tarifa do transporte público na cidade. E a coisa se espalhou. Alia-se a isso os altos custos da Copa do Mundo de 2014, também usados como mote. Não é preciso aprofundar o protagonismo. Interessa é o resultado. O progressismo brasileiro (não só ele) ingenuamente caiu nessa armadilha da história. E quem tomou as rédeas foi a direita e a extrema direita. O gérmen do fascismo à brasileira estava ali. Lembro de queridos amigos que saíam antes do trabalho — alguns largavam a toda e a beca — e se dirigiam às passeatas. Escrevi sobre essas coisas à época. As redes ainda eram fracas. Avisei os amigos: cuidado — vocês estão se prestando a algo que mistura ódio à política e moralismo. Hobbes já tinha avisado do problema que isso ia dar. Pena que não lemos. Dito e feito. O MBL está aí até hoje. Trocou o P do MPL (Movimento Passe Livre) pelo B. Com isso, cabos, coronéis e quejandos surgiram nessa onda. Sem 2013, não existiriam Zambelis e Joyce Hasselman (fez mais de 1 milhão de votos em 2018). Tampouco deputados como Daniel Silveira. As jornadas de 2013 deram voz aos néscios; as redes apenas os capacitaram. A tempestade perfeita estava nas jornadas de 2013 — cujos reflexos vemos também hoje no Chile.  Junte-se a criminalização da política e surgirão os outsiders — aqueles que dizem que a política só tem ladrões. E, lógico, eles, os novos, são o sal da terra. Eis aí o sal da terra. Basta um rápido olhar e ao longe verão a peruca do deputado de Minas, com seus milhões de votos. Lá vem o novo (ups), mas por baixo de suas roupas vemos os andrajos do velho. Olha o novo, saúdem o novo. Eis a fundação que seria feita por Dallagnol (de R$ 2,5 bilhões) com dinheiro da Petrobras; eis a outra fundação que seria feita em Brasília, com gente famosa dando aval. O lavajatismo surge antes da "lava jato". Uma coisa que surge antes do nome. Em 2013 estava o ovo da serpente, da cascavel — crotalus terrificus. São assim as coisas. Elas surgem antes que as nomeemos. Se a rosa tivesse outro nome... Bom, basta ver o bolsonarismo. O próprio lavajatismo. Alguém acha que isso é de um dia pro outro? Alguém realmente acha isso? "A coisa do é de hoje" estava ali. A coisa cujo nome se deu depois. Poucos viram. A janela para os fascistas entrarem. Que passarem a morar nas neocavernas das redes sociais. Foi a senha. As Eríneas da peça Eumênidas, deusas da raiva, do ódio, do moralismo, mudaram-se todas para as redes sociais. E fixaram residência. Vieram junto as sereias, com seu (em)canto mortal. Enfim, uma tormenta arrasadora. O negacionismo de todos os matizes aliou-se ao Know Nothing (Saber Nenhum) denunciado por MacIntyre no livro Depois da Virtude (isso me fez escrever vários verbetes no Dicionário Senso Incomum, que lancei recentemente). Como no livro do escocês, o Know Nothing chegou ao poder. Criminalizou-se a política. Veio a "nova" política, que é antipolítica que, no fim das contas, é igualzinha à velha. Só é "nova". Ah, o problema que isso deu... e ainda dá. Lembro como, no auge dos anos lavajatistas, era difícil criticar a operação — que gente como Boris Casoy e quejandos continua apoiando, mesmo diante das revelações mais escabrosas já conhecidas de todos (imaginemos o que ainda não foi revelado). Como é possível isso? Sem esquecer que, em 2016, o STF vitaminou a "lava jato" com a decisão contra a presunção da inocência. Muitos que eram radicalmente a favor da decisão do STF depois se tornaram felizes usuários da "maldita" garantia constitucional, que as ADCs 43, 44 e 54 trouxeram de volta. Ou, como dizia Dallagnol, "filigranas" ...! Por esse raciocínio, Direito é "filigrana". Aliás, eis um grande embuste de quem quer parecer crítico sem ser. "Ah, a 'lava jato' passou por cima de formalidades..." Formalidades? Grampear escritório de advocacia? Ah, as "formalidades". Isso sem discutir uma questão de segundo nível, já dando de barato. Porque, sem "formalidades", não há Direito. Mas não há condições de se discutir isso. Porque discutir isso já seria dizer que foram meras "formalidades". Oh, grande "formalidade" a lei proibir que um juiz atue de chefe de investigação. Como fracassamos tanto? Como ainda pode ser polêmico denunciar a atuação de um juiz incompetente e parcial que ignorou a Constituição e o CPP desde o início? Isso não é coisa de país sério. Desculpem-me. Mas não é possível isso. Que tipo de república aplaude a ilegalidade? Bem, qualquer uma. Só que não é uma república. O tempora, o mores. E quanta gente se formou em Direito nesses dez anos sob esse imaginário que amaldiçoou as garantias constitucionais? Quantos alunos saíram dizendo que o que ocorreu na lava jato foram apenas pecadilhos? Quantos alunos e professores passaram a odiar a Constituição? Como resgatar essas perdas epistemológicas? Deveria haver uma ação coletiva contra os que provocaram esse retrocesso gnosiológico. Quantos reacionários formados? Mas nunca é tarde. Saibamos interpretar o que nos diz a ave de Minerva, dez anos depois. Luiz Augusto Fischer, do jornal Zero Hora, fez interessante análise do ocorrido. "A conta geracional: somando FHC duas vezes, Lula outras duas e Dilma até ali, estamos falando de uns 20 anos, o prazo de uma geração na história, o tempo em que a memória vivida perde viço e se esfumaça. Em 2013, uma juventude que só tinha vivido sob governos progressistas, interessados no desenvolvimento com redução da desigualdade, essa juventude achava pouco o que havia. E foi o combustível do destampamento das caldeiras da direita raivosa". Correto! Na mosca! Para finalizar: o Reinaldo tem o programa O É da Coisa. E eu falo Da Coisa do É de Hoje. Ela — a coisa — estava ali em 2013. E só descobrimos o seu "é" bem depois. Para isso serve a filosofia. Reinaldo tem denunciado muito bem o "é" da coisa. Precisamos pensar sobre a coisa do "é" também. Dizendo de um jeito bem simplinho: jabuti não dá em árvore. Muito tarde? Não se sabe. Talvez W. Benjamin tivesse razão, ao dizer que "convencer é infrutífero"...!
2023-06-01T08:00-0300
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Paradoxo da Corte
O árbitro e o seu dever institucional de julgar com independência
O vertiginoso aumento do número de arbitragens no Brasil tem gerado uma multiplicação de processos judiciais, em particular, de ações anulatórias de sentenças arbitrais. Esse notório fenômeno decorre de diversificadas situações relacionadas a questões substanciais, intrínsecas ao ato decisório, bem como a questões subjetivas atinentes à pessoa ou à atuação dos árbitros. No âmbito do judiciário paulista, revela-se muito interessante acompanhar as decisões colegiadas proferidas, em particular, pelas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial. Lembro, apenas como exemplo, que no curso do ano passado muito se discutiu sobre a exceção constante do artigo 189, inciso IV, do Código de Processo Civil, cuja incidência foi afastada pelo Tribunal de Justiça bandeirante, para dar a devida publicidade aos processos relacionados à arbitragem, nos termos do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Igualmente, também mereceu destaque, no foro paulista, a questão do financiamento da arbitragem por terceiro, implicativo da necessidade de revelação pela parte financiada de quem é o financiador. A razão deste duty of disclosure em tal situação decorre da própria estrutura da arbitragem, em que os árbitros em regra são indicados pelas partes. Assim, para evitar eventual conflito de interesses que possa comprometer a independência e a imparcialidade dos árbitros, delineia-se imperioso que o tribunal arbitral tome conhecimento da identidade do terceiro que se dispôs a suportar os custos do processo arbitral. Já sob diferente enfoque, em recentíssimo julgamento, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, por ocasião do julgamento da Apelação nº 1094661-81.2019.8.26.0100, da relatoria do ilustre desembargador Cesar Ciampolini, foi instada a se debruçar sobre questão inusitada. Em breve síntese, extraída do relatório do respectivo acórdão, foi instaurado um processo arbitral que ensejou a formação de um painel arbitral composto por três árbitros. No curso do procedimento, o tribunal proferiu uma sentença parcial por maioria, ficando vencido um dos coárbitros. Na sequência, realizada a perícia para a apuração do quantum debeatur, os dois árbitros, que haviam reconhecido o nexo de causalidade e imposto condenação à parte requerida, divergiram quanto à extensão da indenização, sendo que o terceiro árbitro simplesmente declarou que, como antes entendera que não restou comprovada a culpa da requerida, não devia votar quanto ao montante da indenização. Pois bem, diante desse cenário, de resto, bem incomum, com a divergência existente entre os dois outros árbitros, o presidente do painel valeu-se da prerrogativa da parte final do artigo 24, parágrafo 1º, da Lei Arbitragem, pelo qual deve prevalecer a integralidade de seu voto (voto de minerva ou de qualidade), "se não houver acordo majoritário, prevalecerá o voto do presidente do tribunal arbitral". E, assim, não tendo chegado a um consenso, quanto ao valor da indenização, acabou vingando o entendimento externado pelo presidente do tribunal arbitral. Encerrado o processo arbitral, a parte que se sentiu prejudicada com o resultado, no prazo estabelecido no artigo 33, parágrafo 1º, da Lei nº 9.307/96, aforou ação anulatória da sentença arbitral, com fundamento na aplicação equivocada do supra aludido artigo 24, uma vez que, a rigor, um dos árbitros deixou de votar, sendo que, em tudo equiparado ao juiz togado e, portando, dotado de jurisdição, tal omissão, na verdade, configurou um non liquet. Alegou então o requerente violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição e, ainda, ofensa aos limites da convenção arbitral e à coisa julgada sobre a sentença arbitral parcial. A sentença de primeiro grau, proferida pelo juízo de Direito da 2ª Vara Empresarial e de Conflitos de Arbitragem, reconheceu a improcedência do pedido, visto que ausente qualquer das hipóteses taxativamente previstas nos artigos 21, parágrafo 2º, e 32 da Lei de Arbitragem. Submetida a questão, por força da apelação interposta, à apreciação da já mencionada 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, após regular processamento, sobreveio o indigitado julgamento, que, por unanimidade, proveu o recurso para o fim de anular a sentença arbitral pela abstenção de voto de um dos coárbitros. Por se tratar de situação fora do comum e até pelo interesse que naturalmente desperta, em especial, aos arbitralistas, entendo oportuno reproduzir, em resumo, os principais fundamentos que alicerçam o lúcido e consistente voto da lavra do desembargador Cesar Ciampolini. Após dirimir questões de natureza formal, passando a enfrentar o mérito do recurso, o acórdão assevera de logo que, no caso concreto, não se faz cabível a aplicação do parágrafo 1º do artigo 24 da Lei de Arbitragem, porque: "A abstenção de voto de coárbitro configura non liquet, vulnerando o princípio constitucional do acesso à Justiça (inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal)... O coárbitro, ao invés de votar sobre a questão submetida a julgamento - isto é, a liquidação do quantum devido aos apelantes, limitou-se a fazer referência a entendimento adotado em momento anterior, e já superado, isto é, o da prolatação da sentença arbitral parcial. Absteve-se de julgar, o que é, repita-se, absolutamente vedado pelo ordenamento constitucional. A garantia de acesso à Justiça pressupõe que, em julgamento colegiado, todos os julgadores pronunciem-se sobre o mérito da causa... Quando o dispositivo da Carta Magna se refere à inafastabilidade do Poder Judiciário, é certo que remete também aos julgamentos arbitrais. O tribunal arbitral tem, com efeito, o dever de prestar tutela jurisdicional no caso que lhe é dado a solver... O que se afirma, aqui, é que na jurisdição estatal — ministrada com observância do Código de Processo Civil — há hipóteses semelhantes, e todas elas evidenciam o dever dos juízes de prestar aos jurisdicionados completa tutela jurisdicional, corolário do direito de acesso à Justiça. E, embora o diploma processual não seja supletivo à Lei de Arbitragem, certo é que os árbitros, frente a lacunas, hão de estar atentos às soluções edificadas pelo legislador, mormente quando em causa questões constitucionais, como aqui sucede. De todo o modo, enfim, dado o pernicioso sigilo que se impõe quase sempre às arbitragens, há impedimento prático para a busca de precedentes arbitrais, com os quais possa confirmar, ou confrontar, a solução de casos como o presente. Isto mais ainda justifica o recurso à analogia — sob o norte da principiologia da Constituição Federal — com situações vivenciadas no processo civil, perante a Justiça do Estado". Tenha-se presente que, de fato, segundo dispõe o artigo 939 do Código de Processo Civil: "Se a preliminar for rejeitada ou se a apreciação do mérito for com ela compatível, seguir-se-ão a discussão e o julgamento da matéria principal, sobre a qual deverão se pronunciar os juízes vencidos na preliminar". E foi exatamente este lógico raciocínio que embasou a construção do referido voto condutor do julgamento ora comentado. Importa ainda frisar que o artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Arbitragem, dispõe que a parte que se sentiu prejudicada, tem a faculdade de ir a juízo para pleitear a prolação de sentença arbitral complementar, se o árbitro não decidir todos os pedidos formulados no processo arbitral. Ora, isso significa que o árbitro, tal como o juiz togado, tem o dever de prestar tutela jurisdicional integral e efetiva. Diante de todos esses argumentos, atinentes à omissão do voto de um dos árbitros, a referida turma julgadora, ao prover o recurso de apelação, determinou a anulação da sentença arbitral da fase de liquidação, para o fim de ser reaberta a respectiva votação, na qual os três árbitros deverão emitir julgamento. Todavia, caso se repita a omissão, outro árbitro deverá ser convocado para complementar a sentença arbitral de apuração do valor indenizatório devido.
2023-06-02T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-02/paradoxo-corte-arbitro-dever-institucional-julgar-independencia
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Opinião
Sadek e Ribeiro: Incertezas no julgamento de HCs pelo STF
No último dia 10 de maio, foi publicada a 17ª edição do Anuário da Justiça Brasil pela ConJur. Dentre os temas abordados, chama atenção o sugestivo artigo intitulado "Overdose do remédio heroico", apontando o crescimento vertiginoso do número de Habeas Corpus distribuídos perante os tribunais superiores nos últimos anos. A partir de pesquisa conduzida pelo STF e divulgada pelo Programa Corte Aberta, foram contabilizados o número anual de Habeas Corpus julgados pela Corte Constitucional entre 2000 e 2023, bem como a quantidade das ordens concedidas individualmente por cada um dos atuais onze ministros investidos. De longe, salta aos olhos a discrepância entre o percentual de Habeas Corpus concedidos e negados por cada um dos ministros. De acordo com o levantamento feito, observa-se que o ministro Gilmar Mendes é quem, historicamente, concedeu o maior número de ordens impetradas: do total de 11.073 Habeas Corpus julgados desde sua posse em 2002, 15% deles foram concedidos. Já na ponta oposta, observa-se que os writs distribuídos ao ministro Luiz Fux tiveram significativamente menor sorte: do total de 7.244 (sete mil, duzentos e quarenta e quatro) casos julgados entre 2011 e a presente data, entendeu-se por conceder ordem em apenas 3% dos casos. A análise de tais dados perpassa pela importante ponderação de que a maioria dos Habeas Corpus impetrados no STF e STJ sequer têm seu mérito analisado, já que seu conhecimento acaba por ser obstado por questões processuais, que, muitas vezes, se erigem como uma parede de concreto a separar o jurisdicionado do Poder Judiciário. Como apontado pela pesquisa, cerca de 80% dos remédios constitucionais impetrados no Supremo Tribunal Federal desde 2000 não foram conhecidos. Ou seja, na maioria das vezes, o mérito quanto à coação ilegal sequer é enfrentado, limitando-se a Suprema Corte a analisar — e, na grande maioria das vezes, não reconhecer — os pressupostos formais para conhecimento da impetração. No que se refere à inferior parcela dos casos efetivamente julgados, devemos buscar explicações para a adoção de posicionamentos tão discrepantes entre ministros da mais alta corte do Judiciário brasileiro. Poder-se-ia até argumentar que a diferença entre os percentuais das ordens concedidas teria origem na distribuição de um maior número de casos envolvendo efetivo abuso de poder ao ministro Gilmar Mendes. No entanto, se o princípio da imparcialidade determina que os Habeas Corpus sejam distribuídos livremente — isto é, por sorteio — não é provável, do ponto de vista probabilístico, que haja discrepância significativa entre as matérias submetidas ao julgamento de um ou outro ministro. Não parece razoável, portanto, imaginar que às mãos do ministro Gilmar Mendes tenha chegado um número tão maior de casos efetivamente envolvendo o cerceamento da liberdade de ir e vir quando comparado àqueles distribuídos — também livremente — ao ministro Luiz Fux. A forma tão díspar de tratar situações envolvendo eventual abuso de direito resvala na própria observância à garantia fundamental da imparcialidade judicial, sem falar da segurança jurídica. Como conceber que, num modelo constitucional democrático, pautado pelos princípios referenciados, a probabilidade de concessão de ordem esteja atrelada à sorte na distribuição de seu Habeas Corpus? Como explicar ao jurisdicionado que a chance de êxito em seu caso é cinco vezes maior ou menor a depender de qual ministro for sorteado para julgar seu caso? Essa discrepância percentual nos conduz a outro questionamento igualmente importante: se um mesmo Habeas Corpus fosse distribuído a ministros diferentes, poderiam eles, diante de uma mesma situação fática, chegar a conclusões diferentes? E a resposta é evidentemente positiva. Qual a segurança jurídica assegurada a dois pacientes, submetidos a situações fáticas análogas, que veem seu caso depender menos da discussão técnica e da coação ilegal sofrida e mais do perfil pessoal do ministro julgador? Embora não se pretenda conferir ao Direito a exatidão matemática característica de outros ramos da ciência, não nos parece aceitável que o cidadão que tem ou teve sua liberdade cerceada fique à mercê de subjetivismos que, por vezes, parecem incompatíveis com qualquer critério racional que deve conduzir a aplicação das normas ao caso concreto. A importância de conhecermos referidos dados numéricos é indiscutível e reside não apenas na necessidade de conferir maior transparência à atividade jurisdicional como, também, auxilia os profissionais de Direito a tomarem decisões estratégicas de acordo com as particularidades dos casos concretos a eles submetidos. E é justamente por isso que se espera que esse levantamento também seja realizado nos demais tribunais pátrios.
2023-06-02T06:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-02/sadek-ribeiro-incertezas-julgamento-hcs-stf
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Diário de Classe
Como sociedade, devemos refletir sobre os direitos autorais
Preâmbulo: A velha e constante discussão que vai e volta: novas tecnologias e o (des)respeito ao trabalho dos criadores, artistas e intelectuais. Agora muito mais do que atualizada, mostrando um novo rompimento de paradigmas em consequência de dois temas urgentes: streaming e inteligência artificial.   Trazemos esses dois assuntos pois eles implicam diretamente na criação e na distribuição, duas circunstâncias do universo criativo dos direitos autorais, que representam, podemos assim dizer, os pilares do sistema de direitos autorais. Essa ideia é bastante correta, inclusive. Afinal, sem criação, não há obra (tautologia flagrante), o que, a seu turno, conduz veementemente ao esvaziamento do convívio humano. E as perdas são grandes. O mundo sem arte e atividade intelectual é inimaginável... até mesmo se estivéssemos diante de uma abordagem distópica. Caso fosse possível cindir a arte da vida (e das narrativas), esta seria a construção paradoxalmente mais distópica de todas! Eis que a criação é elemento existencial para o humano, o resultado criativo precisa voar, sendo o resultado da criação, o alimento compartilhado! Este é o papel da distribuição. Sem distribuição, o objeto da criação não chega a quem necessita usufruí-lo. Distribuição é um dos elementos que transforma a criação (no sentido amplo) em produto cultural. Ou seja: este é o papel fundamental da indústria. Claro que operamos aqui uma síntese forçosa, para que caiba nessas breves linhas — que se colocam um tanto poéticas — conceitos fundamentais à compreensão dos direitos autorais. Outra informação se evidencia: a criação humana nunca seria (e nem será) desassociada da tecnologia. Obviamente a definição de tecnologia pode gerar muitas controvérsias, mas podemos apontar algumas linhas de interpretação. A tecnologia pode ser definida como um conjunto de métodos e sistemas que, utilizados entre si, buscam um resultado final que é perseguido ou desejado. Esse conjunto de métodos e sistemas não precisa ser utilizado necessariamente ao lado de "maquinário", mas contemporaneamente se identifica dessa forma. Também pode ser, a tecnologia, o conjunto de processos que busca modificar o mundo e a natureza. Os debates não terminariam. Mas para alcançar algum pragmatismo e entender o que pretendemos, acreditamos que compreender a inteligência artificial e o streaming como elementos que contribuem ao avanço tecnológico, parece mais do que evidente. Há mais, porém. O streaming se transformou na mais popularizada forma de consumo de obras audiovisuais e musicais. E o processo criativo compõem sua existência como forma de distribuição, mas o inverso também ocorreu, pois o consumo definiu novas formas de criar. Vivenciamos um ambiente de padronizações contraditórias com a essência criativa inerente à própria arte. No caso do audiovisual, as séries se transformaram no mais proeminente formato do audiovisual. Ou seja, forma de consumo gerando modificações no processo criativo, com base no: "o que o mercado hoje quer!". As ideias para filmes de longa metragem, os argumentos, os roteiros, as direções, o senso estético, a direção de arte, as interpretações, a criação e utilização de trilha sonora, tudo referido ao processo criativo recebeu inovações no senso estético por uma nova forma de transformar criações e interpretações em produtos. Isso não é necessariamente ruim. O formato seriado — por exemplo — atualmente parece bastante adequado a muitas (esperamos que não todas) formas de contar histórias. No caso da manifestação musical, temos outras dúvidas. Parece ter havido uma reformulação do tratamento da canção, gerando uma emergência de tempo no que a obra deve trazer ao público. De início, já se pode perceber que os refrões foram "antecipados" e as canções agora precisam caber nas emergências das redes sociais. Não é exatamente uma antecipação de refrão — melhor explicar — é uma espécie de metonímia. O chamariz melódico, o tema melódico principal, agora precisa vir sem surpresas, em poucos segundos, ao menos se o objetivo pretendido é ser um êxito nas redes sociais. Ou seja, em novas linhas gerais, além da alteração da forma de distribuição, também reflexos significativos alcançaram o processo criativo. Assim, de súbito, é possível compreender o quanto novas formas tecnológicas podem modificar circunstâncias (criação e distribuição) impactando diretamente, portanto, no sistema de direitos vinculado ao desenvolvimento tipicamente autoral. Vejamos que chegamos neste ponto a partir de uma análise (sobre criação/direitos) impulsionada pelo streaming, mas vejamos, de forma ainda relacional, podemos chegar à algo semelhante se enviesarmos nosso ponto de partida pela inteligência artificial. A inteligência artificial vem possibilitando que antigas formas de criação sejam desenvolvidas por meio de suas ferramentas. É o que acontece mais precisamente com o Chat GPT — pois permite criação de textos — e plataformas como DALL-E e Midjourney para obras de natureza visual. Sobre estas se pode se alegar que permitem formas já previamente existentes, mas não substituem artes visuais que levam em conta o processo manual. Um possível problema que não podemos deixar de mencionar, diante desse contexto, se constitui na medida em que a IA passa a impactar na própria criação. Assim, não obstante termos salientado a importância da distribuição e da criação no streaming como algo que deve ser observado de lupa, no caso dessas breves reflexões em relação à inteligência artificial, apontamos somente a preocupação primeira sobre a criação. O que se deve compreender é: as ferramentas podem gerar danos aos criadores em diversas atividades pois podem, de fato, substituí-los em muitos processos e, seguramente, num futuro já bem próximo, de forma bastante "criativa". (O uso da expressão criativa é proposital, para chocar e trazer reflexão. No mais, se estivéssemos nos referindo ao grau de inovação artística, o termo correto seria originalidade.). Surgem algumas perguntas, portanto, como consequência dessa breve reflexão: Qual a necessidade (do ponto de vista da sociedade) de se fazer uso de ferramentas de inteligência artificial para a criação de obras de diversas naturezas, como textos, obras musicais, obras visuais? Quão satisfatório será (de forma utilitarista) e qual o preço social que será pago? Além de tais perguntas básicas, deve-se pensar no processo. O que pretende um artista, um criador, um intelectual, alcançar um resultado ou buscar o processo? O fazer também importa ao criador. Há uma alegria contundente ao se compor uma música e ao escrever um texto. Substitua-se a palavra alegria por outras emoções: diversão, agrado, satisfação, tesão.... Caminante no hay caminho, se hace caminho al andar (Antonio Machado). Correlacionando um pouco as questões, é necessário saber se valerá a pena impactar uma enorme massa de criadores, artistas, intelectuais, desestimulando-os, deslocando-os de suas atividades, transformando-os em profissionais de outras especialidades, por conta da possibilidade de que as suas atividades criativas sejam substituídas por ferramentas tecnológicas. Ou seja, damos por certo que haverá a possibilidade de substituição em algumas atividades. E talvez com alguma superioridade em alguns setores da criação. E valerá a pena? Será que a graça de tudo não está nas imperfeições? Não é essa a beleza da arte? Buscando a união das duas temáticas (streaming e inteligência artificial); entendendo que ambas podem influenciar e modificar pilares da cadeia produtiva criativa das artes (criação e distribuição) é preciso refletir sobre as consequências jurídicas, econômicas mas antes de tudo, éticas. E no campo da ética, o que poderia haver em comum entre os dois temas? Pois deveria esse ser o ponto de partida da discussão. Tratemos de incorporá-lo ao debate. Há uma compreensão — por parte do setor cultural — de que o streaming é uma mera nova forma de utilização de obras. Dito de outra forma, seria uma "janela" — expressão utilizada sobretudo no setor audiovisual. Não é bem assim. Ora, se uma nova forma de utilização é suficiente para modificar a distribuição e a criação – pelo menos em alguma medida – não se trata de algo simplório, mas muito mais profundo e que conduz a um rompimento paradigmático (modificando a forma de criação, inclusive). Mas há resistência — por mais espantoso que possa ser — ao reconhecimento de algo basilar relacionado à nova forma de se "distribuir" (genericamente), as obras. Estamos nos referindo aos direitos autorais dos criadores dos resultados artísticos. Há quem diga — de forma contraditória ao sistema de direitos autorais, sobretudo o de origem francesa (droit d'auteur) — que toda a relação contratual pode resolver a remuneração (futura) dos criadores, mesmo que a forma de utilização das obras não tenha sido prevista anteriormente. Falácia!!!! Há mais! os mesmos que utilizam tais argumentos, o fazem em nome dos pretensos infinitos ganhos de toda a indústria do setor, por óbvio, constituído sob a exploração dos criadores. Ora, se ocorreu o rompimento paradigmático (atualmente as empresas adoram se autonomear disruptivas), o streaming será a forma dominante pelos menos nas próximas décadas, e os criadores que as atravessarão estão, desde já, em maus lençóis. Diante desse caminho, questionamos: como a indústria e todos os setores envolvidos irão tratar o tema do ponto de vista da ética? De forma utilitarista? Existem limites para a perversão do artístico erigida no esquecimento dos autores (humanos)? Precisamos voltar, neste ponto, à inteligência artificial, quando ela vincula-se a capacidade de "substituição do processo criativo". As perguntas (re)voltam: Se o próprio processo criativo (inerentemente humano) é o valor da arte, como poderá não importar se o criador será ferramenta, uma máquina ou um sistema? Não importará o processo criativo, como ato sublime, simplesmente por ser humano? As imperfeições da criação humana serão substituídas por resultados promovidos por inteligência artificial e isso será bom? Umberto Eco, que nos deixou em 2016, dizia, como todos sabemos, que a internet deu voz à uma legião de imbecis, e certamente não seria fácil para ele suportar o sofrimento do que hoje desfila diante de nossos olhares. Pode parecer forçoso, demasiadamente complexo e — paradoxalmente — reducionista, mas as perguntas que insistimos em trazer à baila estão todas vinculadas à uma mesma problemática: se não nos importamos com a (re)existência dos criadores, reforçada a partir da garantia de seus direitos; se não nos importamos com a sua manutenção como criadores; se não nos importamos com a possibilidade de sua substituição, o que salta aos olhos, é que não nos importamos mais com a própria arte!!! Mas há de se recordar que a obra (de arte) — que logo se transforma (ou não) em produto — não surge espontaneamente, mas é resultado de um processo criativo, por vezes complexo, mas sempre inerente ao sentir emocional (talvez até irracionalizável) que só se dá em um ser humano. O autor vai e a obra fica. Se ele não for remunerado pode não querer continuar a criar e daí todos perdemos. Está é a lógica. Qualquer criança entende. O não pagamento dos criadores é a lógica da derrota dos criadores, dos autores, dos artistas, da arte e, portanto, de todos nós. Recebemos a sua entrega em forma de arte. A nossa entrega precisa ser coletiva, em forma de respeito e direito, e não de aceitação da sua (nossa) derrota! Já é passada a hora de refletir, publicamente, esses temas sob o viés da ética, pois afinal, são os criadores que nos permitem sobreviver nos momentos mais difíceis, amparando as nossas vidas com arte. Rogamos aos que ainda se alimentam de arte que não podemos deixar-lhes à margem nessa sociedade high-tech, afinal, diante da ausência de artesãos/artistas e da cada vez mais próxima (re)produção mecânica de padrões (a)estéticos e sem valor, o que seria de nós? Por todas essas razões, entendemos que esse debate público é necessário e não somente pertence aos criadores (primeiros afetados), mas pertence a todos nós que resistimos todos os dias à massificação acrítica que a estética pós-moderna nos impõe todos os dias.
2023-06-03T10:20-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-03/diario-classe-sociedade-devemos-refletir-direitos-autorais
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Opinião
Pedro Colucci: Presidencialismo enquanto ideia
Para delinearmos a gênese do presidencialismo enquanto sistema de governo, precisamos nos voltar para o processo de elaboração da Constituição dos Estados Unidos de 1787. Na obra seminal Do Espírito das Leis, escrita em 1748, Montesquieu desenvolve a ideia de separação dos poderes, visando impedir a concentração destes nas mãos de uma única figura e garantir, assim, o desenvolvimento de um sistema que pudesse sustentar a preservação das liberdades e dos direitos fundamentais de todos os cidadãos. Com base na estrutura erguida por Montesquieu, surgiram os Papeis Federalistas, isto é, uma série de artigos escritos em 1787, por James Madison, Alexander Hamilton e John Jay divulgados durante o período da Convenção da Filadélfia. Os artigos funcionavam como um instrumento de convencimento para estabelecer o federalismo nos EUA. Madison, no artigo nº 51, desenvolveu minuciosamente a concepção moderna do sistema de freios e contrapesos, isto é, um sistema de compensação entre os poderes da república baseado na dinâmica de controle recíproco entre os poderes no âmbito de suas funções constitucionais, visando evitar excessos. "[...] a insuficiência deve ser suprida imaginando a estrutura interna do governo de tal modo que as suas partes constituintes possam, através das suas relações mútuas, constituir os meios de manter–se umas às outras nos devidos lugares" (MADISON, 1993, p. 291). Assim, com as bases lançadas para a criação de um sistema de governo sólido, estrutura-se a ideia do presidencialismo. Trata-se de um sistema unitário, onde a chefia de governo e de Estado estão concentradas na figura de uma única autoridade: o presidente da república. Este será votado para exercer seu mandato dentro de um prazo determinado, evitando-se assim que o sistema descambe para uma monarquia eletiva. Da mesma forma, em diversas constituições costuma-se limitar ou impedir as reeleições, com o intuito de evitar a perpetuação no cargo. O legislativo e o executivo encontram-se independentes um do outro no presidencialismo, assim, esta conformação garante que o presidente cumpra o seu mandato até o final, sem ter como condição de permanência o apoio que possui no congresso. Da mesma forma, o congresso não pode, sob nenhuma hipótese constitucional, ser fechado pelo presidente (AFONSO DA SILVA, 2021). Canotilho (2012, p. 582) assevera: "Não existem controles primários entre o presidente da república e o congresso: o presidente não tem poderes de dissolução das câmeras e nenhuma destas ou ambas têm a possibilidade de aprovar moções de censura contra o presidente." Em comparação com o parlamentarismo, no presidencialismo as responsabilizações políticas dos atos do governante são mais traumáticas em termos de danos institucionais. Enquanto que no parlamentarismo basta que o primeiro-ministro perca sua maioria junto à câmara para que tenha que pedir demissão, no presidencialismo existe o instituto do impeachment, que prevê o afastamento do presidente que comete um crime de responsabilidade, após um longo processo jurídico-político institucionalmente desgastante. Analisar as escolhas que o presidente faz enquanto ator dentro do sistema e, portanto, constrangido pelas instituições, trata-se de um dos principais pontos de estudo da ciência política. Contribuições recentes, procuram investigar o quanto a Constituição de fato limita o exercício do poder presidencial, tanto em assuntos internos como externos, e quanto o legislativo pode frear os avanços de um executivo descontrolado. Eric A. Posner e Adrian Vermeule (2011) discutem a ideia de um executivo sem amarras, isto é, defendem a concentração de funções nos domínios do Poder Executivo, considerando que este seria o mais eficiente em capacidade de implementar políticas e realizar manobras para conservar o bem-estar social em cenários de crise. Dessa forma, defendem uma redução dos mecanismos de freios, e uma aproximação aos conceitos de Estado de Carl Schmitt frente aos desafios contemporâneos, distanciando-se das molduras republicanas criadas por James Madison. Em suma, a partir dessa breve análise, procurou-se tratar da formação do sistema de governo presidencialista, percorrendo sua origem e conceituação, atravessando os pensamentos de autores que erigiram as bases do sistema, e também daqueles que se debruçaram sobre suas dimensões. Isto posto, procurou-se também apontar tendências contemporâneas de análise no âmbito da ciência política e suas contribuições ao entendimento do tema. _________________________ Referências bibliográficas AFONSO DA SILVA, Virgílio. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2021. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2012. MADISON, James. XLI - Análise Geral dos Poderes que se pretende conferir à União. In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os Artigos Federalistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 291. POSNER, Eric. A, VERMEULE, Adrian. The Executive Unbound: After the Madisonian Republic. Chicago: Oxford Press, 2011.
2023-06-04T11:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-04/pedro-colucci-presidencialismo-enquanto-ideia
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Embargos Culturais
O Código de Machado de Assis, obra definitiva de Miguel Matos
Estudos sobre a relação da obra de Machado de Assis com o Direito são importantes no selo Direito e Literatura. Entre eles, o clássico de Aloísio de Carvalho Filho, Machado de Assis e o Problema Penal, o livro de Nilo Batista, Machado de Assis Criminalista, a par do vigoroso estudo de José Osterno Campos de Araújo, Direito Penal na Literatura de Shakespeare, Machado e outras virtuoses. Raymundo Faoro também tratou indiretamente do apaixonante tema em Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio. O propósito do livro de Faoro não era uma investigação do conteúdo jurídico na obra de Machado de Assis. Compôs um estudo abrangente sobre pontos sociológicos, econômicos e políticos dos textos do Bruxo do Cosme Velho (essa referência não poderia faltar no assunto), porém marcados com os olhos de um jurista. Não nos esqueçamos que Raymundo foi também advogado militante, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, de 1977 a 1979. Opino aqui que o estudo definitivo sobre o assunto, Machado de Assis e o Direito, está contido no fascinante livro de Miguel Matos, O Código de Machado de Assis. Há um estudo anterior do assunto, que Miguel Matos publicou com Cássio Schubsky, quando os autores divulgaram trabalho então pioneiro sobre o direito na vida e na obra de Machado. Conheci Cássio, que morreu precocemente de infarto; tinha 45 anos. Era um apaixonado pela história do direito. A ConJur publicou uma entrevista do Cássio na edição de 8 de fevereiro de 2011. Miguel Matos aprofundou e avançou no assunto. É o maior especialista na matéria. O Código de Machado de Assis é um livro inteligente, sutil, irônico muitas vezes, como assim também era o escritor estudado. A obra é organizada na forma de um Código, seguindo a estrutura da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, texto que regulamenta a composição de normas jurídicas: um documento fundamental para quem estuda legística, ciência que se ocupa com a qualidade das leis. O Código de Machado de Assis é um livro completo sobre os aspectos jurídicos da obra machadiana. O autor principia com uma "Exposição de Motivos" extremamente provocativa e que conclui com a necessidade de que o interessado também se socorra das fontes primárias; isto é, Miguel Matos exorta para que leiamos o grande escritor brasileiro. O autor divide o livre em três capítulos, que são subdivididos em 13 artigos. Um modo inusitado de expor o legado jurídico de Machado. O Capítulo I trata de aspectos da vida de nosso grande escritor. Miguel Matos sintetiza a vida de Machado (artigo 1º), comenta (com documentos originais) a trajetória do funcionário público (artigo 2º), assunto pouquíssimo explorado. Nesse tema, lembrou-me apenas do estudo de Paulo Guedes e Elizabeth Hazin, Machado de Assis e a Administração Pública Federal, publicado pelo Senado Federal. Machado trabalhou no Ministério da Agricultura, elaborou pareceres sobre assuntos gravíssimos, que incluíam problemas relativos a escravos e ações de liberdade. Miguel Matos reproduziu um parecer de Machado, exemplo de concisão e objetividade. Machado principia com a pergunta (Das sentenças (...) contrárias à liberdade, cabe apelação ex-offício?), segue com a opinião direta (Minha resposta é afirmativa) e em seguida justifica o ponto de vista que elegeu como legal e legítimo. Ainda no Capítulo I, Miguel Matos explora a feição diplomática de Machado de Assis, o que ilustra com a amizade do escritor com Joaquim Nabuco. É o tema do artigo 3º. Em seguida, artigo 4º, o autor cuida da fundação da Academia Brasileira de Letras. Há uma ilustração que fixa Machado no centro de um círculo, e em torno dele gravitam, entre outros, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Rodrigo Octavio, Rui Barbosa, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco, Inglês de Sousa, Graça Aranha, Eduardo Prado, Coelho Neto, Araripe Júnior. São os fundadores da Academia Brasileira de Letras. A Capítulo II trata da obra literária de Machado de Assis propriamente dita. No artigo 5º são explorados os romances, excertos sempre marcados por inquietantes questões jurídicas. São nove incisos (que variam de Ressureição a Memorial de Aires). O leitor é premiado com reproduções de recortes de jornais da época, relativos à propaganda e venda dos livros, bem como um fac-símile do contrato que Machado firmou com a Editora Garnier, pertinente à edição de seu último romance. No artigo 6º Miguel Matos explora a poesia machadiana. O fragmento é dividido em quatro incisos. Miguel Matos reproduz e comenta um poema de Machado, que tem como tema a disputa entre os dois pássaros pelo amor de uma rosa. O sol é o juiz. Miguel Matos provoca o leitor, a propósito do cabimento de peça recursal. No artigo 7º o autor explora as peças teatrais de Machado, com reproduções de jornais, uma delas noticiando a apresentação de um espetáculo de autoria do autor estudado. O artigo 8º é dedicado à atuação de Machado como crítico literário. A parte relativa às crônicas (artigo 9º) é uma das mais saborosas do livro. Miguel Matos demonstra como Machado enfrentava temas de direito constitucional, eleitoral, civil, notarial, penal. O leitor entusiasma-se com uma carteira da OAB, com foto e assinatura do próprio Machado, e com modelos de petição de Machado, que em crônicas motejava e comentava a atuação dos causídicos da época. Desfilam pelas análises de Miguel Matos as crônicas de Machado sobre temas superlativamente contemporâneos, a exemplo dos direitos dos animais, da liberdade religiosa, de estatísticas da Justiça, da reforma do Judiciário, do voto feminino, de preconceitos de gênero, de brigas de galo, do problema do excesso de advogados, da dosimetria das penas, e até da legalização da prostituição. Miguel Matos presenteia o leitor com um verdadeiro roteiro para dissertações e teses no campo Direito e Literatura. No artigo 10 Miguel Matos explora os contos de Machado, expondo a vasta galeria dos "doutores" machadianos, em passo extremamente importante para problematização e exploração de nossa cultura bacharelesca. Ainda no artigo 10, § 2º, Miguel Matos apresenta expressivo conjunto de citações de Machado de Assis. No Capítulo III, artigo 11, Miguel Matos apresenta precioso inventário dos personagens jurídicos de Machado de Assis. Uma bibliografia completa é objeto do artigo 12. Miguel Matos ironicamente fecha o livro (artigo 13) observando que o trabalho é para a eternidade (glosando Napoleão e seu Código Civil), opondo sardonicamente o veto do Dr. Simão Bacamarte. O livro é fartamente ilustrado e editado, o que revela paciente estudo do legado iconográfico relativo a Machado de Assis. José Sarney (que é da ABL) apresenta o livro. O ministro Luís Roberto Barroso é autor de um deleitoso prefácio, inclusive com reminiscência de um concurso de fantasias do Hotel Glória (quando estava em sua primeira juventude, afirmando estar agora na terceira, o que é indício de seu fortíssimo e inteligente humor machadiano). O ministro Barroso projeta as categorias do concurso no livro prefaciado. O Código de Machado de Assis, de Miguel Matos, é uma obra definitiva porque põe pá de cal em assunto até então tratado de modo muito disperso. E é também o ponto de partida para uma aventura intelectual incessante e interminável pela obra literária mais nossa que conhecemos. Quem me leu até aqui, por favor, pare tudo. E recomece a pensar o direito com referência nessa obra de Miguel Matos, que é marcada por superlativa excelência investigativa, acadêmica e cultural.
2023-06-04T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-04/embargos-culturais-codigo-machado-assis-obra-definitiva-miguel-matos
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Justiça Tributária
Afinal, isenções tributárias são "grandezas negativas"?
Este texto marca a minha chegada, junto com o amigo e companheiro no Departamento de Direito do Estado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Marcus Lívio Gomes, à coluna Justiça Tributária. Será um prazer dividir este espaço com Raul Haidar e Fernando Facury Scaff às segundas-feiras. Para esta contribuição inaugural, resolvi me aproveitar de um dos temas mais debatidos no Direito Tributário em 2023, e olha que a concorrência este ano está grande. Tratarei de um aspecto relacionado à controvérsia a respeito do tratamento, para fins de apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), das subvenções fiscais concedidas pelos estados. Meu objetivo, aqui, não será analisar esta matéria em todas as suas diferentes faces. Trata-se de um assunto poliédrico que pode ser examinado sob diversos pontos de vista. A questão que quero trazer é relacionada, especificamente, à natureza jurídica das isenções fiscais — e apenas das isenções, de modo que não cuidarei de outras formas de concessão de benefícios fiscais, como as reduções de alíquotas e de base de cálculo. De fato, uma parte do debate sobre as subvenções, nessa controvérsia sob análise pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), acabou sendo pautado por aspectos contábeis, os quais, embora certamente relevantes, a meu ver não deveriam ser o marco para a discussão a respeito da natureza jurídica dos institutos sob exame. Por outro lado, um assunto que poderia ter tido um papel mais central, e aparentemente não teve, refere-se exatamente à natureza das isenções a partir do Código Tributário Nacional (CTN), considerando algumas das premissas que foram estabelecidas para diferenciar as subvenções concedidas via isenções daquelas instrumentalizadas por créditos presumidos. Um aspecto que ganhou repercussão em relação a esta matéria foi a classificação diferenciadora proposta entre "grandezas positivas", categoria na qual se encontrariam qualificados os créditos presumidos, que geram um reflexo positivo no resultado da pessoa jurídica mediante o reconhecimento de uma receita; e "grandezas negativas", tipo no qual estariam qualificadas as isenções, que seriam uma abstenção de incidência e, consequentemente, não gerariam impactos no resultado. Como mencionei, buscou-se colocar em xeque esta classificação a partir de um referencial contábil, tentando-se demonstrar que haveria base na contabilidade para justificar o reconhecimento de um impacto no resultado também no caso das isenções. Entretanto, parece-me que a questão de fundo é jurídica e deveria ser estabelecida a partir do CTN. Por estranho que possa parecer, embora o CTN caminhe para completar 60 anos, e as isenções tributárias estejam longe de ser um fenômeno atípico no Brasil, ainda hoje há celeumas doutrinárias e um silêncio eloquente do Poder Judiciário na definição da natureza jurídica das isenções, que vêm tratadas no Código a partir de seu artigo 175 como formas de "exclusão do crédito tributário". Se voltarmos no tempo e buscarmos entender a "exclusão do crédito tributário" de uma perspectiva histórica, notaremos que a visão cristalizada no CTN foi o entendimento de Rubens Gomes de Souza. Já em seu relatório sobre o projeto do Código, o professor da USP consignou que "o artigo 140 enumera as causas que excluem a exigibilidade do crédito tributário sem entretanto importar na extinção daquele, nem, por consequência, na da obrigação correspondente. São a isenção e a anistia" [1]. Note-se que esse artigo 140 tinha redação equivalente ao atual artigo 175 do CTN. Segundo este entendimento, nos casos de isenção o fato gerador do tributo respectivo se manteria íntegro, nasceria a obrigação tributária, fazendo surgir a relação jurídica entre o ente tributante e o sujeito passivo, e a norma isentiva atuaria diretamente sobre o crédito tributário, excluindo a sua exigibilidade. Daí ser tão comum em autores que escreveram contemporaneamente e nas primeiras décadas que seguiram à edição do CTN a referência às isenções como espécie de "dispensa legal do pagamento do tributo". Contudo, essa visão não reinou sem questionamento por muito tempo. Logo surgiu uma teoria concorrente, que com o tempo passou a ser defendida por diversos autores e autoras, no sentido de que a norma isentiva atuaria sobre a própria norma de incidência, reduzindo o seu escopo, objetivo ou subjetivo. Consequentemente, a concessão de uma isenção resultaria na inexistência de fato gerador e, sendo assim, impediria o próprio nascimento da obrigação tributária. É interessante observamos, a esta altura, que não existe uma ontologia das isenções. Isenção é um conceito normativo que só pode ser definido a partir dos limites do próprio ordenamento jurídico. Em outras palavras, uma isenção é aquilo que o CTN estabeleceu. Se o Código andou mal, ou está ultrapassado, ou deveria ter trazido regulação diferente é um outro debate. De fato, parece-me que já passou a hora de uma revisão do CTN, mas isso é tema para uma outra coluna. Contudo, não nos parece que a definição das isenções fiscais deva ser construída a partir da filosofia ou da teoria geral do Direito. Logo, é no CTN e com base nele que essa definição deve ser construída. Provavelmente por reconhecer que esta é uma questão que deve ser solucionada a partir do CTN, a doutrina que defende a segunda corrente, que postula que a norma de isenção impede que nasça a própria obrigação tributária, se apressou em estabelecer a premissa de que o artigo 175 do Código conviveria com ambas as teorias. Segundo este entendimento, a expressão "exclusão do crédito tributário" poderia ser interpretada tanto como "exclusão da obrigação e, consequentemente, impedimento do surgimento do crédito tributário respectivo", ou como "exclusão do próprio crédito tributário, mantendo-se íntegra a obrigação subjacente". Não nos parece que esta seja a leitura mais correta do CTN. De fato, se partirmos da dicotomia entre obrigação e crédito tributário criada pelo Código, parece uma interpretação um tanto forçada imaginar que a "exclusão do crédito tributário" atuaria diretamente sobre o fato gerador, impedindo o surgimento da própria obrigação tributária. Entendemos que o CTN refletiu a visão de seu elaborador primeiro, Rubens Gomes de Souza, no sentido de que a regra de isenção não mutila a regra de incidência tributária de nenhuma maneira, atuando apenas sobre a pretensão do ente tributante e eliminando a exigibilidade do direito ao tributo. Consciente ou inconscientemente, a doutrina que sustenta a segunda corrente que apresentamos acima parece querer lidar com uma outra questão complexa, que tem relação com o tema de que ora nos ocupamos, qual seja a aplicação da regra de anterioridade nos casos de revogação de uma isenção. Com efeito, sob a luz da primeira corrente — que nos parece ter sido adotada pelo CTN —, uma vez que a isenção jamais teria afastado a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária, agindo diretamente sobre a exigibilidade do crédito tributário, haveria espaço para se sustentar que a revogação de uma isenção não geraria a criação ou majoração de tributo. A seu turno, de acordo com a segunda linha teórica que apresentamos, não haveria dúvidas quanto ao fato de que a revogação de uma isenção resultaria em um alargamento do alcance da regra de incidência tributária. Entretanto, cremos que esse debate reforça a leitura que nos parece mais correta do CTN. De fato, não podemos esquecer que o Código lidou com esta questão no inciso III do seu artigo 104, ao estabelecer que "entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda [...] que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178". Portanto, antecipando que, segundo a posição adotada pelo Código, a questão da revogação de uma regra isentiva geraria uma quebra nas expectativas do contribuinte, o próprio CTN previu que a regra de anterioridade seria aplicável neste caso. Contudo, e este sempre foi o grande ponto de discussão em relação a este dispositivo, o caput do artigo 104 faz referência apenas a tributos sobre o patrimônio ou a renda, o que poderia deixar de fora do seu alcance diversos tributos relevantes em termos arrecadatórios. De toda forma, por mais que essa seja uma questão relevante, não podemos perder de vistas que na década de 1960, sob outra ordem constitucional, os debates sobre a proteção da confiança dos contribuintes nos atos do poder público ainda eram rudimentares. Portanto, considerando os avanços nesses mais de cinquenta anos não cremos que a proteção dos contribuintes contra a surpresa causada por um novo dever de desembolso de caixa esteja fora do alcance da regra da anterioridade, mesmo que seja adotada a primeira corrente acima, que nos parece a mais adequada. O mais interessante é que, passados tantos anos, até agora não há uma tomada de posição explícita dos tribunais superiores sobre este tema, cuja relevância é evidente. A discussão atual sobre a questão do tratamento dos benefícios fiscais de ICMS na apuração do IRPJ e da CSLL poderia ser uma ótima oportunidade para termos uma interpretação clara do Poder Judiciário sobre essa matéria. [1] MINISTÉRIO DA FAZENDA. Relatório apresentado pelo Prof. Rubens Gomes de Souza, relator geral, e aprovado pela Comissão Especial nomeada pelo Ministro da Fazenda para elaborar o Projeto de Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Fazenda, 1954.
2023-06-05T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-05/justica-tributaria-afinal-isencoes-tributarias-sao-grandezas-negativas
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Academia de Polícia
Relatório policial regenerado: o depoimento do delegado
Da prova testemunhal na persecução penal A regra geral é a de que qualquer pessoa pode ser testemunha, nos termos do artigo 212 do CPP. A doutrina tradicional corrobora que testemunha é a pessoa que perante a autoridade declara o que sabe a respeito do fato criminoso (Mirabete, p. 553). O depoimento testemunhal possui uma série de atributos, como a oralidade (é vedado o depoimento escrito, em regra, artigo 204 CPP), objetividade (a testemunha deve se ater aos fatos, não externas opiniões), individualidade (as testemunhas são ouvidas separadamente, sem contato umas com as outras) e a retrospectividade (o testemunho se refere a fatos passados). É de se apontar que a testemunha, para ser classificada como tal, precisaria ter presenciado uma situação vinculada ao fato criminoso e às suas circunstâncias. Nem sempre é assim que acontece. Até existe uma certa flexibilização em face da testemunha de ouvir dizer. Tal espécie de testemunha é conceituada pela doutrina como "testemunha auricular", ou seja, ela não presenciou os fatos em si, mas ouviu outras pessoas falarem sobre ele [1]. Portanto, é adequado haver pertinência lógica entre o fato apurado e a fonte de prova subjetiva (depoente), não sendo cabível fazê-lo em face de um agente público que somente realizou meros atos de ofício na investigação ou no processo penal. O delegado de polícia não se enquadra tão facilmente nesse conceito de testemunho direto, portanto. Na verdade, esses profissionais costumam ser chamados à baila para trazerem ao processo o caminho da investigação, ou seja, a forma de produção dos elementos de convicção produzidos no desenrolar do inquérito policial. O papel do delegado de polícia na investigação criminal Os delegados de polícia exercem funções de polícia judiciária e de polícia investigativa, ou seja, atuam de forma mais clara somente após a ocorrência de infrações penais. E, graças a esse papel mais repressivo do que preventivo, são poucas as vezes em que tais autoridades presenciam os fatos criminosos. Mas isso não vem impedindo a banalização da intimação para que delegados de polícia compareçam às audiências judiciais para resumirem o teor das investigações para as partes, bem como esclarecerem como chegaram (por técnicas investigativas sigilosas) a tais resultados. O chamamento do delegado de polícia como testemunha para somente relatar atos investigativos (e seus caminhos) não tem razão lógico-jurídica, porquanto não agrega fatos novos além dos já passíveis de se acessar pela mera leitura atenta do relatório policial. Gize-se que o delegado costuma não ter presenciado nenhum ato criminoso (falta pertinência lógica). Seguidamente, externa ele a sua opinião técnico-jurídica sobre a autoria delitiva (indiciamento) com base nos elementos trazidos aos autos. Não é incomum, também, que delegados sejam chamados a depor sobre técnicas de investigação, o que é um absurdo ainda maior. E essa dependência das percepções do delegado de polícia acaba escancarando o fato de a maioria das ações penais serem réplicas do que foi produzido na investigação criminal. A segunda conclusão é ainda mais impactante: não só se reproduz o que foi produzido no inquérito policial, mas também se tenta dar uma nova roupagem ao relatório do delegado de polícia. A isso chamaremos de relatório policial regenerado em prova testemunhal. O delegado de polícia como fonte de prova Nessa forma de intimação anômala, a oitiva do delegado serve para resumir o teor da investigação policial em um ato processual detalhado, crivado pelo contraditório, transformando-se a autoridade que conduziu a investigação em fonte de prova e, por isso, criando o instituto que preferimos chamar de testemunho indireto pela presidência das investigações. Essa lógica, na verdade, transforma não só o delegado em fonte de prova, mas também o próprio relatório policial, o qual, pela força de conexão entre os elementos probatórios que nele foram narrados, passa a deter autonomia probante. É que a percepção do delegado sobre a conexão dos elementos probatórios produzidos surge como elemento probatório autônomo, quando ele é ouvido em termo de depoimento. E isso não deveria ser banalizado da forma que está sendo. Inclusive, outros profissionais acabam temendo por represálias jurídicas semelhante e acabam sendo colocados em semelhante situação de constrangimento em face da prestação de depoimentos nada ortodoxos. É o caso dos peritos criminais. Veremos mais sobre isso à frente. A exemplo desses outros profissionais, a legislação não retira do delegado de polícia a prerrogativa de se manifestar nos autos por meio das peças jurídicas, previstas expressamente no ordenamento. Afinal, não deveriam ser, ordinariamente, fontes ordinárias de prova, pois a lei determina que se manifestem nos autos por meio de seu relatório final. A exemplo do laudo pericial, o delegado de polícia age de ofício (determinado pelo artigo 10 do CPP), confeccionando o relatório final do inquérito policial, lembre-se. É nesse momento procedimental que o delegado valora os atos investigativos produzidos, descreve as diligências e justifica sua capitulação jurídica para fins de indiciamento, indicando se o fato criminoso realmente ocorreu e se estão presentes elementos suficientes de autoria. A expedição do relatório final não impede que outras diligências sejam requeridas, nem muito menos que pontos essenciais ao oferecimento da denúncia sejam sanados por meio de relatórios complementares. Mas há uma forma correta (e ordinária) de fazê-lo. Das diligências complementares necessárias à denúncia É importante mencionar que o delegado expõe sua percepção técnico-jurídica sobre os fatos no relatório policial final, momento em que, inclusive, promove ou não o indiciamento. E se as diligências não são suficientemente esclarecedoras, cabe ao Parquet manifestar-se pela complementação daquelas que sejam realmente imprescindíveis à oferta da peça inicial (artigo 16 do CPP). Contudo, prefere o Parquet amiúde oferecer denúncia e, ao invés de solicitar a necessária elucidação de liames até então incompreendidos, arrolar o delegado de polícia como testemunha indireta pela investigação por ele conduzida. Não é razoável, contudo, que as partes defensiva e acusatória tentem se utilizar do delegado de polícia como depoente em situações tais que ele não tenha participação direta a dinâmica criminosa, mas somente relatado o que se sucedeu ao longo da investigação. E quando falamos em participação direta na dinâmica criminosa é incluir o delegado no palco do crime (presencial ou virtualmente), não sendo possível tê-lo como depoente só pelo fato de ter conduzido ou acompanhado atos de investigação posteriores ao momento consumativo dos crimes em apuração, mesmo que por intermédio de medidas em tempo real, a exemplo da intercepção telefônica etc. Delegado como testemunha em substituição A Lei n° 11.719/08 alterou a antiga redação do artigo 405 do CPP que trazia a possibilidade de substituição das testemunhas de defesa e da acusação que não fossem encontradas. A revogação de tal dispositivo deixou um hiato no que se refere a possibilidade de substituição de testemunhas, o que parece ter incentivado que o Ministério Público buscasse uma alternativa para tal [2]. E isso é relevante, pois acreditamos que há motivos justos que justificam a intimação do delegado para depor em juízo. Uma delas é o depoimento do delegado em substituição a testemunhas ausentes, coagidas ou mortas, inclusive. Nesses casos, parece razoável que o Ministério Público ou a defesa intimem o delegado de polícia como testemunha substitutiva, com o objetivo de buscar um provimento jurisdicional justo e legítimo, a fim de por termo à lide criminal. Ou seja, legítima é a substituição testemunhal, e não a intimação do delegado com prevalência sobre indivíduos que sejam efetivamente fonte de prova. Daí sim há motivo razoável para colher tal percepção, pois daí o processo de reconstituição da verdade vai além do que foi esposado no relatório policial final. Da investigação de societatis sceleris: outra exceção Existem certas investigações que se vinculam a fatos criminosos em que a respectiva consumação se protrai na linha do tempo. Versam, portanto, sobre crimes ditos permanentes. Nesse caso em específico, o delegado não só participa da operacionalização de medidas probatórias em tempo real, mas também acompanha (e pode influenciar) diretamente na dinâmica criminosa, a qual ainda está a se consumar. Exemplo comum desse tipo de investigação são as que versam sobre sociedades criminosas (exemplo de associação para o tráfico, organização criminosa, associação criminosa etc.). Nesses casos, não é a complexidade da investigação que justifica a possibilidade de o delegado figurar como testemunha indireta, mas sim o fato de, ao longo da investigação, o crime ainda manter seu momento consumativo protraindo-se no tempo. Assim, a participação do delegado não se resume ao fato de ser o presidente de investigação de fato pretérito, mas por ser testemunha contemporânea do desenrolar do crime societário. Do testemunho de outros agentes da segurança pública Existem agentes que, ainda que não sejam fontes de prova, agem em prol da investigação. Manifestam-se por documentos orbitários ao relatório final do inquérito policial, não cabendo a eles a condução da investigação criminal. Documentam sua atuação por meio de laudos, relatórios de investigação e ofícios de resposta. Por isso, não há dúvidas que agentes de polícia, os quais tenham de alguma forma participado de atos vinculados à investigação criminal podem ser ouvidos como testemunhas. Militares e guardas municipais, por sequer deterem possibilidade ordinária de se manifestarem nos autos, são suscetíveis de serem arrolados como testemunha. Quanto aos peritos, há peculiaridades a serem trazidas. Os peritos: a manifestação por laudo complementar Os peritos criminais são bons paradigmas para reforçar o porquê de os delegados não poderem ser banalizados como depoentes, quando somente presidiram investigações sobre fatos pretéritos. Importa destacar que os peritos criminais estão inseridos em arcabouço normativo próprio, a exemplo dos delegados. Possuem a prerrogativa legal de manifestarem-se ordinariamente por intermédio dos laudos que confeccionam, os quais serão invaginados nos respectivos procedimentos persecutórios. É fato que, a exemplo dos delegados de polícia, os peritos se manifestam por meio de documentos escritos nos autos. Mas há diferença de grau em suas atuações. O delegado requisita a atuação do perito, o qual age em prol da investigação criminal que é conduzida pelo delegado de polícia. Portanto, os experts materializam vestígios vinculados a ações criminosas e respondem quesitos formulados pelas autoridades que conduzem a investigação ou o processo, para que tais elementos ganhem sentido científico. Não podem adentrar em méritos técnicos-jurídicos, até mesmo por sua qualidade acessória da investigação (artigo 159, parágrafo 3º, do CPP). A legislação até prevê que, havendo necessidade de esclarecimento mais detalhado sobre algum ponto da perícia, as partes podem pleitear a oitiva dos peritos em audiência. Mas é importante que se perceba que essa não é a regra. Isso porque os peritos podem, ainda que intimados para comparecerem, decidir por apresentarem as informações complementares por meio de laudo. E isso é relevante para mostrar o caráter subsidiário do depoimento. Vejamos: "Art. 159. § 5º. Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: I - requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar;" O promotor não pode ser testemunha indireta pela presidência do PIC Mantendo simetria até mais perfeita com outro agente que, ainda que anomalamente exerça as funções de presidente da investigação criminal, citamos o caso do membro do Parquet. Do mesmo modo que a doutrina menciona não fazer sentido que o membro do Ministério Público — que conduziu um procedimento de investigação criminal (PIC) — seja testemunha do processo criminal respectivo, há que se expor que, via de regra, também não deveria o delegado de polícia servir como tal. Os tribunais superiores vêm decidindo nesse sentido. "HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ESTELIONATO. ALEGAÇÃO DE IMPEDIMENTO DE TESTEMUNHA. Tese não apreciada pelo Tribunal Estadual em razão da má Instrução do pedido. Supressão De Instância. Existência de patente ilegalidade a ensejar a concessão da ordem ex officio. Impossibilidade da oitiva, como testemunha, de ex-promotor de Justiça que atuou no Procedimento Investigatório Criminal em que foram apuradas as supostas condutas delitivas do réu. Precedentes. Pleito Liminarmente Indeferido, contudo, ordem de Habeas Corpus concedida de ofício." (HC 744255-SP, rel. ministra Laurita Vaz, julgado em 27/5/2022) Ainda nessa linha de raciocínio: "RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DESNECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA DEFESA PARA O JULGAMENTO DO WRIT. FEITO LEVADO EM MESA. SÚMULA Nº 431/STF. HOMICÍDIO QUALIFICADO. INTERROGATÓRIO POLICIAL ACOMPANHADO POR MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DENÚNCIA. PROMOTORES ARROLADOS E OUVIDOS COMO TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO. NULIDADE. [...] 2. Não é possível ao membro do Ministério Público, que nessa condição atuou na fase inquisitorial, ser ouvido como testemunha em juízo, por absoluta incompatibilidade. É nítida a confusão feita entre os papéis de parte processual e testemunha (sujeito de provas), tornando-se evidente a nulidade absoluta dos depoimentos prestados em juízo pelos Promotores de Justiça que exerceram suas funções no inquérito policial, ainda que tenham se limitado a acompanhar o interrogatório do recorrente. 3. Recurso ordinário provido, rejeitada a preliminar." (RHC nº 20.079/SP, relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJe de 22/2/2010) Breve conclusão E isso tudo nos leva a concluir sobre a importância do presente debate. Não pode o depoimento do delegado ser proibido peremptoriamente, pois há situações razoáveis que o justificam; mas também não há como banalizá-lo por mera conveniência intelectiva daqueles que não compreenderam o que se encontra narrado no relatório policial. O papel de equidistância do delegado precisa ser mantido não só para a preservação de sua imparcialidade na investigação, mas também após a sua finalização (quando da ação penal correlata). Quando o delegado de polícia atua injustificadamente como fonte de prova (ainda que indiretamente), acaba desequilibrando a balança entre acusação e defesa.
2023-06-06T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-06/academia-policia-relatorio-policial-regenerado-depoimento-delegado
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Opinião: Controle de poder com transparência e participação
Guillermo O’Donnell (1936-2011), cientista político argentino, dedicou-se entre os anos 1990 e 2000 [1] aos estudos para compreensão dos caminhos e características das democracias latino-americanas recém instituídas nas décadas anteriores. Propôs a ideia de "democracia delegativa" como o novo tipo de regime erigido entre tais países, nos quais os pleitos eleitorais, mesmo que livres e periódicos, seriam praticamente os únicos mecanismos em que o exercício do poder seria de fato levado a algum nível de controle, o que denominou de accountability vertical. Entre os pleitos, o poder nesse tipo de democracia restaria sob reduzido controle exercido pelos cidadãos e instituições mais perenes, nas formas da accountability societal-vertical e horizontal. Para o autor, em "democracias representativas" a accountability não restrita às eleições seria exercida com maior plenitude e cooperação entre suas dimensões popular e técnico-especializada, esta última relativa às burocracias de controle governamental. Na atual visão sobre governança pública e capacidades estatais, tais dimensões referem-se à participação e controle social, exercida por meio de conselhos de políticas públicas e de canais de denúncia e mecanismos de transparência, e ao corpo de auditores e congêneres. No ordenamento brasileiro, esse arranjo que une sociedade e máquina pública está nos dispositivos da carta magna sobre direito à informação, princípios da administração pública, controle externo e interno, Ministério Público, conselhos etc. Um ecossistema de atores autônomos e que atuam em rede e que convivem com mecanismos de fomento e viabilização da participação popular. Essa abordagem pressupõe que não existe "controle sem povo". Ainda que sejam relevantes as atuações de órgãos especializados e que no Brasil eles tenham sido objeto de destaque e robustecimento, sua ação pode se ver dissociada de demandas populares e afastada dos problemas dos cidadãos no cotidiano das políticas públicas. Como resultado, representações, práticas e estruturas vêm reproduzindo uma certa tecnocracia e insulamento no funcionamento das burocracias de controle governamental, a partir um olhar que prioriza, com determinada particularização, perspectivas que excluem e reproduzem desigualdades. E como fazer o controle burocrático encontrar a população? Uma das soluções pode estar no aprimoramento do controle com o binômio transparência e participação social. Esse binômio indissociável funda-se a partir de princípios constitucionais cuja efetivação vem sendo implementada pelos mais diversos arranjos políticos-institucionais, que têm como exemplos paradigmáticos a construção de uma institucionalidade de conselhos, comitês, grupos de trabalho e outros espaços que vêm auxiliando a administração pública na tomada e na implementação de um arcabouço jurídico voltado à transparência, e cujo destaque maior pode ser dado para a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2021), marco desse movimento. Este breve artigo discute a recente iniciativa do governo federal brasileiro por meio da edição do Decreto nº 11.529, de 16 de maio de 2023, a partir da problemática do "controle sem povo" no Brasil. Cabe indicar que o decreto, limitado ao Poder Executivo federal, "Institui o Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal e a Política de Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal". De um lado, esse novo ato busca aprimorar a escolha já trilhada pelo governo federal de adoção do modelo da "integridade pública" para sistematizar componentes estruturais e instrumentais de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e correlatas. De outro, visa reforçar a transparência e o acesso à informação, à medida em que traz princípios, objetivos e diretrizes comuns, inseridos em um sistema estruturante junto com a integridade, como já existe para a função auditoria interna, ouvidoria e corregedoria no executivo federal. Não se pretendendo uma interpretação necessariamente teleológica do decreto, a partir de uma leitura mais atenta, é possível indicar que o aprimoramento buscado na sistematização do exercício do controle de práticas de corrupção e correlatas está primeiramente refletido na nova divisão de papéis e responsabilidades entre as estruturas central e setoriais de orientação, coordenação, monitoramento e avaliação. Como segundo ponto, junta-se ainda a reafirmação da escolha da abordagem de gestão de riscos como perspectiva teórica e metodológica a partir da qual deve-se aportar a análise e a mensuração das práticas relacionadas ao exercício do poder que representam o alvo deste controle, bem como a definição das bases para priorização e adoção de medidas para sua efetivação. Mas a grande novidade em relação à problemática do "controle sem povo", pelo menos em relação ao exercício do poder no âmbito do Executivo federal, dado que o decreto não alcança outros Poderes e esferas, está no fato de que ele aponta para a fusão em um único arranjo de dois temas relevantes para a participação social e, logo, para a cooperação entre as dimensões popular e burocrática do controle. Aperfeiçoando a transparência ativa e passiva e sua relação com os demais componentes instrumentais e estruturais da integridade pública, esse novo ato tem o potencial de que essa mesma transparência venha a temperar o pragmatismo do ideário da integridade, trazendo o cidadão para a equação, em um desenho inovador e que pode trazer ganhos na interação das diferentes vertentes da accountability, tão necessária para a consolidação de uma democracia que se pretenda representativa. Porém, o Decreto nº 11.529, mesmo que relevante, representa não mais que um passo no longo caminho de estratégias, esforços, erros e acertos a serem empreendidos. Vale destacar que o protagonismo do Poder Executivo federal pode resultar em certa limitação e isolamento frente aos demais poderes políticos e esferas, e que ainda persiste uma certa ideia normativa entre estes temas que se reflete entre análises e propostas que pressupõem, de forma simplista, que mais transparência acarreta mais participação, que resulta em mais controle, que, por fim, melhora a democracia. A trajetória de construção de um novo "controle com povo" depende de boa dose de aprendizado e do compromisso permanente entre atores e forças da sociedade e do setor público, de um diálogo que seja amplo, permeável e, finalmente, democrático. Como anotações para discussões futuras, pode-se apontar alguns eixos a serem acompanhados por pesquisadores, estudiosos do tema, técnicos que trabalham com a questão, e, principalmente, a sociedade civil. a) A conexão da formulação teórico-política do decreto com a discussão as estruturas de participação política existentes hoje na sociedade, a saber: conselhos ou estruturas digitais de participação ; b) Avaliação acerca de como as dimensões propostas no decreto vão sendo desenvolvidas e que boas práticas desse desenvolvimento podem ser ampliadas e difundidas na administração pública ; e c) A percepção dos agentes públicos envolvidos na implementação do decreto, destacando as principais dificuldades desse processo e os ganhos que dele vieram. Diante dessas considerações e reflexões, nosso desejo é que em um futuro não muito distante o título de nosso singelo artigo reflita as mudanças feitas pela legislação em comento e, estabelecendo as bases para um controle popular para a integridade pública. [1] Os trabalhos de O'Donnell que tratam dos conceitos abordados são: O’Donnell (1991). Democracia Delegativa? Novos Estudos, CEBRAP, n° 31, pp. 25-40; O'Donnell (1998). Accountability horizontal e novas poliarquias, Lua Nova, nº 44; O'Donnell (2003). Horizontal Accountability: The Legal Institutionalization of Mistrust. In Mainwaring & Welna. Democratic Accountability' in Latin America.
2023-06-07T11:19-0300
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Reis Friede: Disputa entre Estado 'fraco' e indivíduo 'forte'
Há, no meio jurídico, uma máxima segundo a qual as decisões judiciais devem ser cumpridas, frase que reflete a essência da autoridade estatal, exteriorizada, no caso, pelo Estado-Juiz, cuja respeitabilidade institucional é mesmo um atributo fundamental, dotado de assento constitucional. Assim, soa evidente que o artigo 5º, XXXV, da Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que pretendeu garantir que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário, igualmente objetivou dotar referido Poder dos meios necessários para o cumprimento da missão que lhe é imposta pela norma constitucional, o que inclui o indeclinável dever de respeito às decisões judiciais, ainda que elas não estejam de acordo com os anseios de uma das partes. Nesse sentido, quando o próprio Poder Judiciário — responsável pela aplicação concreta das regras legais aos conflitos que lhe são submetidos à apreciação — se depara com atitudes que retratam inequívoca oposição às suas ordens legais, tal lamentável fenômeno, além de traduzir uma grave ofensa a um dos Poderes da República, configura um sinal de que o país caminha, a passos largos, ladeira abaixo. Dessa feita, cumpre, urgentemente, restaurar o prestígio das decisões judiciais e, por conseguinte, de uma das principais funções inerentes ao Judiciário, ou seja, a nobre missão de pacificar a sociedade e conduzi-la aos desígnios plasmados na Lei Maior, promovendo, dentre tantos outros valores almejados pelo Direito, a justiça e a paz social. Nesse contexto, tal providência restauradora demanda, em primeiro lugar, que o Estado, reconhecendo suas inúmeras mazelas — inércia, comodismo, ineficiência, desorganização, corrupção, perdularidade etc. —, e cumprindo com o seu dever de casa, adote ações concretas destinadas a recuperar o conceito estatal. Sem essa conscientização por parte dos agentes do Estado — no sentido de reconhecer os próprios erros e efetivamente deflagrar um processo a fim de corrigi-los —, provavelmente não se chegará a lugar algum. Ingressaremos num círculo vicioso (ordem — desordem — ordem — desordem) cujas consequências serão severas para todos. Afinal, como se diz no jargão popular, "o exemplo deve vir de cima". Simultaneamente, numa espécie de reinauguração do pacto social, cabe a todo e qualquer indivíduo, em benefício de si próprio e da coletividade, reconhecer que as decisões emanadas do Estado, quando devidamente respaldadas no ordenamento jurídico — notadamente na sua expressão máxima, isto é, na Constituição —, não podem e nem devem ser desabonadas, restabelecendo-se, assim, o tão necessário respeito mútuo que deve reger a relação entre Estado e indivíduo. Obviamente, são muitas as dificuldades a serem superadas. E seria muita pretensão esgotá-las no âmbito das presentes linhas. De qualquer forma, estamos convictos de que o principal óbice a ser enfrentado ostenta um viés nitidamente ideológico, mas de matiz extremista, próprio dos denominados radicais de direita ou de esquerda. Lidar com radicais é sempre problemático, posto que, de um modo geral, a radicalização que lhes acomete o raciocínio praticamente inviabiliza qualquer possibilidade de compreensão dos fatos como eles efetivamente se apresentam na realidade. Radicais tendem a negar os próprios fatos, quando se sabe que "contra fatos não há argumentos". A ideologia, quando se radicaliza, produz uma espécie de "metástase reflexiva", sendo que uma das características frequentemente identificadas em pessoas consideradas ideologicamente radicais é a relutância delas em cumprir o Direito editado pelo Estado e, respectivamente, as decisões estatais nele amparadas. Ora, ao Direito compete, primordialmente, organizar o Estado (e respectivas instituições) e estabelecer as principais regras de convivência social, sem as quais a sociedade simplesmente sucumbe. Portanto, observar o regramento estatal vigente significa, em última análise, garantir a própria coexistência pacífica do corpo social. Ao Estado, por meio de seu poder soberano, incumbe fazer cumprir o Direito, independentemente da condição, sob todos os aspectos possíveis, daquele a quem a norma é dirigida. Nesse contexto, as ordens judiciais, como uma das expressões da soberania do Estado, não devem ser objeto de questionamento fora do ambiente democrático e constitucionalmente idealizado para tanto, ou seja, a seara processual. Qualquer que seja a insatisfação (quanto ao teor do comando exarado no decisum judicial) de uma das partes envolvidas no conflito, a discussão deve permanecer adstrita aos autos. Essa deve ser a lógica em um Estado Democrático de Direito, lógica cuja evidência, ao que nos parece, não se apresenta de modo tão cristalino para os referidos radicais, sejam eles de direita ou de esquerda. Se por um lado o indivíduo não deve negar validade ao Direito vigente, nem se contrapor às ordens legais emanadas das autoridades competentes — sentindo-se, por assim dizer, acima da lei e da ordem jurídica —, não se admite, por outro prisma, que o Estado se "acovarde" ou se revele "fraco" quanto à sua inflexível obrigação de fazer prevalecer as normas jurídicas, por mais "fortes" que sejam determinadas pessoas, mormente as dotadas de certo poder (econômico, político etc.). Lamentavelmente, quando um Estado "fraco" se curva perante determinadas pessoas "fortes", chegando ao cúmulo de "negociar" com o réu as condições de sua própria prisão, como se com ele travasse uma "queda de braço", forma-se, nessa situação — Estado "fraco" versus indivíduo "forte" —, um perfeito caldo de cultura para que outras pessoas também decidam não cumprir as leis editadas pelo ente estatal.
2023-06-07T06:37-0300
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Cortez e Meira: Importância das associações para o Direito
A importância das academias e dos institutos jurídicos vai além da mera realização de atividades culturais e educacionais no âmbito do Direito enquanto construção erigida pela razão humana. Um dos elementos do Direito é, sem dúvida alguma, o ser humano. As instituições jurídicas, notadamente as com propósitos acadêmicos, são espaços privilegiados de troca de conhecimento. São vocacionadas a abrigar poetas, filósofos, advogados, professores, personalidades nacionais e estrangeiras que ajudam a formar pensamentos jurídicos significativos, alguns deles decisivos à evolução da própria existência humana. Juristas, advogados, professores, magistrados, homens e mulheres nas carreiras jurídicas, têm a obrigação de assumir compromissos com valores, princípios e direitos, com todo o peso ideológico que carregam.  Falando em ideologia, o maior desafio para os institutos é abolir as fronteiras e as desigualdades entre os povos e etnias, sob a ótica da transversalidade e da universalidade dos direitos, principalmente dos direitos humanos. A universalidade tem como pressuposto a igualdade, não só igualdade em dignidade, mas no valor de todos os seres humanos sem discriminação. Conjugar os saberes do mundo cultural, político e social, e ajudar a construir o pensamento humanista, é um papel que ganha especial relevância num momento de retomada das liberdades, da ciência, da democracia e da cultura. Estas ideias valem como premissas para a homenagem que queremos prestar ao Instituto Silvio Meira (ISM), nascido em 13/09/2013, cujos primeiros passos foram dados em Belém do Pará. Hoje o ISM mantém sede em Lisboa e em Roma. São dez anos de trabalho incessante em prol da ciência jurídica e da formação de um pensamento crítico do direito. A história do grande jurista paraense que dá nome ao Instituto, um dos maiores juristas romanistas brasileiros, Silvio Augusto de Bastos Meira, é conhecida. Contudo, poucos sabem que ele, além de ter sido professor catedrático e emérito da Universidade Federal do Pará, era um homem de todas as letras. Silvio Augusto de Bastos Meira dedicou uma vida inteira à cultura das letras e das letras jurídicas. Foi vencedor de inúmeros prêmios nacionais e estrangeiros, incluindo a maior comenda jurídica brasileira, o "Prêmio Teixeira de Freitas", do IAB Nacional, o "Prêmio Machado de Assis", da Academia Brasileira de Letras, entre tantos outros da mesma Academia, e o "Prêmio Pontes de Miranda", da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, da qual foi fundador na cadeira de número 05. Seus estudos o tornaram um profundo conhecedor da língua e literatura germânica. O Instituto cresceu grandioso até porque sua criação foi fruto de um projeto abraçado pelos participantes do I Congresso Luso-Brasileiro, que reuniu grandes nomes de Portugal e do Brasil. Foram dez edições do Congresso, tanto em Belém quanto em Lisboa, isso sem falar das duas edições na Universidade de Paris I e X (Sorbonne e Nanterre), e das quatro em Roma, realizadas em parceria com a Pontifícia Academia Pro Vita e o Dicastério dos Leigos, da Família e da Vida, do Vaticano. O caminho trilhado desde então tem sido rico em eventos. Foram inúmeros os congressos internacionais, simpósios, muitos deles em parceria com outras instituições historicamente relevantes, como o Instituto dos Advogados Brasileiros. Em 2024, por exemplo, o ISM vai para realizar o I Congresso Brasil-Germânico de Direito, em parceria com a Universidade de Frankfurt (Goethe Universität), para abordagem do tema "Direito Amazônico e Sustentabilidade". O Boletim Jurídico Silvio Meira, a Revista Jurídica Digesto, já em sua quarta edição, além dos boletins jurídicos de cada uma das suas XVI Cátedras de Investigação Cientifica, divididas em diversos ramos do direito, também dão ideia da admirável produção bibliográfica do ISM. A homenagem ao Instituto é dirigida, ainda, a enaltecer as instituições jurídicas, institutos, academias e associações que contribuem para o desenvolvimento cultural e educacional do Direito e que são por vezes esquecidas, apesar de terem como missão levar aos seres humanos, sem exceção, os valores da educação como principal elemento de transformação social.  Os institutos e as academias, como o Instituto Silvio Meira, para além de serem o oráculo do Direito e das liberdades, são sentinelas avançadas da igualdade, da justiça social e da garantia dos direitos fundamentais, que só frutificam num ambiente de legalidade democrática, progresso, paz e liberdade. Por isso o ISM está a serviço do estado democrático de direito, assim como, nos dez últimos anos, esteve a postos em defesa dos valores constitucionais que alicerçam os direitos e garantias fundamentais civis, sociais e políticos. Não foi outro o motivo pelo qual a Câmara Municipal de Belém aprovou, por unanimidade, projeto de lei que declara o ISM como uma instituição de utilidade pública. Portanto, vida longa ao Instituto Silvio Meira!
2023-06-08T13:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-08/corteze-meira-importancia-associacoes-direito2
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Opinião
Alexandre Aguiar: Que tal uma "PEC da Sofrência"?
Na aula magna "Cultura e Arte: por uma Revolução Simbólica a partir da Universidade", que abriu o semestre letivo na Unirvesidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) (2023.1), a atriz, vereadora licenciada por Salvador e presidenta da Funarte, Maria Marighella, trouxe apontamentos que ainda causam reflexão acerca da cultura, tendo sinalizado que a intenção do Decreto Federal nº 11.453/2023 do fomento nacional, reconhece a cultura como instrumento (meio) de desenvolvimento.    As colocações de Marighella sobre a cultura na Nova República, ou seja, pós-Constituição de 1988, levam a indicar que: 1) vivemos uma fase econômica inicial (ministro Celso Furtado), com as Leis Sarney e Rouanet; 2) depois a fase de conhecimento ou antropológica da cultura (ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira); 3) recente fase de afirmação da cultura enquanto direito, a partir da Covid-19 (sociedade civil  e Congresso) com as Leis de Emergência Cultural Aldir Blanc 1, 2 e Paulo Gustavo.  Os direitos culturais são novos direitos. Reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, artigos 22 e 27. Na Constituição de 1988, o artigo 215 expressa o dever do Estado em garantir o pleno exercício dos direitos culturais a todos. Os juristas culturais mencionam que é a tomada da consciência de tais direitos que os faz uma novidade, os considerando direitos coletivos, difusos, individuais homogêneos e contramajoritários. Ou seja, os direitos culturais são de minoria e enfrentam obstáculos para se efetivar.  A diversidade cultural, liberdade de expressão artística, os fluxos de saberes e o patrimônio cultural, enquanto direitos relacionados à cultura, em que pese a autonomia e interesses da cultura, na prática, ao longo dos anos sofre violações de princípios constitucionais, à exemplo do princípio do suporte logístico estatal e princípio da universalidade, cuja inconstitucionalidade, está exatamente neste freio descabido dado aos direitos culturais, com a  ausência de políticas públicas e investimentos (custeio), corroborado pelo ideário de criminalização das culturas, que permite governantes eleitos fragilizar o setor cultural e até extinguir o Ministério da Cultura (governos Collor e Bolsonaro).  Por quê? Ora, vejam, o Brasil deixa de observar, erraticamente, a recomendação descrita no item 50 da Agenda 21 da Cultura, nas Nações Unidas, decorrente do Fórum de Barcelona, onde foi expressada a orientação aos Governos de Estados e Nações de que: "(...) é preciso trabalhar para atribuir um mínimo de 1% do orçamento nacional para a cultura" (diálogos CUNHA, Filho), o que é desconsiderado pelo Brasil com a redação do §6 º do artigo 216 da Constituição, inserido pela Emenda Constitucional 42/2003, quanto a autonomia financeira da cultura ao prescrever:   "CF Artigo 216  (...)  §6º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos cultura, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)  II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados." Como pode? Os direitos culturais estão entre os direitos humanos fundamentais, apontados como direitos indivisíveis, sendo questionável, portanto, estabelecer o custeio facultativo e em percentual inferior ao definido como mínimo nas Nações Unidas. É preciso, neste sentido, alertar para o equívoco de custeio da cultura na Constituição, enquanto investimento inferior ao dos países civilizados no mundo, numa violação que fragiliza a aplicação continuada de recursos culturais, cuja a quantia em valores adequados poderia otimizar o suporte logístico estatal para alcance da população lá na ponta, que está 80% vivendo nas cidades, com privações da pobreza periférica.    É preciso anotar esta queixa de desempenho no Brasil, quando a Emenda Constitucional 42/2003 estabelece que o investimento no setor cultural é facultativo e não o substancial obrigatório, numa quantia de apenas 0.5% da receita tributária líquida do país na cultura, enquanto o recomendado é 1% de investimento das mesmas receitas aos governos de estados e às nações desde Agenda 21 da Cultura, onde por uma questão de lógica, nossos índices de desenvolvimento culturais, notadamente, contam com valores 50% menores do que é o adequado e de outra maneira, o nosso sofrimento não teria ocorrido.   O setor cultural é superavitário e segundo Itaú Cultural responde por 3,11% do PIB nacional e gera cerca de 7,4 milhões de postos de trabalho. O professor Pier Luigi Petrillo, da Universidade de Roma, destaca, em seus estudos de teorias e técnicas do lobbying, que na redação da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América está fixada cláusula: "(...) to petition the government for redress of grievances", que em tradução atribuí aos cidadãos americanos poder para pedir ao governo que sejam feitas reparações de suas queixas.  Essa garantia constitucional americana define o lobbying, que no nosso caso não está regulamentado no ordenamento jurídico brasileiro, mas é possível que seja visto com bons olhos, pois testemunhamos o presidente da república amparar uma cidadã soteropolitana nos braços, ao se queixar de violações de direitos humanos na área do Quilombo Rio dos Macacos, em disputa com uma base naval da Marinha do Brasil, Estado da Bahia, durante o lançamento do Decreto 11.525/2023, para regulamentação da Lei Paulo Gustavo, no último dia 11 de maio na capital baiana,   Na sequência, também vimos o presidente da República manifestar-se de ofício, por mensagem pública quanto a queixa do jogador de futebol Vinícius Junior, do Real Madrid, em relação ao crime de racismo sofrido durante uma partida de futebol na Espanha, onde se subentende que regular um método eficaz e transparente para reparação das queixas de violações de direitos humanos pode salvaguardar nossos principais valores no ordenamento jurídico do Brasil, evitando prejuízos que podem nos trazer segurança social e sistematizar o aperfeiçoamento facilitado de políticas públicas, ao invés de fazer apenas o PPA Participativo, o que já é um avanço. Por outro lado, deixar de regulamentar o instituto do lobbying é muito prejudicial ao povo brasileiro, a considerar que no nosso modelo democrático, a Carta Magna é rígida e para ser alterada demanda proposta de emenda constitucional, que só pode ser apresentada pelo presidente da república, por um terço dos deputados federais ou dos senadores ou por mais da metade das assembleias legislativas, desde que cada uma delas se manifeste pela maioria relativa de seus componentes, favorecendo o controle de classe, o dirigismo e o imobilismo social, a corrupção e o autoritarismo das elites patriarcais colonialistas de exploração. Acontece que a violação de autonomia financeira ao setor cultural, sedimenta negativa de direitos humanos na proteção e acesso a cultura, para parcela significativa da população, quando tendo acesso à cultura, informam que o saudoso humorista e ator Paulo Gustavo, vítima da Covid-19, só no filme Minha Mãe é uma Peça 3, faturou a maior renda do cinema nacional, na cifra de R$ 182 milhões arrecadados. E a jovem cantora do ritmo "breganejo" Marília Mendonça, morta prematuramente, vítima de acidente aéreo, chega ao faturamento na casa de R$ 10 a R$ 12 milhões por mês no seguimento musical da economia criativa, que tem na força suave, vetor potencial de alta intensidade democrática.   Neste sentido, tendo em consideração que segundo a ACSP (Associação Comercial de São Paulo), o Brasil arrecadou mais de R$ 2,8 trilhões em impostos no ano de 2022, sendo que 1% deste valor anual são R$ 28 bilhões, como sugestão prática de direitos culturais, a estratégia de defesa da autonomia financeira e dos interesses da cultura, é a mobilização popular, com povo nas ruas pacificamente, para pedir a "PEC da Sofrência", voltada ao adequado investimento de recursos na cultura, em homenagem a cantora Marília Mendonça e sua hábil livre expressão, de peculiar duplo sentido, para que não nos deixem mais sofrer no Brasil, a partir do esforço democrático dos nossos valorosos parlamentares, que saberão eficientemente modificar o texto da Constituição.  Assim é preciso que seja reconhecida a queixa contra atual redação do §6º do artigo 216 da Constituição, para que a "PEC da Sobrevivência" nos sirva para estabelecer que União, estados, Distrito Federal e municípios possam obrigatoriamente vincular a fundo estatal de fomento à cultura, como recomendado pelas Nações Unidas, 1% de suas receitas tributárias para o financiamento de programas e projetos culturais, que vão ajudar no desenvolvimento, com o combate da fome e erradicação da pobreza, a partir de sanção pela presidência da república da Emenda Constitucional, que vai se chamar Emenda Marília Mendonça, numa conquista permanente e difícil de ser modificada, em homenagem a revolução simbólica que pode ser feita cantando e dançando, em nome da artista que balançou o país,       ____________________________ Referências CUNHA Filho, Francisco Humberto. Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades. 2ª ed. Editoras Sesc: São Paulo, 2018; 174p  PETRILLO, Pier Luigi. Teorias e Técnicas de Lobbying. Editora Contracorrente: São Paulo, 2022; 432p  SANTOS, Boaventura de Souza e outro. Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas. 1 ed. Autêntica Editora: Belo Horizonte, 2018; 528p 
2023-06-08T11:25-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-08/alexandre-aguiar-tal-pec-sofrencia
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Senso Incomum
O analfabetismo funcional e o direito: o que é um texto?
Existem pessoas que, apesar de saberem ler e escrever formalmente, não conseguem redigir um texto de forma correta nem uma pequena mensagem. E não conseguem interpretar. Talvez por isso o ChatGPT faça tanto sucesso. Ele escreve no lugar de quem não sabe redigir. Bizarro. Informações do Inaf (índice nacional de analfabetismo funcional) dão conta de que 38% dos universitários — sim, dos universitários brasileiros — são analfabetos funcionais. Bom, parece alto o índice. De todo modo, fosse 20% já seria demasiado. Vejamos o tamanho do buraco. E mais: quantos analfabetos funcionais estão em cargos públicos? Assim, em tese, um em cada três brasileiros (aproximadamente) não consegue entender o conteúdo dos textos — inclusive desta coluna. Isso explica alguns comentários. E explica o que circula nas redes sociais. Eles são muitos. Vencerão. E muitos se tornam influencers. No Direito, coachings. Outro dia escrevi aqui na ConJur sobre os obstáculos epistemológicos. Quanta ingenuidade de minha parte. Na verdade, deveria escrever sobre os obstáculos analbetísticos. Há uma barreira do senso comum que impede a compreensão mínima. É como se não tivesse a "barra", a metáfora entre significante e significado. Por isso o público "cola o relé". O analfabeto funcional é um psicopata epistemológico, por assim dizer. Dá para entender por que a TV tem uma linguagem que liga diretamente a coisa à palavra, como na notícia "o trigo sobe de preço"... e o repórter está pisando... num trigal. Já escrevi muito sobre essa temática: TV e rádio em tempos néscios e Antes de Adnet, mostrei esgotamento de um "modelo". No direito a coisa chegou com os resumos, resumos de resumos, mastigados, seja f..., simplificados e desenhados. E agora com a dita inteligência artificial vem repaginada como visual law e quejandices. Não surpreende que, no nosso sistema de justiça, um tribunal confunda "no mesmo prazo" com "simultaneamente" (aqui). Quem lê petições? Quem lê tanta notícia? Por que TikTtok faz tanto sucesso? Viva o império do simples. Do fácil. As palavras estão morrendo. Em 1726 Jonathan Swift já denunciava isso, com seu sarcasmo e as vezes nem tão sutil ironia. Um cientista de Lagado descobriu que as palavras podiam ser extintas. Bastava carregar em seu lugar as coisas. Mostrar. Apontar com dedo. Não diga "balde"; apenas mostre o objeto... Swift também foi o primeiro a denunciar os emojis. Em Viagens, outro cientista, para eliminar frases, propõe monossílabos e onomatopeias. A literatura sempre chega antes. Com Swift (e falo apenas dele) dá aprender "direito" melhor do que nas faculdades. Com Machado também. Mas não com machado. A passagem sobre a condenação de Gulliver à pena de morte por ter salvado a rainha do incêndio é impagável... e atual! Comparece-se o Ministério Público das Viagens de Gulliver com o que se vê hoje na cotidianidade das práticas. E o que dizer da crítica filosófica aos empiristas, quando "descreve" o conteúdo dos bolsos de Gulliver? Ah, os fatos brutos...    Bom, esforçamo-nos e parece que chegamos lá. E vamos para a terra dos Houyhnhnms. Com a certeza de que 38% dos brasileiros (universitários) — e mais um percentual dos já formados — não entenderão esta Coluna.
2023-06-08T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-08/senso-incomum-analfabetismo-funcional-direito-texto
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Paradoxo da Corte
Perigo concreto da inteligência artificial na praxe do direito
Há cinco anos, num artigo seminal publicado nesta prestigiosa ConJur, Dierle Nunes, Paula Caetano Rubinger e Ana Luiz Marques profetizavam os impactos preocupantes que o uso da IA (inteligência artificial), de forma acelerada e desregrada, poderiam causar no ambiente das profissões jurídicas. Esta previsão para um futuro não tão distante tornou-se realidade. De fato, numa carta aberta alertando para os perigos do desenvolvimento desenfreado da inteligência artificial, divulgada no dia 29 de março passado, elaborada pelo Future of Life, instituto sem fins lucrativos que trata da criação responsável de novas tecnologias, pede-se a suspensão imediata por seis meses do treinamento de sistemas de IA mais avançados, para que o seu respectivo desenvolvimento seguro e responsável seja implantado por meio de diretrizes éticas e normas regulatórias. A rigor, assevera o importante documento, "sistemas poderosos de IA devem ser desenvolvidos apenas quando estivermos confiantes de que seus efeitos serão positivos e seus riscos serão administráveis. Essa confiança deve ser bem justificada e aumentar com a magnitude dos efeitos potenciais de um sistema... Portanto, pedimos a todos os laboratórios de IA que parem imediatamente por pelo menos seis meses o treinamento de sistemas de IA mais poderosos que o GPT-4. Essa pausa deve ser pública e verificável e incluir todos os principais atores. Se tal pausa não puder ser decretada rapidamente, os governos devem intervir e instituir uma moratória". Dúvida não há, mesmo entre os leigos, de que a IA ostenta o potencial de trazer muitos benefícios à humanidade, ministrando novas soluções para problemas complexos em áreas como saúde, educação, economia, direito, mobilidade urbana e muito mais. No entanto, há também desassossego de que o rápido avanço da IA possa representar riscos e desafios para a mundo contemporâneo. Entre as potenciais ameaças, cresce o perigo de consequências involuntárias ou equívocos inexoráveis que podem gerar prejuízos incalculáveis. No campo da praxe jurídica, a edição do The New York Times da última semana de maio passado, publica um interessante artigo de Benjamin Weiser, dando conta de que foi ajuizada uma ação, como tantas outras, por Roberto Mata, perante a justiça federal de Manhattan, Nova York, contra a companhia Avianca (Roberto Mata v. Avianca Inc.), alegando que ele foi lesionado, durante um voo de San Salvador para o aeroporto Kennedy, por um carrinho de metal que atingiu o seu joelho. Contestada a ação judicial, a requerida Avianca pleiteou a rejeição liminar da demanda, visto que o pedido era absolutamente inconsistente porque já tinha se verificado a prescrição. Na sequência, o advogado do autor apresentou uma alentada réplica, invocando inúmeros precedentes, dentre eles, os seguintes: Martinez v. Delta Air Lines e Varghese v. China Southern Airlines. Não obstante, curiosamente nem o advogado da companhia aérea, nem mesmo o próprio juiz conseguiram encontrar os precedentes jurisprudenciais colacionados pelo demandante. O advogado da Avianca informou o juízo que “não foi capaz de encontrar os precedentes Varghese v. China Southern Airlines, Zicherman v. Korean Air Lines Co. e tampouco os outros citados”.  A cópia da suposta decisão de Varghese, apresentada com a réplica, por exemplo, tem seis páginas, apontando que a decisão foi proferida por três magistrados do 11º Circuito. No entanto, este precedente não foi encontrado nos anais da jurisprudência dos tribunais federais de Nova York. Resumo da história: descobriu-se que o ChatGPT havia inventado tais precedentes, em decorrência da pesquisa feita, para alicerçar as razões da Avianca. O advogado que elaborou a réplica, Steven A. Schwartz, da banca Levidow, Levidow & Oberman, passou a responder um processo sobre a sua conduta profissional, tendo que prestar declaração juramentada que havia usado o programa de inteligência artificial para fazer sua pesquisa jurídica, confessando, depois da referida descoberta, que "a fonte por ele utilizada se revelou não confiável". Schwartz, que exerce a profissão em Nova York há três décadas, alegou ao juiz P. Kevin Castel que não tinha intenção alguma de enganar o tribunal ou a companhia aérea. Afirmou, nesse sentido, que nunca havia usado o ChatGPT e, "portanto, desconhecia a possibilidade de que seu conteúdo pudesse ser falso..., e que o programa tinha confirmado que os precedentes eram reais". O advogado declarou ainda que jamais irá recorrer novamente ao ChatGPT. O juiz Castel, ao escrever o relatório do caso e designar uma audiência preliminar, para verificar se o processo disciplinar deve prosseguir para eventual aplicação de sanções ao advogado, asseverou que se encontrava diante de uma circunstância inusitada, em virtude de ter que examinar uma demanda repleta de "decisões judiciais e citações". O referido artigo ainda nos informa que Stephen Gillers, professor de ética jurídica na Universidade de Nova York, indagado a respeito do aludido caso, salientou que a questão é particularmente crítica entre os advogados, que vêm debatendo o valor e os perigos da IA, "a discussão que a partir de agora se estabelece entre os advogados é como evitar exatamente essa situação no exercício profissional; você não pode simplesmente extrair o resultado, recortá-lo e colá-lo em seus arrazoados forenses". Este episódio bizarro nos fornece pálida mostra do que efetivamente pode ocorrer, sobretudo quando o operador das profissões jurídicas não tiver a mínima cautela de examinar com atenção redobrada os subsídios que são oferecidos pelas novas ferramentas tecnológicas, em especial, aquelas dotadas de IA.
2023-06-09T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-09/paradoxo-corte-perigo-concreto-inteligencia-artificial-praxe-direito
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Opinião
Renato Ferraz: STJ e a maldade jurídica na penhora de salário
Mais uma "maldade jurídica" do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte Especial do STJ decidiu, no dia 19/4/2023, que é possível a penhora de parte do salário para pagamento de dívida não alimentícia. É uma decisão casuística. O que não é republicano. A lei é escancaradamente contra a penhora de salário. Aliás, no Estado democrático de Direito a lei, sim, deve ser aplicada, não é? O Direito do legislador, no artigo 833, IV, parágrafo 2º, do NCPC prevê que são impenhoráveis: "IV - 'os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º' § 2º. O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no artigo 528, § 8º , e no artigo 529, § 3º." Há alguma dúvida na lei? Mais claro que isso, impossível. Simples assim. Não dá para fazer "malabarismo jurídico" que rima com ativismo. Não é o STJ o guardião da legalidade infraconstitucional?! Parmênides, filósofo pré-socrático, 515 a.C, já dizia que "o ser é e não pode não ser e o não ser não é e não pode ser de modo algum". Na pós-modernidade, Titãs, no álbum Cabeça Dinossauro, com letra de Arnaldo Antunes, fala: "Não é o que não pode ser". Não obstante, para o STJ, o "que não é pode ser". O que está na lei não é. Que coisa feia! O STJ vai na contramão e atropela o NCPC. O Direito é a vítima. Que falta faz a Filosofia do Direito. O Direito Constitucional. Cá pra nós: o STJ estava exercendo jurisdição constitucional no recurso especial? Claro que não! Por quê? Porque não havia nenhum incidente. Vale, aqui, deixar bem claro: quando se trata de recurso especial, apenas em declaração incidente, é lícito, ao STJ controlar constitucionalidade. Está, sim, o Tribunal da Cidadania, usurpando o papel do legislador. O STJ quer jogar nas 11: julgar, legislar... A propósito, a "separação dos Poderes", apareceu pela primeira vez por Aristóteles, na obra Política, por Jonh Locke, no Segundo Tratado do Governo Civil e, finalmente, na obra de Montesquieu [1], no Espírito das Leis, onde para ele: "Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes Legislativo e Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor." O artigo 2º da Constituição vem daí, onde diz que "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Vale lembrar de que o Poder é uno, mas é dividido em funções. Temos, infelizmente, os predadores do Direito, isto é, a economia, política e moral. Aqui nesta ConJur, o festejado e respeitabilíssimo Lenio Streck [1], já em 4 de janeiro de 2018, alertava em precioso artigo de que o "STJ erra ao permitir penhora de salário contra expressa vedação" e que estava lançando mão de argumentos de política e moral, isto é, metajurídicos. Vejamos o Direito dos professores de Direito: "O STJ, além de já ter reescrito o artigo 649 do CPC/73, agora reescreve o artigo 833, IV, parágrafo 2º, do CPC/2015. Para tanto, lança mão de argumentos de política e não de princípio (para usar uma linguagem cara para quem trabalha com teoria da decisão). Ora, afirmar que 'a jurisprudência da corte vem evoluindo no sentido de admitir a medida se ficar demonstrado que ela não prejudica a subsistência digna do devedor e de sua família' é, exatamente, lançar mão de argumentos de política e de moral. Só que, em uma democracia, esses juízos não são do Judiciário, data vênia. São do legislador.' Ou seja, o que quero dizer é que não adianta o judiciário 'não gostar' da redação e/ou do limite de 50 salários-mínimos ou do elenco de vedações constante no artigo 833. A menos que ele diga que é inconstitucional, fazendo jurisdição constitucional (teria que fazer um incidente, nos termos do CPC). Mas não vi isso." Uma coisa: até 2015, o STJ, entendia de forma correta, de que a impenhorabilidade tinha por objetivo à Dignidade da Pessoa Humana e a Proteção Legal do Salário, motivo pelo qual não era devida a penhora, mesmo em suposto percentual baixo, do salário do devedor. Na verdade, pelo óbvio do óbvio, a única interpretação possível do 833, IV, parágrafo 2º, do NCPC, é a impenhorabilidade do salário. Alguma dúvida?! Porém, a 3ª Turma do STJ decidiu mitigar a impenhorabilidade do salário, desde que seja preservado percentual capaz de dar amparo à dignidade do devedor e de sua família. Infelizmente, a Corte Especial do STJ, nos embargos de divergência, deliberou que pode mitigar a impenhorabilidade do salário por dívida não alimentar, desde que preservada a dignidade do devedor e observada a garantia de seu mínimo existencial. O ministro relator disse que o mínimo existencial resguarda tanto o devedor como o credor. Será? É um argumento retórico. Observemos: "Penso que a fiscalização desse limite de 50 salários-mínimos merece críticas na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira tomando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor de sua família." Sempre com todo o respeito: nas decisões têm o "ementismo", onde é só colocar uma ementa. Decide-se como se quer. Aliás, decido e depois "fundamento". Pronto: está tudinho "fundamentado", sem, porém, enfrentar os argumentos. Logo, a decisão é viciada. Nula. É o faz-de-conta que está fundamentando. Há, também, o casuísmo, subjetivismo e o achismo. A propósito, ninguém vai ao tribunal para saber a opinião pessoal do magistrado, que time que ele torce; mas para receber uma resposta conforme à Constituição e a lei. À vista disso, o STJ ignora o Direito positivo e inventa um novo. Deve obedecer à lei. Ora, foi o juízo do legislador que fixou o limite em 50 salários-mínimos. O Executivo não vetou. (artigo 66 § 1º da CF). Ensina o acadêmico Lenio Streck [2]: "Insisto: 'valores não valem mais do que a lei'. Desejos e subjetivismos não podem substituir a lei. Juiz não pode ignorar a lei com base em princípios que ele mesmo inventou ou, ainda, mediante o uso de uma inexistente ponderação de princípios, que, por certo, deixaria corado o seu criador, Robert Alexy. Desafio que se demonstre que, em algum momento, havendo uma regra que estipula claramente determinada questão, Alexy aceitaria fazer uma ponderação que envolvesse, por exemplo, a colisão entre o mínimo existencial (como valorar?) e o direito de cobrar uma dívida (há direito fundamental nisso?), pesando a balança, no final, a favor do patrimônio do credor." Afinal, vem a pergunta: o que é mínimo existencial? É um conceito jurídico indeterminado. Como valorar? E o mínimo existencial de um desembargador ou ministro? Seria R$ 5.000 ou R$ 50 mil?! Como o STJ sabe, no caso concreto, de que penhora de 30% do salário não atinge o mínimo essencial? Qual o critério para fixar o percentual de penhora? Repetimos: O mínimo existencial resguarda tanto o devedor como o credor, disse o ministro relator. Doutrinariamente, jamais li isso. Pois então. É uma retórica. Pior: está "pegando". Muito pelo contrário. O mínimo existencial é para proteger o devedor. Não é o credor, ministro! No modo de produção capitalista quem arca com bônus arca com ônus. É o risco do empreendimento. Fantástico, não é? Usar a teoria do mínimo existencial em favor do patrimônio do credor para penhorar os baixos salários brasileiros. Seria a vitória do "princípio da dignidade do crédito?" "Espero não estar dando a ideia da criação desse 'princípio'", disse Lenio Streck [3]. O rendimento médio real do trabalhador brasileiro fechou o ano de 2022, em R$ 2.715, ou seja, não chega a três salários-mínimos, É obsceno o salário. É fato. Muito bacana! A impenhorabilidade não se restringe à verba alimentar desde que a parcela penhorada não comprometa à dignidade ou subsistência do devedor e sua família. Entendi: é o tudo pelo credor! Primeiro, pague a sua dívida. Fica tranquilo! Não vai comprometer o mínimo existencial?! Pois é: vai faltar arroz, feijão e pão... Contudo, o legislador definiu o mínimo existencial. Simples assim. No mesmo sentido, o jurista Lenio Streck [4]: "Não parece que o STJ seja o competente para definir o que seja o mínimo existencial. Essa tarefa é do legislador." É de uma obviedade tão óbvia que, qualquer penhora nos baixos salários, não vai proteger o núcleo essencial da Constituição, violando o direito fundamental à dignidade humana e ao mínimo existencial. O STJ errou. Mais uma "maldade jurídica"...   REFERÊNCIAS [1] MONTESQUIEU, Espírito das Leis, 2ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2000; [2] [3] [4] STRECK, Lenio conjur.com.br/2018-jan-04/senso-incomum-stj-erra-permitir-penhora-salario-expressa-vedacao-legal#
2023-06-09T06:40-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-09/renato-ferraz-stj-maldade-juridica-penhora-salario
academia
Opinião
Silva e Veras: Crime qualificado e responsabilidade penal objetiva
Após vultosos debates acadêmicos, está relativamente pacificado que o estudo do delito — entre nós percebido como ente sociojurídico — e dos fundamentos de responsabilidade, exige o exame da sociedade e de seus subsistemas. Nesses domínios, a responsabilização pela prática de um crime não se origina dedutivamente de concepções ontológicas a respeito do delito ou do delinquente, tampouco está rigorosamente afetada aos princípios ético-jurídicos que fundamentam, em tese, a aludida responsabilidade. A questão é fulcral pois se insere como um dos elementos de pavimentação do caminho percorrido pelas ciências criminais no sentido de reconhecer que a responsabilidade delitiva, se podemos dizer assim, é obtida não a partir de um juízo de causalidade, decorre de um juízo de imputação [1]. No campo das ciências penais falamos em criminalização.  Se o fundamento da responsabilidade criminal não repousa em elementos pré-jurídicos, é necessário que os processos de atribuição de culpa sejam pautados por critérios estritamente racionais. Essa necessidade foi destacada com bastante veemência antes ainda da superação da ideia de que o livre arbítrio é o fundamento da responsabilidade penal. Atualmente, a racionalidade do sistema punitivo está vinculada, dentre outros aspectos, à observância de princípios ético-jurídicos de calibração constitucional inspirados na matriz de pensamento garantista. Para os fins propostos, merece destaque o sexto axioma do garantismo penal (nulla actio sine culpa) que consagra a responsabilidade subjetiva, abordada timidamente pela Constituição em seu artigo 5º, inciso LVII, e com maior destaque nos artigos 18 e 19 do Código Penal. Convém registrar que houve momentos históricos em que os castigos decorriam da singela implementação de um resultado censurado. Nas palavras de Toledo, o direito penal em suas primícias foi utilizado contra humanos, animais, e objetos, desconsiderando-se alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente causador [2], até que fossem estabelecidas as distinções entre o fato evitável e o inevitável, o previsível e o imprevisível, o voluntário e o involuntário. Para a doutrina finalista, o dolo e a culpa integram o conceito de ação ou conduta. O dolo abrange um aspecto intelectual (previsão do resultado) e outro volitivo, que não se limita à vontade de realizar o movimento corporal causador do resultado (vontade de enervação muscular [3]), deve orientar-se efetivamente para a implementação de um fim não admitido pelo Direito. Importa ressaltar os elementos do crime culposo, quais sejam: tipicidade, conduta humana voluntária, inobservância de um dever de cuidado objetivo, resultado indesejado e previsibilidade objetiva desse resultado. A culpa, tal qual o dolo, exige o exame da conduta humana voluntária numa perspectiva finalista, ressalvando-se que no tipo culposo a ação proibida não se individualiza pelo fim em si mesmo e sim pela forma de selecionar mentalmente os meios e de dirigir a causalidade para a obtenção deste fim [4].  É notório que a responsabilidade subjetiva está escorada na direção voluntária da causalidade e não especificamente na implementação de um resultado. A propósito, tanto nos crimes dolosos como nos culposos o resultado é um mero delimitador da tipicidade objetiva. Não por outra razão o Código Penal preceitua o seguinte: "pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente" (artigo 19). Apesar disso, são muitos os casos em que o resultado atua como o efetivo fundamento de responsabilidade, em face da ausência de reflexão mais amiúde pelo legislador ou pelo intérprete a respeito dos conceitos de "voluntariedade" e de "previsibilidade". Esses casos consagram sub-repticiamente hipóteses de responsabilização objetiva. Dentre as diversas hipóteses de consagração da responsabilidade objetiva em nosso ordenamento jurídico-penal, merece destaque a qualificação pelo resultado que, nas palavras de Jeschek e Weigand [5], não se compatibiliza com o princípio da culpabilidade, pois as penas atribuídas aos delitos assim estruturados ultrapassam consideravelmente, ao menos em regra, os patamares impostos ao crime culposo.  Ademais, a imputação por qualificação do resultado nem sempre se restringe a valorar desproporcionalmente os fins alcançados a título de culpa, pois pode também atribuir verdadeira responsabilização por fatos alheios à previsibilidade objetiva e ao dever de cuidado, situação que facilmente se confunde com os reflexos do odioso princípio do direito canônico versari in re ilícita [6].  Como exemplo, temos o crime de abandono, que aponta para uma espécie de causalidade decorrente, não raras as vezes, atribuindo-se responsabilidade ao sujeito que, orientado pelo dolo de perigo, exaure sua conduta no abandono, dele não se podendo requerer sequência lógico-normativa como na maioria dos crimes preterdolosos [7]. Certamente, pode-se verificar a existência de vínculo causal entre o ato de abandonar e o fim a que se conduz a criança que, em virtude do abandono, vem a ser atingida por um raio ou abalroada por rebanho de bovinos. A análise em questão, no entanto, não requer o exame da previsibilidade desses resultados. Dito de outro modo, nesses casos particulares parece não ser considerada a existência de alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente causador. Existem tipos penais classificados pela doutrina como crimes de concurso necessário, merecedor de destaque dentre eles o delito de rixa, que requer como condição de tipicidade a pluralidade de agentes. O tipo penal em questão é bastante representativo da problemática sobre a qual nos debruçamos, por permitir a atribuição do resultado morte ou lesão corporal de natureza grave, ainda quando não desejado, a todos os contendedores, incluída a própria vítima. Nesses casos, para além de se verificar o irresponsável alargamento do conceito de previsibilidade objetiva, é fácil perceber que a implementação do resultado proibido, ou mesmo a possibilidade de evitação desse resultado, não costuma estar compreendida no âmbito de decisão de todos os agentes. Entre nós, essa circunstância poderia eventualmente infirmar a presença do nexo causal entre a conduta de um determinado contendedor e o resultado não desejado ou, mais importante, afastar a qualificação pelo resultado em virtude de não estar evidenciada a direção voluntária da causalidade para alcançar um fim objetivamente previsível, embora não desejado.  Existem ainda problemas de ordem preceito-secundária que erigem não propriamente a responsabilidade criminal objetiva, mas um peculiar modo de responsabilização consubstanciado pelo desajustamento entre a proteção deficiente e a proteção em excesso do bem jurídico. É o caso do cognominado crime de "latrocínio", senão vejamos:  A e B decidem utilizar de violência ou grave ameaça para subtrair coisa alheia móvel e, em decorrência, respectivamente, de uma ação dolosa e outra culposa, produzem o resultado morte. Nessa situação, tanto um como o outro terá contra si cominada a pena abstrata de 20 a 30 anos de reclusão, ainda que o desvalor da ação de B seja em muito inferior ao desvalor da ação de A. Perceba-se que o gradiente de responsabilidade é determinado em razão do resultado e não da vontade. Podemos mencionar também o instituto da cooperação dolosamente distinta, embora não se trate particularmente de um delito qualificado pelo resultado. Pois bem. A despeito de requerer o aludido instituto jurídico-penal para a majoração da pena, prevista na última figura do enunciado normativo, a suposta previsibilidade do resultado pelo participe, possibilita a responsabilização a título de culpa em crimes que admitem tão só a modalidade dolosa, jamais culposa. Como assinalado, não se deve olvidar que previsibilidade do resultado no tipo doloso funciona como elemento intelectual e, na ausência do aspecto volitivo, consubstanciado no desejo de produzir o fim objeto de censura, é insuficiente para a caracterização do dolo. Trazemos à baila o clássico exemplo do indivíduo que, conjuntamente com o seu comparsa, deseja cometer o delito de furto em determinada residência, fato que, pelas circunstâncias da empreitada, progride para o roubo impróprio com resultado morte levado a efeito pelo comparsa. Nessa hipótese, por ser a progressão "previsível", adota-se um critério subjetivo de imputação penal culposa sobre o delito de furto (aumento até a metade), que é um crime essencialmente doloso. Poderíamos ainda destacar outras situações prefiguradas pelo ordenamento pátrio. A lesão corporal que resulta incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias condiciona a responsabilização pelo crime mais grave a áleas muitas vezes estranhas ao campo de previsibilidade do agente. O concurso formal próprio permite a responsabilização do sujeito ativo por uma única conduta com resultados múltiplos, sem espaço para reflexões mais profundas a respeito da previsibilidade desses resultados. Não menos importante, o exame dosimétrico das sanções preconiza a análise das consequências do crime como possível elemento para a exasperação da pena na primeira fase, ainda que essas consequências rotineiramente estejam fora do campo de previsibilidade do condenado. A doutrina apresenta algumas soluções. Preconiza-se, dentre o mais, a substituição da qualificação pelo resultado por um sistema fundado no concurso de delitos, em tese mais benéfico réu [8]. Entre nós, é certo que essas soluções consubstanciam mera abordagem paliativa do problema, além de não falarem em favor da racionalidade do sistema normativo. Observada a proposta destacadamente expositiva do presente texto, limitamo-nos a expressar que o básico basta: exigir do intérprete que busque na norma os seus fundamentos de racionalidade e os critérios teleológico-objetivos de interpretação, pois conduzirão necessariamente à responsabilidade penal subjetiva, princípio ético-jurídico de inspiração constitucional [9]. Essa abordagem, em concreto, possibilitará ao magistrado, por exemplo, afastar a qualificadora nos casos em que evidenciada a ausência de previsibilidade objetiva ou de condução voluntária da causalidade.  [1] "Talqualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois elementos. Porém, a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, a da causalidade. Sem dúvida alguma que o crime não é ligado à pena, o delito civil à execução forçada, a doença contagiosa ao internamento do doente como uma causa é ligada ao seu efeito". Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 55. [2] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 218. [3] ZAFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito Penal Brasileiro: parte geral. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 421-424. [4] ZAFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito Penal Brasileiro: parte geral. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 509. [5] JESCHEK, Hans-Heinrich; Weigand, Thomas. Tratado de Derecho penal...cit p.615 [6] SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal...cit., p.197 [7] BITENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal, parte geral. p 860. [8] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência...cit, p 430.           [9] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, cap. IV da Parte II,
2023-06-10T11:24-0300
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Diário de Classe
Sociedade do espetáculo e esvaziamento das fundamentações
Guy Debord, em sua clássica obra A sociedade do espetáculo, publicada pela primeira vez em 1967, abordou temas que hoje são cada vez mais palpáveis. Dentre esses temas, sua obra trata sobre o surgimento da "era de dominação das imagens", as quais determinam a realidade, e geram uma confusão entre ficção e realidade, ao ponto de a imagem — traduzida pelo espetáculo — ser um método/meio de dominação. O espetáculo, em Debord, "é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana — isto é, social — como simples aparência" [1]. Para o francês, "a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente. No mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso" [2]. Na sociedade do espetáculo — numa perspectiva de dominação econômica sobre a vida social — em que, num primeiro momento a realização humana se concentrou na passagem do ser para o ter, houve um deslizamento generalizado, passando do ter para o parecer [3]. Ludwig Feuerbach, no contexto de seu livro A essência do cristianismo, antes mesmo de Debord, denunciava um crescente culto à aparência, em detrimento do ser, que, sem dúvidas, encontra seu ápice na sociedade atual. A célebre frase "penso, logo existo" que provocou o desencantamento do mundo [4], agora poderia ser traduzida em "posto, logo existo", ou a recorrente "sou visto, logo existo". Essa releitura de Descartes foi potencializada com as redes sociais, e evidencia cada vez mais o que Debord chamou de sociedade do espetáculo. Esse fenômeno parece refletir no contexto das instituições e estruturas estatais. Nas redes, o espetáculo entra em seu habitat natural. Todos têm algo a dizer e, muitos, a vender. Uma ressalva importante, num cenário em que o óbvio (ainda) precisa ser dito: O ponto, aqui, não é a utilização das plataformas para impulsão de um negócio, produto ou serviço. Isso faz parte do jogo. Seria de um reducionismo tremendo jogar o trigo no mesmo cesto do joio. Ou julgar algo pela sua vulgata. A crítica é direcionada ao parecer que não é. À maximização da busca da aparência em detrimento ao ser. O esforço em parecer ser, maior do que o esforço em realmente ser. Quando esse fenômeno do espetáculo passa para o campo da venda da imagem, para que, ao final, pessoas sejam convencidas da superficialidade espetacular, ou se venda algo, o "consumidor real torna-se consumidor de ilusões" a mercadoria passa a ser "essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral" [5]. No campo jurídico, essa faceta ganha proporções perigosas, a ponto de Lenio Streck chegar a propor — ironicamente, é claro — a criação do "Conselho Nacional de Combate a Pagação de Mico" ("Conamico") para combater os micos que a comunidade jurídica tem protagonizado [6]. Perdeu-se até mesmo a noção do mico. Somos bombardeados, dia sim, dia também, por inúmeras publicações de "você sabia que...", "clica aqui, e saiba mais...", "o que é — insira aqui um tema jurídico —?". Advogados iniciantes vendem cursos e mentorias de como advogar e montar seu escritório, mesmo sem ter sobrevivido nem um ano como profissional autônomo, com renda exclusiva da advocacia — advogar é um ato de sobrevivência no Brasil. Ensinam como captar clientes, como fazer um atendimento assertivo, tudo o que você precisa saber para se dar bem na profissão, sem, no entanto, saber se "se deram bem". Cursos para "ter uma agenda cheia". Há até autoridade em cursos para estagiários! [7] Especialistas que não se especializaram. Professores que não dão aulas, a não ser as do próprio curso. Chegamos ao absurdo de ver publicações (recortes) em que a "autoridade" do assunto dá entrevistas em podcasts falsos, justamente para otimizar essa pretensa autoridade. O que mais chama a atenção nesse fenômeno é como a preocupação da imagem deve estar no top list de cuidados. Primeiro, aparência. Aparência de sucesso, é claro. Deive Leonardo denomina os indivíduos inseridos nesse contexto como "dublês de rico". Aparentar ser bom. A ostentação do bom sucesso basta para gerar autoridade — a OAB precisou positivar o artigo 6º, parágrafo único do Provimento 205/21 para tentar combater isso. Impor autoridade, melhor dizendo. Os vieses. As confirmações. E tudo o que se justifica para encobrir o ser, e edificar o parecer. O que se esquece é que o que parece não é. O parecer funciona até o passo dois. O véu do parecer cai logo ali, no virar da esquina. Se a energia gasta em gerar conteúdo para parecer bom fosse gasta em realmente buscar ser bom, teríamos outro cenário. O problema é que não dá para transformar em uma imagem um conhecimento sobre determinado tema... aí, se não serve para o espetáculo, não serve para o "mundo". E o que isso tudo impacta no judiciário? Bom, o movimento da comunidade jurídica não parece estar imune à sociedade do espetáculo. O parecer tem se sobreposto ao ser. Para além do "marketing jurídico", é na fundamentação das decisões que podemos encontrar características do fenômeno denunciado por Debord. O tema não é novo. Nem isolado. Streck tem falado sobre isso há tempos em inúmeras obras, e mais recentemente (aqui). Quando o STJ, no AgInt no RE nos EDcl no AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.730.036/SP reafirmou o Tema 339 do STF, e dispensou o julgador do enfrentamento, na decisão, da análise pormenorizada de cada prova ou alegação das partes, bem como a dispensa da exigência de que os fundamentos da decisão sejam corretos. Ao fim e ao cabo, a exigência é de que a decisão ao menos pareça fundamentada. Não parece haver grande relevância no artigo 93, IX da CF, nem mesmo no artigo 489, §1º do CPC, se, no frigir dos ovos, é dispensável que os fundamentos da decisão sejam corretos. Basta que se faça um enfrentamento pro forma e o ônus da fundamentação da decisão estará cumprido. Fundamentação que se esvai. Decisões dublês, cada vez mais presentes no cotidiano forense brasileiro. Essa crítica já foi bem explorada por Lenio Streck (aqui), e o alerta inicial — e longe de ser definitivo — ora proposto é justamente a reflexão do quanto o fenômeno da sociedade do espetáculo invadiu o Direito brasileiro, e onde ela irá nos levar enquanto comunidade jurídica. Quanto mais permitiremos que os conceitos, as instituições e anos de evolução na filosofia e na teoria do Direito sejam esvaziados na tentativa de reencantamento do mundo? [8]. Precisamos debater sobre esses impactos e sobre quanto mais estamos dispostos a sacrificar o sermos para parecermos ser. [1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições antipáticas, 2005. p. 11. [2] Ibid., p. 10. [3] Ibid., p. 13. [4] STRECK, Lenio Luiz. O parafuso, o bacon e o Francis Bacon: o reencantamento do direito. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 13 de abril de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-13/senso-incomum-parafuso-bacon-francis-bacon-reencantamento-direito>. Acesso em 08 jun. 2023. [5] DEBORD, Guy. Op. Cit., p. 28. [6] STRECK, Lenio Luiz. Criemos o Conamico para combater a pagação de mico. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 24 de abril de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-24/leniostreck-criemos-conamico-combater-pagacao-mico>. Acesso em 08 jun. 2023. [7] Id. [8] STRECK, Lenio Luiz. O parafuso, o bacon e o Francis Bacon: o reencantamento do direito. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 13 de abril de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-13/senso-incomum-parafuso-bacon-francis-bacon-reencantamento-direito>. Acesso em 08 jun. 2023. 
2023-06-10T08:00-0300
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Segunda Leitura
Propósitos e relevância das academias de letras jurídicas do Brasil
A natureza jurídica das Academias de Letras Jurídicas é a de uma associação de direito privado, criada nos moldes previstos no artigo 53 do Código Civil e devidamente registrada no Cartório de Títulos e Documentos, em conformidade com o artigo 128, inciso I, da Lei 6.015/73, que trata dos registros públicos. Para a Academia de Letras Jurídicas de Minas Gerais, uma ALJ "visa proporcionar tanto quanto possível o estudo da ciência jurídica, seja entre seus membros como entre aqueles que nela ainda não ingressaram, sejam advogados, juízes, procuradores ou estudantes".[1] As Academias de Letras Jurídicas podem ser consideradas um derivativo das Academias de Letras. Manoel Onofre Júnior as vê "tão-somente, na sua condição de alta agremiação literária, capaz de dinamizar a vida cultural, sob o signo da renovação, todavia sem perder de vista as melhores tradições".[2] É possível criar-se tantas Academias Jurídicas quantas se queira. Porém, o fato é que elas só serão aceitas pela sociedade em razão dos valores que adotam e pela qualidade de seus membros. Em outras palavras, criar uma Academia, valendo-se de pessoas de baixo nível cultural e que não tenham conquistado o respeito de sua comunidade, é a mesma coisa que nada criar. Em Portugal não há Academias de Letras Jurídicas, mas sim Academia de Ciências. Na capital, atua desde 1779 a Academia de Ciências de Lisboa, localizada no antigo Convento de Nossa Senhora de Jesus da Ordem Terceira de São Francisco, na Rua da Academia das Ciências, n.º 19. As atividades dividem-se em duas classes e cada uma delas divide-se em sete seções. Na chamada Classe de Letras, 5ª Seção, encontram-se Direito e Ciência Política.[3] A Academia Brasileira de Letras Jurídicas (ABLJ) foi a precursora no Brasil, tendo sido criada no ano de 1975, dela fazendo parte 50 acadêmicos de elevado nível cultural. Segundo o seu site, "ela tem por finalidade o estudo do Direito em todos os seus ramos e, sobretudo, o aperfeiçoamento das letras jurídicas, funcionando de acordo com o Código Civil e as demais leis aplicáveis assim como com as regras estabelecidas neste Estatuto e em seu Regimento Interno". "Ela segue o traço das congêneres inspiradas no modelo francês." [4] Outras tantas foram criadas nos estados da federação, seguindo os moldes da ABLJ. Regra geral elas se vinculam a uma instituição que as impulsiona, como o Tribunal de Justiça, uma universidade ou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Algumas academias se destacam por seu tempo de existência, atividades permanentes que extrapolam os limites de uma gestão eficiente. Uma delas é a Academia de Letras Jurídicas do Paraná (APLJ), à qual pertenço e no momento presido. Foi ela criada em 4 de novembro de 1998 por iniciativa do desembargador Henrique Chesneau Lenz César, com a decisiva participação do advogado João Casillo e do juiz de Direito Albino de Brito Freire. Dela fazem parte 40 acadêmicos, além de beneméritos e honorários. Os seus membros são pessoas reconhecidas no meio jurídico paranaense e nacional, dela fazendo parte, inclusive, um ministro do Supremo Tribunal Federal. Durante os seus quase 25 anos de existência, a APLJ produziu vários números de sua Revista, promoveu concursos de artigos, atividades literárias, seminários jurídicos, sempre trabalhando com outras instituições, como tribunais, a OAB e universidades. [5] Mas não é fácil manter ativa uma Academia de Letras Jurídicas. Normalmente elas sobrevivem das anuidades pagas por seus membros. E todas as suas atividades exigem serviços voluntários, regra geral feitas pelos acadêmicos ou alguém que lhes preste serviços. Por exemplo, uma das dificuldades é a atualização dos sites. Como seus membros são pessoas atarefadas, não raramente eles se mostram desatualizados. Este é um dos problemas complexos, pois sem um site eficiente rompe-se a relação com a sociedade. Vejamos, aleatoriamente, algumas academias. A Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas (ACLJA) possui 50 membros e um site bem estruturado, inclusive revelando a boa iniciativa de doação de livros.[6] Na região Nordeste, a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ) foi fundada em 3 de maio de 1976, ficou inativa em 1979 e retornou em 1999, 20 anos depois. A Academia pernambucana tem 53 membros e, além de participantes beneméritos e honorários, possui três membros correspondentes em outros estados, uma boa e incomum iniciativa. [7] A Academia Paraense de Letras Jurídicas (APLJ) possui um site bem estruturado e interessante, mas as notícias se reportam a fevereiro deste ano.[8] A Academia Mineira de Letras Jurídicas (AMLJ), salvo engano muito vinculada ao TRT-3 (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região), possivelmente enfrenta dificuldades, pois o seu site não foi localizado e o cadastro está desativado desde 2018.[9]  Igual é a situação da Academia de Letras Jurídicas do Espírito Santo (Acalejes), que revela proximidade com a OAB [10] e também de Goiás, onde a Academia Goianense de Letras Jurídicas (AGLJ) não exibe maiores informações na internet, limitando-se à ficha cadastral. [11] A Bahia apresenta situação especial. A academia mostra-se muito ativa, apresenta várias atividades em seu site, inclusive a posse da nova diretoria no dia 23 de maio passado e a realização de um congresso nacional em outubro deste ano.[12] Ocorre que, no mesmo estado, há a Academia de Letras Jurídicas do Sul da Bahia (Aljusba), com sede em Ilhéus, a qual, segundo o seu site, parece próxima da Ordem dos Advogados.[13] Talvez a enorme extensão geográfica do estado tenha sido a razão de duas academias. Mas as Academias de Letras Jurídicas não se limitam à brasileira e às estaduais. Há, também, a Academia Internacional de Letras Jurídicas (AILJ), com sede em Brasília e página no Facebook,[14] e outras de âmbito municipal, como a Academia Jundiaiense de Letras Jurídicas (AJLJ), cuja ficha cadastral se encontra na internet. [15] De todo o exposto, a conclusão a que se chega é que é simples fundar uma Academia de Letras Jurídicas, porém é difícil mantê-la ativa e trabalhando em favor da sociedade e das Ciências Jurídicas. Isto, todavia, não deve desanimar os seus idealizadores, pois tal instituição pode ser um forte fator de desenvolvimento das Ciências Jurídicas na localidade onde se situa. Por exemplo: Às diretorias da Academias de Letras Jurídicas cabe, com dedicação e criatividade, alcançar estas e outras metas. O Brasil merece.   [1] BRASIL. Justiça do Trabalho. TRT da 3ª. Região. Posse na Academia Mineira de Letras Jurídicas. Disponível em: https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-institucionais/importadas-2006-2008/posse-na-academia-mineira-de-letras-juridicas-24-10-2008-16-56-acs#:~:text=A%20Academia%20Mineira%20de%20Letras,%2C%20ju%C3%ADzes%2C%20procuradores%20ou%20estudantes.. Acesso em 8 jun. 2023.
2023-06-11T10:17-0300
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Embargos Culturais
"A Transação Tributária", de Renata Gontijo D'Ambrosio
A ideia de uma justiça tributária consensual no Brasil provocou acirradas críticas e reações destemperadas. Muito barulho. Com previsão no artigo 171 do Código Tributário Nacional a transação tributária é modalidade de extinção do crédito fiscal, marcada por concessões mútuas. Meio século à espera de regulamentação. A hora chegou (finalmente). A multiplicação da litigiosidade tributária exige enfrentamento, com mecanismos que reduzam tensão permanente que opõe Fisco e contribuinte. Talvez, para início de conversa, poderíamos pensar em chamar o contribuinte de cidadão, ainda que aquela denominação esteja no Código Tributário Nacional. Esta última está na Constituição, onde aparece 14 vezes. E o Fisco, por outro lado, é a agência que busca recursos para realizar políticas públicas. No caso de uma imaginária justiça tributária consensual esbarrava-se em escudo supostamente intransponível, marcado pelo dogma da indisponibilidade do crédito tributário, como decorrência da impossibilidade de se transigir com o interesse público. Há alternativas? Deve-se também confrontar a doutrina do direito público brasileiro, marcada no passado por autores influenciados por fortíssimo autoritarismo. Havia juristas de plantão para os poderosos do dia, tema de fascinante capítulo de nosso direito (ainda não escrito) sobre as relações entre os intelectuais (sobremodo os juristas) e o poder. Todo Vargas tem seu Chico Ciência. Todo Salazar tinha seu Marcelo Caetano. Quanto à transação tributária, um grande colega, Rodrigo Pereira de Mello (hoje renomado advogado tributarista em Brasília) é um dos pais fundadores da ideia, em texto então mimeografo, sobre a transação e a arbitragem no direito tributário. Luís Inácio Adams, quando Procurador-Geral da Fazenda Nacional, encampou o projeto, luta à qual aderi, junto com Agostinho do Nascimento Netto, em uma cruzada nacional pela causa[2]. Advogados de nome e burocratas conhecidos histericamente motejaram do esforço, sob o mote de que a Receita se transformaria em um balcão de negócios. Alguns ironizavam, cabalisticamente comparando o artigo 171 do CTN, com o artigo 171 do Código Penal, que dispõe sobre estelionato... Erraram feio. A transação trinfou; hoje é lei. Resolve problemas. Retoma rumos. É uma luz no fim do túnel. Na primeira medida, José Levi Mello do Amaral. Na reta final, junto à PGFN, Ricardo Soriano Alencar, João Henrique Grognet, Rogério Campos, Manoel Tavares, Adriana de Paula Rocha, Daniel Saboia Xavier, Theo Lucas de Lima Borges, Sara Mendes Carcará e outros que arregaçaram as mangas e fizeram o modelo funcionar. Há também uma expressiva produção acadêmica (inclusive na PGFN), com o livro seminal de Phelippe Toledo Pires de Oliveira. Nesse grupo que teorizou o modelo, Geila Diniz, Yuri Excalibur, Carlos Torres, Fernanda Villares, Cláudia Owada, Clóvis Silva Neto, Paulo Mendes de Oliveira, Cristiano Neuwnschwander, Igor Montaroyos, Francianna Araújo, Miquerlam Cavalcante, Moisés Pereira, Hylin Hueb, Renata Barroso, Vicente Férrer de Albuquerque Júnior, entre outros que minha memória não alcança. Cláudio Seefelder e Oswaldo Othon organizaram obras coletivas. Fora da PGFN, autores de qualidade escreveram sobre o assunto, a exemplo de Heleno Torres (um dos pioneiros), Fernando Scaff (que escreveu sobre o uso de precatórios na transação), de Onofre Alves Batista Júnior (da UFMG), de Tarsila Ribeiro Fernandes, de Marcos Aurélio Valadão (que foi da Receita e do Carf, e que orientou Tarsila no mestrado), Paulo Conrado, entre tantos outros. Quanto à transação, especificamente, dispôs-se que lei, geral ou específica, poderia facultar, sob condições, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária, celebrar acordo que resulte em composição de conflito ou de litígio, visando a extinção de crédito tributário. A transação tributária não é fato tão inusitado quanto queria se acreditar. A Lei nº 1.341, de 31 de janeiro de 1951, que regulava a Procuradoria da República, que então detinha competência para a cobrança da dívida ativa da União, permitia que procuradores da República, devidamente autorizados, em cada caso concreto e específico, pudessem transigir com o sujeito passivo, com o objetivo de se encerrarem as causas fiscais ajuizadas e pendentes de julgamento. A transação é conceito que radica no Direito Privado. Ordinariamente, tinha como objeto principal decisão de conteúdo convencional que dirimisse direitos incertos e duvidosos. Reportava-se à glosa de Cujácio, para quem a transação decorria de pacto pelo qual se resolvia sobre direito incerto; o acordo substancializava-se como uma sentença. Na dicção clássica: pactio qua lis vel controversia et res aliqua dubia, perinde ac judicato dirimitur. A transação, nesse sentido histórico, teria por objeto dirimir a lide pendente, bem como previnir a lide provável. Transitava entre o não resolvido e o provavelmente discutível. É nesse tema apaixonante e cheio de impactos na vida negocial que nessa semana faço referência e comento a dissertação de mestrado de Renata Gontijo D'Ambrosio, "Transação Tributária na Atividade de Realização da Dívida Ativa da União", que tive a honra de orientar, e com quem tanto aprendi. Trata-se de um dos primeiros trabalhos acadêmicos que surgiram ao ensejo da Lei n. 13.988, de 14 de abril de 2020, resultado da conversão da Medida Provisória n. 899, de 14 de abril de 2020, conhecida como a MP do Contribuinte Legal. A autora, que é procuradora da Fazenda Nacional, tem como pano de fundo da dissertação o "leitmotiv" da cidadania fiscal, com a consequente legitimidade social da tributação. Explorou a Exposição de Motivos da mencionada MP, cujo propósito central era a redução dos custos (de Administração e de aquiescência), a par do correto tratamento ao cidadão que paga tributos. A redução da litigiosidade e o ataque ao gargalo do contencioso (também administrativo, na DRJ e no Carf) também fomentaram esse movimento normativo, que Renata explica com muita objetividade. Renata explora os aspectos gerais da transação tributária, a partir do CTN. Identifica a natureza jurídica da transação, bem como enfatiza e discorre sobre seus elementos centrais: a lei, o litígio e espinhoso tema das concessões mútuas. Nesse ponto é que a transação no direito público se afasta da tipologia da transação no direito privado. A parte mais importante da dissertação (que espero logo ver em livro) alavanca e enfrenta três grandes problemas postos pela lei de transação: a renúncia de receita (artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal), a compensação com precatórios e os vários tratamentos especiais que a norma suscita. Renata argumentou e concluiu que a transação não resulta em renúncia de receita, especialmente porque a lei alcança créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação. Não há dispensa ou renúncia, simplesmente porque não se cuida de receita fática. Tem-se uma mera presunção. Além do que, a autora argumentou com o artigo 3º da Lei Complementar n. 174, de 5 de agosto de 2020 (referente ao Simples Nacional), que autoriza a extinção de créditos, mediante celebração de transação. Explicou também a questão do uso dos precatórios, indicando a legislação aplicável, especialmente no contexto da Portaria PGFN n. 14.402, de 11 de março de 2021. No fim do texto problematizou o conceito de "devedor contumaz", no contexto do PL 1646/19 (vale a pena ver no assunto o debate na Câmara, conduzido por Tadeu Alencar, então deputado pelo Pernambuco, e na origem procurador da Fazenda Nacional). "Transação Tributária na Atividade de Realização da Dívida Ativa da União", de Renata Gontijo D’Ambrosio, comprova-nos que ao descrevermos nossa aldeia nos tornamos universais. Era a impressão de Leon Tolstoi. Renata escreveu sobre o que trabalha, teorizou sobre os problemas que enfrenta na prática, circulou por vários campos, acadêmicos e operacionais, colaborando para o debate de um tema que é o divisor de águas do direito tributário brasileiro. [1] Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. [2] Publiquei então Transação Tributária: Introdução à Justiça Fiscal Consensual pela Fórum, de Belo Horizonte.
2023-06-11T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-11/embargos-culturais-transacao-tributaria-renata-gontijo-dambrosio2
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Direito Civil Atual
Teorema de Coase e problemas recíprocos nos direitos de propriedade
Ao receber o Prêmio Nobel de Economia em 1991, Ronald Coase[1] afirmou que certas características do sistema econômico são tão óbvias que passam despercebidas aos mais incautos. Em uma analogia, seria algo ao estilo das investigações de Padre Brown, personagem do escritor britânico G. K. Chesterton,[2] que, após um homicídio na cidade, desvendou o assassino por ser este "o homem invisível": aquele que, de tão habitual, burlou a confiança de todos — no caso, o criminoso era o carteiro, cuja função rotineira o tornou imperceptível aos olhos populares, ávidos por um facínora inusitado. O nobelista afirmou que, quando analisados os elementos óbvios da economia (e, pela própria obviedade, pouco estudados), estes passarão a implicar significativas mudanças na estrutura da teoria econômica, em especial na teoria dos preços ou microeconomia. É no artigo "O problema do custo social"[3] que Ronald Coase esclarece algumas formas de intervenção do direito no fluxo do sistema econômico, muitas vezes em situações que, por serem óbvias (mas nem por isso menos importantes), podem ser resolvidas por mero acordo ou transação entre as partes, sem o peso da intervenção do Estado. À primeira vista, nada de mal há na ingerência estatal (principalmente, quando empresas ocasionarem inconvenientes ao meio ambiente e a terceiros), porém, na prática, existem outros plexos a serem considerados. Trata-se, aqui, de "externalidades negativas", que, resumidamente, podem estar relacionadas aos efeitos deletérios ocasionados pela produção ou execução de um produto ou serviço, capazes de reduzir o bem-estar de terceiros estranhos à atividade empresarial. A realidade é que, quando alguém adquire um direito, poderá suprimir o direito de outrem, a menos que também adquira esse direito suprimido (já que tal aquisição provavelmente será compensada no futuro por lucros expectáveis).[4] Exemplifica-se. Se alguém comprar um terreno para instalar uma fábrica, passará a ter as faculdades inerentes ao uso, gozo e disposição desse bem, o que, hoje em dia, se dá dentro dos limites da lei. Uma vez instalada a fábrica, surge, contudo, toda uma estrutura que não somente encobre a paisagem, mas também gera poluição, barulho e aumenta o trânsito, inclusive de veículos pesados. Em regra, a região, antes amena, desvirtua-se, a vizinhança começa a aturar a fumaça, o barulho e, enfim, a perda da qualidade de vida. Ronald Coase entende que, na contemporaneidade, se tornou inevitável o conflito entre a utilidade e os males trazidos pela atividade empresarial.[5] De um lado, o proprietário da fábrica precisa explorar plenamente o seu direito para gerar o maior rendimento possível, o que depende tanto dos custos de transação quanto dos contratos celebrados. De outro lado, existe uma vizinhança que se supõe prejudicada pela atividade fabril, pela poluição que ela impõe e pela agitação que ela imprimiu aos arredores.[6] Em suma, ao adquirir direitos necessários à construção e ao funcionamento da fábrica, o empresário, direta ou indiretamente, acaba por privar a vizinhança de alguns direitos outrora fruídos sem grandes dificuldades. Para Coase, esse tipo de questão não se resolve com base na responsabilidade civil do empresário, já que se cuida de um problema recíproco: tanto o empresário prejudicou direitos dos vizinhos da fábrica quanto estes também tentaram impedir o direito do empresário de desenvolver sua atividade (a qual, no fim das contas, é produtora, gera empregos e traz valorização imobiliária para a região). Tampouco se cuida, como diria a Economia Neoclássica, de priorizar a utilidade da fábrica (agente ativo) em detrimento dos vizinhos (agentes passivos). Na verdade, se for condenado à indenização por violar direitos dos vizinhos, o empresário, implicitamente, terá de repassar os custos (e mesmo as custas) havidos com a condenação judicial para os bens ou serviços que produz ou presta — isto é, o aumento de preços recairá sobre o consumidor, o qual, diga-se de passagem, é estranho à relação entre o empresário e a vizinhança. Na pior das hipóteses, é possível imaginar que a decisão judicial também determinou ao empresário o encerramento da atividade fabril na localidade, o que não deixa de ter consequências nocivas, como dívidas e demissão em massa de empregados. Logo, partindo da premissa de que o problema é recíproco entre as partes, a solução talvez possa estar na aplicação do "Teorema de Coase": "Se os direitos de realizar determinadas ações podem ser comprados e vendidos, tenderão a ser adquiridos por aqueles para quem são mais valiosos, quer para a produção, quer para o gozo. Nesse processo, os direitos serão adquiridos, subdivididos e combinados, de tal forma que permitam que sejam realizadas todas as ações que produzam aquele resultado que tem o maior valor no mercado. O exercício dos direitos adquiridos por uma pessoa inevitavelmente nega oportunidades de produção ou usufruto por outros, para quem o preço de adquirir os direitos seria elevado demais." [7] Em outras palavras, para Coase, analiticamente, não deveria haver diferença entre (i) os direitos dos proprietários e possuidores que não querem ser incomodados pelas externalidades negativas da atividade empresarial e (ii) os direitos daqueles que têm amparo legal para exercer os direitos inerentes à propriedade, inclusive para nela explorar a atividade empresarial, gerando empregos, fornecendo bens e serviços, trazendo valorização imobiliária para a região e criando projetos para a coletividade. Ademais, nada impede que quem tiver mais dinheiro e know-how para explorar economicamente o seu direito também adquira o direito daquele que, não podendo ou não querendo adquirir o direito do primeiro, deseja vender o seu direito por se ressentir do atual estado de coisas. Esta é, portanto, uma das saídas apontadas por Coase para aqueles que buscam alternativas mais benéficas para esse tipo de impasse: uma solução negociada ou, até mesmo, uma transação homologada que prescinda, legitimamente, de condenações judiciais com reflexos porventura gravosos à economia e à vontade das partes. Assim como feito em dias anteriores, prosseguir-se-á, nos próximos, com o estudo das principais ideias de Ronald Coase que importem ao direito privado e considerem os impactos das leis e decisões judiciais na economia. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] Sobre a trajetória de Ronald Coase, v.: FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. Ronald Coase: a perspectiva de um economista sobre o Direito. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mai-01/direito-civil-atual-ronald-coase-perspectiva-economista-direito>.  Acesso em: 11/06/2023. [2] CHESTERTON, G. K. The complete Father Brown stories. Ware: Wordsworth, 2014, p. 114-135. [3] O artigo “The problem of social cost” (“O problema do custo social”) consta da tradução brasileira que abrange os principais textos de Ronald Coase. V.: COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito. Tradução: Heloísa Gonçalves Barbosa; revisão da tradução: Francisco Niclós Negrão; revisão final: Otavio Luiz Rodrigues Jr.; estudo introdutório: Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária/GEN, Coleção Paulo Bonavides, 2022, p. 95-152. [4] FERREIRA, Antonio Carlos; FERREIRA, Patrícia Cândido. Ronald Coase: um economista voltado para o Direito (Estudo introdutório). In: COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito, op. cit., p. LVII e ss. [6] COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito, op. cit., p. 13-14. [7] Idem, p. 13.
2023-06-12T11:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-12/direito-civil-atual-teorema-coase-problemas-reciprocos
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Opinião
Rodrigo Carelli: Nota zero de Alexandre em Direito do Trabalho
Sou professor de Direito do Trabalho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e a primeira coisa que pensei ao ler a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes na Reclamação 59.795 foi que, se o texto fosse resposta a uma prova de Direito do Trabalho I, eu com certeza lhe concederia grau zero. A decisão cassa acórdão do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) de Minas Gerais, que havia reconhecido o vínculo empregatício de motorista com empresa que se utiliza de plataforma digital para gestão de serviço de transporte de passageiros, declarando a incompetência da Justiça do Trabalho e remetendo o caso à Justiça comum. A nota zero seria justificada não somente pelos erros graves em relação aos institutos e à lei trabalhistas, mas principalmente por demonstrar uma absoluta incompreensão do Direito do Trabalho, de suas funções, seus princípios e sua racionalidade. A inequívoca nota zero seria fruto da própria natureza do texto: a negação do próprio direito do trabalho. Muito além de confundir institutos como terceirização, trabalho autônomo e outros contratos de natureza civis, colocando tudo no mesmo balaio, e também por trazer uma sequência de precedentes que não dialogam entre si, e confundir instrumento de trabalho com meios de produção, eu mostraria ao imaginário aluno Alexandre que a peça se divorcia absolutamente dos princípios do direito do trabalho, o que faz todo o edifício simplesmente cair por terra por falta de sustentação. O princípio fundador do direito do trabalho é o da "não-mercantilização do trabalho", previsto como primeiro princípio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afirma que "o trabalho não é uma mercadoria". O que a OIT quis dizer é que o trabalho não é uma mercadoria como as outras e por isso não pode ser tratado juridicamente como uma coisa, pois o que está no mercado para compra e venda é a mercadoria fictícia "força de trabalho", que no final das contas se confunde com a pessoa que trabalha. Assim, há a necessidade de um ramo do direito com racionalidade específica. Esse direito com racionalidade específica é o direito do trabalho, que tem como princípio basilar a proteção ao trabalhador, por meio de regras, institutos, princípios, presunções e instituições que limitam o poder do empregador. Essa limitação do poder dos empregadores não tem nada de revolucionário ou comunista: é capitalista na veia, um direito conservador, que pretende manter as condições de manutenção do sistema por meio da garantia da reprodução dos trabalhadores. O direito do trabalho surge em 1802, na liberal e efervescente Inglaterra da Revolução Industrial, justamente para tentar preservar a mão de obra, que estava sendo massacrada e dizimada pela livre contratação entre empregadores e trabalhadores. A história do direito do trabalho no século 20 é a construção de direitos sociais dentro do capitalismo, como alternativa ao socialismo e para a manutenção de uma sociedade civilizada, em oposição à barbárie do século anterior, que levou a duas grandes guerras e às revoluções do século passado. Assim, o direito do trabalho legitima o poder empregatício, limitando-o por meio de direitos trabalhistas. O direito do trabalho, visto assim, nada mais é do que expressão dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República e da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa como pilares da ordem econômica, como está na Constituição. Ou seja, legitima a propriedade e a livre iniciativa pela valorização do trabalho humano, o que somente pode acontecer pelo direito do trabalho. O texto admite como alternativa ao trabalho protegido, e não como espécie diferente, o trabalho contratado formalmente como civil, mesmo tendo realidade fática similar, negando por fim todo o artigo 7º e seguintes da Constituição, que são expressamente tratados pelo texto maior como direitos fundamentais, isto é, com pretensão de universalidade. Desta forma, o texto do ministro Alexandre de Moraes acaba por negar toda a construção constitucional da relação entre trabalho e livre iniciativa. Mas não só: nega também todo o sistema de proteção trabalhista, que é baseado nos princípios da imperatividade das normas e da indisponibilidade dos direitos trabalhistas. Esses princípios são básicos no direito do trabalho por uma só razão: se eles não existirem acaba o direito do trabalho. A relação entre empregador e trabalhador é assimétrica por natureza. O trabalhador está sempre em uma situação vulnerável em relação à capacidade negocial. O direito do trabalho pretende restabelecer, pelo menos parcialmente, a paridade de armas, elevando a capacidade negocial dos trabalhadores por meio da instalação de um patamar mínimo para negociação e instrumentos e instituições diversas de proteção (Justiça do Trabalho, sindicatos, inspeção laboral et.). O fim é um só: garantir a liberdade do trabalhador, que alguns podem chamar de autonomia da vontade. Ou seja, o direito do trabalho existe para garantir a autonomia da vontade do trabalhador, e não para negá-la. E tudo isso sem em nenhum momento ameaçar a livre iniciativa, pois ela é seu pressuposto. Eu relembraria  Alexandre de Moraes que o direito do trabalho tem um princípio crucial que se chama "primazia da realidade sobre a forma". Esse princípio, previsto expressamente no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, afirma ser nulo de pleno direito os atos que pretendam afastar, impedir ou fraudar a aplicação do direito do trabalho.  Esse é o instrumento básico que o direito do trabalho tem no mundo civilizado inteiro: a requalificação de contratos civis em contrato de emprego. Conforme a Recomendação nº 198 da OIT, ignorada pelo texto do ministro Alexandre de Moraes, a existência da relação de emprego deve ser guiada primordialmente pelos fatos relacionados com o tipo de trabalho e a remuneração do trabalhador, não importando como a relação é caracterizada em qualquer acordo contrário, contratual ou que possa ter sido acordado entre as partes. Sem esse instrumento o direito do trabalho equivale a uma lei morta, pois seria óbvio a submissão dos trabalhadores à imposição contratual pelo empregador de um contrato mais barato. Como professor, eu diria ainda a Alexandre de Moraes que ele foi contraditório. Um dos excertos de precedente que inseriu para justificar sua conclusão, da lavra do ministro Luís Roberto Barroso, ressalva justamente os casos de fraude. Barroso afirma que os contratos de terceirização seriam válidos, exceto quando se encontrassem os elementos da relação de emprego na realidade. Ora, a decisão da Justiça do Trabalho não fez outra coisa senão isso: identificou a presença dos elementos da relação de emprego, afastou o contrato civil e declarou a existência do vínculo de emprego entre trabalhador e empresa. Fez nesse caso como faz há quase um século e como todos o juízos trabalhistas fazem ao redor do mundo. Eu diria ainda a Alexandre de Moraes que ele me fez lembrar o conto de Franz Kafka entitulado Diante da Lei. Nele, um trabalhador pobre do campo se desloca até a lei e tenta adentrar ao seu edifício, no que é impedido por um guardião que está logo na primeira porta, que o manda esperar, sem justificativa. O trabalhador fica anos sentado ali na porta, aguardando que seja lhe permitido o acesso à lei. Quando já está bem velho, o trabalhador resolve perguntar ao guardião porquê nenhuma outra pessoa, durante todo aquele tempo que ali estava, tentou entrar pela porta. O guardião disse que a resposta era simples: aquela porta havia sido criada somente para o trabalhador e somente ele poderia entrar por ali. E após dizer isso, fecha a porta e o trabalhador morre. Esse final, que sempre me intrigou, agora fica muito claro: o guardião da porta da lei está impedindo o acesso ao Direito justamente daquele que mais precisa dela. O caso dos trabalhadores controlados por plataformas digitais é o mais típico grupo de trabalhadores excluídos de nossos tempos. É para eles que existe a Justiça do Trabalho, é para ele que existe o instituto da requalificação contratual. É para ele, mas é também para aqueles que foram contratados de forma fraudulenta por contratos civis vários como única opção para poderem trabalhar e ganhar o sustento de sua família. Eu alertaria a Alexandre de Moraes que sua proposta tem uma gravidade ímpar: ela não somente em um plano nega a condições de sujeito de direitos a toda uma massa de trabalhadores, sem análise de caso concreto e das condições reais de trabalho, legitimando a utilização de contratos meramente formais em detrimento da realidade, como em um outro plano impede o acesso à justiça competente trabalhista, o que é único no mundo. Finalmente temos uma jabuticaba só nossa, talvez só comparável a momentos de radicalização ditatorial como a do Chile de Pinochet, que extinguiu a Justiça do Trabalho. Pela lógica do ministro Alexandre de Moraes, a ação do trabalhador não deve ser julgada pelo juiz competente constitucionalmente para análise da questão trabalhista, mas sim pelo juízo comum. Eu diria ao aluno Alexandre: mas o juiz comum vai fazer o que com a ação? Ele vai analisar a existência do vínculo empregatício? Com que competência e conhecimento? Eu perguntaria também se Alexandre teria revogado o artigo 114 da Constituição. Também diria a Alexandre: se esse tipo de raciocínio prevalecer, o direito e a justiça do trabalho acabam. Haverá poucos empregadores que vão reconhecer a condição de empregados de seus trabalhadores, pois até aqueles que assim desejarem serão obrigados pela concorrência a seguirem um caminho de contratá-los por contratos civis, em fuga ao direito do trabalho. Com isso a declaração universal dos direitos humanos, que prevê alguns direitos trabalhistas, não seria cumprida. O pacto interamericano de direitos humanos, por seu protocolo adicional, que traz vários direitos trabalhistas direcionados aos trabalhadores em geral, ratificado pelo Brasil, seria descumprido. O pacto internacional de direitos sociais, econômicos e culturais, que traz extensa lista de direitos para o trabalhador e, ficaria completamente esvaziado. A Constituição teria uma série de direitos fundamentais esvaziados, sem sujeitos. O curioso é que o Supremo Tribunal Federal deveria ser o guardião da Constituição, não no sentido kafkiano de restrição de acesso, mas no de fazê-la efetiva. Nesse momento eu teria uma ideia e faria uma proposta a Alexandre de Moraes: a substituição dessa nota zero por uma outra avaliação. Nela o virtual aluno dissertaria sobre a possibilidade constitucional, à luz dos tratados e declarações de direitos humanos, que os direitos do artigo 7 e seguintes, como direitos fundamentais, fossem estendidos a todos os trabalhadores, cumprindo a natural propensão dessa categoria de direitos: a universalidade. Se eu tivesse conseguido explicar as razões de existência do direito do trabalho, eu acredito que ele iria, desta vez, tirar nota dez. Para o bem do projeto de nação civilizada que está desenhado na Constituição da República.
2023-06-13T18:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-13/rodrigo-carelli-nota-zero-alexandre-direito-trabalho
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Resiliência democrática
TSE e STF lideraram restauração institucional do país, diz Gilmar
Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o país deve o seu restabelecimento institucional a dois vetores: o Inquérito 4.781 (aberto pelo ministro Dias Toffoli e relatado por Alexandre de Moraes) e a firmeza da ação do Tribunal Superior Eleitoral — em especial do seu corregedor, hoje no Conselho Nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão. Em dois artigos, um deles apresentado esta semana no Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o ministro analisa a trajetória do Brasil recente. "O movimento consorciado da 'lava jato' e do bolsonarismo pegou as forças políticas pelas costas — até que o ministro Salomão fez a biópsia da manipulação da internet com mensagens em massa e o TSE deu a resposta devida, paralelamente ao inquérito do Supremo." Neste primeiro artigo, intitulado Autodefesa institucional e proteção da Constituição: algumas premissas contextuais do Inquérito das Fake News, o ministro defende que o populismo está corroendo as instituições e fomentando discursos sectários e radicalismos que colocam em xeque as garantias individuais. Outro ponto citado é a transformação da forma de se comunicar, incluindo no período eleitoral, em que as propagandas tradicionais foram substituídas pela capilaridade das redes sociais, muitas vezes com informações falsas ou distorcidas, em especial envolvendo a atuação do Judiciário. "O desenvolvimento de processos tecnológicos relacionados à convergência das mídias sociais, a curadoria algorítmica de notícias, bots, inteligência artificial e grandes análises de dados tem criado verdadeiras câmaras de eco, que removem os indícios de confiabilidade sobre a informação e colocam em dúvida a capacidade de governar a nós mesmos como democracias razoáveis." Essas transformações, diz o ministro, alteraram substancialmente o conceito de esfera pública e desafiaram as balizas que sustentavam uma série de direitos já consagrados, como a liberdade de expressão; nesse contexto, o inquérito que investigou a disseminação de fake news e ataques à Corte foi instaurado em situação de grande "pressão do cenário político e de aumento da disseminação de informações falsas e ataques à base da estrutura do Estado democrático de Direito". "Essa atribuição investigativa deve ser exercida de forma constitucionalmente orientada para os casos de crimes que afetem, ainda que indiretamente, o núcleo das competências do STF, previsto no art. 102 da CF/88. Outro critério importante que deve justificar a instauração desses inquéritos judiciais é a regra da subsidiariedade: quando a apuração de crimes cometidos contra a Corte for realizada pelos órgãos de investigação, entendo que não cabe ao Tribunal instaurar uma investigação paralela", escreve Gilmar.  Traçando paralelos com a jurisprudência e a normativa alemãs, Gilmar ainda citou o caso do ex-deputado federal Daniel Silveira como exemplo de violação dos limites da liberdade de expressão, posto que o então parlamentar ofendeu reiteradas vezes os ministros do Supremo e proferiu frases como "Convoquei as Forças Armadas para intervir no STF". Para o ministro, há restrições às liberdades de fala dos cidadãos, incluindo os políticos, nos casos de ataques antidemocráticos; em ataques indevidos à honra das pessoas; em juízos depreciativos sem qualquer debate público ou crítica de valor político; em injúrias e nas "críticas aviltantes".  "Nesse sentido, qualquer ato de apologia ao nazismo ou ao holocausto, mesmo o uso de símbolos do nazi-fascismo, constitui crime, o que evidencia os limites da liberdade de expressão em relação à defesa da ordem democrática e à proibição à incitação a atos de violência, de tortura e de morte — tal como propagado pelo deputado federal em questão, ao defender a volta da ditadura militar." Outro ponto discutido no âmbito da prisão de Silveira versa sobre os limites da imunidade parlamentar. Gilmar afirma que a jurisprudência do STF é consolidada no sentido de respeitar a liberdade de expressão no âmbito da atividade parlamentar. A Corte, todavia, com a ascensão da extrema direita, tem entendido que a imunidade não pode ser aplicada à extensão da personalidade do parlamentar em atos que não têm relação com sua atividade legisladora. "O STF entendeu que não se encontra abrangido pela liberdade de expressão, tampouco pela imunidade parlamentar, o discurso proferido por deputado federal que, no exercício do mandato, em comunicação direcionada ao seu amplo número de correligionários, defende atos de violência contra a Suprema Corte e seus ministros, inclusive com o fechamento, a dissolução completa e a prisão de todos os membros do Tribunal, o que não foi feito sequer nos piores anos da ditadura", escreveu o ministro. Regulação das plataformas As grandes plataformas de rede, chamadas também de big techs, estão na intersecção entre o avanço da extrema direita e a proliferação das notícias falsas e dos discursos de ódio que pavimentaram a estrada para a situação atual do debate público no país. A regulamentação dessas empresas, em especial a sua responsabilização pelos conteúdos que são impulsionados por meio dos algoritmos, figura entre as principais pautas no Judiciário e no Legislativo. No âmbito da Câmara e do Senado, tramita o chamado PL das fake news, que busca estabelecer diretrizes mais concretas sobre a responsabilidade e os deveres dessas empresas; já no Supremo, discute-se a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isentou as plataformas de responsabilidade pelos conteúdos.  O modelo de autorregulação, que vigora hoje, diz o ministro em outro artigo, intitulado Liberdade de expressão, redes sociais e democracia: entre dois paradigmas de regulação, também acabou se transformando na esteira das mudanças dos comportamentos dos usuários e do próprio contexto político no qual o país está inserido. "Devido à centralidade que o poder privado das plataformas adquiriu na moderação de conteúdo on-line, muitas empresas passaram a incorporar discursos constitucionais na regulamentação privada do funcionamento dos seus serviços. Todavia, essa articulação de estatutos internos acaba por ser insuficiente para a proteção integral dos direitos dos usuários relacionados à liberdade de expressão." Gilmar coloca em questão o quanto essas empresas realmente operam em âmbito privado, visto que as discussões, posts, publicações e debates circulam como se fossem públicas. Na Europa, argumenta o ministro, houve uma mudança na legislação nos últimos anos, tendo em vista o crescimento do poder dessas plataformas. "[Essas leis] Elegem estratégias regulatórias processuais (process-based regulations) que colocam sobre os ombros das plataformas a responsabilidade de desenhar os seus serviços de forma mais segura para impedir a circulação e impulsionamento de conteúdos que podem comprometer direitos fundamentais e as condições democráticas da rede.", argumenta o ministro. 
2023-06-14T13:47-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-14/tse-stf-lideraram-restauracao-institucional-pais-gilmar
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Repensando as drogas
Política de acesso legal a um crack gratuito e livre de contaminantes
De tempos em tempos os governos da cidade e do estado de São Paulo brindam a população com um novo plano, não raro mirabolante, para pretensamente resolver a questão da Cracolândia. As experiências evocam à perfeição a frase do jornalista americano H. L. Mencken (1880-1956): "para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada". Trilhando um caminho diferente, em 2014 a então gestão municipal, do prefeito Fernando Haddad (PT), inspirada no modelo Housing First, que teve origem no início dos anos 1990 em Nova York, e que tem como princípio básico a garantia, em primeiro lugar e sem condicionantes ligados à abstinência no consumo de substâncias ou à adesão a tratamentos, de uma moradia para aqueles que se encontram em situação de rua, deu início à política pública nominada "De Braços Abertos", que buscou integrar diversas secretarias municipais com vistas a oferecer moradia, alimentação, trabalho e renda, com reforço no atendimento em saúde e assistência social no território, na linha de um projeto de redução de danos direcionado a proporcionar autonomia ao indivíduo. Ao contrário de tentativas frustradas ou mesmo desastrosas que vieram antes e depois do desmonte do programa, a ideia de oferecer uma moradia e suporte abrangente a pessoas em situação de vulnerabilidade encontra respaldo em diversos estudos que apontam índices significativamente melhores de permanência sob um teto em comparação a outros serviços de acolhimento (Johnson, G., Parkinson, S., and Parsell, C. (2012) Policy shift or program drift? Implementing Housing First in Australia, AHURI Final Report nº 184, Australian Housing and Urban Research Institute Limited, Melbourne, https://www.ahuri.edu.au/research/final-reports/184, p. 8). Evidentemente, este texto não tem qualquer pretensão de apresentar a política pública certa para o enfrentamento das complexas demandas que há décadas desafiam as autoridades públicas no território da Cracolândia. Mas para além de lançar o olhar para a tentativa que melhor compreendeu o tamanho do desafio e apresentou respostas calcadas em evidências e amparo científico, na contramão de projetos simplistas, equivocados e de apelo punitivo e repressor, almeja-se instigar a reflexão a respeito de novos possíveis caminhos, que resgatem a promoção de direitos básicos, com especial destaque à autonomia do indivíduo, oferecendo moradia e oportunidade de trabalho, atendimento adequado de saúde e das demais demandas de assistência social, oportunizando o restabelecimento e reforço dos laços familiares e comunitários, numa perspectiva de redução de danos, não moralizante e não violenta. Para tanto, não é preciso reinventar a roda. No monumental Na Fissura: uma história do fracasso no combate às drogas (tradução de Hermano Brandes de Freiras. — 1ª ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 240-257), o jornalista Johann Hari nos apresenta a história das clínicas de heroína da Suíça, um programa que veio na esteira da política de prevenção ao HIV, que contemplava o fornecimento de agulhas a usuários, os acolhia em locais para o uso seguro e oferecia metadona como alternativa. Inspirados por um experimento ocorrido na Inglaterra, em Liverpool, os suíços construíram o projeto de clínicas de heroína, que são locais nos quais usuários podem receber prescrição da substância e lá fazerem uso seguro. Um aspecto muito interessante apresentado pelo autor diz respeito à subcultura do uso da heroína — o que se aplica, evidentemente, também ao crack nos territórios degradados de grandes cidades brasileiras. Ainda que haja muito sofrimento envolvido, estar imerso na vivência de rua, tendo como objetivo diário arrumar dinheiro para a próxima picada ou pedra, não deixa de trazer certa empolgação para a vida de muitos usuários, ao passo que ter a possibilidade de acesso prescrito e gratuito a substância com grau de pureza determinado e livre de contaminantes abre a possibilidade do indivíduo, devidamente amparado por políticas de saúde e assistência, experimentar propósitos de vida já há muito perdidos. Desafiando certo senso comum, oferecer heroína legal e gratuitamente a usuários não os dá motivo para permanecerem indefinidamente adictos. Se, inicialmente, o acesso fácil à substância leva a um aumento momentâneo no consumo, após certo período há uma esperada estabilização e, em seguida, uma diminuição para a maioria dos usuários. "O fornecimento legal de drogas não é uma alternativa a parar com o uso. Para muitas pessoas, é uma etapa no processo de parar", sustenta o autor. E durante tal etapa, não faltam exemplos de pessoas que deixaram para trás a vida nas ruas e passaram a se reinserir funcionalmente na sociedade. Em média, os participantes permanecem no programa por três anos, sendo que após esse período apenas 15% mantiveram um uso diário. "Depois que as clínicas abriram, os suíços notaram uma coisa. Os parques e as estações ferroviárias que antes estavam cheios de dependentes se esvaziaram. As crianças voltaram novamente a frequentar os parques. Com as receitas de heroína, 55% menos veículos são roubados e há 80% menos assaltos. A queda nos índices de criminalidade foi 'quase imediata', mostrou um estudo detalhado." Se em 1985 o índice de contaminação por HIV causada pelo uso de drogas era de 68%, em 2009 passou para meros 5%; as mortes caíram absurdamente, ao passo que a empregabilidade triplicou. Como aponta o autor, não se trata de simplesmente consagrar uma política liberal quanto ao consumo de drogas. A perspectiva é diferente. Há um problema social grave e complexo a ser enfrentado e há opções erradas, que nos fazem ficar presos à ineficiência, perpetuando e ampliando a degradação de áreas cada vez maiores das cidades, e há alternativa a isso que apresenta resultados positivos – e se para tanto é preciso superar ideias arraigadas moldadas na lógica da abstenção total e na imperiosidade da repressão, é o preço a ser pago pelos conservadores para alcançarem sucesso no enfrentamento do problema. Até mesmo sob o prisma econômico, a experiência suíça demonstra que se gasta mais com a repressão aos usuários do que com o programa das clínicas. Os que insistem no fracasso e no desrespeito aos Direitos Humanos sempre têm pronta a famigerada sentença "aqui não é a Suíça". Há uma parcela de acerto nisso. É equivocada a simples importação de experiências exitosas estrangeiras sem um olhar acurado para a nossa realidade. Para além disso, no entanto, nada impede que nos inspiremos em programas que há décadas apresentam excelentes resultados. O esforço deve envolver as esferas municipais, estaduais e a federal, além de contar com novo arcabouço legal na política de drogas que permita sairmos desse círculo de violência e fracasso. Algumas medidas podem ser implementadas resgatando uma política de redução de danos e de assistência integral, com foco na autonomia e no fortalecimento dos laços familiares e comunitários das pessoas vulneráveis do território. E se em primeiro lugar vem a moradia, contemplados os demais direitos e promovidas as ações acima, que ao lado disso a questão do crack, entre nós, possa ser colocada em adequada perspectiva. Não é tirando milagrosamente a substância que, em um passe de mágica, o indivíduo superará suas vulnerabilidades e demandas de saúde e sociais. A chave pode ser colocar a substância em seu devido lugar. Em interessante trabalho de mestrado defendido na Universidade de São Paulo, Marcel Segalla Bueno Arruda (A cracolândia muito além do crack [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2014) destaca, a partir de sua pesquisa, aquilo que já deveria estar fortemente sedimentado como pressuposto de qualquer abordagem pública da questão, que a centralidade do problema na Cracolândia não é o uso de drogas, mas a questão social. É possível que, na linha de exitosas experiências internacionais de redução de danos, projetos para a Cracolândia — e tantos outros territórios — passem por superar o paradigma de centralidade da droga, admitindo uma específica política de acesso legal a um crack gratuito e livre de contaminantes, para que, retirando o tráfico da equação e superando as práticas de repressão e violência, possam ser abertos caminhos surpreendentes para a melhora da qualidade de vida não apenas dos usuários — que têm a chance de terem suas vidas de volta, com significados, trabalho, relações comunitárias —, mas de toda a população dos territórios afetados, possibilitando a reconfiguração urbana das áreas e colhendo-se resultados hoje impensáveis em termos inclusive de segurança pública.
2023-06-16T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-16/repensando-drogas-crack-gratuito-qualidade
academia
Opinião
Luzes e Almeida: A Justiça do Trabalho no fogo cruzado
Recentemente, a comunidade jurídica foi invadida pelo debate acalorado, quase dicotômico, entre apoiadores e críticos de dois textos publicados aqui nesta ConJur. Ambos reagem à recente decisão [1], da lavra do ministro Alexandre de Moraes, que, na esteira de outros precedentes do STF, derrubou um acórdão do TRT da 3ª Região que reconhecia o vínculo de emprego entre um motorista e a plataforma digital. Contudo, enquanto o primeiro artigo cobra uma postura ativa da Justiça do Trabalho, o segundo imputa a ela a culpa por este resultado, cobrando-lhe uma conduta remissiva. Ambos os textos refletem a polarização que permeia quase todos os aspectos de nossas vidas na contemporaneidade e corrompe, cada vez mais, nosso tecido democrático. Buscaremos, aqui, transpô-la e, sem qualquer pretensão de ter razão, contribuir com novos elementos reflexivos que propiciem o debate fora destas "bolhas". Em tempos de ode à análise econômica do direito aplicado por tribunais, pouco se ouve falar dos efeitos sociais destas próprias decisões. Apresentamos aqui, então, uma curta história, pois, como diria Cazuza, "eu vejo o futuro repetir o passado" [2]. Após inúmeras greves que denunciaram péssimas condições de trabalho dos padeiros no estado de Nova York e reivindicaram redução da carga horária de trabalho — que atingia, em regra, 74 horas semanais —, em 1895, ambas as casas legislativas daquele estado aprovaram, por unanimidade, uma lei limitando o trabalho da categoria a 10 horas diárias e 60 semanais, além de regulamentar suas condições sanitárias. Denunciado por descumpri-la, exigindo de seus empregados jornada superior à nela fixada, Joseph Lochner, proprietário de uma padaria na cidade de Utica, levou a discussão até a Suprema Corte dos Estados Unidos que, revendo as decisões proferidas nas instâncias inferiores, declarou a inconstitucionalidade da lei por violar o direito de liberdade de contratação entre empregados e empregadores. Este caso é paradigmático porque inaugurou um período de atuação da Suprema Corte norte-americana — a Era Lochner (1897-1937) — em que as cláusulas do devido processo legal foram "aplicadas substantivamente para considerar inconstitucionais várias leis estaduais e federais que restringiam o direito à 'liberdade de contrato'". [3] Mas o lochnerismo — como também é conhecido este período — acabou minado pelos seus próprios fundamentos, quando suas premissas colapsaram diante dos olhos da sociedade mergulhada em uma crise econômica e social sem paralelo que se seguiu à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. No precedente mais comumente apontado como sinalizador do fim da Era Lochner — West Coast Hotel Co v. Parrish (1937) —, a Suprema Corte validou uma lei do estado de Washington sobre salário mínimo e explicou que a concepção de liberdade no trabalho até então adotada "deixou de reconhecer o desequilíbrio de poder entre empregador e empregado, o que prejudicou a liberdade deste último" [4]. Aqui no Brasil, nos últimos anos, nosso Supremo Tribunal Federal, seguindo os passos da Suprema Corte norte-americana, vem apresentando "sintomas de um retorno ao lochnerismo" [5], com o prestígio à liberdade contratual nas relações de trabalho sob dois aspectos: 1) o agente econômico é livre para escolher a forma de contratação da mão de obra — própria ou terceirizada (ADPF 324); e 2) o trabalhador e o tomador dos serviços são livres para eleger a modalidade de trabalho a ser prestado — autônomo (ADC 48), por demanda em plataformas digitais (Rcl 59.795/MG), "pejotizado" (Rcl 39.351, 47.843 e 56.285) etc. A diferenciação é necessária, pois, ao passo em que, na 1) primeira situação, há negociação entre duas empresas, sem qualquer mácula aos direitos dos empregados, aos quais se aplica inteiramente a legislação trabalhista — ressalvadas as críticas à terceirização como forma de desorganização do sistema clássico de garantias do Direito do Trabalho [6] —, na 2) segunda, a negociação é feita diretamente entre o tomador dos serviços e o trabalhador. Neste último aspecto, inclusive, a Corte se afasta da premissa por ela mesma adotada taxativamente, no RE 590.415, segundo a qual, "no âmbito do direito coletivo, não se verifica, portanto, a mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Por consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual". Partimos, aqui, do pressuposto — mesmo que muitos insistam em dizer o contrário — de que a relação de trabalho é sim um espaço que demonstra o abismo de classes, que possui trabalhador de um lado e o empresariado de outro. E mais: pela simples racionalidade econômica dos agentes desta relação, ambos querem maximizar suas posições. Pensar que o mundo é a representação de nossa "bolha" de privilégios é desconhecer a realidade brasileira: uma sociedade eminentemente desigual e que parece fazer de tudo para assim permanecer. É também agir em total desprezo à realidade consubstanciada na perspectiva dialética do próprio ser humano. Por isso, deve-se levar luz à tentativa de ocultar o conflito social que circunda a relação de trabalho. Este conflito é inerente à sociedade, e é exatamente por isso que o Estado avocou para si a condição de mediador desta pacificação pela construção de um contrato social e consequente regulação das relações de trabalho. Não à toa, dado que o artigo 7º da CF/88 não sofreu alteração — e a CLT (ainda) não foi revogada —, percebe-se um traço comum nestes precedentes do STF: tais formas de contratação são válidas desde que não se revistam de caráter fraudulento. É o que se vê, e.g., na tese fixada na ADI 5.625, que declarou a constitucionalidade do contrato de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, sendo nula, contudo, a avença quando utilizada "para dissimular relação de emprego de fato existente". Como conclusão lógica, ao fixar teses neste sentido, a Corte "joga para o varejo" a análise de cada caso concreto, o que é feito à luz dos fatos, e não do direito. Ora, então o que cabe à Justiça do Trabalho? A Justiça do Trabalho não formula políticas públicas, não cria regras abstratas e não fiscaliza a execução das leis, mas apenas analisa os casos concretos e lhes aplica a norma vigente. Se a relação — "pejotizada", por demanda, de parceria ou como queiram denominar — de fato se constitui em um trabalho subordinado, a ela deve ser aplicada a CLT. E é apenas isso que o Juiz do Trabalho faz, seja pelo que preconiza a lei, seja pelo que descrito na Constituição. Não obstante, o STF — em que pese sua essência coletiva — tem avocado para si este "varejo", ignorando premissas fáticas e elastecendo, em julgados monocráticos, temas decididos pelo colegiado, mesmo que, para tanto, às vezes lance mão de um "triplo carpado hermenêutico". E, assim, muitas destas decisões acabam por tornar sem efeito — quase numa "inconstitucionalidade radioativa" — o artigo 9º da CLT, que imputa à Justiça do Trabalho o dever de enfrentar práticas que buscam tornar opaca uma real relação de emprego. Parece termos chegado ao ponto, como acentua um dos textos, de conferirmos efetivo monopólio ao empregador para dizer quem é empregado. Não se pode perder de vista que há determinada carga política nas decisões do STF — e aqui não se discute se isso é ou não desejável —, o que se pode explicar pela quantidade de indivíduos que afetam. No entanto, também em razão desse elemento político, a Corte é levada muitas vezes a rever determinado posicionamento — quando o resultado não se amolda ao esperado. É o que aconteceu, e.g., com a contribuição sindical. Após declarar a constitucionalidade de sua extinção pela Reforma Trabalhista, em sede de embargos de declaração, no ARE 1.018.459, a Corte decidiu excetuar as contribuições assistenciais. E por quê? Nas próprias palavras do ministro Roberto Barroso, "identificou-se uma contradição entre prestigiar a negociação coletiva e, ao mesmo tempo, esvaziar a possibilidade de sua realização, ao impedir que os sindicatos recebam por uma atuação efetiva em favor da categoria profissional". Diante do quadro descrito, passamos a buscar reflexões sobre a redução imposta pelo Supremo àquilo que compete à Justiça do Trabalho enfrentar diariamente. Alguns buscam encontrar meros culpados. Ora, a "culpa" é da CLT, outorgada por um ditador, muito embora seus críticos se esqueçam de mencionar as diversas mudanças pelas quais passou em seus 80 anos de vigência — muitas delas flexibilizadoras de direitos, como as adotadas durante a Ditadura Militar (1964-1985). Ora, é da própria Justiça do Trabalho, por conta de suas interpretações ou de supostos reflexos de suas decisões. Respeitosamente, isso denota apequenar os fatos ou enviesar o debate pelo foco do que nos interessa realmente defender. Para darmos um exemplo exagerado, porém pertinente, colocar a culpa na Justiça do Trabalho pelo esvaziamento de sua competência é como imputar a responsabilidade pela importunação sexual à roupa usada pela vítima. Talvez, a reflexão devesse ser outra: estaria o Judiciário Trabalhista ignorando a realidade das novas formas de prestação de trabalho que não a típica relação de emprego? Ou estaríamos nós, ofuscados pela disrupção tecnológica, matando o emprego antes mesmo que ele morra? Ou ainda: não estamos supervalorizando o papel da Justiça do Trabalho? Segundo dados do TST, dentre os assuntos mais recorrentes nas demandas ajuizadas, o reconhecimento da relação de emprego aparece em um tímido 16º lugar. Por outro lado, chovem pretensões que versam sobre questões elementares, como inadimplência de verbas e de horas extras. E mais, em 2015 e em 2019 — dois anos antes e dois anos após a Reforma Trabalhista —, 58,29% e 54,44% das demandas tiveram como resultado improcedência, parcial procedência [7]ou foram extintas [8]. Ou seja, os números mostram — diferentemente do que se apregoa — que não se julga tudo a favor dos trabalhadores. Não bastasse, as narrativas que apontam a existência de uma demonização do empresariado desconsideram que um enorme contingente de empregadores não é demandado, pelo simples fato de cumprirem o ordenamento. Por fim, a discussão não pode ser resumida à constatação de que sem capitalismo não existe relação de emprego. Afinal, o estado de bem estar social é um produto do capitalismo e, como tal, enxerga a centralidade do trabalho na sociedade. O arranjo pragmático das políticas do welfare state o afasta de qualquer ideal utópico e dos dois polos extremos que com ele competem — o capitalismo de livre mercado e o socialismo [9]. As catástrofes do século 20 foram provocadas por dois tipos de líderes políticos — os populistas e os ideólogos. Já os líderes mais exitosos daquele século foram justamente os pragmatistas, que se concentravam em soluções práticas para problemas centrais [10]. Cabe, portanto, indagarmos se estamos sendo pragmáticos em ratificar estes tipos de relação de trabalho desprovidas de direitos trabalhistas e, muitas vezes, previdenciários [11]. Ou estaremos — todos nós contribuintes — em breve pagando a conta por estas decisões? Seria razoável sairmos de um modelo de regulação estatal para um modelo desregulado? Precisamos de mais razão e menos emoção. Do contrário, seremos todos reduzidos a "neoliberais fascistas" ou "comunistas retrógrados". Não é nosso objetivo debater se a CLT é ou não o melhor instrumento normativo para regular as assim chamadas "novas relações de trabalho". Há vozes em ambos os sentidos e todas devem ser ouvidas no fórum adequado: o Congresso. Mas, enquanto isso, a vida continua, pessoas trabalham, se sentem lesadas e ajuízam ações. Cabe ao juiz do trabalho, diante da análise dos fatos em determinado caso concreto, percebendo a presença da subordinação em determinada relação de trabalho, aplicar a lei que temos. Seria então a Justiça do Trabalho culpada pela inércia do legislativo? Extinguir a Justiça do Trabalho por ato legislativo imputaria grande custo político para aqueles que aderissem a esta bandeira — não à toa, incipientes tentativas de sua "explosão" foram quase que instantaneamente sepultadas. Por outro lado, minar o seu alcance com a redução de sua competência — com uma aderência ao posicionamento lochnerista e em clara redução hermenêutica do artigo 114, I, da CF/88 — se manifesta como uma forma técnica (ou não) de torná-la meramente residual e irrelevante. Sua "implosão" parece ter maiores chances de alcançar a longo prazo o mesmo resultado: sua inoperância por inação imposta. Como toda decisão política, e aqui colocamos propositalmente a referida palavra, em algum momento seremos igualmente cobrados, seja pela ação ou omissão [12]. E neste futuro, se tivermos a oportunidade, parafraseando Chico Buarque, talvez poderemos "nos perdoar por nos trair". [1] Recl 59.795. [2] O discurso reiterado de defesa ideológica de um passado, como se houvesse uma construção argumentativa contra "o novo", nos faz lembrar momentos que antecederam a abolição da escravidão e a regulamentação do trabalho doméstico, com argumentos, em regra de viés econômico, como, e.g., o risco de desemprego. [3] MAYER, David N. The myth of laissez-faire constitutionalism: Liberty of contract during the Lochner era. Hastings Const. LQ, v. 36, p. 217, 2008. [4] NORRIS, Luke. Constitutional Economics. Yale JL & Human, v. 28, p. 1, 2016. [5] Sobre o tema, ver: COCHRAN, III, Augustus Bonner; FERNANDES, João Renda Leal. De volta a Lochner. Revista LTr, Ano 86, v. 10, p. 1196-1217, 2022. [6] Para Maurício Godinho Delgado, "a fórmula da terceirização trabalhista permite a desconexão entre a relação socioeconômica de real prestação laborativa e o vínculo empregatício do trabalhador que seria correspondente com o próprio tomador de seus serviços" (Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2017). [7] Toda procedência em parte é, por consequência lógica, uma improcedência em parte. [8] LUZES, Fabiano Fernandes. Uma breve Reflexão sobre as balizas que fundamentam a limitação de acesso à justiça trabalhista: um repensar sobre a desjudicialização dos conflitos e atuação do estado na sua gestão a luz de uma perspectiva consequencialista. Revista do TRT da 24ª Região, n. 6, 2021, p. 109-130. [9] GARLAND, David. The welfare state: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2016. [10] COLLIER, Paul. O futuro do capitalismo: enfrentando as novas inquietações. 1. ed. Porto Alegre: L&PM, 2019. [11] No modelo previdenciário brasileiro, todo aquele que exerce uma atividade remunerada é segurado obrigatório do sistema. Não obstante, motivos diversos como os baixos rendimentos, a oferta privada de investimentos e a falta de fiscalização fazem com que boa parte dos trabalhadores autônomos esteja fora do sistema. [12] Para reflexões sobre a correlação entre ausência de direitos trabalhistas e precarização democrática, ver: LUZES, Fabiano Fernandes. Neopopulismo e Direito do Trabalho. Leme/SP: Ed. Mizuno, 2022.
2023-06-17T06:10-0300
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Opinião
Opinião: Escritórios que habitualmente suscitam IRDRS?
Dos institutos mais polêmicos do CPC/15, o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) ainda é capaz de chamar a atenção da academia jurídica e de trazer algumas surpresas ao senso (jurídico) comum. Com o intuito de desbravar os aspectos ainda não explorados do incidente, propomo-nos a desenvolver uma pesquisa, partindo da tipologia ideal de "repeat players" e "one shooters" desenvolvida por Marc Galanter [1], para entender: afinal, existem escritórios de advocacia ou advogadas(os) que estão se especializando na suscitação de IRDRs? Posto de outra forma, existiria uma prevalência numérica de Incidentes suscitados por um número limitado de escritórios de advocacia ou de advogadas(os), que monopolizariam a sua utilização em benefício de categorias específicas de litigantes, em especial, pessoas jurídicas "jogadores habituais"? Para responder a essas perguntas, desenvolvemos a referida pesquisa por meio do Observatório do Judiciário [2], grupo de pesquisa e extensão da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), analisando todos os IRDRs suscitados no TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) e no TJ-SP (de São Paulo) até 24/1/2021 e 30/1/2021, respectivamente. O total à época foi de 669 incidentes que tiveram suas petições de suscitação analisadas. Destaca-se que, na realidade, havia 764 incidentes cadastrados nesses tribunais, mas aproximadamente 12,55% foram descartados ou por não tratarem de IRDRs (ex.: cadastro de recurso por engano da parte) ou por tratarem de incidentes suscitados em segredo de justiça ou autos físicos (objeto de exposição em trabalho separado [3], também publicado no Conjur [4]). No TJ-MG, os patrocinadores que mais suscitaram foram: 1) escritórios de advocacia (47 IRDRs); 2) advogadas(os) individuais (32 IRDRs); 3) procuradoria da administração pública direta ou indireta (14 IRDRs). Em Minas Gerais, o maior suscitante foi um escritório, com sete IRDRs suscitados, seguido de um advogado com cinco IRDRs.  Em seguida, dois escritórios e duas procuradorias, cada um com quatro IRDRs. Por fim mais uma procuradoria e um advogado com três IRDRs. Os demais suscitaram apenas um cada. Já no TJ-SP, os patrocinadores que mais suscitaram foram: 1) escritórios de advocacia (223 IRDRs); 2) advogadas(os) individuais (188 IRDRs); 3) procuradoria da administração pública direta ou indireta (44 IRDRs); 4) jurídico interno de empresa (dois IRDRs). Em São Paulo, o maior suscitante foi um escritório, com 14 IRDRs suscitados, seguido de outro escritório e um advogado com 6 IRDRs cada um. Em seguida, uma procuradoria, dois escritórios e um advogado, cada um com cinco IRDRs. Por fim, cinco patrocinadores suscitaram quatro IRDRs (uma procuradoria, três escritórios e um advogado). Ambos os tribunais têm padrões semelhantes no que se refere ao perfil dos patrocinadores: nos dois, os escritórios de advocacia foram os que mais suscitaram incidentes, seguidos, em ordem, pelos advogados individuais, procuradorias e, no caso de São Paulo, jurídicos internos. Apesar disso, em números absolutos, os patrocinadores que atuam no TJ-SP suscitam mais IRDRs do que aqueles que atuam no TJ-MG de modo que, na lista dos dez maiores patrocinadores, sete deles atuam no primeiro, enquanto apenas dois atuam no segundo. No décimo lugar há um empate técnico entre os dois. Apresentados esses dados, retornando a pergunta inicial, qual seja, se existem escritórios de advocacia ou advogadas(os) que estão se especializando na suscitação de IRDRs, a resposta provisória é de que não, não há especialização. No TJ-MG, em um universo de 171 incidentes suscitados, o escritório que mais suscitou IRDRs o fez sete vezes (4% dos incidentes). E mesmo que se considerasse esse número, é baixa a quantidade de patrocinadores que suscitaram mais de um incidente (apenas 12% deles). A grande maioria dos patrocinadores (num total de 88%) suscitaram apenas um incidente. No TJ-SP, dos 498 incidentes suscitados, o escritório com mais IRDRs suscitou 14 (2,8% dos incidentes). Como no TJ-MG, todos os patrocinadores que suscitaram mais de um IRDR cada compõem apenas o percentual de 20%, a despeito dos 80% de patrocinadores que suscitaram somente um incidente: Por fim, a pesquisa revela ainda que há uma verdadeira pulverização no momento de suscitação dos incidentes, mas não descarta a possibilidade de que, após suscitados ou admitidos, outros patrocinadores assumam a condução dos incidentes. [1] GALANTER, Marc. Por que "quem tem" sai na frente: especulações sobre os limites da transformação no direito. Organização e tradução: Ana Carolina Chasin. São Paulo: FGV Direito SP, 2018. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace;/handle/10438/25816>. [2] MAIA, R. C. V.; NEVES, O. V. M.; RODRIGUES, L. H. A.; ROCHA, I. M. Uma análise empírica dos patrocinadores dos suscitantes de IRDR's no TJMG e TJSP: existem patrocinadores que habitualmente suscitam incidentes?. In: YARSHELL, Flávio Luiz Yarshell; COSTA, Susana Henriques da; FRANCO, Marcelo Veiga. (Org.). Acesso à Justiça, Direito e Sociedade: estudos em homenagem ao Professor Marc Galanter. 1 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 721-748. [3] ROCHA, Igor Moraes; HOLANDA, Larissa; VILELA, Otávio. IRDRs inacessíveis: ensaio sobre autos em segredo de justiça e autos físicos no TJSP e TJMG. In: GONÇALVES, Gláucio Maciel; MAIA, Renata C. Vieira; ROCHA, Igor Moraes; TEODORO, Giovani Pontes (Org.). Estudos empíricos em processo e organização judiciária. Belo Horizonte: Editora Expert, 2022, p. 514-542. Disponível em: <https://experteditora.com.br/estudos-empiricos-em-processo-e-organizacao-judiciaria/>. [4] ROCHA, Igor Moraes; HOLANDA, Larissa; VILELA, Otávio. O curioso caso dos IRDRs em segredo de justiça. Revista Eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), 30 abr. 2022. Disponível aqui.
2023-06-18T09:25-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-18/opiniao-escritorios-habitualmente-suscitam-irdrs
academia
Direito Civil Atual
Incapacidade civil e o 'louco mais famoso da história da psiquiatria'
Em duas colunas publicadas em 2021, foram abordadas as reformas francesas do sistema de incapacidade [1] [2], que se caracterizaram por um processo de contínua flexibilização e ampliação do escalonamento das medidas protetivas aos maiores protegidos (majeurs protégés). As reformas permitiram que se tivesse maior flexibilidade na proteção das pessoas com transtornos mentais, abrangendo os casos que precisam de uma proteção mais rígida e os casos que precisam de uma proteção mais tenra, ou seja, casos em que a afetação do discernimento atrapalha, mas não impossibilita a vida civil da pessoa com deficiência. A reforma no Direito Civil brasileiro feita pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD — Lei nº 13.146/2015), em sentido inverso, excluiu a possibilidade de proteção das pessoas com deficiência do rol dos incapazes (artigos 3º e 4º, CC), por entender que "a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa" (artigo 6º, EPD), enquanto manteve a possibilidade de curatela das pessoas com deficiência (artigo 1.775-A, CC). Uma interpretação — dentre as várias possíveis — é a de que há ainda a interdição relativa das pessoas com transtornos mentais, com fundamento no artigos 1.767, inciso I, e 4º, inciso III, do Código Civil [3]. Com isso, reduziu-se o escalonamento da proteção às pessoas com transtornos mentais no Brasil, que agora se limita à hipótese menos protetiva de incapacidade civil. O problema da falta de escalonamento deixa os transtornos mentais graves — a exemplo das "psicoses em geral, toxicomanias graves, alcoolismo crônico, oligofrenia moderada e grave, degenerações senis etc" — desprotegidos, já que, "tendo o perito concluído por uma forma grave de transtorno mental, com prognóstico desfavorável, não há outro caminho que não o da incapacidade". Conforme Guido Arturo Palomba, a interdição relativa deveria ser aplicada somente a transtornos mais leves, quando "o indivíduo examinado, pródigo ou não, é um fronteiriço, portador de perturbação da saúde mental ou portador de desenvolvimento mental retardado que não tem capacidade psicológica para o exercício de certos atos da vida civil" [4]. Dentre as patologias graves, pode-se mencionar a esquizofrenia (espécie de psicose [5]), transtorno mental que afeta o discernimento, provocando alucinações, delírios, discurso desorganizado, comportamento grosseiramente desorganizado ou catatônico e sintomas negativos (i.e. expressão emocional diminuída ou avoila) [6]. Para a crítica da ausência de escalonamento de hipóteses protetivas às pessoas com transtornos mentais poderiam ser analisados diversos casos de esquizofrenia, na literatura e na vida. A exemplo do caso de John Forbes Nash, ganhador de prêmio Nobel em Ciências Econômicas, que tinha esquizofrenia paranoide. Ou mesmo o caso de Chuck McGill, personagem ficcional — da premiada série de televisão Better Call Saul — que foi acometido no fim da vida por "perturbações cenestésicas", crendo ter o que ele mesmo chamou de "hipersensitividade eletromagnética", o que poderia dar fundamento a um diagnóstico de esquizofrenia tardia. No entanto, será analisado o caso de Daniel Paul Schreber, que é "o louco mais famoso da história da psiquiatria e da psicanálise" [7], por ter relatado seu adoecimento em autobiografia de nome "memórias de um doente dos nervos", a qual foi estudada por Sigmund Freud [8]. Nesta coluna, haverá somente uma descrição do caso, deixando-se a análise para a parte 2 da coluna. O caso Schreber Daniel Paul Schreber, doravante Schreber, teve uma carreira meteórica no Direito, como jurista importante e funcionário do Ministério da Justiça do Reino da Saxônia. Tendo por primeiro cargo escrivão-adjunto, passou a auditor da Corte de Apelação, assessor do Tribunal, conselheiro da Corte de Apelação, vice-presidente do Tribunal Regional de Chemnitz, presidente do Tribunal Regional de Freiburg e, por último e mais importante, juiz-presidente da Corte de Apelação (Senatspräsident) de Dresden [9]. Durante a vida, Schreber foi submetido a três relevantes internações em razão de surtos psicóticos: uma em 1884, outra em 1893 e, por fim, a última em 1907. Na primeira vez, foi internado na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig, dirigida então pelo professor Paul Emil Flechsig, uma das maiores autoridades da Psiquiatria e da Neurologia da época. Nessa ocasião, apesar de pouco abordar a questão no livro, ele foi acometido de manifestações delirantes não sistematizadas e duas tentativas de suicídio. Dentre os sintomas, queixava-se de ter perdido de 15 a 20 quilos de peso (enquanto a balança contrariamente apontava um ganho de dois quilos), convencendo-se de que os médicos o enganam intencionalmente; estava certo que teria um ataque do coração logo (hipocondria); suspeitava que sua esposa fosse mandada para longe e não voltaria; sentia-se fraco ao ponto de ter que ser carregado; pediu para ser fotografado seis vezes e, em 26 de maio daquele ano, pediu que tirassem a sua "última foto", suspeitando-se que fosse morrer [10]. Schreber acusa que este primeiro colapso se deu em razão de sua candidatura ao Reichstag, momento em que era diretor do Tribunal de Província em Chemmitz. Ficou internado somente por seis meses e recebeu alta [11]. Porém, em junho de 1893, Schreber recebeu visita do ministro da Justiça da Saxônia, o qual, pessoalmente, avisou-lhe que ele seria nomeado para o cargo de juiz-presidente da Corte de Apelação (Senatspräsident) de Dresden, cargo irrecusável sob pena de caracterização do delito de lesa-majestade [12]. No intervalo entre a nomeação para a presidência da corte de apelação e a posse, teve Schreber um sonho, que marca, conforme Freud, a exteriorização do sintoma que o leva à paranoia, em que teria realizados condutas reputadas por ele como "femininas", embora fosse ele homem [13]. O posto era assaz elevado para a sua idade à época da nomeação (51 anos). Os esforços para atender bem as expectativas e exigências do novo posto e ser bem apreciado por seus colegas levaram Schreber ao colapso mental, sendo novamente internado e diagnosticado com dementia paranoides (hoje, esquizofrenia), em 21 de novembro de 1893 (segunda internação) [14]. De 1893 a 1899, Schreber viveu um "adoecimento" profundo, afirmando que falava com Deus e os demônios zombam dele, gritava durante a noite, alimentava-se de modo irregular (ora comia em excesso, ora recusava alimento), fazia caretas para o sol, escrevia cartas em italiano e assinava como "Paul Höllenfürst" (Paul, Príncipe dos Infernos), acreditava estar se transformando em mulher, dentre vários outros sintomas. Sua agitação e ausência de controle fez com que ficasse trancafiado em uma cela-forte no sanatório por anos, isolado dos demais [15]. Somente em dezembro de 1898, voltou a dormir no quarto, começando a expor suas ideias de forma organizada em 1899. Com a volta dos pensamentos organizados, não desapareceram as alucinações e delírios. Pelo contrário, Schreber passou a estruturá-los de forma sistemática. Schreber criou uma realidade completamente nova em sua mente, o que fez com todos os eventos que sofria tivessem uma racionalidade, ainda que fossem vozes e visões de pessoas que desapareciam, uma nova concepção sobre a divindade e uma visão de que os deuses se relacionavam com tudo que há no universo por conexões nervosas estruturadas pelos raios solares. O principal e mais famoso sintoma é a emasculação, que é o delírio de que Deus, através dos raios solares, estava o transformando em mulher. Todo esse universo é sistematizado no livro Memória de um Doente dos Nervos, relato autobiográfico de Schreber [16]. Com o retorno do pensamento organizado — e paralelamente a escrita de sua autobiografia —, Schreber passou a denunciar suposta irregularidade de sua curatela, que tinha sido estabelecida em 1894. Ocupou-se pessoalmente de todos os passos de seu pedido de levantamento da interdição, para que fosse reconhecida sua capacidade civil, tendo sentença desfavorável em 1900, a qual foi revertida em apelação em 14 de julho de 1902. O livro foi escrito entre 1900 e 1902 e foi anexado ao seu processo de levantamento da interdição [17]. Levantada a interdição e com alta do sanatório, Schreber insiste e, a contragosto da família, publica as suas memórias pela editora O. Mutze, de Leipzig, em 1903. No mesmo ano, adotou uma criança órfã de 13 anos de idade. Embora estivesse com mais de 60 anos, Schreber demonstrava grande vitalidade física e intelectual: "lê muito, interessa-se por todas as manifestações da cultura, participa de campeonatos de xadrez e emite, em caráter privado, pareceres inteiramente adequados sobre questões legais". Os sinais exteriores da esquizofrenia desapareceram quase completamente. Perguntado sobre a doença, dizia que "as vozes nunca o deixaram, mas que agora soam como um zumbido incompreensível e contínuo, localizado num ponto da parte posterior da cabeça, por onde tem a sensação de ser puxado por um fio" [18]. Após morte de sua mãe e doença de sua esposa, Schreber sofre sua última internação no sanatório de Dösen, próximo a Leipzig, em 27 de novembro 1907. Passa a ter sintomas catatônicos de imobilidade, fala coisas ininteligíveis, fica acamado e mal se alimenta por anos, morrendo em 14 de abril de 1911 [19]. Na parte 2 da coluna, será feita uma análise das implicações do caso na incapacidade civil com fundamento na psiquiatria forense. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). Continua na parte 2 [1] https://www.conjur.com.br/2021-nov-29/direito-civil-atual-recentes-reformas-incapacidade-maiores-direito-civil-frances-parte [2] https://www.conjur.com.br/2021-dez-06/direito-civil-atual-incapacidade-maiores-direito-civil-frances-parte [3] "Na prática, é possível que pacientes psiquiátricos graves sejam interditados de acordo com o inciso I [do artigo 1.767, CC], equivalente ao inciso III do artigo 4º do Código Civil, que faz menção às pessoas que 'por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade'. Quem atua em saúde mental sabe que em vários casos graves o que falta aos pacientes é justamente a capacidade de expressar sua vontade. Por mais que se queira valorizar a autonomia das pessoas, não é responsável nem justo – sequer humano – deixar que pacientes bipolares em mania se desfaçam de seus patrimônios, ou que pacientes demenciados graves decidam sobre sua herança, tampouco que pacientes psicóticos sem crítica determinem os caminhos de seu tratamento. Esse é outro aspecto do Estatuto da Pessoa com Deficiência que não encontra plena aplicação na prática". (BARROS, Daniel Martins de. Introdução à Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed, 2019. p. 53-54) [4] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. São Paulo: Atheneu Editora, 2003. p. 218. [5] ELKIS, Helio; RIBEIRO, Rafael Bernardon; CORDEIRO, Quirino; MARAFANTI, Ísis. Transtornos psicóticos e esquizofrenia. In: BARROS, Daniel Martins de; CASTELLANA, Gustavo Bonini.  Psiquiatria Forense: interfaces jurídicas, éticas e clínicas. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2020. p. 228. [6] American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Tradução Maria Inês Corrêa Nascimento. 5. ed. Porto Alegre: Armed, 2014. p. 87. [7] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e organização de Marilene Carone. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 9. [8] FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: o caso Schreber. In: artigos sobre técnicas e outros textos (1911-1913). Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. [9] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 10-11. [10] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 12-13. [11] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 54. [12] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 11. [13] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 45. Comenta Freud: "Se recordarmos o sonho tido no período de incubação da doença, antes da mudança para Dresden, ficará evidente que o delírio da transformação em mulher não é mais que a realização do teor daquele sonho. Na época ele se revoltou contra esse sonho, com masculina indignação, e também pelejou inicialmente contra sua efetivação durante a enfermidade, vendo a transformação em mulher como um ultraje que lhe destinavam com intenções hostis. Mas houve um momento (novembro de 1895) em que começou a se reconciliar com tal transformação e a vinculou a elevadas intenções por parte de Deus. 'Desde então inscrevi em minha bandeira, com plena consciência, o cultivo da feminilidade'" (FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: o caso Schreber. In: artigos sobre técnicas e outros textos (1911-1913). p. 45). [14] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 11. [15] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 12-13. [16] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. passim. [17] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 13. [18] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 13-14. [19] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 14-15.
2023-06-19T15:11-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-19/direito-civil-atual-incapacidade-civil-schreber-parte
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Direito Digital
Infraestrutura digital e acesso universal à internet nas escolas
Nesta semana, o governo federal anunciou que lançará um programa para disponibilizar internet em 100% das escolas públicas do país. Segundo o anúncio, a intenção é levar banda larga para todas as escolas com recursos do Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações), por meio de ação conjunta com os ministérios da Educação e de Comunicações e com o BNDES [1]. Porém, a expectativa de ampliação da infraestrutura digital e universalização do acesso à internet nas escolas brasileiras não é de hoje e já perpassa por diferentes contextos políticos e governos. No Brasil, os programas governamentais voltados para tecnologias digitais têm sido uma prioridade política, no discurso, ao longo das últimas três décadas. Desde a década de 1990, o acesso à internet nas escolas tem sido uma promessa reiterada por todos os chefes de Estado, que falharam na universalização, o que nos motiva fazer uma retrospectiva das tentativas de universalização do acesso à internet nas escolas e dos programas de Inclusão Digital Escolar propostos. No geral, os programas instituídos até aqui, apesar de esparsos e descontinuados, são retratados como ferramentas estratégicas para alcançar as metas do Plano Nacional de Educação (PNE), como o item 7.15, que busca acesso à rede mundial de computadores em banda larga de alta velocidade até 2024[2]. No entanto, para efetivamente construir um programa de conectividade e acesso à internet nos dias de hoje, é essencial que o governo observe e aprenda com as políticas e experiências institucionais anteriores, a fim de coordenar as ações de acesso e conectividade de forma mais efetiva e inclusiva. Isso porque, atualmente, persistem uma série de desafios políticos, socioeducacionais, econômicos e geográficos para efetivação de iniciativas nessa área. Para ilustrar essa realidade, em março de 2023, foram mapeadas 8.367 escolas brasileiras sem acesso à internet e 96.192 não possuíam sequer um laboratório de informática, conforme dados disponibilizados no Painel Conectividade nas Escolas, monitorado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)[3]. No contexto de calamidade pública provocado pela Covid-19, o tema da conectividade e do acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) foram tidos como questão-chave, especialmente para acesso à educação, em que adotou-se o Ensino Remoto Emergencial como alternativa excepcional, mas essa discussão é ainda mais antiga. As experiências brasileiras com programas governamentais de tecnologias digitais no passado, incluindo seus sucessos e insucessos de execução, podem nos mostrar os erros e acertos e, com isso, possibilitar, a criação de um melhor desenho institucional das políticas de inclusão digital para a educação hoje, que atenda às reais necessidades de alunos e professores. Décadas antes da pandemia, a questão já era tratada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, com o Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo)[4]. O ProInfo foi criado pela Portaria nº 522/MEC, de 9 de abril de 1997, e posteriormente foi reeditado pelo Decreto n° 6.300, de 12 de dezembro de 2007, de Lula, e se caracterizou como um programa educacional voltado à promoção do uso pedagógico da informática na rede pública[5]. Para isso, distribuiu computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais, e, em contrapartida, estados, Distrito Federal e municípios comprometiam-se a garantir estrutura adequada para receber laboratórios e capacitar educadores[6]. O programa precisou de atualizações em seu escopo, pois historicamente focou sua execução apenas na distribuição de equipamentos informáticos e em políticas desarticuladas, minimizando, em sua primeira fase, a promessa de capacitação docente. Posteriormente, foi criado o ProInfo Integrado, focado na capacitação de professores e gestores de escolas para a utilização das TICs. Durante sua execução, uma série de críticas foram direcionadas ao ProInfo por considerarem insuficiente o número de computadores para atender turmas de alunos e professores das escolas públicas, a falta de conservação e manutenção dos equipamentos e dos softwares, além da falta de continuidade do programa com relação à formação dos professores, que era um objetivo basilar da proposta, com poucos formadores e implementação de forma fragmentada e descontinuada, segundo relataram professores[7]. Outros programas foram sendo criados nos governos seguintes, sob a mesma promessa de universalização, como o Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE), o Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo), o Programa de Inovação Educação Conectada e o Programa Internet Brasil. Esse último foi aprovado no governo de Jair Bolsonaro como fruto dos poucos esforços do Poder Executivo nessa área no contexto de pandemia, como será destacada mais a frente. Diferentemente do ProInfo, focado em equipamentos informáticos, o Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE), lançado em 2008, na gestão de Lula, focou seu desenho na qualidade e velocidade da internet, a partir da assinatura entre Anatel e as então concessionárias do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público (Telefonia Fixa): Oi, Telefônica, Algar e Sercomtel. Por meio do Decreto nº 6.424, alterou o Plano Geral de Metas para a Universalização da Telefonia Fixa, e envolveu o MEC, bem como a Anatel. Todavia, o desafio do PBLE é que o programa não contempla as escolas rurais, principal alvo da exclusão digital, dificuldades de infraestrutura e conectividade no país. Dados do Sistema Sici/Anatel de abril deste ano evidenciaram que, apesar dos efeitos práticos, a velocidade média de internet instalada pelas prestadoras do programa ainda não contempla todas as regiões de forma equitativa quando se analisa o megabits por segundo (mbps). As maiores velocidades de internet concentraram-se nas instituições de ensino dos estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo e Goiás, todas pela prestadora Algar, enquanto os menores números de mbps estão registrados no Norte e Nordeste do país, especialmente no Pará, Piauí, Rio Grande do Norte, Amazonas, Paraíba e Alagoas, com a Oi. As menores penetrações, relação entre o quantitativo de escolas instaladas pelo total de escolas elegíveis ao PBLE, também estão em escolas dessas regiões: Amazonas (75%), Ceará (78%) e Pará (76%). Além disso, 64% das escolas urbanas do país registraram velocidade de até 5 mbps e somente 5% superaram os 50 mbps[8]. Essa questão suscita a necessidade de pensar o binômio acesso-qualidade, para promoção de uma política de conectividade efetiva, distributiva e justa e que atenda as diversidades regionais do país. Portanto, apesar de seus resultados positivos de penetrações em algumas unidades federativas, o PBLE ainda não universalizou o acesso à internet nas escolas brasileiras, tendo em vista sua expectativa de obrigação de conexão de todas as escolas públicas urbanas com a internet, de forma gratuita, até dezembro de 2025. Diferente da proposta focada nas zonas urbanas, Dilma Rousseff buscou centralizar os esforços de informatização nas escolas rurais, ao criar, em 2012, o Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo), que, objetivou desenvolver ações para a melhoria da infraestrutura física e tecnológica das redes públicas de ensino, como distribuição de laptop educacional, computador (servidor) com conteúdos pedagógicos e roteador wireless para conexão de estudantes do campo e quilombolas.  No eixo de infraestrutura, o Pronacampo listou a promoção da inclusão digital por meio da ampliação do acesso às tecnologias digitais como objetivo para educação do campo e quilombola[9]. Anos depois, no governo Michel Temer, o Programa de Inovação Educação Conectada surgiu como uma política "resultado de articulação horizontal e colaborativa", segundo o discurso oficial, que centralizaria as ações de conectividades em substituição ao ProInfo, conforme o Decreto nº 9.204/2017. Sob gerência do MEC, o programa tem o objetivo de apoiar a universalização do acesso à internet de alta velocidade, por via terrestre e satelital, e fomentar o uso de tecnologia digital na Educação Básica. Segundo a estratégia inicial, 2024 seria o ano da última fase do programa, "para alcançar 100% dos alunos da educação básica, transformando o Programa em Política Pública de Inovação e Educação Conectada"[10]. Apesar de ter metas ousadas como a anunciada pelo terceiro governo Lula, o programa também não universalizou o acesso até os anos finais de sua última fase de execução. Em um estudo no Amazonas, confirmou-se que apenas 4% das escolas públicas do estado conseguiram aderir ao programa de Temer, enquanto a adesão como um mecanismo regulador da política nacional revelou-se excludente, de modo que a meta da universalização do acesso à internet nas escolas públicas brasileiras até 2019 não havia sido alcançada como esperado[11]. No contexto da pandemia, sob gestão de Jair Bolsonaro, duas leis foram aprovadas no Congresso para tratar do tema da conectividade escolar. A primeira delas, em 2021, a Lei nº 14.172, de 10 de junho de 2021, foi objeto de disputas entre o Poder Executivo e Legislativo. A lei dispõe sobre a garantia de recursos federais para acesso à internet, com fins educacionais, a professores e a alunos da educação básica pública, pertencentes a famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e os matriculados nas escolas das comunidades indígenas e quilombolas. Tratou da contratação de soluções de conectividade móvel e aquisição de terminais portáteis que possibilitem acesso a rede de dados móveis. Em março de 2021, Bolsonaro vetou esse projeto da Câmara dos Deputados que previa ajuda federal de R$ 3,5 bilhões, com recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), para os estados e municípios garantirem acesso à internet a alunos e professores. O veto foi derrubado pelo Congresso e transformado na Lei 14.172/21. Porém, em agosto de 2021, o governo editou a Medida Provisória 1060/21, suprimindo o prazo de transferência dos recursos, o que paralisou a iniciativa[12], em um contexto marcado pela exclusão digital para acesso ao Ensino Remoto Emergencial. Outra medida legislativa aprovada, desta vez em 2022, foi a Lei nº 14.351, que criou o novo Programa Internet Brasil para promover o acesso gratuito à internet em banda larga móvel aos alunos da educação básica da rede pública, igualmente, pertencentes a famílias inscritas no CadÚnico. A lei prevê que o acesso deve ser garantido pela distribuição de chips, pacote de dados ou dispositivo de acesso aos alunos, como celulares, de modo que pode ser concedido a mais de um aluno por família, desde que atendidos os requisitos. O Programa Internet Brasil é uma iniciativa conjunta do Ministério das Comunicações e do Ministério da Educação, com apoio da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Sua primeira fase de implementação ocorre de forma gradual com alunos dos ensinos fundamental e médio de escolas municipais e estaduais atendidas pelo Projeto Nordeste Conectado, nos municípios de Caicó (RN), Campina Grande (PB), Caruaru (PE), Juazeiro (BA), Mossoró (RN) e Petrolina (PE) [13]. Assim como os antecessores, Bolsonaro também propagou a meta de universalizar a conectividade em 100% das escolas, em maio de 2022, quando recebeu o empresário Elon Musk, por meio da empresa Starlink. O objetivo do presidente foi firmar parcerias com o mercado das telecomunicações e levar maior conectividade a cerca de 19 mil escolas da região amazônica[14]. Todavia, seu plano de universalização falhou e, segundo a Folha de S.Paulo, até hoje, somente três escolas do estado receberam gratuitamente as antenas que dão acesso à internet, comercializadas pela empresa de Musk[15]. Nesse mesmo período, o Observatório do Direito à Educação da USP (ObsEdu) mapeou apenas nove projetos de lei no Congresso que versaram sobre o tema da infraestrutura no contexto do Ensino Remoto Emergencial e 37 projetos sobre conectividade (acesso à internet e equipamentos) durante os anos iniciais da pandemia, mas a maioria deles não foi aprovada pelo Parlamento[16]. Nesse contexto, é perceptível que essa problemática ainda continua pendente de ações mais efetivas do Poder Público para mitigação da exclusão digital e promoção da conectividade no pós-pandemia, mesmo passados três anos de seu início. Como discutido, os números do painel da Anatel apontam que quase meio milhão de alunos são afetados pela exclusão digital, de modo que as escolas em áreas rurais continuam sendo as mais afetadas tanto no acesso à internet quanto no acesso a laboratórios de informática e à energia elétrica, o que evidencia a necessidade de novos olhares para o Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo). Esses fatores, somados, nos convidam a refletir sobre a importância e necessidade de investimento em infraestrutura digital para garantia de direitos fundamentais, como o direito à educação, em contextos de pós-crise, especialmente para efetivação da Política Nacional de Educação Digital (Pned), sancionada e instituída neste ano por meio da Lei nº 14.533, de 11 de janeiro de 2023, que inclui em seus eixos estratégicos, a Inclusão Digital, a Educação Digital Escolar, a Capacitação e Especialização Digital e a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em TICs[17]. Segundo o diploma normativo, "a PNED é instância de articulação e não substitui outras políticas nacionais, estaduais, distritais ou municipais de educação escolar digital, de capacitação profissional para novas competências e de ampliação de infraestrutura digital e conectividade", de modo que se faz necessária a articulação entre os programas existentes, bem como a atualização de seus desenhos institucionais, em prol da promessa de universalização da internet e da conectividade nas escolas público. É certo que o governo Lula enfrentará uma série de obstáculos para implementação de um novo programa de inclusão digital escolar, assim como seus antecessores, tendo em vista que a universalização da internet nas escolas brasileiras, prometida por todos os presidentes desde FHC, ainda demanda esforços intensos e estratégias bem definidas. Entretanto, se faz oportuno, em um contexto de pós-pandemia, superar esses obstáculos de falta de infraestrutura digital adequada, desigualdades regionais, capacitação de professores e disponibilização de recursos financeiros que possam ser aplicados de forma efetiva, beneficiando na ponta os principais afetados pelo problema. Desse modo, ao analisar as iniciativas já realizadas nessa área, por meio do recorte aqui apresentado, é possível identificar os desafios enfrentados, os problemas que persistiram, as soluções encontradas e as melhores práticas aplicadas, criando assim um plano mais sólido e efetivo para alcançar a tão almejada promessa de universalização do Plano Nacional de Educação. Para o terceiro governo Lula, ficam os aprendizados dos programas governamentais voltados para tecnologias digitais e a releitura de garantir melhores condições de infraestrutura digital para alunos e professores. [1] Disponível aqui. [2] AMADEU, Claudia Vicci et al. Políticas públicas educacionais de tecnologias digitais: revisão bibliográfica e pesquisa documental. Revista Eletrônica Pesquiseduca, v. 13, n. 29, p. 159-176, 2021. [3] Painel Conectividade nas Escolas, Anatel.  Disponível em: https://informacoes.anatel.gov.br/paineis/infraestrutura/conectividade-nas-escolas. [4] Em dezembro de 2007, por meio do Decreto nº 6.300, o programa foi reestruturado e passou a chamar-se Programa Nacional de Tecnologia Educacional (AMADEU et al., 2021). [5] Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/proinfo [6] Disponível em: http://portal.mec.gov.br/proinfo/proinfo [7] APOLINÁRIO, Maria Joseneide. O ProInfo: apropriação crítica dos laboratórios. Publicado em 11/13/2012. Pedagogia da Virtualidade. Disponível em: https://pedagogiadavirtualidade.com/2012/11/13/o-proinfo-apropriacao-critica-dos-laboratorios/. Acesso em: 19/06/2023. [8] Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/regulado/universalizacao/plano-banda-larga-nas-escolas [9] Disponível em: http://portal.mec.gov.br/programa-saude-da-escola/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/18720-pronacampo [10] Disponível em: https://educacaoconectada.mec.gov.br/todas-noticias e https://pddeinterativo.mec.gov.br/educacao-conectada [11] MELO NETO, J. A.; OLIVEIRA, S. S. B. Programa de inovação educação conectada: a nova política nacional para o uso das tecnologias digitais nas escolas públicas no Amazonas. Revista Brasileira de Educação, v. 27, p. e270084, 2022. [12] Dsponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/867284-CAMARA-CONCLUI-VOTACAO-DE-MP-QUE-PREVE-INTERNET-GRATUITA-PARA-ALUNOS-DA-REDE-PUBLICA [13] Disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas-projetos-acoes-obras-e-atividades/internet-brasil [14] Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/maio/parceria-entre-o-brasil-e-a-spacex-vai-levar-internet-para-19-mil-escolas [15] Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/06/antenas-de-elon-musk-so-chegam-a-tres-escolas-publicas-do-am-diz-governador.shtml [16] OLIVEIRA, Bruno da Cunha de et al. Atuação do Legislativo Federal na garantia do direito à educação no primeiro ano de pandemia - Base de DadosZenodo, 17 mai. 2023. Disponível em: https://zenodo.org/record/7946518#.ZGUlcXbMI2w. Acesso em: 19 mai. 2023. [17] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14533.htm  
2023-06-20T15:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-20/direito-digital-infraestrutura-digital-eacesso-internet-escolas-tentativas-universalizacao
academia
Opinião
José Rogério Cruz e Tucci: Súmulas, teses e precedentes
Congratulo o centenário e prestigioso Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), na pessoa de seu atual presidente, professor Renato de Mello Jorge Silveira, por ter patrocinado na noite de ontem, segunda-feira (19/6), o lançamento de uma primorosa coletânea, intitulada Súmulas, teses e precedentes — Estudos em homenagem a Roberto Rosas, e coordenada pelo ministro Gilmar Ferreira Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), e pelo jovem advogado Victor Marcel Pinheiro. O conhecido advogado e professor Roberto Rosas, cuja velha amizade herdei de meu pai há 40 anos, foi saudado na referida ocasião pelos ilustres ministros Gilmar Mendes e Humberto Martins, do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e, ainda, pelo experiente advogado Flávio Galdino. O concorrido evento foi prestigiado por uma significativa plêiade de operadores do direito, destacando-se entre eles Alexandre Jobim, Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Arystóbulo de Oliveira Freitas, Clito Fornaciari Júnior, Edgard Silveira Bueno Filho, José Marcelo Martins Proença, José Roberto de Castro Neves, Luiz Carlos Andrezani, Luiz Perissé, Márcio Kayatt, Renato José Cury, Rui Reali Fragoso e Silmara Chinellato. A referida obra, que ganhou belíssima produção da editora GZ, teve o seu título inspirado no livro seminal Direito sumular, escrito em 1978 por Roberto Rosas, que se encontra na 14ª edição, no qual o autor já mostrava, há mais de 30 anos, a sua preocupação com a função nomofilácica dos tribunais superiores, em prol da uniformidade da interpretação e da aplicação do direito, como fator preponderante da segurança jurídica. A densa coletânea que agora vem a lume é dividida em três partes, sendo que a primeira delas (A incorporação de uma cultura de respeito aos precedentes) encerra artigos dedicados a temas de teoria geral dos precedentes e de direito constitucional, que revelam a importância crescente dos precedentes judiciais, inclusive sob a ótica da comparação jurídica, com eficácia persuasiva ou vinculante. Destaca-se nesta parte a relevância da fixação de teses pela jurisprudência do STF e do STJ. A segunda parte (A conformação processual dos precedentes) reúne artigos sobre os institutos de direito processual constitucional, civil e penal que interagem com os precedentes no direito brasileiro: a relevância como filtro de admissibilidade do recurso especial, a repercussão geral no sistema brasileiro de precedentes, os precedentes judiciais e a eficiência da distribuição de justiça, controle de constitucionalidade concentrado de súmulas de jurisprudência  etc. Por fim, na terceira parte (Leading cases dos tribunais superiores à luz da teoria dos precedentes), foram compilados estudos, numa abordagem mais específica, sobre orientações pretorianas consolidadas acerca de diversos ramos do direito, passando pelo direito constitucional, administrativo, civil, penal, ambiental, previdenciário e tributário. Vários ensaios procuram explorar vertentes da praxe forense — como enfatizado na apresentação da coletânea — "revelando a riqueza potencial do diálogo entre academia jurídica e jurisprudência na aplicação mais igualitária e previsível do direito". Registro ainda que após a apresentação da obra pelos seus ilustres coordenadores, Roberto Rosas agradeceu a presença de todos e brindou os presentes com autógrafos na rica coletânea.
2023-06-20T13:21-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-20/cruz-tucci-sumulas-teses-precedentes
academia
15 anos de atuação
Ministros Og, Salomão e Campbell Marques são homenageados no STJ
O ordenamento jurídico brasileiro tem mais de 30 mil normas federais, entre leis, medidas provisórias e decretos. Todas essas regras destacam que a Constituição Federal atribuiu ao STJ a missão de uniformizar a interpretação dessa legislação — atualmente, são cerca de 400 mil processos tramitando na corte. Esse é o mote do livro Direito Federal Brasileiro, que reúne artigos de 65 juristas em homenagem ao protagonismo dos ministros Og Fernandes, Luis Felipe Salomão e Mauro Campbell Marques nesse contexto jurídico e legislativo durante os 15 anos de atuação no STJ. Entre os autores, estão 18 ministros em atividade no STJ: Maria Thereza de Assis Moura (presidente da corte), Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Assusete Magalhães, Regina Helena Costa, João Otávio de Noronha, Humberto Martins, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Buzzi, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, Gurgel de Faria, Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e Joel Ilan Paciornik. Há também colaborações dos ministros do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. O ministro aposentado do STJ Jorge Mussi também contribuiu com a obra. A coordenação científica da obra é do secretário-executivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), Fabiano Tesolin, e a coordenação-executiva ficou a cargo do chefe de gabinete do ministro Mauro Campbell, André de Azevedo Machado. O lançamento da obra está marcado para esta quarta-feira (21), às 18h30, no Salão de Recepções do STJ. A publicação da Editora Thoth tem o apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), do Instituto Justiça e Cidadania e da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp). Junho de 2008 O trio foi empossado em 17 de junho de 2008, sob elogios do então presidente da corte, ministro Humberto Gomes de Barros (falecido): "Os três são jovens, intelectuais, brilhantes e trabalhadores. Trazem culturas distintas e revelam só hombridade, maturidade e profundos conhecimentos jurídicos, além de comprometimento com os maiores anseios da sociedade". Natural de Recife, Og é o atual vice-presidente do STJ e integra a Corte Especial. Antes de assumir a gestão do tribunal ao lado da ministra Maria Thereza de Assis Moura, atuava na 1ª Seção e na 2ª Turma, especializadas em Direito Público. O ministro trabalhou como repórter, professor, advogado, juiz e desembargador, tendo exercido o cargo de presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE). Em conjunto com suas funções no STJ, foi diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e corregedor-geral da Justiça Federal. Salomão é o atual corregedor nacional de Justiça e também atua na Corte Especial. Formado em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi promotor, juiz e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Atualmente, preside o Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e integra o grupo de trabalho instituído pelo CNJ para fortalecer precedentes no sistema jurídico, além de participar da comissão de juristas criada pela Câmara dos Deputados para estudar a sistematização das normas do processo constitucional. Campbell Marques, atual diretor-geral da Enfam, integra a Corte Especial, a 1ª Seção e a 2ª Turma do STJ. Foi membro efetivo do Tribunal Superior Eleitoral entre 2020 e 2022, tendo papel de destaque na preparação das últimas eleições gerais. O ministro já atuou como professor e advogado, e, no governo do Amazonas, foi secretário de Justiça, de Segurança Pública e de Controle Interno, Ética e Transparência. Antes de chegar ao STJ, foi membro do Ministério Público por 21 anos e chefiou a instituição em seu estado por três vezes, sempre eleito pelos seus pares. Saiba mais sobre a atuação do trio no STJ: Og e os recursos repetitivos No Tema 1.026, sob relatoria de Og, a 1ª Seção definiu que, nas execuções fiscais, o magistrado deve, a pedido do credor, autorizar a inclusão do nome do devedor em cadastro de inadimplentes. Essa inclusão, de acordo com o colegiado, independe do esgotamento de outras medidas executivas, e deverá ser deferida, salvo se o juiz tiver dúvida razoável sobre a existência da dívida. No Tema 1.076, a Corte Especial, analisando recursos relatados por Og Fernandes, entendeu ser inviável a fixação de honorários de sucumbência por apreciação equitativa nos casos em que o valor da condenação ou o proveito econômico forem elevados. Em seu voto, o ministro explicou que o Código de Processo Civil (CPC) de 2015 trouxe mais objetividade às hipóteses de fixação de honorários e que a regra dos honorários por equidade, prevista no parágrafo 8º do artigo 85, foi desenhada para situações excepcionais em que, havendo ou não condenação, o proveito econômico da demanda seja irrisório ou inestimável, ou o valor da causa seja muito baixo. Também sob o rito dos repetitivos, com relatoria do ministro Og, a 1ª Seção, no Tema 715, estabeleceu que os Conselhos Regionais de Farmácia possuem competência para fiscalização e autuação das farmácias e drogarias em relação ao cumprimento da exigência de manterem profissional farmacêutico durante todo o período de funcionamento, sob pena de incorrerem em infração passível de multa. Já no Tema 766, a seção de direito público acolheu tese do ministro sobre a legitimidade do Ministério Público para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos em ações contra entes federativos. Essa garantia, segundo o relator, existe mesmo quando o processo envolve beneficiários individualizados, pois a causa se refere a direitos individuais indisponíveis, conforme prevê o artigo 1º da Lei 8.625/1993. Salomão e os direitos humanos A 4ª Turma, em 2017, garantiu, em ação relatada por Salomão, a pessoas transexuais o direito à alteração da informação de sexo no registro civil mesmo sem a realização de cirurgia. Em seu voto, o ministro destacou que a possibilidade tem relação direta com o princípio da dignidade da pessoa humana, a garantia constitucional à não discriminação e o direito fundamental à felicidade. Também sob relatoria de Salomão, em 2011, a 4ª Turma reconheceu o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: "Se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os 'arranjos' familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto". No recursos repetitivos de Tema 1.082, sob relatoria de Salomão, a 2ª Seção entendeu que a operadora de saúde, mesmo após rescindir de forma unilateral o contrato de prestação de serviços, deve garantir a continuidade da assistência a beneficiário internado ou em tratamento de doença grave, até a efetiva alta, desde que ele arque integralmente com o valor das mensalidades. Em 2022, no Tema 1.145, o ministro foi o responsável por consolidar na 2ª Seção entendimento de que o produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos pode requerer recuperação judicial se estiver inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido, independentemente do tempo de registro. Campbell Marques e os 24 milhões de processos Entre os principais casos relatados pelo ministro estão as teses fixadas pela 1ª Seção no julgamento dos recursos repetitivos de Temas 566 a 571, que tratam da interpretação da Lei de Execução Fiscal (Lei 6.380/1980). Estima-se que a decisão do colegiado solucionou cerca de 24 milhões de processos. Também sob o rito dos repetitivos, no Tema 912, a 1ª Seção definiu que os produtos importados estão sujeitos a nova incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) assim que saem do estabelecimento importador na operação de revenda, mesmo que não tenham passado por industrialização no Brasil. No julgamento, o ministro Mauro Campbell Marques afastou a tese de dupla tributação nas operações de importação e revenda, argumentando que ocorrem dois fatos geradores distintos: o preço de compra, no qual é embutida a margem de lucro da empresa estrangeira, e o valor da venda, que inclui a margem de lucro da importadora brasileira. Outro caso repetitivo relatado pelo ministro foi o Tema 1.023, no qual a 1ª Seção analisou o marco inicial do prazo de prescrição para o ajuizamento de ação por dano moral sofrido por servidor público exposto ao dicloro-difenil-tricloroetano (DDT). Presente em produtos como inseticidas, a substância foi utilizado no combate a endemias por agentes de órgãos como a Fundação Nacional de Saúde. Seguindo o voto de Campbell, a seção definiu que o prazo prescricional é contado a partir do momento em que o servidor teve ciência dos malefícios que poderiam surgir com a exposição, não devendo ser adotado como marco inicial a vigência da Lei 11.936/2009. "A Lei 11.936/2009 não traz qualquer justificativa para a proibição do uso do DDT em todo o território nacional, e nem descreve eventuais malefícios causados pela exposição à referida substância. Logo, não há como presumir que, a partir da vigência da Lei 11.936/2009, os agentes de combate a endemias que foram expostos ao DDT tiveram ciência inequívoca dos malefícios que poderiam ser causados pelo seu uso ou manuseio", esclareceu o ministro. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.
2023-06-21T18:00-0300
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academia
Opinião
Nelson Jobim: Gilmar Mendes na Praça dos Três Poderes
*trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" Conheci Gilmar em 1992. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), presidida por Barbosa Lima Sobrinho, e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), presidido por Marcelo Lavenère, protocolaram, perante a Câmara dos Deputados, pedido de impeachment do presidente da República, Fernando Collor de Mello. Em setembro de 1992 foi instituída, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), comissão especial para dar parecer sobre a denúncia. Fui designado, pelo meu partido (PMDB-RS), relator na comissão especial. Logo após fui procurado, em meu gabinete na Câmara, pelo advogado José Guilherme Villela, acompanhado por Gilmar Mendes. Gilmar, nessa época procurador da República, fora cedido ao governo Federal para exercer a função de adjunto da subsecretaria-geral da Presidência da República (1990-1991) e depois consultor jurídico da secretaria-geral da Presidência da República (1991-1992), na função de consultor jurídico da então secretaria de governo. Gilmar Mendes e José Guilherme Vilella discorreram sobre a denúncia e enfatizaram que ela era genérica, construída sobre retórica política. Disseram que "aquilo" não havia sido obra de um promotor público com experiência no primeiro grau de jurisdição. Efetivamente tinham razão. Na comissão especial toda a denúncia foi refeita, dando-lhe consistência. A informação da época era que a denúncia original havia sido confeccionada por um grupo de juristas, cada um deles redigindo um parágrafo Gilmar fez uma exposição dura, com fundamentação erudita. Fiquei impressionado. Ação Declaratória de Constitucionalidade Em 1991, começou a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48, do deputado Luiz Carlos Hauly (PMDB-PR), de reforma tributária. O texto básico da PEC foi elaborado por uma comissão nomeada pelo presidente da República Fernando Collor de Mello, presidida pelo grande advogado Ari Oswaldo Mattos filho. Em 1993, já no governo Itamar Franco, discutia-se, em comissão especial, a PEC 48/1991. Durante a discussão da PEC houve um problema nacional, pois o governo havia autorizado que fosse adicionado etanol à gasolina. Houve reações de todos os lados. Ações civis públicas foram ajuizadas em diversos estados. As decisões de primeiro grau eram as mais diversas: algumas autorizam a adição do etanol; outras, o proibiam; outras, decidiam sobre o quanto de etanol poderia ser adicionado à gasolina. Uma balbúrdia total nos estados. O deputado federal Roberto Freire (PCB-PE), então líder do governo Itamar Franco na Câmara do Deputados, pediu-me sugestões para enfrentar o problema. Eu conhecia a PEC 130/1992, de autoria do deputado Roberto Campos (então PDS-RJ). Essa PEC, além de introduzir a eficácia “erga omnes” e efeito vinculante das decisões definitivas do STF, propunha: "Art. 103. [...] §4º. Os órgãos ou entidades referidas no inciso I e X deste artigo podem propor ação declaratória de constitucionalidade, que vinculará as instâncias inferiores, quando decidida no mérito." A PEC fora redigida por Gilmar para o deputado Roberto Campos, que a apresentou. Sugeri ao deputado Roberto Freire que essa era uma solução para a "questão do etanol na gasolina". Decidiu-se, então, introduzir, na PEC 48/1991, de reforma tributária, a solução de Gilmar da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Após algumas discussões com o relator da comissão especial da PEC 48/1991, deputado Benito Gama (PFL-BA), este aceitou a solução Gilmar. No entanto, sabíamos que haveria oposição da classe dos advogados, pois a ADC resolvia definitivamente questões nacionais, em prejuízo da multiplicação de demandas que poderiam ser ajuizadas em diversos foros. Precisávamos ter algum instrumento de negociação. Por isso, o deputado Benito Gama, além da ADC, por sugestão de Gilmar e minha, introduziu uma "Ação Direta de Interpretação do Direito Federal", de competência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Na Comissão Especial, compostas de parlamentares afeitos a questões tributárias, as propostas da ADC e da Ação de Interpretação foram aprovadas. O Plenário da Câmara apreciou, em segundo turno, em fevereiro de 1993, a PEC então numerada como 48-D/1991. Eis a redação de então para o tema: "Art. 102. [...] I – [...] a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal; [...] §2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo. Art. 103. [...] §4º A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República. Art. 105. [...] I- [...] i) a ação direta de interpretação do Direito Federal, cujas decisões serão tomadas pela maioria absoluta de voto de seus membros e terão eficácia contra todos o efeito vinculante, inclusive para as instâncias inferiores. §1º. [...] §2º. Poder propor a ação da alínea i do inciso I deste artigo o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados ou o Procurador-Geral da República."[1]  Os deputados Hélio Bicudo (PT-SP) e Eden Pedroso (PDT-RS) destacaram para votar em separado a alínea a, do inciso I do artigo 102 e os §1º e §2º do mesmo artigo.[2] Alegaram as objeções da OAB à proposta de ADC, mas o destaque por eles apresentado não atingia a Ação de Interpretação. Intervi na discussão como líder do bloco parlamentar democrático, sustentei a modernidade da proposta e, pelo PMDB, encaminhei o voto "sim". Ao final, o texto destacado foi aprovado, tendo a bancada do PT votado contra. A PEC foi enviada para apreciação no Senado Federal, onde recebeu a numeração PEC 2/1993. O relator foi o senador José Fogaça (PMDB-RS). Os senadores Eduardo Suplicy (PT-SP), Epitácio Cafeteira (PDC-MA), no primeiro turno, e os senadores Amir Lando (PMDB-RO) Josaphat Marinho (PFL-BA) e Irapuan Costa Junior (PMDB-GO), em segundo turno, requereram a votação em separado dos textos relativos à ADC e à ação de interpretação. Os senadores referidos se opuseram fortemente às duas ações (ADC e Ação de Interpretação), acolhendo as objeções dos advogados. Ao fim, fizemos um acordo em relação à ADC, em troca da rejeição da Ação de Interpretação, com havíamos previsto anteriormente. Gilmar esteve na base da criação e negociação da ADC e foi seu autor efetivo. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Algo similar ocorreu em relação à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). A deputada Sandra Starling (PT-MG) apresentou o Projeto de Lei (PL) 2.872, de 1997, para regulamentar a ADPF (artigo 102, §1º da CF). Visava o projeto exclusivamente atribuir ao STF competência para julgar uma espécie de "reclamação", formulada por deputados ou senadores, "quando ocorrer descumprimento de preceito fundamental do texto constitucional, em face de interpretação ou aplicação dos regimentos internos das respectivas casas, ou comum, no processo legislativo de elaboração de normas previstas no artigo 59 da Constituição".[3] O projeto de lei pretendia que a ADPF fosse um instrumento para submeter ao STF as decisões sobre questões regimentais de ambas as casas do legislativo e do Congresso. O PT ressentia-se que tais decisões não lhe eram favoráveis e pretendeu atribuir ao STF a apreciação de tais temas, os quais são matéria interna corporis, insuscetíveis de apreciação pelo Poder Judiciário. O relator designado na Comissão de Constituição e Justiça foi o deputado Prisco Viana (PFL-BA). Apareceu, então, Gilmar. Auxiliou a elaboração do relatório, o qual produzia um substitutivo que corresponde à redação atual da Lei 9.882/99, regulamentando amplamente a ADPF. O substitutivo manteve a parte relativa às decisões regimentais. O projeto de lei foi aprovado, terminativamente, na então Comissão de Justiça e Cidadania. Não houve recurso ao Plenário da Câmara dos Deputados, e o projeto foi enviado ao Senado. O relator na Comissão de Constituição, Justiça e Redação foi o senador José Eduardo Dutra (PT-SE). O relator fez rasgados elogios ao projeto de lei, acentuando a atribuição do STF de apreciação de controvérsias sobre a aplicação dos regimentos internos do Legislativo. O projeto, elaborado pela deputada Sandra Starling (PT-MG), gerou uma "euforia petista". O Senado, em 11/11/1999, aprovou o texto, sem debates, e o enviou para o presidente da República. O presidente Fernando Henrique Cardoso vetou todos os dispositivos que tratavam das questões regimentais do Congresso e promulgou, em 06/12/1999, a Lei 9.882/1999. [4] É evidente que o substitutivo do deputado Prisco Viana, por ideia de Gilmar, foi redigido e montado de forma a possibilitar o veto das partes relativas às questões regimentais. Em 26/5/2004, o Congresso manteve os vetos presidenciais.[5] Tive alguma participação, mesmo já sendo, a partir de abril de 1997, ministro do STF. Revisão Constitucional Em 1993 instalou-se a Revisão Constitucional, prevista no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal. Fui designado relator. Havia uma enorme reação contra a instalação dos trabalhos revisionais. O presidente da República, Itamar Franco, embora não afirmasse, era contra. Os líderes do governo, senador Pedro Simon (PMDB-RS) e deputado Roberto Freire (PCB-PE), expressavam essa oposição à revisão constitucional. Elaborei 81 pareceres sobre diversos temas. Foram aprovadas seis emendas constitucionais de revisão. Os demais pareceres não foram apreciados. A revisão foi um fracasso. Mas vamos à participação de Gilmar. Convidei Gilmar para me assessorar na elaboração das propostas de emendas revisionais. Gilmar trabalhou, em especial, nas propostas relativas ao Poder Judiciário. Os pareceres 26 a 32, sobre temas do Poder Judiciário, foram elaborados integralmente por Gilmar. Não foram apreciados pelo Congresso. No entanto, serviram para as reformas futuras, em especial para a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, da Reforma do Judiciário. Terras Indígenas Em 1994 não concorri à reeleição. Em 1995, a convite do então presidente Fernando Henrique Cardoso, assumi o Ministério da Justiça. Convidei Gilmar para ser meu assessor. A contribuição dele foi essencial em diversas questões. Vou me referir a duas delas. A primeira gerou enorme controvérsia. Tratava-se das demarcações de terras indígenas efetuadas após a Constituição Federal de 1998, adotadas as regras do então Decreto 22 de 04/02/1991, modificado pelo Decreto 608/1992. Havia um problema. O Decreto 22/1991 não previa nenhum contraditório, ou seja, a participação de interessados (proprietário, posseiros, municípios, estados, etc.). As Constituições anteriores a 1988, no elenco dos direitos e garantias individuais, previam a regra do contraditório somente para os temas penais. O contraditório, nas questões cíveis e administrativas, era matéria infraconstitucional. Já a Constituição de 1988 ampliou a garantia para todos os casos (Art. 5º, incisos LIV e LV). Na época tramitavam no Supremo Tribunal Federal (STF) três litígios alegando a inconstitucionalidade do Decreto 22/1991 e, subsequentemente, a anulação de demarcações. Dois processos originários do Estado do Mato Grosso (terras indígenas Sete Serros e Jaguaripe) e uma ação civil ajuizada pelo Governo do Estado do Pará pretendendo a anulação de todas as demarcações efetuadas em seu território posteriores a 1988. A procedência dessas demandas criaria um grande problema. Essa era a situação. Gilmar conhecia o tema das terras indígenas com profundidade, pois havia trabalhado sobre a questão da Reserva do Xingu como procurador da República. Discutimos como enfrentaríamos o problema. Nesse ínterim, tive audiências com os ministros do STF Moreira Alves e Nery da Silveira, relatores das demandas relativas às terras indígenas Sete Serros e Jaguaripe. Pedi a eles que não decidissem as demandas pois o Ministério da Justiça estava estudando uma fórmula para sanar o vício daquelas demarcações, no que concordaram. Gilmar trabalhou no assunto e redigiu a proposta de um novo decreto, similar ao Decreto 22/1991, introduzindo a obrigatoriedade do contraditório. O texto dava tratamento a demarcações efetuadas após 1988. Algumas demarcações tinham decretos registrados nos cartórios de registro de imóveis e no Serviços de Patrimônio da União (SPU). Para essas não havia nada a fazer. Em 1995, cerca 38 milhões de hectares, num total de 127 glebas, não tinham seus decretos respectivos registrados em cartório ou no SPU. Isso incluía a demarcação paradigmática da terra Yanomami. Para estas terras indígenas abria-se um prazo de 90 dias para os interessados se manifestarem perante o Ministério da Justiça. Após, decidir-se-ia sobre a questão para manter ou não o decreto demarcatório. Não obstante tudo isso, houve enorme oposição à proposta do novo decreto. Quer de antropólogos não afeitos a questões jurídicas. Quer de advogados ligados ao movimento indigenista. Um dos que mais se opôs foi o professor Dalmo Dallari, com o qual tivemos um longo debate público em São Paulo. Quer de Organizações Não-Governamentais (ONGs), como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Houve, inclusive, exposições nossas sobre a legitimidade da proposta perante ONGs, a Igreja Católica e autoridades europeias. Acusavam-nos de tudo. Foram diversos artigos e manifestações nos grandes jornais. Uns de boa-fé, outros não. Em 1994 estudei a questão do Decreto 22/1991 a pedido do então governador do Pará, Jader Barbalho, e conclui, em parecer, que a Constituição Federal de 1988 não havia recepcionado o referido decreto. Daí porque foi um dos primeiros temas que suscitei no Ministério da Justiça para resolvê-lo. Foi um vai-e-vem. Por fim, o presidente Fernando Henrique Cardoso promoveu um almoço no Palácio da Alvorada com um grupo de antropólogos, incluindo sua esposa Ruth Cardoso, para que fosse discutida, após apresentação minha, a proposta de decreto. Não funcionou, pois ninguém aceitava a proposta, e com veemência, alegavam não haver riscos jurídicos para as demarcações posteriores a 1988. Não obstante, o presidente aceitou as minhas ponderações e editou o Decreto 1.775, de 08/01/1996. No processo legislativo, é preciso levar em conta que a racionalidade é acessória e não predominante. Prefere-se, no mais, as posições políticas, ideológicas, interesses e, às vezes, medidas não recomendáveis. Ao final, o STF considerou prejudicadas as demandas do Mandado de Segurança 21.892, da terra indígena Sete Serros, e Recurso Extraordinário 21.649, terra indígena. Jaguaripe, em decorrência da edição do novo decreto. Evitou-se a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 22/1991 e suas consequências sobre as demarcações posteriores a 1988 ainda não registradas Gilmar, ainda, redigiu a Portaria nº 14, de 09/01/1996, que estabeleceu regras para a "elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas".      Essa portaria adequou o relatório às exigências constitucionais de "habitação permanente, atividades produtivas, meio ambiente e reprodução física e cultural". Até então os relatórios eram genéricos e o laudos antropológicos, no mais das vezes, eram restritos ao histórico da tribo indígena. Foi de Gilmar a fórmula bem-sucedida. O Decreto 1.775/1996 e a Portaria 14/1996 continuam em vigor até hoje. Medidas provisórias O segundo tema é a questão das medidas provisórias. Logo após ter assumido o Ministério da Justiça, procurou-me o presidente de uma comissão que havia sido nomeada pelo governo anterior, com a incumbência de fazer uma proposta sobre o ato cooperativo e a questão tributária. O representante trouxe um projeto e afirmou que a comissão fizera uma série de reuniões e consultas, e após um ano, chegaram ao texto que me apresentava. Disse ele: "agora, ministro, é só editar uma Medida Provisória (MP)". Disse a ele que para edição de MP havia requisitos constitucionais, entre eles a urgência. Ele alegou urgência. Percebi que a urgência que ele alegava decorria do fato da comissão ter terminado o trabalho! Discuti com Gilmar a questão e ele sugeriu que deveríamos propor um decreto presidencial fixando critérios para a edição de MPs. Gilmar redigiu a proposta e definiu o que ele chamou de "estado de necessidade legislativa decorrente de circunstância fática imprevisível". Estabeleceu procedimento específico que os ministérios teriam que adotar para propor ao presidente da República a edição de MPs. Em fevereiro de 1995, começamos a conversar com a Casa Civil da Presidência da República. Fracassamos. A Casa Civil se opôs, pois a proposta representava restrições à edição de MPs. Sustentavam que a MP era instrumento importante para acelerar o processo legislativo. Ficou por aí e nada andou. Tenho, em meus arquivos, essa minuta. Continua na parte 2 ** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado na próxima semana em Lisboa, e em agosto no Brasil [1] Diário do Congresso Nacional (seção i), 03/02/1993, pag. 2620. [2] Idem, pag. 2674 e segs. [3] Diário da Câmara dos Deputados, 20/03/1997, pag. 07500. [4] Mensagem 001807, de 1999. [5] Diário do Senado Federal de 28/05/2004, pp. 16453 e 16496; e Diário da Câmara dos Deputados de 03/06/2004, suplemento, pp 63 e 106.
2023-06-22T13:17-0300
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