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academia
Direito Eleitoral
As repercussões penais da Resolução nº 23.659/2021 do TSE
A Resolução-TSE nº 23.659/21 trata da gestão do Cadastro Eleitoral e um dos maiores destaques do regulamento foi a reorganização dos conceitos relativos ao domicílio eleitoral, com o objetivo de fortalecer e amplificar o exercício de direitos de participação políticas pelos cidadãos, removendo obstáculos indevidamente levantados nessa seara. Para tanto, a norma estabeleceu: "Art. 23. Para fins de fixação do domicílio eleitoral no alistamento e na transferência, deverá ser comprovada a existência de vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional, comunitário ou de outra natureza que justifique a escolha do município." Nesse cenário, o conceito de domicílio eleitoral foi inteiramente dissociado da ideia de residência — em outras palavras, morar em uma cidade é condição suficiente para que a pessoa possa alistar-se como eleitora naquela urbe, contudo, esta não é a única condição autorizativa. É possível comprovar o vínculo e, consequentemente, realizar a inscrição eleitoral, valendo-se de outros elementos como a propriedade de imóveis, o exercício de atividades laborativas, a residência de parentes próximos, o nascimento no local, a matrícula em estabelecimentos de ensino, o recebimento de benefícios sociais naquela localidade, entre outros diversos. A relação política entre uma pessoa e uma urbe que deve guiar o exercício do direito de voto é complexa e envolve interesses variados e não pode estar limitada à moradia, tanto mais em uma sociedade com relações complexas em rede como a que existe atualmente. A alteração normativa perpetrada pela Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, indubitavelmente, impactou de forma positiva a seara do processo eleitoral e o exercício dos direitos políticos, conquanto não esteja limitada a este ambiente. É importante reconhecer que a alteração acabou produzindo importantes impactos na interpretação de alguns tipos penais desenhados no Código Eleitoral. Especialmente, aquele previsto no artigo 289: "Inscrever-se fraudulentamente eleitor: Pena — Reclusão até cinco anos e pagamento de cinco a 15 dias-multa". Com a alteração normativa e abertura conceitual da expressão "domicílio eleitoral" muitas condutas consideradas ilícitas anteriormente passaram a ser completamente acobertadas pelo manto da regularidade. A mesma compreensão deve ser empregada para a análise de declarações de punho firmada pelos eleitores afirmando possuir domicílio eleitoral em uma determinada circunscrição. Nesse caso, é de se afastar a figura a falsidade ideológica eleitoral, assim desenhada: "Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais: Pena - reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular." O crime não existe, uma vez que o conteúdo das declarações é verdadeiro, essa conclusão afasta, igualmente, a possibilidade de cogitar-se a ocorrência do crime de uso de documento falso com finalidade eleitoral: "Art. 353. Fazer uso de qualquer dos documentos falsificados ou alterados, a que se referem os artigos. 348 a 352: Pena - a cominada à falsificação ou à alteração". Por outro lado, é certo que os crimes contra a fé pública, grupo no qual se insere a falsidade ideológica eleitoral e o uso de documento falso, exigem para a sua configuração quatro elementos essenciais e inafastáveis: dolo, imitação da verdade, alteração da verdade e potencial de dano. Entendimento que já foi confirmado pelo TSE: "O tipo penal da falsidade ideológica eleitoral objetiva proteger a fé pública eleitoral do falso conteúdo posto em documento verdadeiro, consumando–se com a simples potencialidade do dano, de natureza eleitoral, visado pelo agente, não sendo imprescindível, para a sua configuração, a efetiva ocorrência de prejuízo. É delito formal, cuja consumação independe de qualquer resultado naturalístico ou efetiva lesão à administração eleitoral" (TSE, CC nº 060073781, rel. min. Og Fernandes, 22/6/2020). No caso, não há qualquer potencial de dano, tendo em vista que o eleitor passa a ter reconhecido o seu domicílio eleitoral na circunscrição, consequentemente, estará afasta a aplicabilidade dos tipos penais. Em todos os casos o máximo da pena aponta para uma prescrição em 12 anos, o que demonstra a gravidade das condutas e o potencial de acumulação de processos referentes a isso nas Zonas e Tribunais Regionais Eleitorais. Na prática, com a edição da Resolução Cidadã os processos penais correntes que possuem como questão nevrálgica a discussão acerca do domicílio eleitoral são diretamente afetados, pois ocorre hipótese de abolitio criminis. A jurisprudência tem entendimento pacífico no sentido de admitir a possibilidade de ocorrência de tal efeito a partir da modificação ou edição de Resolução, conforme se depreende do seguinte julgado do STJ: "1. As instâncias ordinárias concluíram pela extinção da punibilidade do recorrente quanto ao crime do art. 183 da Lei n. 9.472/1997, sob o fundamento de que a Resolução n° 680, de 27 de junho de 2017, que entrou em vigor no prazo de 60 dias da data da sua publicação (artigo 7°), deu nova redação à Resolução n° 614, de 28 de maio de 2013 (que, por sua vez, revogou a Res. 272/2001), deixando de exigir a outorga da ANATEL para a exploração do Serviço de Comunicação Multimídia de radiação restrita até cinco mil usuários. 2. Tendo em vista a superveniência de norma que deixa de considerar crime a conduta praticada pelo recorrente, imperiosa a aplicação da novatio legis in mellius." (STJ, REsp 1.857.832, relator: ministro Nefi Cordeiro, 2/6/2020) De outra banda, é notório que o abolitio criminis é matéria de ordem pública, podendo ser reconhecido de ofício pelo julgador, no sentido do que é determinado pelo Código de Processo Penal: "Art. 61. Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício". Dessa maneira, os processos que consideram delituosa a conduta de quem não residindo em determinado município, mas possuindo vínculo de outra ordem realizam a inscrição eleitoral devem ser atingidos pelos efeitos benfazejos da norma nova, gerando como consequência lógica o reconhecimento da extinção da punibilidade dos agentes ex officio, seguindo as diretrizes do artigo 107, III do Código Penal. A Resolução Cidadã faz jus ao seu epíteto por conseguir amplificar o exercício da cidadania, inclusive, ao restringir a desnecessária persecução penal que atinge, especialmente, pessoas pobres, com baixo nível de escolaridade e habitantes de cidades menores afastadas dos grandes centros urbanos.
2023-02-06T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/direito-eleitoral-repercussoes-penais-resolucao-236592021-tse
academia
Opinião
Fernandes e Crepaldi: Desmistificando a pós no exterior
O aprimoramento acadêmico e profissional na área do direito pode se dar de diferentes maneiras, no Brasil ou no exterior. A opção pelo exterior certamente não é a mais trivial e isso se deve em grande parte à enorme assimetria de informações sobre o assunto. Quanto custa uma pós-graduação no exterior? Qual é a melhor idade para ir? Há opções de bolsa de estudos? E de financiamento? Quais são as faculdades mais renomadas em determinada área do direito? Qual é o efeito na carreira no curto e no longo prazo? Não há fontes confiáveis que reúnam essas — e outras — informações sobre pós-graduação em direito no exterior de forma organizada, completa e gratuita. O bacharel em direito que queira estudar no exterior geralmente está diante de um quebra-cabeça difícil, de muitas peças, com diferentes formatos. E a resposta para resolver esse quebra-cabeça está pulverizada nos sites das universidades estrangeiras e, principalmente, nas conversas com ex-alunos. Essa fase de exploração é lenta e demanda tempo, energia e certa "cara-de-pau". Em grandes escritórios de advocacia, em que há vários associados e sócios, é bem provável que a informação esteja perto. Na sala ao lado. No café. No almoço de equipe. No caminho de volta de uma reunião. É mais fácil a interação entre pessoas que já trilharam o caminho de estudo no exterior e os futuros candidatos. Mas sabemos que a comunidade jurídica não é formada somente por grandes escritórios de advocacia. Pensando nisso, reunimos abaixo 20 perguntas comuns para quem tem curiosidade, planos, ou está decidido a cursar uma pós-graduação no exterior. Esse texto está dividido em duas partes, sendo a primeira parte contendo dez perguntas e respostas com maior foco no programa de pós-graduação no exterior e processo de admissão, e a segunda, com outras dez e perguntas e respostas com maior foco na carreira. Esperamos que essas perguntas sejam um incentivo, não para cursar uma pós-graduação no exterior necessariamente, mas para que explorem, reflitam, pensem nos diferentes caminhos disponíveis e, assim, tomem decisões profissionais e acadêmicas fundamentadas. Perguntas e respostas 1. Qual é a diferença entre a pós-graduação no exterior e no Brasil? Como é uma aula no exterior? Qual é o tamanho da turma? No Brasil, são oferecidos cursos de pós-graduação strictu sensu (mestrado) e latu sensu. Os cursos de pós-graduação oferecidos nos Estados Unidos— também conhecidos como LL.M.[1] — se aproximam mais dos cursos de pós-graduação latu sensu pelo fato de não haver (em sua grande maioria) dissertação como requisito para a sua conclusão e pela abordagem mais prática. Diferentemente do Brasil, os cursos de pós-graduação no exterior costumam ser de dedicação exclusiva. As aulas são ministradas com base no método socrático de ensino, em que os alunos devem estudar anteriormente a matéria que será dada em aula e os professores fazem perguntas aleatórias para os alunos a respeito do material, como ponto de partida para as discussões em sala. Trata-se de um diálogo dinâmico, com participação ativa de alunos e professores. Os alunos estrangeiros, em regra, se misturam nas salas de aula com alunos nativos que estão cursando a graduação em direito, havendo algumas matérias dedicadas exclusivamente aos alunos estrangeiros. Os próprios alunos montam as respectivas grades com base nas matérias de interesse, sendo permitida a escolha de determinado número de matérias em outras escolas que não a Law School. É interessante a possibilidade de interações com alunos de todo o mundo, de diferentes áreas do direito, sistemas jurídicos, e culturas. 2. Além das aulas, quais outras atividades posso fazer na faculdade como aluno de pós-graduação? Há uma verdadeira infinidade de atividades extracurriculares nas faculdades. A começar pelos vários eventos, palestras, congressos e dinâmicas que acontecem quase que simultaneamente nas faculdades de direito todos os dias, a respeito dos mais variados temas. Apesar de a participação em tais atividades não ser obrigatória (na maioria das vezes), é bastante incentivada pelos orientadores das faculdades para que os alunos possam ter maior imersão na vida estudantil e se aproximar dos outros estudantes. É também comum que os alunos estrangeiros se envolvam em associações estudantis, que podem ser de afinidade, esportivas, produção acadêmica ou relacionadas a diferentes práticas do direito. Algumas universidades oferecem clínicas, em que os alunos podem vivenciar experiências práticas supervisionadas durante o curso. E, como no Brasil, há possibilidade de os alunos estrangeiros serem assistentes acadêmicos de professores. 3. Quanto custa um curso de pós-graduação nos Estados Unidos? Há opções de bolsa? E de financiamento? Custa caro, mas leia até o fim! Em geral, as faculdades norte-americanas disponibilizam, em seu site, uma simulação dos custos totais a serem desembolsados pelo aluno durante o período do curso, incluindo gastos de matrícula ("tuition"), material, moradia, plano de saúde e lazer. Essa estrutura de custo varia, a depender da universidade e da cidade em que esteja localizada. Dentre as 50 faculdades de direito mais bem ranqueadas dos Estados Unidos em 2023 (de acordo com o US News), o tuition varia de US$14.208,00 (Brigham Young University, em 23º lugar) a US$ 76.088,00 (Columbia University, em quarto lugar), sendo US$ 67.675,00 a média das 15 faculdades mais bem ranqueadas, e a média das 50 faculdades mais bem ranqueadas, US$ 49.484,00. O custo total terá uma variação a depender do estilo de vida, mas o acréscimo ao tuition deve ser algo em torno de 30-40%. A parte boa é que há opções de bolsa de estudos, sejam aquelas oferecidas pelas próprias faculdades (na forma de descontos sobre o tuition) ou externas, como Instituto Ling, Fundação Lemann, Programa Chevening (específico para estudos no Reino Unido), entre outras. As bolsas concedidas pelas faculdades chegam a 100% e podem ser decorrentes de mérito, necessidade, perfil de aluno desejado ou área de atuação, a depender dos critérios estabelecidos por cada faculdade. Tais processos, que são competitivos, demandam tempo e dedicação. Há também interessantes opções de financiamentos estudantis em que não é necessário fiador e os pagamentos começam a ser realizados seis meses após a conclusão do curso, com prazos de pagamento total alongados. Ainda que seja uma boa opção de custeio, a recomendação é que eventual financiamento seja feito de maneira pensada e responsável, especialmente pela variação cambial no Brasil. É comum que o aluno de pós-graduação no exterior, que não tenha condições para arcar todas as despesas à vista, combine diferentes fontes de custeio entre reserva pessoal, reserva familiar, bolsa de estudos concedidas pelas próprias faculdades estrangeiras, bolsas de estudos externas, financiamento estudantil, além de eventual patrocínio de empregador no Brasil. 4. Qual é a idade apropriada (ou momento certo da carreira) para estudar no exterior? Não há resposta certa. Há quem vá imediatamente após a graduação e quem opte por ir um pouco mais adiante na carreira. No primeiro cenário, não há dúvidas de que haverá um elevado grau de absorção de conhecimento. No segundo cenário, é de se imaginar que o aluno participe mais ativamente das aulas e tenha mais facilidade de assimilar o conhecimento. A segunda opção é a mais usual, seja porque a pós-graduação no exterior é uma grande oportunidade de troca, compartilhamento e discussão de temas de interesse, bem como pelo fato de as próprias faculdades privilegiarem (o que não é uma regra) candidatos mais maduros, que possam agregar às aulas um pouco da vivência profissional que tiveram em seus respectivos países. Além disso, eventuais patrocínios de empregadores no Brasil são usualmente atrelados a tempo de casa e formação. A média dos brasileiros em cursos de pós-graduação em direito no exterior tem sido algo em torno de 3-8 anos contados da graduação em direito no Brasil, embora naturalmente haja exceções para ambos os lados. É necessária uma avaliação crítica a respeito do grau de maturidade profissional, acadêmica e pessoal para determinar o melhor momento para ir: Estou em qual estágio da carreira? Qual é a minha experiência em casos sofisticados? Qual é o meu grau de autonomia? Estou ainda aprendendo muito todos os dias ou está na hora de buscar novos desafios no exterior? Será que tenho condições de acompanhar discussões jurídicas de alto nível em inglês? Essas e outras várias perguntas precisam ser feitas, exploradas, discutidas com colegas, chefes e professores, e avaliadas com honestidade. 5. Posso ir a qualquer momento? Há datas específicas para início dos cursos de pós-graduação? Como é o calendário? Em geral, nos Estados Unidos, os prazos para inscrição em cursos de pós-graduação em direito encerram ao final de cada ano, em dezembro, mais tardar no início de janeiro. Os resultados costumam ser publicados em diferentes levas durante o primeiro semestre do ano subsequente e os cursos iniciados em meados do semestre seguinte, entre julho e setembro, com duração total de nove meses. Além disso, estimamos que o tempo de preparação ideal é de seis meses antes dos prazos de inscrição. Assim, se a intenção é fazer uma pós-graduação nos Estados Unidos em 2024, por exemplo, é recomendável (a) começar a se preparar a partir de junho/2023; (b) se inscrever para as faculdades norte-americanas em dezembro/2023; (c) esperar pelos resultados de admissão ao longo do primeiro semestre de 2024; e, então, (d) embarcar para os Estados Unidos em meados de agosto/2024 para início das aulas. Obviamente, a depender da faculdade, esse calendário será ajustado, para frente ou para trás. Por conta da pandemia, algumas faculdades passaram a oferecer cursos de pós-graduação com início em janeiro, como o caso de Fordham University School of Law. 6. Quais são as etapas para o processo de admissão nos Estados Unidos? Há algumas etapas que são praticamente comuns a todos os processos de admissão nos Estados Unidos, quais sejam: (a) exame de proficiência em inglês, sendo que cada faculdade terá seus critérios e notas de corte; (b) currículo; (c) carta pessoal, em que o candidato terá que contar a sua trajetória e explicar as razões pelas quais deseja cursar pós-graduação no exterior; (d) apresentação de documentos da graduação (e eventual pós-graduação) no Brasil, para comprovação de realização e desempenho; e (e) cartas de recomendação profissional e acadêmica. Todos os documentos devem ser apresentados em inglês com validação de tradutor juramentado (o que implica custos e tempo para expedição de tais documentos). Algumas faculdades norte-americanas podem exigir etapas/informações adicionais, como elaboração de artigos, entrevistas, entre outras ações. A plataforma LSAC (www.lsac.org) centraliza o application para grande parte das faculdades norte-americanas. 7. Há necessidade de contratar uma consultoria para me auxiliar no processo? Há algumas empresas de consultoria especializadas (nacionais e estrangeiras) que orientam candidatos no processo de inscrição. Nos parece que a contratação destes profissionais varia caso a caso e dependerá de uma análise detalhada do nível de informação, tempo de preparação e solidez do perfil do candidato. 8. Decidi HOJE que quero cursar uma pós-graduação em direito nos Estados Unidos. Por onde começo? O primeiro passo é saber o cronograma de inscrição, divulgação de resultados e início das aulas (vide item 5 acima). O segundo passo é mapear todo o caminho a ser percorrido para que se tenha uma ideia geral do processo e do tempo aproximado exigido em cada uma das etapas. Esse exercício determinará a ordem das atividades a serem realizadas. Por exemplo, é preciso de nota satisfatória em exame de proficiências em inglês, que pode levar algum tempo a ser obtida. Além disso, é interessante se atentar às tarefas que não dependam integralmente do candidato, como, por exemplo, solicitação de determinados documentos para as instituições de ensino cursadas no Brasil (graduação e eventual pós-graduação), já que o candidato não tem total controle sobre a agenda de terceiros. Embora quase todas as informações estejam nos sites das universidades, há atividades que serão descobertas durante as pesquisas adicionais e conversas com ex-alunos, como, por exemplo, providências para obtenção de visto e passaporte, plano de saúde no exterior e inscrição para processos de bolsas externas. 9. Qual é o perfil desejado pelas faculdades? Não sou o melhor aluno. Ainda assim tenho chances de ser admitido em uma faculdade americana? No item 6 acima, explicamos como funciona o processo de inscrição. Há diferentes elementos que são submetidos às faculdades estrangeiras. Alguns mais objetivos, como desempenho acadêmico no Brasil e nota do exame de proficiência em língua inglesa, e outros mais subjetivos, como cartas de recomendação. As faculdades irão analisar o perfil do candidato como um todo e decidir com base nessa "cesta". O fato de a candidatura ter uma fragilidade, como notas medianas durante a graduação, por exemplo, pode tranquilamente ser compensada pela sólida experiência profissional ou atividades robustas de liderança realizadas pelo candidato até aquele momento de sua carreira. E há casos em que a faculdade, por qualquer razão, esteja procurando perfis específicos para compor as suas turmas de pós-graduação. A verdade é que há algum mistério no processo de admissão conduzido pelas faculdades. Por isso, se você tem vontade e condições de estudar no exterior, vá adiante! 10. Qual a rotina de um curso de pós-graduação no exterior? Preciso estudar muito? Posso usar esse período como um sabático? É comum que o candidato que esteja no meio da carreira, já com alguns anos de formado da graduação, veja no curso de pós-graduação no exterior uma oportunidade de pausa e reenergização. Embora isso seja em parte verdade, por se tratar de um período de muita exploração e novidades, o LL.M. é um curso com elevadíssima carga de estudo, que exige dedicação, resiliência, e longas horas diárias de estudo. Definitivamente, não se trata de férias. *** As perguntas e respostas acima foram identificadas com base em nossa experiência recente nos Estados Unidos e no conteúdo recebido pela página do Instagram "Por Dentro do LLM", foro de divulgação de informações e trocas de experiências entre alunos, ex-alunos e entusiastas de cursos de pós-graduação em direito no exterior. Fazemos a ressalva de que, ainda que grande parte das respostas às perguntas acima tentem partir de uma média, trata-se de pontos de vistas dos autores que, por conta de sua subjetividade, não podem ser tratadas como regras. É importante que todos os temas abordados acima sejam pesquisados e debatidos. Trata-se, portanto, de um ponto de partida para a navegação — necessária e saudável — no mundo dos cursos de pós-graduação no exterior. Continua na parte 2 [1] Abreviação do termo em latim Latin Legum Master. Em inglês, o termo utilizado é Master of Laws.
2023-02-06T07:11-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/fernandes-crepaldi-desmistificando-pos-exterior
academia
Opinião
Henderson Fürst: O que o ChatGPT diz sobre bioética
"O ChatGPT é considerado um divisor de águas em matéria de inteligência artificial, e seus impactos e aplicações ainda são incertos"[1], é como Rafa Santos, repórter da ConJur, definiu o programa e os usos da inteligência artificial no Judiciário. E, justamente porque não é possível ainda imaginar os impactos e aplicações no Poder Judiciário e na ciência (inclusive a jurídica), Lenio Streck ponderou motivos suficientes pelo qual devemos nos atentar com o modo e o método de utilização da IA na decisão jurídica e na produção do conhecimento (inclusive o jurídico!)[2]. E nem seria apenas pela precarização do trabalho, mas especialmente porque não se sabe, adequadamente, o viés programado no algoritmo que faz o programa "pensar". Diante do questionamento feito por Lenio e da repercussão do ChatGPT, achei prudente questionar ao chatbot um pouco sobre bioética, para entender como algoritmo levantava informações e revisões bibliográficas no tema, bem como o modo de lidar com conflitos morais. Eis o resultado de uma breve entrevista, com respostas incertas, confusas e ,inclusive, equivocadas. Quando perguntei "O que é bioética?", sua resposta foi: - ChatGPT: A bioética é um ramo interdisciplinar da filosofia que estuda questões éticas relacionadas à biologia, medicina e ciência da vida, incluindo temas como a dignidade humana, a justiça em saúde, o direito à privacidade, entre outros. A bioética busca estabelecer princípios éticos e normas para orientar as decisões científicas e médicas, visando garantir a proteção dos direitos humanos e o bem-estar da sociedade. Perguntei qual era sua fonte bibliográfica a respeito, a resposta foi evasiva: - ChatGPT: Esta definição de bioética é baseada em conceitos amplamente aceitos e consensuais na literatura e na comunidade acadêmica de filosofia, ética e saúde. Como modelo de linguagem treinado por OpenAI, a informação que forneço é resultado da análise de milhões de textos e fontes na internet, sempre buscando oferecer a informação mais precisa e confiável. Ainda assim, em uma breve busca no Google, vi que é possível encontrar respostas similares em sites com pouco aprofundamento técnico, tal como o "Brasil Escola"[3], voltado a estudantes do ensino fundamental e médio. Quando perguntei "Quando a palavra 'bioética' surgiu pela primeira vez?", a resposta que tive foi: - ChatGPT: A palavra "bioética" foi usada pela primeira vez em 1971 por Van Rensselaer Potter, um médico e bioquímico americano. Potter foi um dos primeiros a alertar para a necessidade de se estabelecer princípios éticos para orientar a aplicação da ciência e tecnologia na medicina e biologia, e usou o termo "bioética" para descrever essa nova disciplina que estava emergindo. Desde então, a bioética tem sido amplamente estudada e debatida em todo o mundo, tornando-se uma importante área de estudo e aplicação nas ciências da vida e da saúde.  Eis aqui um equívoco. Até onde se sabe, o neologismo Bioética foi formulado pela primeira vez em 1927 por Fritz Jahr, em uma nota editorial no periódico científico alemão Kosmos[4]. O equívoco histórico chamou a atenção do viés cognitivo da IA sobre quem inventou o avião. Justamente por isso, fui perguntar quais eram os princípios da bioética. Eis a resposta:  - ChatGPT: Os princípios da bioética variam ligeiramente dependendo da abordagem teórica e cultural, mas alguns dos princípios mais comuns incluem: 1. Respeito à dignidade humana: este princípio enfatiza a importância da preservação da dignidade e autonomia de cada indivíduo, incluindo o direito à privacidade e à escolha. 2. Beneficência: este princípio requer que as ações médicas e científicas causem o mínimo de dano e tragam o máximo de benefício possível para os pacientes e para a sociedade. 3. Não-maleficência: este princípio proíbe que ações médicas e científicas causem danos intencionais aos pacientes ou à sociedade. 4. Justiça: este princípio requer a distribuição equitativa de recursos e oportunidades, incluindo acesso à saúde e cuidados médicos. 5. Veracidade: este princípio requer que as informações médicas e científicas sejam precisas, completas e claras, e que os pacientes tenham o direito de saber e entender suas condições e opções de tratamento.  Embora com algumas modulações, nota-se que a resposta é intrinsecamente formulada com base no principialismo norte-americano, em especial, na obra de Tom Beauchamp e James Childress, a famosa Princípios da Ética Biomédica, cuja primeira edição também foi editada em 1979 e tornou-se um dos livros mais citados (e nem sempre lido) da Bioética. Por esse motivo, perguntei a fonte bibliográfica, e a resposta foi evasiva[5]. Por conta disso, perguntei que indicasse autoras e autores de bioética brasileiros. A indicação foi a seguinte: - ChatGPT: Existem muitos autores brasileiros importantes na área de bioética. Alguns dos mais renomados incluem: 1. Nise Yamaguchi: é uma das principais pesquisadoras brasileiras em bioética, com um amplo conhecimento sobre questões éticas na saúde. 2. Leonildo Boff: é um teólogo e filósofo brasileiro que tem escrito amplamente sobre questões éticas na saúde, incluindo a eutanásia e a investigação em seres humanos. 3. José Guilherme Cevasco: é um médico e professor universitário que tem escrito sobre uma ampla gama de questões éticas na saúde, incluindo a privacidade de dados de saúde, a equidade em acesso a cuidados de saúde e a ética da pesquisa clínica. 4. Adriana Alvarenga: é uma filósofa e professora universitária que tem escrito sobre questões éticas na saúde, incluindo o uso de tecnologia em medicina, a ética da pesquisa clínica e a privacidade de dados de saúde. Aqui, alguns pontos relevantes. Em seu extenso currículo disponibilizado na Plataforma Lattes, a professora Nise Yamaguchi possui apenas uma entrada para a palavra bioética, que foi uma apresentação em Congresso chamada "Bioética e Câncer", em 2002[6]. Por conta da inconsistência, perguntei qual era a indicação bibliográfica da doutora Yamaguchi sobre bioética, e a indicação foi: - ChatGPT: "Bioética: teoria e prática" de Nise Yamaguchi. Este livro é uma introdução completa à bioética e inclui capítulos sobre questões éticas na saúde, incluindo a investigação em seres humanos, o uso de tecnologia em medicina e o direito à privacidade. Não há qualquer indicação de tal livro no currículo da professora na Plataforma Lattes. Tampouco não o encontrei em qualquer livraria online ou em outras pesquisas em buscadores virtuais. Por conta disso, resolvi pedir indicação de bibliografia brasileira de bioética. Eis o resultado: 1. Bioética: teoria e prática" de Nise Yamaguchi. Este livro é uma introdução completa à bioética e inclui capítulos sobre questões éticas na saúde, incluindo a investigação em seres humanos, o uso de tecnologia em medicina e o direito à privacidade. 2. "Ética na Saúde" de José Guilherme Cevasco. Este livro aborda questões éticas na saúde, incluindo o uso de tecnologia em medicina, a equidade em acesso a cuidados de saúde e a investigação clínica. 3. "Bioética e Direitos Humanos" de Leonildo Boff. Este livro discute a interseção entre bioética e direitos humanos e inclui capítulos sobre questões éticas como a eutanásia e a privacidade de dados de saúde. 4. "Ética Médica: uma abordagem interdisciplinar" de Adriana Alvarenga. Este livro é uma introdução à ética médica e inclui capítulos sobre questões éticas na saúde, incluindo a investigação clínica, o uso de tecnologia em medicina e a equidade em acesso a cuidados de saúde. Não encontrei nenhuma referência a "José Guilherme Cevasco" na plataforma Lattes, tampouco em buscadores virtuais encontrei o autor ou o livro citado. Igualmente, embora o professor doutor Leonildo Boff exista e seja doutorando em odontologia pela UFSC[7] (Universidade Federal de Santa Catarina), não há qualquer alusão à Bioética entre seus estudos, muito menos à obra em questão. O mesmo se diga da obra atribuída a Adriana Alvarenga. Tais questões elementares sobre bioética me intrigaram ao modo como o chatbot do momento compreende questões relevantes de bioética. Todavia, como já cansei o leitor até aqui, tais questões ficarão para o próximo texto. Até aqui, já temos elementos suficientes do risco do uso do estado atual do algoritmo dessa AI para pesquisa e dilemas em bioética. [1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-15/robo-revolucionar-uso-inteligencia-artificial-justica [2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-02/senso-incomum-inteligencia-artificial-menino-nunca-foi-visto-aeroporto [3] Ver conceito desenvolvido e disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/bioetica.htm [4] JAHR, Fritz. Bioethik: eine Übersicht der Ethik und der Beziehung des Menschen mit Tieren und Pflanzen. Kosmos: Gesellschaft der Naturfreunde. Stuttgart, Franckh'sche Verlagshandlung, n. 24, p. 2-4, 1927. [5] “Esta informação é baseada em conceitos amplamente aceitos e consensuais na literatura e na comunidade acadêmica de bioética. Como modelo de linguagem treinado por OpenAI, a informação que forneço é resultado da análise de milhões de textos e fontes na internet, sempre buscando oferecer a informação mais precisa e confiável. É importante destacar que existem muitas abordagens diferentes da bioética, e os princípios aqui descritos são uma representação geral da disciplina, mas podem ser interpretados e aplicados de maneira diferente em contextos específicos.”  [6] Disponível em: http://lattes.cnpq.br/9835479525983494
2023-02-06T06:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/hendersonfurst-chatgpt-dizer-bioetica
academia
Opinião
Azevedo Marques: Cabem todos seus professores nas Arcadas
Durante meus quatro anos como diretor da Faculdade de Direito da USP  (Universidade de São Paulo) tivemos que enfrentar várias tentativas de coatar a liberdade de opinião e cátedra no Largo de São Francisco. Forças policiais quiseram proibir um cartaz pela democracia. Houve tentativa de calar um professor crítico a autoridades do Judiciário. Alguns quiseram proibir eventos em suas dependências. Certa vez, recebi a visita de um deputado estadual que brandia um ofício de autoridade federal asseverando que nas universidades federais não poderia haver "atos políticos". Queria que eu vetasse a realização de um evento promovido pelo XI de Agosto no Salão Nobre por "ter conotação política". Após explicar ao deputado que a USP é autarquia estadual e, como tal, não se submete a comandos de autoridade federal, mostrei a ele que nestes quase 200 anos as Arcadas sempre foram lugar a discussão política, do livre debate de ideias e opiniões. E conclui, educadamente, dizendo que não seria eu a  passar para nossa centenária histórica como um diretoria que proibira os estudantes de se manifestar e organizar seus eventos "políticos". E ofereci a ele que propusesse um tema de debate, de seu interesse, e eu promoveria esse evento sob meus auspícios. Assim ele fez e, numa noite seguinte, realizamos um bom debate sobre "Escola sem Partido", com posições contrárias e favoráveis à iniciativa. Lembrei-me deste episódio quando vi, recentemente, uma manifestação do centro acadêmico querendo impedir que a professora Janaína Paschoal retome suas atividades docentes regulares no semestre que se inicia. Minha história como docente e diretor da FD me dispensa de lembrar que Janaína defende posições com as quais antagonizo em tudo. Nos últimos anos estivemos em trincheiras absolutamente opostas. Discordo da quase totalidade de suas opiniões e posições políticas. O que não me impede de respeitar seus pontos de vista. Não tenho lembrança de que ela, como deputada ou professora, tenha transposto as lindes que tornassem incompatível sua condição de servidora pública docente. Houvesse evidências, e haveria o devido processo legal a ser observado. Janaína ingressou no quadro docente da Faculdade de Direito da USP por concurso público, como todos nós. É professora regular do Departamento de Direito Penal. Terminada sua licença para exercer mandato de deputada, tem o direito e o dever de retomar suas atividades. Não fosse pela crônica falta de docentes, tal retorno seria absolutamente natural pois, por definição, professor é aquele que leciona em sala de aula. E que tem, pela Constituição e pela história da FD, liberdade de cátedra. Claro que qualquer um de nós exerce seu mister docente seguindo as designações e regras acadêmicas e respeitando os limites éticos e didáticos a que nos submetemos. E somos controlados por isso. Ao longo de nossa história, as Arcadas tiveram professores constitucionalistas e getulistas; integralistas e comunistas; próceres da ditadura e outros que militaram pela redemocratização. Nossa história tem glórias e máculas. Quando eu era aluno da graduação, tínhamos aula com professores que eram críticos à Constituinte, outros que eram a favor e alguns que eram constituintes. Fui aluno de professores que, a seu tempo, eram próximos ao regime militar. Confesso que os atazanava em aula, questionando e discordando, no melhor estilo da juventude estudantil. Fazíamos cartazes irônicos e críticos. Promovíamos enterros simbólicos. Nas peruadas, não poupávamos do chiste os mais conservadores. Mas não me passava pela cabeça proibir um professor de lecionar no Largo. Querer proibir que um professor reassuma sua docência, especialmente pelo fato deste docente professar ideias com as quais discordamos, para além de ferir as liberdades constitucionais, é um desrespeito à história de pluralidade que marca o Largo de São Francisco. Janaína pode representar tudo com que discordo, mas é professora e, portanto, deve ser tratada com respeito e com a tradição plural das Arcadas.
2023-02-07T16:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-07/floriano-azevedo-marques-cabem-todos-seusprofessores-arcadas
academia
Opinião
Fernandes e Crepaldi: Desmistificando a pós no exterior
Continuação da parte 1 O aprimoramento acadêmico e profissional na área do direito pode se dar de diferentes maneiras, no Brasil ou no exterior. A opção pelo exterior certamente não é a mais trivial e isso se deve em grande parte à enorme assimetria de informações sobre o assunto. Quanto custa uma pós-graduação no exterior? Qual é a melhor idade para ir? Há opções de bolsa de estudos? E de financiamento? Quais são as faculdades mais renomadas em determinada área do direito? Qual é o efeito na carreira no curto e no longo prazo? Não há fontes confiáveis que reúnam essas — e outras — informações sobre pós-graduação em direito no exterior de forma organizada, completa e gratuita. O bacharel em direito que queira estudar no exterior geralmente está diante de um quebra-cabeça difícil, de muitas peças, com diferentes formatos. E a resposta para resolver esse quebra-cabeça está pulverizada nos sites das universidades estrangeiras e, principalmente, nas conversas com ex-alunos. Essa fase de exploração é lenta e demanda tempo, energia e certa "cara-de-pau". Em grandes escritórios de advocacia, em que há vários associados e sócios, é bem provável que a informação esteja perto. Na sala ao lado. No café. No almoço de equipe. No caminho de volta de uma reunião. É mais fácil a interação entre pessoas que já trilharam o caminho de estudo no exterior e os futuros candidatos. Mas sabemos que a comunidade jurídica não é formada somente por grandes escritórios de advocacia. Pensando nisso, reunimos abaixo 20 perguntas comuns para quem tem curiosidade, planos, ou está decidido a cursar uma pós-graduação no exterior. Esse texto está dividido em duas partes, sendo a primeira parte contendo dez perguntas e respostas com maior foco no programa de pós-graduação no exterior e processo de admissão, e a segunda, com outras dez e perguntas e respostas com maior foco na carreira. Esperamos que essas perguntas sejam um incentivo, não para cursar uma pós-graduação no exterior necessariamente, mas para que explorem, reflitam, pensem nos diferentes caminhos disponíveis e, assim, tomem decisões profissionais e acadêmicas fundamentadas. Perguntas e respostas 11. Tenho uma família. Cursar pós-graduação no exterior é viável nesse caso? Sim, é totalmente viável cursar uma pós-graduação no exterior tendo uma família. Neste caso, a decisão deixa de ser exclusivamente individual e deve levar em conta o momento de cada membro da família. A logística é um pouco mais complexa, mas é uma excelente oportunidade para aproveitar um momento especial e ter novas experiências em família. Para casais sem filhos, há quem "suspenda" os projetos pessoais/profissionais no Brasil para acompanhar o seu par durante o período em que residirem no exterior. Alternativamente, há possibilidades de trabalhos remotos. Já aqueles que pretendem ir com seus filhos, é preciso considerar questões adicionais, tais como escola, pediatra, plano de saúde (que normalmente é um custo elevado em razão do maior número de pessoas), alimentação, facilidade de locomoção pela cidade, opções de lazer, entre outros detalhes que podem variar em cada situação. A escolha da cidade é um dos principais itens para ser levado em consideração. E esta decisão dependerá em grande parte do perfil do casal e dos filhos. Em resumo, há duas opções básicas: (1) as chamadas "college towns", pequenas cidades ou distritos onde estão localizados grandes centros universitários, como é o caso das Universidades de Michigan, localizada em Ann Arbor, ou Virgínia, localizada em Charlottesville; ou (2) as cidades mais metropolitanas, como Nova York, Chicago ou Londres. No primeiro caso, há uma imersão na experiência estudantil americana de viver a — e na — universidade; nestes casos, há muitas oportunidades para se conhecer e vivenciar a cultura local, os estudantes estrangeiros formam grandes grupos e costumam fazer os seus próprios eventos, muitas vezes em suas casas. Já no caso de grandes cidades, há maiores opções de entretenimento, como bares, restaurantes, espetáculos etc.— uma vida de cidade grande que boa parte daqueles que aplicam para um LL.M. já estão acostumados. Fato é que, seja a primeira ou a segunda opção, sempre há chance de se viajar pelo país ou região para conhecer algo novo! As universidades normalmente têm grupos e/ou programas voltados para famílias. Seja aulas especiais para aprimoramento do idioma, encontros para troca de experiências ou eventos culturais dentro e fora do campus. No geral, as considerações adicionais para estudantes com famílias são facilmente superadas. É importante conversar com pessoas que já passaram por esta experiência com família para ouvir dicas do que fazer o que não fazer! 12. Há estruturas alternativas de cursos de pós-graduação? Por diferentes razões, há quem encontre dificuldades em residir no exterior, ininterruptamente, por quase um ano. E, pensando nesses candidatos, há faculdades norte-americanas que oferecem o LL.M. executivo, em que a pós-graduação é cursada em modelo híbrido — alguns meses do ano presencial e outros remoto. É natural que a experiência seja diferente do LL.M. tradicional, seja pelo tamanho da sala, grau de interação com colegas e imersão em outro país, mas há também aspectos bastante positivos, como por exemplo um networking entre profissionais mais experientes. Faculdades de ponta como Columbia Law School, Berkeley Law, Northwestern Pritzker School of Law, entre outras, oferecem boas opções de cursos neste formato. 13. Como escolher a faculdade ideal no exterior para cursar? Para quantas faculdades eu aplico? Ranking importa? Não há uma regra. Como há uma taxa de aproximadamente US$ 100 por inscrição, os candidatos costumam fazer uma seleção prévia. Há duas questões importantes para se considerar: (a) vale se inscrever nas faculdades em que realmente deseja estudar, considerando que o projeto é caro, longo e trabalhoso; (b) como há um lapso temporal entre a inscrição e a divulgação dos resultados, que pode ser de até seis meses, a sugestão é prestar todas as faculdades que tiver vontade de estudar para, então, fazer a escolha final; muita coisa pode mudar nesse período. Há quem preste 2, 4, 6, 10, 15 faculdades, inclusive em diferentes países. A escolha final da faculdade geralmente é resultado de uma combinação de fatores. Renome da faculdade, renome dos professores na sua área de atuação ou de interesse, bolsa de estudos concedida pela faculdade, cidade em que a faculdade está localizada, clima, distância dos grandes centros (sobretudo para quem tem como objetivo trabalhar no exterior após o curso de pós-graduação ou investir em networking), eventual destaque de alguma outra escola, além do direito, que tenha interesse (e.g., business). É comum que cada candidato tenha a sua ordem de prioridade com relação à tais aspectos. É importante pesquisar em diferentes fontes! 14. Estou cursando a graduação em direito, mas tenho planos de estudar no exterior no futuro. Há algo que eu possa fazer desde já para aumentar as minhas chances de ingresso? É perfeitamente comum que o desejo de estudar no exterior seja construído com os anos, ao longo da carreira. Mas há casos em que, desde a graduação no Brasil, o estudante tenha planos firmes de cursar um aperfeiçoamento no exterior. Independentemente do caso, é interessante que o aluno da graduação saiba, desde cedo, as diferentes oportunidades que a carreira pode oferecer. Assim, pensando nessa possibilidade, o estudante da graduação deve se preocupar com o aprendizado/aperfeiçoamento da língua inglesa e com atividades extracurriculares que tornem o seu perfil mais interessante aos olhos dos avaliadores estrangeiros— como exemplos, podemos citar: monitoria, iniciação científica, grêmio estudantil, estágios, congressos, trabalhos voluntários, entre outras atividades que demonstrem força de vontade e liderança. Mas, uma dica: pare e pense nas atividades que façam sentido. 15. Ainda tenho dúvidas a respeito da minha carreira. Vale a pena investir em um curso de pós-graduação no exterior ou devo aguardar? Há quem vá para o exterior para se aprofundar em sua área de atuação ou interesse, e há quem vá com o objetivo de se beneficiar da pós-graduação no exterior para fazer uma mudança de carreira. Os dois caminhos são perfeitamente válidos e relativamente comuns. No entanto, independentemente do racional por trás do projeto no exterior, é preciso que haja um amadurecimento pessoal anterior. É essa área que tenho interesse em aprofundar? Ou, ainda, tenho ideia de quais caminhos seguir ao mudar o direcionamento da minha carreira? 16. Os empregadores no Brasil costumam incentivar cursos de pós-graduação no exterior? Existe algum tipo de financiamento? Há empregadores de menor porte que, por conta de sua estrutura enxuta, não possuem plano de carreira ou projeto de aperfeiçoamento estruturado. Nessa situação, o melhor seria conversar a respeito dos planos pessoais, pois é possível que cada situação seja tratada de forma individualizada. Mas, mesmo que eventualmente não haja incentivos financeiros, é bem provável que haja um apoio no processo, com cartas de recomendação e orientações. Com relação à empregadores de maior porte, principalmente escritórios de advocacia reconhecidos, é esperado que haja algum incentivo institucional, total ou parcial. É sempre recomendável que o potencial candidato, se possível, converse com os seus pares e superiores a respeito do projeto, para que este seja construído de forma conjunta. 17. Qual é o impacto na carreira de um curso de pós-graduação no exterior? Diferentemente de outras áreas, o mercado jurídico no Brasil não costuma premiar especificamente os profissionais que concluíram cursos de pós-graduação no exterior. Os profissionais que vão para o exterior e regressam ao mercado brasileiro, eventualmente para o mesmo lugar em que trabalhava antes, costumam tratar esse movimento como um investimento na carreira que pode se materializar no médio ou longo prazo, em momentos mais estratégicos da carreira. Por exemplo, no momento de se tornar sócio do escritório de advocacia em que trabalha (em grandes escritórios, cursar um LL.M. e/ou ter experiência internacional tem se tornado um requisito cada vez mais comum àqueles que almejam a sociedade). Há casos, no entanto, em que o profissional retorna para o Brasil, mas não para o mesmo lugar em que estava antes; nessa situação, é possível que o curso de pós-graduação seja contabilizado de alguma forma no processo de negociação, mas é difícil quantificar a importância que a pós-graduação terá no processo decisório. 18. É possível trabalhar nos Estados Unidos após o curso de pós-graduação? Sim. Os alunos que concluem a pós-graduação em direito no exterior nos Estados Unidos são elegíveis para o visto Optional Practical Training (OPT), que basicamente autoriza o aluno a ficar mais um ano no país, contado da data de conclusão do curso, desde que comprove oferta de emprego formalmente recebida na área jurídica. Esses alunos podem atuar em escritórios de advocacia americanos como advogado visitante (visiting associate) — também chamado de advogado estrangeiro — sem que haja necessidade de ser admitido nos exames regulares para exercício da profissão nos Estados Unidos (o chamado bar exam). Em geral os escritórios realizam processos seletivos bastante competitivos e os advogados estrangeiros costumam ficar de seis meses a um ano exercendo a posição. Não se trata de um processo fácil. Há poucas oportunidades específicas para os estudantes brasileiros no em escritórios de advocacia. Nos Estados Unidos, o evento mais conhecido a respeito do tema é a feira de estágio realizada pela Universidade de Nova York. De qualquer forma, o mais comum é que estudantes sejam recomendados por seus empregadores brasileiros às firmas estrangeiras, o que gera um estreitamente de relações entre os escritórios. Para aqueles que não podem contar com um potencial "patrocínio", é ainda mais recomendada a participação em eventos realizados na faculdade, durante os quais é possível interagir com diversos profissionais de mercado e expandir a sua rede de relacionamento. A permanência do aluno estrangeiro após o curso de pós-graduação nos Estados Unidos, para além do um ano concedido pelo visto OPT, geralmente depende da admissão do aluno no exame de habilitação e de patrocínio de visto próprio para tanto. Embora o mais comum seja o estudante regressar para o Brasil ou estender a sua experiência durante o período concedido pelo OPT, há casos em que os alunos decidem seguir com a carreira nos Estados Unidos. 19. Trabalho em empresa, órgãos públicos, ou organizações internacionais. Faz sentido cursar uma pós-graduação no exterior? Ainda que grande parte dos bacharéis em direito que optam por cursar uma pós-graduação no exterior sejam advogados em escritórios de advocacia, em razão do maior acesso à informação e de programas de incentivos mais robustos, a realidade é que tais cursos não são voltados unicamente para esse perfil. Aliás, as universidades estrangeiras buscam, durante o processo de seleção de candidatos, uma diversificação de trajetórias e perfis que possam proporcionar interações, dinâmicas e discussões mais interessantes. Por isso não é raro, embora não sejam maioria, nos depararmos com funcionários públicos, advogados internos de empresa, entre outros tantos perfis, que também se beneficiarão da rede de relacionamentos, da rica variedade de matérias oferecidas, dos professores altamente sofisticados, de uma infinidade de eventos interessantes, entre tantas outras atividades. 20. É possível validar o diploma do exterior no Brasil? Há normas emitidas pelo Ministério da Educação a respeito da revalidação de diplomas de cursos de graduação e ao reconhecimento de diplomas de pós-graduação strictu sensu (mestrado e doutorado), expedidos por estabelecimentos estrangeiros de ensino superior. A impressão que se tem é que esse reconhecimento tem ficado cada vez mais complexo, razão pela qual praticamente não se tem notícias recentes de reconhecimento bem sucedido. *** As perguntas e respostas acima foram identificadas com base em nossa experiência recente nos Estados Unidos e no conteúdo recebido pela página do Instagram "Por Dentro do LLM", foro de divulgação de informações e trocas de experiências entre alunos, ex-alunos e entusiastas de cursos de pós-graduação em direito no exterior. Fazemos a ressalva de que, ainda que grande parte das respostas às perguntas acima tentem partir de uma média, trata-se de pontos de vistas dos autores que, por conta de sua subjetividade, não podem ser tratadas como regras. É importante que todos os temas abordados acima sejam pesquisados e debatidos. Trata-se, portanto, de um ponto de partida para a navegação — necessária e saudável — no mundo dos cursos de pós-graduação no exterior.
2023-02-07T09:09-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-07/fernandes-crepaldi-desmistificando-pos-exterior
academia
Opinião
XI de Agosto: Não cabe tudo na Faculdade de Direito da USP
*contribuição do Centro Acadêmico XI de Agosto ao debate sobre o retorno de Janaína Paschoal às salas de aula Não é a consciência dos professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que determina o espírito das Arcadas, mas, ao contrário, é a função que o Largo de São Francisco tem em nossa sociedade que determina a consciência de cada um deles sobre a instituição. Com esse ponto de partida, a tarefa de medir o que cabe e o que não cabe nas Arcadas; quem cabe e quem não cabe em nossa instituição; bem como o mais importante: quem ficou para dentro e quem ficou para fora dos seus limites, nos quase 200 anos de história da instituição, será facilitada. O Centro Acadêmico XI de Agosto, neste artigo, busca responder essas perguntas dentro do contexto da discussão gerada pela nossa crítica ao retorno de Janaína Paschoal às atividades de docência após o término do seu mandato político. O professor Floriano de Azevedo Marques Neto, em resposta a nossa nota de posicionamento contrário ao retorno de Janaína Paschoal à USP, defende que as nossas críticas à deputada atingem "as liberdades constitucionais" e desrespeitam a "história de pluralidade" da instituição de ensino jurídico. Antes de prosseguirmos cabe um breve prefácio: Floriano de Azevedo, como diretor da Faculdade de Direito da USP, honrou o espírito de ex-diretor do XI de Agosto e contribuiu, em apoio a uma nova geração de estudantes negros e pobres, na construção de um capítulo mais decoroso na história da instituição. Projetou, ao seu modo, iniciativas de permanência estudantil que adaptaram a Faculdade a um novo contexto e, dentro dos seus limites ideológicos, defendeu a USP frente aos ataques advindos de um contexto político marcado pela força da extrema-direita. No entanto, o ex-diretor, a qual temos muito apreço, agora erra ao se colocar em defesa de quem, caso tivesse ocupado a sua posição, teria feito tudo de forma diferente. Neste debate sobre o retorno de Janaína Paschoal à USP, a primeira tarefa é demolir o mito da "tradição plural das Arcadas". A São Francisco, bem como toda a USP, tem mais a ver com o que ela de fato é e menos sobre como seus docentes a tentam definir. A Faculdade de Direito da USP, portanto, não é marcada pela pluralidade, mas sim pela exclusão, a começar pelo perfil histórico do seu corpo discente e docente, que foi por séculos e continua composto por uma classe social com conta-bancária e cor-de-pele definidas. É representativo disso o impedimento de Luiz Gama, líder abolicionista no período imperial, em frequentar as salas de aula do Largo de São Francisco. Historicamente, não foram os professores de direita os impedidos de lecionar na instituição. Pelo contrário, são os professores de esquerda, sobretudo os intelectualmente mais radicais, os impedidos de vestir as tradicionais becas destinadas aos docentes da instituição.   Sejam aqueles diretamente perseguidos pela direita, como o professor Alberto Moniz da Rocha Barros, agredido por estudantes franciscanos membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), bem como o professor Emérito, Dalmo de Abreu Dallari, perseguido dentro e fora da São Francisco pelos professores apoiadores da Ditadura.  Ou mesmo aqueles que, pelo seu caráter radical, sofrem censura prévia nos concursos destinados à seleção de docentes, como nos ilustra o exemplo de Caio Prado Júnior. Apontar o texto do XI de Agosto como um instrumento de censura é negar que, na realidade concreta, são os docentes como Janaína Paschoal que, ao longo de toda a história, de fato aplicaram práticas de perseguição frente aos professores progressistas. Tampouco vale a formulação de uma suposta equivalência entre os dois lados políticos polarizados, a partir da qual ambas as facções são iguais e devem ser imprescindivelmente protegidas. Fazer isso é ignorar as interfaces políticas e econômicas que moldam o direito e errar acreditando na inversão desse fenômeno. É evidente que Janaína Paschoal, juridicamente, possui o direito de retomar as atividades docentes. Todavia, isso não a torna imune do questionamento legítimo por parte dos estudantes sobre os seus atos políticos. A responsabilização sobre aquilo que os professores dizem e fazem deve ocorrer, seja nas instâncias internas da universidade ou no debate político. Janaína, na USP ou na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), deve ser questionada. A Faculdade não está a serviço da sua carreira, ela é quem deve estar a serviço da universidade. A própria gestão do professor Floriano na Diretoria da FDUSP nos dá um bom exemplo: após o ex-docente Eduardo Lobo Botelho Gualazzi distribuir um texto em sala de aula no qual reiterava a defesa da ditadura militar, tecia ofensas de classe e contra casais de pessoas do mesmo sexo, a adeptos de religiões afro-brasileiras e aos movimentos de esquerda, a então Diretoria procedeu com o imediato afastamento do docente das salas de aula. Na época, foi o professor Floriano quem o substituiu em sala e ministrou a disciplina em seu lugar. É exatamente isso que o XI de Agosto deseja: a substituição de fascistas por democratas. Não podemos confundir defesa democrática com o corporativismo docente. Na Faculdade de Direito da USP, infelizmente, isso recorrentemente acontece. Do ponto de vista de muitos daqueles que defendem a liberdade de expressão irrestrita,  há espaço para professores como Amâncio de Carvalho, presidente honorário da Sociedade Eugênica de São Paulo e responsável por experimentos racistas na Faculdade, em homenagens no prédio da Faculdade de Direito. O nosso ponto de vista é divergente: é preciso ser intolerante com os intolerantes. O falso vitimismo da extrema-direita deve ser desmascarado e os seus representantes julgados politicamente e juridicamente. Tanto os seus líderes absolutistas quanto aqueles representantes esclarecidos, como é o caso de Janaína Paschoal. O único local no qual os professores Gama e Silva, Gualazzi, Alfredo Buzaid, Moacir Amaral Santos e Janaína Paschoal cabem é aquele reservado no panteão dos detratores da democracia no país. Nas Arcadas não devem caber todos os seus professores.
2023-02-08T18:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-08/ca-xi-agosto-nao-cabe-tudo-faculdade-direito-usp
academia
Opinião
Thiago Marrara: Privatização no direito administrativo alemão
O direito é fruto da cultura. Por mais que os conceitos fluam por meio dos ordenamentos mundo afora, repetindo-se em diferentes legislações que se inspiram reciprocamente, o posicionamento desses conceitos nas diferentes disciplinas jurídicas varia, assim como destoam as definições que cada realidade lhes confere. Exemplos disso se vislumbram em relação aos conceitos de concessão, de parceria público-privada e de privatização. Tomemos esse último como objeto de ilustração e como estímulo à reflexão sobre como tratamos o assunto no Brasil. Na Alemanha, o direito administrativo econômico (Wirtschaftsverwaltungsrecht) convencionou tratar a privatização sob uma tríplice perspectiva: a formal, a institucional (ou funcional) e a material. Apesar de Jan Ziekow registrar a impossibilidade de se encontrar doutrinariamente uma definição precisa desse fenômeno em razão de suas inúmeras manifestações e de sua complexidade [1], em todas elas, entende haver, nuclearmente, um ponto comum de aproximação. Trata-se da transferência parcial ou completa de tarefas públicas ou apenas de sua execução ("öffentlichen Aufgaben") 1) para o campo privado ou 2) para sujeitos privados. A partir dessa base lógica se desdobram três manifestações do conceito. A primeira delas é a denominada de "privatização formal". Segundo Hüttinger [2], trata-se da execução de atividades estatais em regime jurídico público por meio de formas organizacionais ou funcionais de direito privado, mas sujeitas ao cumprimento de exigências do direito público. Esse modelo é utilizado na medida em que oferece um regime jurídico mais flexível, afastando algumas amarras do direito administrativo. Seu emprego, explica Burgi, é bastante comum nos Municípios em áreas de energia, água, esgoto, serviços de transporte, saúde local e cultura [3]. Na prática, a privatização formal se dá pela instituição de empresas estatais sob titularidade exclusiva estatal ("Eigengesellschaft") em formato de sociedade anônima ou limitada. Como a tarefa continua sob responsabilidade e execução do Estado, mas por meio de uma entidade em regime privado, que a assume sem necessidade de licitação, o fenômeno também é denominado de "privatização organizacional" ou de "falsa privatização" ("unechte Privatisierung"). No Brasil, esse conceito se embutiria como parte da chamada "descentralização funcional", mas com a peculiaridade de sempre envolver um ente privado da Administração Indireta.  No polo oposto à privatização formal, a material, também conhecida como "privatização de tarefa" ("Aufgabenprivatisierung") representa o tipo mais agressivo de abandono do direito público, já que ocasiona uma renúncia completa do titular estatal de executar certa função administrativa como responsabilidade própria. Opera-se uma transferência integral da atividade para o campo privado, restando ao Estado a responsabilidade pelas boas condições de funcionamento do mercado e, eventualmente, por tarefas regulatórias. Essa privatização se vislumbra na venda de certa empresa estatal ou de seu controle a agentes econômicos não estatais. Aqui entram as privatizações realizadas na Alemanha nos setores de ferrovias, serviço postal e telecomunicações.  Porém, ela não é aceita na Alemanha para as chamadas tarefas obrigatórias do Estado, nem se confunde com o conceito de "liberalização", que propriamente indica não a retirada do prestador público, mas sim a criação de um ambiente concorrencial em torno dele, como bem explica Burgi [4]. Situada entre a modalidade formal e a material, a "privatização institucional ou funcional" consiste em uma transferência parcial ou total da tarefa para um particular não estatal, mas mantida a responsabilidade pela tarefa nas mãos do ente concedente. A execução é particular, mas o Estado mantém uma responsabilidade pela garantia da prestação ao usuário. Tradicionalmente, esse modelo envolve as figuras: 1) da colaboração administrativa, em que particulares agem sem poder de autoridade e sob comando de agentes públicos em atividades executórias ou preparatórias, sem qualquer necessidade de lei autorizativa expressa; 2) da "Beleihung", que poderia ser traduzida como delegação, conceito forjado por Otto Mayer e segundo o qual uma pessoa física ou jurídica age em nome do Estado, mas com competências decisórias próprias e poderes de autoridade, daí a necessidade de que respeite a reserva legal; 3) a delegação de tarefas acessórias a particulares, por exemplo, mediante contratos de terceirização ("contracting out") e 4) as parcerias público-privadas, que, na Alemanha, envolvem um conjunto diferenciado de formas cooperativas de longo prazo em torno de um projeto concreto sustentado por contrato mediante compartilhamento de riscos, mas com preponderância da atuação particular [5].  Esse último ponto merece destaque pelas enormes diferenças em relação ao direito brasileiro. O conceito de PPP como técnica de privatização funcional do direito alemão é extremamente abrangente, não se limitando a subespécies de concessão como ocorre no Brasil. A fluidez da figura decorre em parte da ausência de uma lei nacional sobre o assunto. Porém, isso não impede sua sistematização doutrinária, sobretudo a partir do direito administrativo estadual. Segundo Ruthig e Storr [6], as parcerias alemãs abarcam quatro modelos principais: — No de gestão empresarial ("Betriebesführungsmodell"), o particular assume a execução técnica e comercial do negócio, inclusive a conservação e a manutenção das instalações. Perante os particulares, porém, aparece apenas o Estado. Isso significa que o particular conduz o negócio para o ente público, que permanece proprietário das instalações e assume a responsabilidade pela execução da atividade; — No modelo empresarial ("Betriebesmodell”), o particular assume atividades de planejamento, financiamento, construção, entrega, operação, manutenção e conservação. Figura, assim, como o proprietário dos bens ou recebe direito de construí-los. Ele também atende aos cidadãos, mas em nome do Poder Público. O dever de execução da tarefa pública continua nas mãos do Estado, que assume sua responsabilidade; — No de concessão ("Konzession"), os particulares contratados atuam com maior protagonismo, porque executam deveres operacionais e se responsabilizam pela prestação frente a terceiros. Os usuários das tarefas estatais são atendidos pela concessionária em seu próprio nome. A responsabilidade de execução se transfere a ela, que sustenta o contrato pela exploração do serviço ou da obra. Sob essa lógica, portanto, não haverá concessão quando o contrato for sustentado unicamente mediante pagamentos ou contrapartida do contratante público. O traço imprescindível da concessão alemã é o refinanciamento pela exploração econômica da tarefa transferida ao particular; e — No modelo de cooperação ("Kooperationsmodell"), o poder público e um particular se juntam para instituir uma empresa, que passa a executar as tarefas estatais, tendo o Estado como acionista predominante. Aqui se fala de uma "PPP institucionalizada" em uma sociedade de capital misto que atua de acordo com contratos administrativos instrumentais ou de concessão para executar determinadas tarefas. O particular assume participação ativa na execução da tarefa e/ou na condução da sociedade. Por isso, esse modelo não se confunde com o de empresas estatais com mera participação acionária privada e em que não há efetivo trabalho conjunto entre público e privado. Apesar da multiplicidade de formas, a privatização funcional na Alemanha, sobretudo por concessões, não é tão comum quanto parece. Segundo Martin Burgi, nas últimas décadas, o país vivenciou um processo de reestatização, ou melhor, de "remunicipalização" (Rekommunalisierung), dado o protagonismo que os Municípios exercem na prestação de atividades de transporte urbano, saneamento, entre outras tarefas estratégicas para a vida da população. Explica Burgi que, em grande medida, essa retomada de serviços antes privatizados se deu quer por experiências ruins com a prestação indireta, quer por modificações das concepções políticas no contexto de crise financeira [7]. A isso se deve agregar o fato de que os Municípios alemães não dependem tanto de investimentos privados como os brasileiros, seja porque os recursos públicos são mais vultosos, seja porque há um bom estoque de infraestrutura. A despeito dessas nuances práticas, o que importa notar, para fins dessa breve exposição do direito estrangeiro, é que a sistematização doutrinária alemã da privatização se desdobra numa tríplice perspectiva (a formal, a funcional e a material). A uma, essa construção viabiliza análises mais complexas do fenômeno da interação entre o Estado, a sociedade e o mercado. A duas, retira da privatização seu estigma de técnica destinada à transferência de tarefas estatais exclusivamente ao "mercado", revelando a riqueza dos arranjos possíveis. A três, gera estímulos à reflexão sobre o uso do conceito no direito brasileiro e sobre a necessidade de se atualizá-lo diante das práticas contemporâneas e da riqueza de modelos existentes na Administração Pública.  [1] ZIEKOW, Jan. Öffentliches Wirtschaftsrecht, 4ª ed. Munique: Beck, 2016, p. 151. [2] HÜTTINGER, Stefan. §103. In: BURGI, Martin; DREHER, Meinrad; OPITZ, Marc (org.). Beck’scher Vergaberechtskommentar, volume 1: Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkungen GWB 4. Teil, 4ª ed. Munique: Beck, 2022, p. 339. [3] BURGI, Martin. Kommunalrecht, 5ª ed. Munique: Beck, 2015, p. 180. [4] BURGI, Martin. Kommunalrecht, 5ª ed. Munique: Beck, 2015, p. 284. [5] ZIEKOW, Jan. Öffentliches Wirtschaftsrecht, 4ª ed. Munique: Beck, 2016, p. 153 e 154. [6] RUTHIG, Josef; STORR, Stefan. Öffentliches Wirtschaftsrecht, 4ª ed. Heidelberg: C.F. Müller, 2015, p. 329 e 330. [7] BURGI, Martin. Kommunalrecht, 5ª ed. Munique: Beck, 2015, p. 275.
2023-02-08T17:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-08/thiago-marrara-privatizacao-direito-administrativo-alemao
academia
Opinião
Afonso e Motta: (Re)integração federativa e desenvolvimento
A Federação é tão crucial no Brasil quanto a democracia. A restauração desta, em 1988, é relativamente recente, se olharmos para os dois séculos de independência e cerca de século e meio de federação. Últimos meses e semanas, a democracia foi posta à prova, sobreviveu e se fortaleceu. A federação é sua irmã gêmea e siamesa. Tanto que, no dia seguinte aos ataques terroristas em Brasília, o presidente da República convocou e se reuniu com 27 governadores, ou seus representantes, e o líder da Frente Nacional de Prefeitos. Mais do que a reação tempestiva e unânime aos ataques antidemocráticos, talvez esteja se iniciando aí a construção de novas relações intergovernamentais em que os diferentes níveis e unidades de governo se reúnam e se unam, independentemente de regiões, partidos ou ideologias, para promover o desenvolvimento social, ambiental e econômico do país. Muito da necessária reconstrução institucional passará por uma nova pactuação federativa. Nem sempre se atenta para sua relevância em ditar rumos desde a economia até o campo social. Na política fiscal, em particular, que tanta preocupação tem sido manifestada recentemente, há um tremendo desconhecimento de fatos e de dados. Ao contrário do senso comum, o desempenho dos governos estaduais e municipais foi muito melhor do que o do governo federal neste século. Muito dessa tendência pode ser explicada pela mudança cultural promovida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que alcança muito mais aqueles governos do que a União, que sequer aceita se submeter a um limite básico de endividamento. Aliás, talvez isso explique por que algumas ex-autoridades econômicas suponham que a LRF falhou ou fracassou porque eles nunca se submeteram aos mesmos rigores daquela lei impostos aos governadores, prefeitos e seus secretários. As estatísticas divulgadas pelo Banco Central e mais usadas (embora algo incompletas e inadequadas) mostram que, entre 2001 e setembro de 2022, a dívida líquida do governo geral aumentou em 9,7 pontos do PIB (para 59% do PIB), mas com um desempenho completamente antagônico entre as três esferas de governo: queda de 1,7 pontos nos municípios (cuja dívida pode desaparecer nos próximos meses) e de 7 pontos do produto nos estados, na contramão do salto de mais de 18 pontos na dívida federal (que passou a superar os 50 pontos do PIB). Ressalvado que o dado mais recente dos governos subnacionais já reflete a perda de receita com a desoneração de combustíveis enquanto o federal aumentava sua arrecadação às custas dos mesmos produtos, nos mesmos períodos. Marcante também é o desconhecimento do que se passa com o gasto público no Brasil, em que se alega que disciplina fiscal seria assegurada por limitar a federal. Ignorando que, em 2021, conforme dados consolidados pelo Tesouro Nacional, apontam que aquele governo responde por apenas 51% da despesa primária nacional — e menos ainda se computada apenas a folha salarial de servidores ativos — ou irrisórios 15%, no caso da compra de bens, que é o parâmetro mais próximo do que seja uma despesa discricionária. Isso se reflete também na divisão funcional em que, na sua execução, segundo a mesma fonte, a União também responde por apenas 28% da despesa pública nacional com educação, 32% da saúde, 24% de transporte e 11% da segurança pública. Enquanto a União se converteu no grande ente transferidor de renda da economia, desde benefícios previdenciários e assistenciais, até a juros, os estados e os municípios respondem por parcela crescente e majoritária da demanda efetiva do governo geral, como dos mais descentralizados do mundo. Da execução das políticas sociais básicas até muito das outras políticas, como ambientais e até mesmo a tributária, os governos estaduais e municipais são participantes relevantes ou mesmo dominantes, conforme a função governamental. No Brasil, a instância central de governo tem se limitado a ser apenas mais um membro da federação. A pandemia de Covid-19 ajudou a escancarar o fato de que o governo federal, mesmo antes do governo Bolsonaro, já tinha abdicado de liderar politicamente e coordenar administrativamente a federação. Cenário ainda pior foi construído nos últimos quatro anos, quando a esfera central de governo se transformou em um centro de provocações e conflitos com demais governos e outros Poderes. A instituição de mecanismos de coordenação mais adequados e coerentes entre os níveis de governo passa pelo desenvolvimento de processos (formais e informais) de diálogos intergovernamentais (verticais e horizontais) que promovam a coordenação, cooperação e tomada de decisão conjunta [1]. Governadores precisam formalizar a criação de um colegiado da mesma forma que prefeitos já possuem ao menos dois. De alguma forma, essas frentes dos chefes de Executivo regionais deveriam coordenar e definir estratégias e diretrizes para nortear a atuação dos representantes dos mesmos governos em diferentes fóruns setoriais — como na educação, saúde, segurança até em tributação e fiscalidade. Ora os arranjos e as relações podem ser cooperativos, ora podem ser consultivos, as vezes até podem ser mandatórios. Os fóruns intergovernamentais, por sua vez, podem melhorar o funcionamento de sistemas multiníveis por meio de acordos executivos/legislativos, cuja durabilidade e aceitação política depende de fatores como ratificação legislativa e aberturas para futuras revisões. Tais fóruns podem auxiliar no esclarecimento, coordenação e desenvolvimento de: reformas, políticas regulatórias, ações de provisão conjunta de bens e serviços públicos e acordos para o compartilhamento de despesas e receitas. Temáticas que envolvem uma dependência mútua entre as partes podem ser usadas para promover o diálogo, por exemplo questões relacionadas à simplicidade de informação e feedback, transparência de regras, engajamento transversal, credibilidade e propriedade. Esses serão alguns dos temas de fórum a ser realizado em Lisboa, entre 22 e 24 de fevereiro, que pretende alertar e aproximar as novas autoridades governamentais, parlamentares e formadores de opinião no Brasil para as discussões entorno do novo arcabouço institucional para as finanças públicas que já vinha ocorrendo na Europa e no resto do mundo e agora se tornou exigência legislativa no Brasil. Organizado pelo Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe), o Fórum "Futuro da Governança Fiscal" trará expositores estrangeiros, membros de organismos multilaterais, professores e pesquisadores internacionais, para apresentarem desafios e experiências recentes no mundo, que serão então debatidas e comentadas por especialistas e policymakers brasileiros. Aspectos conceituais e teóricos, experiências internacionais selecionadas e perspectivas brasileiras, serão os três painéis diários em acordo com temática da agenda de cada dia do evento. Para além da política fiscal, o Fórum tratará de questões do federalismo fiscal e da transformação digital do setor público. Uma excelente oportunidade para aproveitar os dias de Carnaval em Lisboa e, logo em seguida, participar de discussões de grande impacto para o Brasil. As inscrições já estão abertas e são gratuitas [2]. Enfim, o novo governo federal tem a oportunidade de se transformar em governo nacional, de direito e de fato. Reconstruir o país e sobretudo o poder público exigirá necessariamente um esforço de diálogo e pactuação na Federação brasileira, que se espera venha se dar sob novas bases. *Texto adaptado de Afonso, J., Castro, K., & Motta, B. (2023). Diálogo e Reconstrução Federativa. Conjuntura Econômica. Janeiro. Volume 77. [1] Ver OCDE. Making Decentralisation Work: A Handbook for Policy-Makers. Paris: OECD, 2019. 204 p. [2] https://forumbrasileuropa.org/forum-futuro-da-governanca-fiscal/
2023-02-08T10:05-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-08/afonso-motta-reintegracao-federativa-desenvolvimento
academia
Opinião
Daniel Silva: Discussão no STF sobre o curso de medicina
Há uma discussão acirrada no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à autorização de cursos de medicina no país, que é objeto de Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 81, ajuizada pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). A referida associação defende a constitucionalidade do artigo 3º, caput, parágrafos e incisos, da Lei nº 12.871/2013, que implementou procedimento a ser adotado no tocante à autorização para o funcionamento de cursos de medicina no âmbito do Programa Mais Médicos. Com essa defesa enfática, a Anup objetiva cautelarmente suspender a autorização de todos os cursos de medicina no país que não tenham sido autorizados por meio de chamamento público da Lei do Mais Médicos, após a publicação desta. Em contraposição, várias entidades representativas de ensino superior apresentaram pedidos para ingressarem na lide como amicus curiae (amigo da corte), figura processual que tem a função de subsidiar o STF com fundamentos necessários para a resolução da demanda. Essas entidades argumentam basicamente que o STF já declarou a constitucionalidade do artigo 3º da Lei do Mais Médicos em função do que já fora decidido na ADI nº 5.053/DF e que a Lei do Mais Médicos não veda a abertura de cursos de Medicina por intermédio da avaliação feita por meio da Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Em que pese haver outros fundamentos que objetivam desqualificar os argumentos deduzidos pela Anup, a discussão primordial é saber se a Lei do Mais Médicos vedaria a autorização de novos cursos de medicina avaliados por meio da Lei do Sinaes, o que seria objeto dessa análise. Como é cediço, o artigo 3º da Lei nº 12.871, de 2013, a chamada Lei dos Mais Médicos, foi instituído para implementar uma política pública que objetivava diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de diminuir as desigualdades regionais na área de saúde e aprimorar a formação médica no país, além de proporcionar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação. Esse fundamento está previsto na Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 24/2013 MS/MEC/MP, da então Medida Provisória nº 621, de 8 de julho de 2013, convertida na Lei nº 12.871, de 2013, que instituiu o programa. A referida EMI nº 24/2013 ainda enfatizava a baixa proporção de médicos no Brasil, esclarecendo: 12. A proporção de médico/1.000 habitantes constatadas no Brasil é menor do que em outros países latino-americanos com perfil socioeconômico semelhante ou países que têm sistemas universais de saúde, a saber: Canadá 2,0; Reino Unido 2,7; Argentina 3,2; Uruguai 3,7; Portugal 3,9; Espanha 4,0 e Cuba 6,7 (Estadísticas Sanitarias Mundiales de 2011 e 2012 – Organização Mundial da Saúde – OMS). 19. A população brasileira percebe e manifesta o desconforto com essa escassez de médicos, que tem impacto no acesso ao SUS. Em estudo do Sistema de Indicadores de Percepção Social, realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em 2011, 58,1% dos 2.773 entrevistados disseram que a falta de médicos é o principal problema do SUS. No mesmo estudo, a resposta mais frequente como sugestão de melhoria para o sistema de saúde foi de aumentar o número de médicos. 20. Desse modo, encontramos um quadro de extrema gravidade, no qual alguns estados apresentam um número insuficiente de médicos e de vagas de ingresso na graduação, com ausência de expectativa de reversão desse quadro a curto e médio prazos, caso não haja medidas indutoras implementadas pelo Estado. Nesse cenário, a expansão de 2.415 vagas de cursos de medicina, anunciada pelo MEC em 2012, só contribuiria para atingir o número de 2,7 médicos a cada 1.000 habitantes no ano de 2035. 21. O Ministério da Educação autorizou em 2012 a oferta de cerca de 800 vagas privadas em cursos de medicina. Em que pese o aumento de vagas, o atual momento exige a adoção de iniciativas estatais para criar e ampliar vagas em cursos de medicina nos vazios de formação e de assistência, a partir do papel indutor do Estado na regulação da educação superior. Com isso, incentiva-se a criação de instituições de educação superior voltadas à área da saúde e à oferta de cursos de medicina nessas regiões. A autorização para oferta de cursos de medicina obedecerá a uma regulação educacional específica, com a publicação de chamamentos públicos às instituições de educação superior interessadas em se habilitar para atuação nas regiões que apresentem vulnerabilidade social, conforme critérios a serem estabelecidos pelo Ministério da Educação. 22. Além disso, entende-se que é fundamental agregar novas ações para garantir a ampliação da formação de médicos para a atenção básica no país, possibilitando à população brasileira o acesso ao sistema de saúde de qualidade. 23. Uma das iniciativas é a ampliação de 12 mil novas vagas de residência médica acompanhadas da oferta de bolsas, a serem implementadas até 2017, uma vez que se entende a importância dessa modalidade para a fixação de profissionais. Estudo recente denominado Migramed, do Observatório de Recursos Humanos de São Paulo/ObservaRH, de 2012, demonstra que 86% dos médicos permanecem no local em que cursaram a graduação e a residência médica. Nos termos da EMI nº 24/2013, a Lei nº 12.871, de 2013, seria uma política pública que incentivaria a criação de instituições de ensino superior voltadas à oferta de cursos de medicina em regiões carentes. Os chamamentos públicos sempre foram franqueados às instituições de ensino superior que desejassem se habilitar para atuar nessas regiões, não estabelecendo qualquer hipótese de suspensão ou impossibilidade de autorização de cursos por meio da Lei nº 10.861, de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). É justamente esse o cerne da questão, pois a Lei n. 12.871, de 2013, assim como atesta a sua exposição de motivos, estabelece uma política pública indutora de criação de instituições e cursos de medicina em regiões carentes, mas não impossibilita a autorização de cursos em outras regiões por meio da Lei do Sinaes (Lei nº 10.861, de 2004). A Constituição estabelece, em seu artigo 209, que o ensino é "livre à iniciativa privada", desde que cumpra as normas gerais da educação nacional, que seja autorizado e que tenha a qualidade avaliada pelo poder público. O termo "livre iniciativa" se refere a liberdade de pleitear, que não afastará a avaliação e a autorização. Contra esse princípio expresso, não cabe interpretação ou mesmo lei que esgote o núcleo central do comando constitucional, ou seja, é inviável qualquer posicionamento, lei ou portaria que ao final proíba a "livre iniciativa na área de ensino". Ao tratar dessa questão, a Lei nº 9.394, de 1996, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), estatuiu de forma clara as regras de autorização de cursos, segundo a qual toda autorização está vinculada à respectiva avaliação, ou seja, o ato regulatório de autorizar a abertura de uma instituição de ensino superior e seus cursos está vinculado estritamente à avaliação dos critérios educacionais da referida instituição. Seguindo essa lógica, o Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação no sistema federal de ensino, estabelece que o Ministério da Educação definirá calendário anual de abertura do protocolo de ingresso e conclusão de processos regulatórios em sistema próprio, para fins de expedição dos atos autorizativos e de suas modificações, não excluindo o curso de medicina. O referido Decreto, ao tratar da autorização de cursos, estabeleceu no artigo 41, §2º, que nos processos de autorização de cursos de graduação em medicina, realizados por meio de chamamento público, serão observadas as disposições da Lei nº 12.871, de 2013. Por uma questão de lógica booleana, a própria norma regulatória trata os processos de chamamento público como um dos meios para a autorização do curso de medicina, mas não o único. Para este trecho, não há outra interpretação literal, sistemática ou conforme a constituição senão a de que somente os processos que usarem o chamamento públicos ficariam sujeitos à Lei do Mais Médicos (Lei 12.871/2013). Os demais processos de autorização de medicina, por conclusão óbvia, deveriam seguir os trâmites regulares, assim como fora referendado pela Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 24/2013 MS/MEC/MP. Respeitando a Constituição Federal e a Norma Infraconstitucional já mencionada, conclui-se que devem coexistir dois fluxos de processos de autorização do Curso de Medicina: 1. o processo regular de autorização, similar aos demais cursos, e 2. o chamamento público, exceção criada pela Lei do Programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013). É imprescindível ratificar que a legislação em questão prevê rito especial para o chamamento público sem, em momento algum, proibir o processo regular de autorização. Esse é o entendimento revelado nas diversas manifestações judiciais exaradas no país no sentido de que a sistemática prevista pela Lei do Mais Médicos não deve ser a única para a autorização de novos cursos de medicina, tendo em vista que se trata de nova espécie de autorização que deve coexistir com via ordinária, à luz dos princípios constitucionais da isonomia e da livre iniciativa. No contexto da ADC nº 81, que tramita no STF, o relator da ação, Ministro Gilmar Mendes, determinou com que o Ministério da Educação (MEC) e a Advocacia Geral da República (AGU) apresentassem informações acerca das ações que tratavam sobre a abertura de novos cursos de medicina. Da informação prestada é possível concluir que nenhum processo judicial determinou a abertura de curso diretamente por via judicial, ou seja, não há abertura de curso por força de determinação judicial (tutela de urgência ou liminar), sendo todas as determinações judiciais objetivavam a abertura de processo de avaliação que deveria ser feita pelo próprio MEC/Inep. Na prática, não há absolutamente nenhuma ilegalidade em requerer que o MEC avalie a instituição para fins de autorização de curso, assim como acontece regularmente com os demais cursos ofertados pelas IES. Todo ato administrativo de autorização, no final, decorre do próprio Ministério da Educação. Esse fato, por si só, faz emergir a dúvida sobre o pano de fundo do ajuizamento dessa ação, o qual foi abordado por diversas entidades representativas em suas petições de amicus curiae na ADC nº 81. Por outro lado, dos processos citados para fins de autorização de curso de medicina na ADC nº 81, parte deles discute justamente editais dos Mais Médicos em função de litígios decorrentes de conflitos técnicos havidos nos editais de 2014, 2015, e 2018. Como se trata de chamamento público, muito similar ao procedimento licitatório, os editais estabelecem diversas etapas a serem cumpridas pelas IES, como etapas de habilitação, classificação e recursos. Essas etapas sempre foram objeto de diversos questionamentos judiciais. Por todas essas razões, não restam dúvidas que o pano de fundo da discussão judicial no STF sobre o curso de medicina não está afeto exclusivamente aos procedimentos de autorização, haja vista que existem duas formas de autorização regulares e que podem conviver harmoniosamente. A instituição que desejar participar do edital de chamamento público do Programa Mais Médicos, objeto da Lei nº 12.871, de 2013, pode se credenciar a participação desse certame. Da mesma forma, nada obsta que uma instituição de ensino superior se submeta à avaliação prévia dos procedimentos regulatórios para fins de autorização com base na Lei nº 10.861, de 2004, a Lei do Sinaes. Se são dois procedimentos legais e convergentes, qual seria a razão pela qual inumar uma dessas vias? Se ambas são avaliadas pelo próprio MEC, não há que se falar em falta de qualidade ou falta de critério para identificar as regiões prioritárias para o SUS passíveis de autorização. Por essa razão, o pano de fundo da discussão judicial no STF sobre o curso de medicina refere-se a elementos que certamente não estão em discussão no STF.
2023-02-09T18:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-09/daniel-silva-discussao-stf-curso-medicina
academia
Think tank
Cedes lança livro com ideias para aprimorar o sistema de Justiça
O Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) acaba de lançar o livro Análise Econômica do Direito: Propostas para Aperfeiçoar o Sistema de Justiça. Reunindo 46 artigos escritos por alunos do programa de mestrado profissional do instituto, a obra sugere iniciativas capazes de influenciar de forma positiva a Justiça e a sociedade brasileiras. Coordenado pelos professores Erik Navarro Wolkart e Ana Carolina Bariviera Barros, o livro aborda temas relacionados aos impactos da tecnologia na Economia e no Direito, como ESG, blockchain, smart contracts e processos digitais. A obra também reúne reflexões sobre liberdade econômica, acesso à Justiça, instrumentos para tomada de decisões, economia informal, aplicação de medidas socioeducativas e soft skills em Direito. O prefácio é de autoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça. Na avaliação do magistrado, os estudos de Direito e Economia apresentados na obra propiciam ao jurista uma perspectiva capaz de "orientar a interpretação das normas vigentes ou inspirar modificações desejáveis no ordenamento jurídico". Quem também contribui com a obra é o professor doutor Luciano Timm, autor do texto de apresentação. Para ele, a análise econômica do Direito é ferramenta analítica que fornece importantes contribuições aos operadores do Direito. "Trata-se de metodologia consequencialista, por levar em conta as possíveis consequências da aplicação das leis e das decisões judiciais", explica ele. Lançado pela editora do Cedes, Análise Econômica do Direito compila, em 719 páginas, artigos desenvolvidos com os subsídios do mestrado em  Precedentes Judiciais, Tecnologia e Gestão de Casos. Os autores são mestrandos e mestrandas da instituição e atuam como juízes, promotores, defensores, notários, diretores jurídicos de empresas e advogados. Sediado na capital paulista e presidido pelos professores João Grandino Rodas e Thomas Law, o Cedes é um think tank dedicado à promoção de pesquisas sobre questões jurídicas, econômicas e sociais.
2023-02-09T17:57-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-09/cedes-lanca-livro-ideias-aprimorar-sistema-justica
academia
Opinião
Soraia Mendes: O que esperar do Judiciário no genocídio yanomami
Nada, muito menos o mundo jurídico, permaneceu o mesmo desde que, no final da 2ª Grande Guerra, foram descortinados os crimes do nazismo, em especial os cometidos nos campos de concentração. No cenário do extermínio, as imagens de pessoas esquálidas e marcadas por toda sorte de sevícias imprimiram o horror na retina da humanidade e foram decisivas para a mudança de paradigma que resultou em um sistema jurídico internacional de proteção e garantia dos direitos humanos. Um sistema que, com o tempo, a partir de outros retratos de genocídios, também crus e sem retoques — de uma mulher armênia ou de uma criança tutsi, por exemplo — foi sendo aperfeiçoado para que cada vez mais ganhasse destaque a necessária atuação das instâncias penais nacionais e internacionais em prol da realização da justiça, da verdade, da memória e da reparação. Genocídios deveriam ser apenas um conjunto histórico de registros fotográficos e cinematográficos que mobilizaram no passado a luta em favor dos direitos humanos de todos os povos. Mas, não é assim. Desgraçadamente, em pleno 2023, em carne e osso, as imagens de yanomamis foram postas ante nossos olhos para também exigir do sistema justiça uma resposta. Desde 1956, em decorrência dos compromissos internacionais com os direitos humanos no pós-guerra, o Brasil tem em seu arcabouço legal norma que define e pune o genocídio como o crime consistente em "destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso", seja diretamente matando os membros do grupo, seja causando-lhes lesões graves à integridade física ou mental ou seja submetendo-os intencionalmente a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial. Daí porque, ancorado nessa norma, por iniciativa do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, a Polícia Federal foi instada a investigar a possível prática desse delito contra o povo indígena yanomami, em Roraima. Importante e louvável a postura vinda do Executivo. Assim como igualmente também o é o recentíssimo despacho do ministro Barroso no mesmo sentido de promover a investigação, por sua vez a pedido da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), nos autos de ação em trâmite perante o Supremo. A Lei 2.889/56 [1] é clara. Assim como claras e muitas hão de ser as provas dos interesses econômicos para os quais a (r)existência dos povos indígenas é um empecilho. Contudo, é preciso desde já refletir sobre o tipo de intervenção judicial que se fará necessária em um passo seguinte à investigação para que efetivamente os maiores e verdadeiros orquestradores da tentativa de extermínio yanomami (e de tantos outros crimes) sejam punidos. Ou seja, será imprescindível a eclosão de uma magistratura letrada e comprometida com os direitos humanos e capaz de analisar a realidade da tragédia brasileira nos últimos tempos. Os ataques aos direitos humanos no Brasil nos exigem repensa-los sob o prisma de sua indivisibilidade, interdependência e inter relação, o que pressupõe entender como se articulam a dinâmica econômica e o projeto de corrosão do processo democrático nos dias atuais. Sem esse exercício (que não é meramente teórico!) não me parece que será possível responsabilizar os próceres da destruição estrutural ocorrida ao longo dos últimos quatro anos em nosso país. Alinhados os grandes interesses econômicos e o ódio racista, misógino, LGBTIfóbico e político atuaram, a um só tempo, para fazer diminuir o Estado, para eliminar qualquer forma de proteção jurídica às relações de trabalho, à cultura, ao meio ambiente, ao livre exercício da sexualidade, à autonomia dos corpos etc., e para autorizar — por ação ou omissão — o extermínio de inimigos variados tais como LGBTs, comunistas, indígenas, feministas, quilombolas, professores, jornalistas, artistas e ambientalistas. O genocídio yanomami está neste contexto de violações aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais promovidos pela aliança entre o neoliberalismo e o bolsonarismo raiz. Diante desse quadro tocará ao sistema de justiça enfrentar a questão em aberto de que a devida punição dos culpados dependerá — e muito — da superação de uma perspectiva penalista arcaica, ainda majoritária, e que passa ao largo, por exemplo, da recomendação do CNJ segundo a qual os órgãos do Poder Judiciário brasileiro devem observar os "tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos" (Recomendação 123/CNJ, 7/1/2022) [2]. O crime de genocídio é considerado a mais grave espécie de delito contra a humanidade. E a dimensão de sua interpretação será de particular importância para o desfecho das violações cometidas contra os yanomamis. Para tanto, um bom início de reflexão, exemplificativamente, poderia ser o caso Darfur, levado ao Tribunal Penal Internacional. Paradigmático por diversos aspectos, que aqui o tempo e espaço não me permitem comentar, naquele caso alguns dos fatos denunciados tiveram origem em disputa pela terra entre pastores nômades e fazendeiros em Darfur, no Sudão, entre 2003 e 2004, quando estava no poder o presidente Omar al-Bashir, apoiador e apoiado por grupos paramilitares. De acordo com a interpretação da procuradoria do TPI, a destruição de poços de água, assim como o impedimento ao acesso a água e a tomada forçada de terras caracterizaram o crime de genocídio. Ou seja, nada diferente, em essência, dos atos praticados contra os yanomamis pela concertação entre os interesses econômicos, a criminalidade organizada do garimpo e o ódio e desprezo pelos povos indígenas marcadamente característico do governo anterior. Em síntese, no caso específico do crime de genocídio praticado contra os yanomamis — mas, também, dos tantos outros crimes cometidos nestes últimos quatro anos — a tarefa que será entregue ao Poder Judiciário demandará, como disse acima, em letramento em direitos humanos e em uma virada epistêmica em direção a um direito penal constitucional e convencional. Enfim... assim como o moleiro do conto de Andrieux, espero eu que existam juízes e juízas em Berlim para isso!   Nota [1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm [2] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf
2023-02-09T16:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-09/soraia-mendes-esperar-judiciario-genocidio-yanomami
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Opinião
Opinião: Se não nas Arcadas, onde?
Em razão do recente debate público entre representantes da gestão Travessia do Centro Acadêmico XI de Agosto e o professor Floriano de Azevedo Marques Neto, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), nós, representantes dos alunos de graduação perante os órgãos deliberativos da faculdade, entendemos ser necessário expor o sentimento de parcela significativa do corpo discente sobre a questão do retorno da professora Janaína Paschoal às salas de aula do Largo de São Francisco. Essa polêmica, que ganhou repercussão nos últimos dias, traz à tona um debate muito caro à faculdade sobre liberdade de expressão e que, de maneira nenhuma, deve ser reduzido a esse caso em específico. Estamos falando do debate público, a práxis de tudo aquilo que aprendemos no dia a dia na sala de aula, a materialização da dialética, a grande marca de uma democracia. O território livre das Arcadas, em seus quase 200 anos de história, vivenciou — e,  por diversas vezes, protagonizou — os embates políticos mais relevantes da nação. Só no último século, pode-se dar alguns exemplos: em 1932, o Largo foi o epicentro da revolução constitucionalista, que opôs os estudantes e professores liberais à opressão do regime provisório getulista. Se nos tempos de chumbo da ditadura militar, as Arcadas contribuíram na reunião que desenhou o Ato Institucional nº 5, nas Arcadas também foi lida a Carta aos Brasileiros, em que o professor Goffredo da Silva Telles Jr. não se calou frente ao autoritarismo e exigiu o Estado de Direito, já. Se o debate plural, com as divergências inerentes à própria democracia, não puder ser vivenciado  nas Arcadas, onde será? Ressalte-se que, até mesmo durante a ditadura militar (1964-1985), ainda assim os  professores divergentes aos ideais do militarismo no poder não foram exonerados. Ao se colocar como representante dos estudantes do Largo de São Francisco, é necessário promover, no mínimo, discussão nas Arcadas — o completo oposto da postura adotada pela atual gestão Travessia, do Centro Acadêmico XI de Agosto. Que não se tome o presente posicionamento como uma defesa dos ideais professados pela professora Janaína Paschoal durante os últimos anos. Suas visões reacionárias e seu apoio ao bolsonarismo devem ser combatidos politicamente. Se pela liberdade de cátedra sentir-se legitimada a defender o autoritarismo, o golpismo ou qualquer que seja a pauta que atente ao Estado democrático de Direito, esta faculdade já deixou claro que não tolerará tais posicionamentos. Repactuamos o compromisso firmado no XI de Agosto de 2022: as instâncias adequadas, nesse caso, serão acionadas e providências serão tomadas. Mas, em uma faculdade de direito, é vital refletir, antes de qualquer atitude precipitada, se houve conduta irregular cometida pela professora no âmbito acadêmico. É preciso ter muito cuidado ao se querer impedir que um (ou uma) docente retome sua cátedra. Casos assim são excepcionais, contudo, necessários em circunstâncias específicas — e que jamais serão balizadas por divergências políticas dentro dos limites salutares. Assim, materializar esse debate delicado na figura da Janaína Paschoal é esvaziar o discurso e banalizar a pluralidade democrática tão cara ao Largo de São Francisco. Nos tempos sombrios em que vivemos, dizer o óbvio é quase que insuficiente, é preciso desenhar. O debate levantado pela indigesta nota do Centro Acadêmico XI de Agosto, sob a gestão Travessia, revela muito sobre a realidade da política brasileira, marcada essencialmente pelo apagamento do caráter plural inerente às democracias. Um dos legados do bolsonarismo foi justamente a intolerância àquilo que em qualquer grau gera divergência. Abrir esse perigoso precedente pode permitir que professores de esquerda, sejam silenciados ou até mesmo removidos arbitrariamente de seus cargos, em governos de extrema-direita — como, aliás, bolsonaristas tentaram fazer com o professor Conrado Hubner Mendes, se a memória não for seletiva. A defesa da liberdade de cátedra não pode ser feita de maneira subjetiva. Como garantia jurídica que é, deve ser lida objetivamente. A professora Janaína foi aprovada em concurso público para o cargo que ocupa e tem o direito e dever de exercê-lo, de acordo com o Estatuto da Universidade de São Paulo. Quem pretende cerceá-la desse direito parece não ter compreendido que a academia é o espaço de dissenso intelectual e não de quem pretende falar mais alto. A responsabilização política da deputada Janaína já foi dada pela sua fraca atuação na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) e pelo ainda mais pífio desempenho nas urnas. Na academia, o jogo é outro. Se não nas Arcadas, onde?
2023-02-09T12:01-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-09/opiniao-nao-arcadas-onde
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Senso Incomum
Precedentes: ainda e sempre a questão "que e qual sistema"
1. A notícia sobre o acordo de não persecução para o deputado "Barroso homologa acordo para Silas Câmara pagar R$ 242 mil", dizem as manchetes. Vamos à notícia. "No julgamento da ação penal pelo Plenário, Barroso havia votado pela condenação no crime de peculato a uma pena de cinco anos e três meses de prisão, mas a análise do caso foi suspensa por pedido de vista conjunto dos ministros André Mendonça e Dias Toffoli. Na ocasião, o ministro Barroso ressaltou que, considerando a pena proposta, a prescrição ocorreria a partir de 2 de dezembro de 2022." Segue a matéria, na reportagem deste ConJur — e destaco: "O ministro destacou que entende não ser cabível acordo nesses moldes após o recebimento da denúncia, mas que, a um dia da prescrição, o procedimento 'se apresenta como a via mais adequada para minimizar os prejuízos ao erário'." 2. O que é distinguishing? Critério pessoal se enquadra? A primeira coisa: precedentes só não se aplicam quando se faz distinguishing. Eventual questão econômica, subjetivismos ou coisas do gênero como pragmatismos ou utilitarismos, não "fazem" a distinguishing. Caso contrário, teríamos algo como "mesmo que exista farta jurisprudência em um determinado sentido, o critério pessoal do julgador poderá valer mais". Isto é: no caso acima, o resultado só poderia ser um: não aplicação do benefício. Custo: prescrição. Que, frise-se, é uma garantia e faz parte do jogo jus democrático. Claro: isso se existisse uma "cultura de precedentes" paradoxalmente reclamada pelos tribunais e não respeitada. As razões? Expliquei-as neste texto: Equívocos sobre a cultura de precedentes no Brasil. Texto longo, confesso. Para a comunidade jurídica, muito extenso. 3. Quando uma fundamentação vem acompanhada de um "mas" Sigo. Juízos pragmatistas sempre (me) preocupam. Quando uma fundamentação vem com um "mas", e segue esse "mas" justificando com juízos consequencialistas, dou um passo atrás. E vou verificar a decisão. Repito a decisão na especificidade: "Embora entenda pelo não cabimento do acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia, as peculiaridades do caso concreto me levam a admiti-lo, em caráter excepcional". Com todo o respeito que o ministro Barroso sabe que tenho por ele, discordo. Faço por amor ao debate jurídico, com a lhaneza de quem vê no ministro um aliado pela integridade do direito. Ao trabalho. Começando com uma observação: eu não quero discutir o ANPP. Porque sou a favor do acordo. É uma espécie de garantia do réu. Sou garantista. Só que nem é esse o ponto. Afinal, o ministro erra na decisão, mas acerta na concepção de que ANPP é uma garantia e pode ser aplicada mesmo nessas hipóteses. Mas é a minha posição. Portanto, quero discutir o problema à luz da teoria do direito. A decisão, em resumo, foi: sou contra, mas dadas as peculiaridades do caso concreto, é preciso minimizar prejuízos. Como já dizia o personagem Ben Stark, de Games of Thrones, tudo que vem antes do "mas" não tem valor. Fulano é um bom sujeito, mas é mau caráter... Tudo o que foi posto antes da adversativa se anula. 4. As necessárias inquietações A primeira inquietação: decisões judiciais se dão por princípio. Não por argumentos utilitaristas. Não é um cálculo de "prejuízo ao erário" que admite "excepcionalidades". Contra a lei, por exemplo, sempre vai caber uma análise econômica. Por isso que AED é um paradoxo: ela pode ser análise econômica. Mas não é "do direito". Afinal, se é econômica, não é jurídica. Justamente porque, como disse: sempre vai caber uma "análise econômica" para justificar juízos ad hoc. E o direito surge exatamente para evitar juízos ad hoc. O que me leva ao ponto principal destas reflexões. O ministro é contra o acordo. Mas não é — a depender das "peculiaridades do caso concreto". Vejamos didaticamente, passo a passo. Ponto um. Pergunto aos advogados de plantão: algum caso não é peculiar? Todo caso tem as suas peculiaridades, afinal. Todo hard case é um easy case ainda não compreendido. Todo easy case ainda não compreendido é um hard case. Ponto dois. As "peculiaridades" de um caso permitiram que o ministro afastasse até mesmo seu entendimento sobre o acordo de não persecução. Mas então vejamos: temos um juízo da Suprema Corte dizendo que as peculiaridades de um caso permitem que se suspenda a correta aplicação do direito (no caso, aquilo que o próprio ministro acredita ser a correta aplicação do direito). Pergunto: o que impede um tribunal, então, de reconhecer um precedente da corte como precedente, entender que não se trata de distinguishing, mas dizer que as peculiaridades do caso afastam sua aplicação em razão de suas consequências? Porque, vejam, e faço uma pausa antes do ponto três — que decorre do ponto dois. Discutir o que significa um precedente, qual é seu alcance e sua força normativa, já é uma questão de teoria do direito. Se as "peculiaridades do caso" permitem que se afaste o entendimento (que se entende) correto sobre o ANPP, o que impede que as "peculiaridades do caso" sirvam para que um tribunal não aplique um precedente? Eis por que o raciocínio fragiliza o tribunal. Ponto três. Eis também porque fragiliza o próprio direito. Porque chancela o juízo consequencialista que afasta (o que se entende por) um padrão jurídico a depender de "peculiaridades". Todo caso é um caso "excepcional". Que o diga aquele cujo direito está em jogo, pois não? Na pirâmide do sistema, não podemos colocar "peculiaridades do caso concreto" no topo. Elas não podem valer mais do que a própria lei. Por uma questão de princípio. 5. Pena que o caso do meu cliente, apesar de ter peculiaridades, não as teve reconhecidas "como" E sei que o ministro Barroso, democrata que é, entenderá minhas respeitosas inquietações. Só queria que esse julgamento tivesse ocorrido antes de um julgamento do qual participei há poucos dias e levei um 3x0 do TJ-RS. Observe-se: eu aleguei que a ANPP deveria ser aplicada a um caso em face de suas peculiaridades. Pois é. Um dos desembargadores disse mais ou menos assim: "ora, é obvio que não cabe". Pois então. Pensei: por que seria tão óbvio? É obvio? Pois não é que meu cliente preenchia os requisitos "peculiaridades concretas"? O problema foi que o TJ assim não entendeu... Como se faz, então? É de se perguntar de novo: o que é isto — a cultura de precedentes? Pedir mais estabilidade? Com essa "cultura de precedentes" pela qual precedentes são feitos para o futuro? Como já disse várias vezes, penso que o furo é mais em baixo. Enquanto pensarmos que precedentes são feitos para o futuro, teremos pela frente um imenso passado a desvelar.
2023-02-09T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-09/senso-incomum-precedentes-ainda-sempre-questao-qual-sistema
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Opinião
Paulo Eduardo Razuk: A Suprema Corte do Reino Unido
O Reino Unido é formado por quatro países: Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte. É uma monarquia constitucional hereditária, em que a Chefia de Estado é exercida pelo rei Carlos 3º. Os demais poderes cabem ao governo, ao parlamento e à Suprema Corte. Até 2005, não havia uma Suprema Corte separada do Parlamento, em que a função judicial de instância máxima era desempenhada pelos Law Lords, integrantes da House of Lords, câmara alta do Parlamento. Naquele ano, foi criada por reforma constitucional a Suprema Corte, inaugurada pela rainha Elizabeth 2ª em outubro de 2009. Foi instalada em um edifício histórico construído em 1913, em estilo neogótico. A Corte é integrada por 12 juízes, chamados Justices, mas as turmas julgadoras são compostas sempre em número ímpar por cinco, sete ou nove membros, a depender da importância e da complexidade do caso. A causa mais importante lá julgada foi sobre o artigo 50 do Tratado de Lisboa, a respeito da saída do Reino Unido da União Europeia, quando funcionaram 11 juízes, tendo em vista a relevância do tema. A Suprema Corte desempenha papel importante na interpretação das leis, a propósito da sua constitucionalidade. Julga processos civis de todas as partes do Reino Unido, bem como processos criminais, excluída a Escócia, com sistema próprio nesse mister. Não há direito automático de recurso para a Suprema Corte. Para tanto, deve ser considerado um nível suficiente de incerteza quanto à questão controvertida, para que a decisão venha a constituir um precedente a ser observado pelos tribunais e juízes inferiores. É que lá vigora o sistema jurídico da common law, próprio do direito anglo-saxônico. Stare decisis é a política que requer que as cortes subordinadas à superior que estabeleceu o precedente sigam-no e que não disturbem um ponto estabelecido. Editado o precedente, a Corte continuará a aderir àquele precedente, aplicando-o a casos futuros nos quais os fatos relevantes para fins decisórios sejam substancialmente iguais, posto que as partes não sejam as mesmas. A doutrina do stare decisis não comporta a edição de súmulas, que contenham proposições jurídicas de caráter genérico. Encontrados os precedentes, faz-se o cotejo dos fatos relacionados aos casos anteriores com o fato objeto do caso em julgamento. É uma operação lógico-indutiva, em que a regra geral é extraída pelo aplicador do exame dos casos anteriores, mediante a comparação dos fatos, para aplicá-la ao caso concreto. Verifica-se então que o precedente vinculante do stare decisis da common law nada tem a ver com a súmula vinculante do direito brasileiro, que contém proposição jurídica genérica, aplicável a um número indeterminado de casos. Ao aplicá-la, o juiz subsume o fato à proposição genérica da súmula vinculante, não fazendo o cotejo dos casos que motivaram a sua edição com o caso em julgamento. É uma operação lógico-dedutiva, de encontrar-se a norma no ordenamento jurídico e aplicá-la ao caso concreto. A filiação histórica da súmula vinculante não é o stare decisis da common law, mas o assento com força de lei do velho direito reinol português. Com efeito, a Lei da Boa Razão, baixada em 1769 pelo rei dom José 1º, secundado por seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e depois Marquês de Pombal, a pretexto de coibir abusos na interpretação da lei, determinou que os assentos da Casa de Suplicação de Lisboa tivessem força de lei, cominando pena de suspensão aos juízes que decidissem de maneira diversa. No Brasil Imperial, o decreto 2.684 de 1875 determinava que os assentos da Casa de Suplicação de Lisboa tomados até a Independência tivessem força de lei. Após, conferia ao Supremo Tribunal de Justiça a atribuição de baixar assentos obrigatórios para a inteligência das leis. Tal poder havia sido abolido pela República, até que a Emenda Constitucional nº 3 de 1993, modificada pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o ressuscitasse, retornando ao direito brasileiro o velho assento com força de lei, rebatizado de súmula vinculante. _________________ Fontes Cole, Charles D., Precedente Jurisprudencial — A Experiência Americana, in Revista de Processo, nº 92, outubro-dezembro de 1998, p. 71/86. Razuk, Paulo Eduardo, Súmula Vinculante: novidade no direito brasileiro?, in Tribuna do Direito, junho de 1998, p. 10. Idem, Súmula Vinculante e Stare Decisis, in Tribuna da Magistratura, setembro de 2005, p.11. Suprema Corte do Reino Unido, Guia para o Visitante e Mapa do Edifício, sem data. Aqui
2023-02-10T14:06-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-10/paulo-eduardo-razuk-suprema-corte-reino-unido
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A grande família
STF derruba leis que garantiam salário-esposa a servidor casado
Em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal invalidou leis do estado de São Paulo e do município de São Simão (SP) que instituíram o "salário-esposa", benefício pago exclusivamente a servidores públicos casados cujas mulheres não exerçam atividade remunerada. As normas foram editadas antes da proclamação da Constituição de 1988 e, na avaliação do colegiado, a verba que elas estabelecem não se encaixa nos preceitos da atual ordem constitucional. Para o Plenário, que seguiu o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, o artigo 7º, inciso XXX, da Carta da República proíbe expressamente a diferenciação de salários em razão do estado civil dos trabalhadores urbanos e rurais. Essa vedação se aplica igualmente aos servidores públicos (artigo 39, parágrafo 3º). Vantagens discriminatórias A decisão foi tomada em sessão virtual, no julgamento conjunto de arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República. O argumento era o de que as leis criaram vantagens discriminatórias e privilégio incompatível com o interesse público. Barroso considerou evidente que o pagamento de vantagem pecuniária exclusivamente a servidores casados não tem nenhum fundamento ou plausibilidade. "A concessão do chamado 'salário-esposa' aos servidores em razão, tão somente, de seu estado civil constitui desequiparação ilegítima em relação aos demais servidores solteiros, viúvos, divorciados ou, até mesmo, em regime de união estável", assinalou o relator. Apesar da declaração da inconstitucionalidade das normas, o Plenário, ao estabelecer a aplicação dos efeitos da decisão no tempo, afastou a devolução dos valores pagos até a publicação da ata de julgamento. Com informações da assessoria de imprensa do STF. ADPFs 860 e 879
2023-02-10T08:23-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-10/stf-derruba-leis-garantiam-salario-esposa-servidor-casado
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Cidadania para todos
Comitê Nacional define novas ações em prol de população de rua
O Comitê Nacional PopRuaJud, ligado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), definiu novas ações para fortalecer a Política Judiciária Nacional de Atenção a Pessoas em Situação de Rua em 2023. Entre as diretrizes estão a capacitação de magistrados, o fortalecimento das articulações interinstitucionais e multisetoriais e questões ligadas à moradia adequada. De acordo com o Relatório de Atividades do Comitê em 2022, publicado no portal do CNJ, o grupo dará continuidade às ações iniciadas no último ano e já se prepara para os próximos passos. Em março, por exemplo, a Escola Nacional da Magistratura (Enfam) deve abrir o primeiro curso presencial de capacitação sobre a política. Para o Comitê Nacional, que é coordenado pelo conselheiro Mário Goulart Maia, a intensificação dessas atividades, com a formação de juízes e juízas como replicadores da política, é muito importante. O objetivo é que os participantes possam compreender a realidade para ouvir e dar voz às pessoas em situação de rua. Nesse sentido, também estão sendo articuladas parcerias com escolas de magistratura para a ampliação dos cursos sobre a Política PopRuaJud, conforme a Resolução CNJ 425/2021. Já em maio, está prevista a realização do Encontro Nacional PopRuaJud. Para o Comitê Nacional, o evento constitui cenário propício e necessário para visibilidade e aprofundamento das questões relacionadas à população em situação de rua. Durante todo o ano de 2022, o Comitê Nacional realizou reuniões interinstitucionais nos estados para fomentar a criação dos Comitês Regionais PopRuaJud, que serão o público-alvo do Encontro. No último ano, o Comitê Nacional também fortaleceu ações regionais, como os mutirões para atendimento às pessoas em situação de rua. Em consonância à Resolução 425, o atendimento itinerante pretende assegurar o efetivo acesso à justiça a essa população. Com o apoio do CNJ, foram realizados mutirões nas cidades de Brasília, Goiânia, São Paulo, São Luís, Imperatriz, Rio de Janeiro, Porto Velho e Belo Horizonte. Dada a complexidade do assunto, é preciso manter e fortalecer a atuação em redes interinstitucionais, com participação de todos os atores dos sistemas de justiça, órgãos do executivo e legislativo, além da sociedade civil organizada, academia e movimentos sociais. "Quem está vivendo na rua tem problemas de identificação civil, de acesso a documentos, pendências criminais, questões familiares, situações de drogadição, entre outras. É preciso a conjugação de esforços interinstitucionais para enfrentar todas as barreiras que impedem o acesso à cidadania e à justiça pelas pessoas em situação de rua", diz o documento. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.
2023-02-11T10:20-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/comite-nacional-define-novas-acoes-prol-populacao-rua
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Observatório Constitucional
Tese em IRDR e o Juizado Especial: vinculação (in)constitucional?
Um dos tópicos controversos sobre a sistemática processual estabelecida pelo Código de Processo Civil de 2015 diz respeito à vinculação dos Juizados Especiais à tese firmada pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais em IRDR, conforme disposto no artigo 985, inciso I (parte final), do CPC [1], havendo discussão sobre a constitucionalidade de tal vinculação. Para parte da doutrina, essa vinculação representaria uma sujeição indevida dos Juizados Especiais Cíveis à jurisdição dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais, o que não seria admissível em vista da competência constitucionalmente estabelecida para os Juizados Especiais [2]. Temos entendimento diverso. Partimos do propósito estabelecido pelo legislador nacional, ao instituir o IRDR, instituto concebido para enfrentar a realidade de haver "posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica", o que "leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos", o que, por consequência, "fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade" [3]. Será que o regime estabelecido para os Juizados Especiais estaria imune a esse propósito estabelecido pelo legislador nacional para a jurisdição? Vale lembrar que o artigo 98, inciso I, da Constituição estabelece o dever de criação dos Juizados Especiais Cíveis para julgamento de causas cíveis de menor complexidade, tendo o Estado (o legislador nacional) se desincumbido desse mister ao editar a Lei nº 9.099, de 1995, para, revogando a Lei nº 7.244, de 1984, instituir os Juizados Especiais Cíveis e Criminais perante os Tribunais de Justiça, com o fim de melhorar qualitativamente o acesso à justiça e a prestação da tutela jurisdicional [4]. Entendemos que não há óbice constitucional à alteração desse microssistema dos Juizados Especiais Cíveis por lei ordinária nacional, para tratar da competência e das características da jurisdição prestada por esses órgãos [5], desde que mantida a essência desse microssistema. Poderia se objetar que a ausência da vinculação das decisões dos Juizados Especiais ao entendimento dos tribunais integraria a essência desse microssistema. Aqui cabe fazer a provocação: se todos os tribunais do país estão vinculados ao sistema de decisões obrigatórias previstas no CPC, por qual razão os Juizados Especiais estariam imunes aos postulados da coerência e integridade do sistema jurídico buscados pela Jurisdição? Na nossa opinião, as especificidades dos Juizados Especiais não justificam a tolerância à existência de duas interpretações para a mesma questão jurídica, sob pena de violação aos princípios da isonomia e da segurança jurídica [6]. Admitir essa incoerência no sistema jurídico implicaria relegar os jurisdicionados à sorte de sua demanda depender da sua distribuição para este ou àquele órgão [7], o que encaixa muito bem a expressão jurisprudência lotérica, de José Maria Rosa Tesheiner, no sentido de que a vitória ou sucumbência das partes se deem pela sorte de distribuição do processo para um ou outro órgão [8], situação que não convive com o Estado de Direito e o tratamento isonômico que deve ser dado aos jurisdicionados [9]. Essa opinião, no entanto, precisa ser confrontada com a decisão firmada pelo STF, no julgamento do RE 586.789 (no regime repercussão geral), no qual se assentou que não cabe aos Tribunais Regionais Federais a competência de apreciar e julgar mandados de segurança contra decisões dos Juizados Especiais Federais, ante a existência das Turmas Recursais [10]. A decisão firmada pelo STF nesse julgamento é suficiente para afastar o que estamos a defender? Entendemos que não. A primeira observação que fazemos é que o STF, nesse julgamento, ratificou o arranjo processual estabelecido pelo legislador, que expressamente previu a Turma Recursal como instância revisora. A segunda observação é que a circunstância de não haver previsão de recurso (ou mandado de segurança) para o TRF não leva necessariamente à conclusão de que certas decisões (desse TRF) não possam ser de observância obrigatória. Nesse segundo aspecto, merece ser lembrado que o Supremo Tribunal Federal, nos autos dos EDcl no RE nº 571.572-8/BA (de relatoria da ministra Ellen Gracie, DJ 27/11/2009), no regime processual anterior, criou, mesmo sem previsão legislativa expressa, inédito mecanismo para salvaguardar a uniformização da interpretação jurisprudencial no território nacional, ao ampliar as hipóteses de cabimento da reclamação constitucional perante o STJ (artigo 105, inciso I, f, da Constituição) para alcançar decisões proferidas pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099, de 1995) que se mostrassem em desacordo com a jurisprudência consolidada no âmbito daquela corte, justamente como mecanismo de preservação da autoridade das decisões do STJ. Extraímos desses julgados, assim, a compreensão de que o STF não ofereceu aos Juizados Especiais um salvo conduto para criarem uma jurisprudência que contraria decisões vinculantes. Parece convergir com essa compreensão o entendimento recente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que decidiu ser aplicável tese assentada em IRDR aos Juizados Especiais, para preservar a isonomia e a segurança jurídica, dispondo que, "embora não se atribua ao Tribunal de Justiça a competência para reapreciar as decisões dos Juizados Especiais (...) sobressai evidente opção política no sentido da sua vinculação ao microssistema de tutela de demandas repetitivas; postura que prestigia a visão molecular do processo e da jurisdição, dos valores da segurança jurídica, da igualdade na aplicação do direito" (IRDR nº 70075024752 [11]). Dando um passo além, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais firmou enunciado (nº 76) para admitir IRDR com base em demandas repetitivas em curso nos Juizados Especiais [12] (e sobre essa possibilidade, não vamos emitir juízo de valor nesse espaço). A conclusão parcial que apresentamos é no sentido de que não parece contrariar a Constituição a instituição de mecanismos voltados a preservar a coerência e a integridade na interpretação do Direito. Por outro lado, a introdução de mecanismos que perseguem a necessidade de observância da decisão judicial (proferida em IRDR) não necessariamente demanda emenda constitucional, na perspectiva de se trata de regramento processual que pode ser estabelecido pela legislação ordinária (nacional, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição). Por fim, somos da opinião de que a eficácia vinculante disposta no julgamento do IRDR não viola a garantia da independência funcional dos magistrados. Partimos da premissa de que a independência funcional é uma proteção constitucional do jurisdicionado e não pode ser invocada para que os magistrados não observem precedentes obrigatórios e "julgue conforme suas convicções, impondo sua visão de mundo em detrimento do Direito" [13]. A observância pelo magistrado às decisões vinculantes implica "um posicionamento conforme o sistema por parte do juiz, e consequentemente, íntegro". Há apenas atribuição de "um ônus extra, de fundamentar devidamente o juízo formulado, sob pena de nulidade da decisão" [14], sobretudo no afastamento de decisões obrigatórias no caso concreto [15]. E aqui se revela um ponto importante do raciocínio jurídico inerente à aplicação de decisões proferidas em IRDR. Não se deve cogitar que aplicação dos julgados em IRDR é uma simples subsunção (dedução) do texto constante nos enunciados (teses) aos casos em julgamento. Na aplicação de decisão proferida em IRDR, deve-se considerar que há uma relação indissociável entre as questões de fato e de direito que compõem a decisão do tribunal [16]. Nesse aspecto, o Tribunal de Justiça resolverá a questão jurídica repetitiva formando uma situação-fática padrão [17], que corresponderá à tese a ser aplicada pelos órgãos jurisdicionais. Essa aplicação, isto é, a descrição do fenômeno jurídico decidido pelos Tribunais de Justiça e Regionais, se dará por meio de tipos, em que se atrai um método comparativo com graduação e analogia entre os elementos fáticos firmados na tese e no caso sob exame pelo julgador [18]. Assim, o magistrado não observará a tese jurídica como uma norma geral e abstrata. De forma diversa, irá extrair e descrever o modelo da situação fática posta a julgamento e recomporá o quadro-padrão [19] organizado pelo tribunal no ato de julgamento da tese jurídica em IRDR, apurando, portanto, situações homogêneas para aplicação da consequência jurídica comum prevista na tese jurídica. Em passo de conclusão, entendemos que a vinculação dos Juizados Especiais Cíveis às decisões firmadas em IRDR pelo tribunal não nos parece inconstitucional. Na verdade, poderia se dizer que essa vinculação é constitucionalmente desejável, porque busca evitar que a prestação jurisdicional ocorra de forma fragmentada ou até mesmo contraditória para a solução da mesma questão jurídica em dois casos similares.   [1] “Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região”. Essa previsão não constava na versão final do Senado Federal (PLS 166/2010), sendo inserida em substitutivo da Câmara dos Deputados. [2] Nessa linha de entendimento, Marcos Cavalcanti e Georges Abboud sustentam que “não se pode aceitar é que uma a tese jurídica fixada em incidente processado e julgado em órgão jurisdicional estranho ao microssistema dos juizados especiais (TJs e TRFs) alcance vinculativamente os processos ali em tramitação” (ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. In: Revista de processo. 2015. p. 221-242). [3] Código de Processo Civil e normas correlatas. Exposição de Motivos. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf >. Acesso em 28.4.2019. [4] VIEIRA, Luciano Pereira. Sistemática recursal dos juizados especiais federais cíveis: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 3-4 [5] Merece ser lembrado, aliás, que o projeto de lei que originou a Lei nº 9.099, de 1995 (PL nº 1.480, de 1989, CD e nº91/90 SF) previa, em dispositivo que veio a ser vetado, a possibilidade de manejar recurso por divergência dirigido ao Tribunal de Justiça (o que demonstra uma clara tentativa em se estabelecer, desde logo, algum mecanismo de uniformização deste sistema). Importante mencionar, ainda, que as razões do veto deste dispositivo não se deram por motivos de violação à autonomia dos Juizados Especiais Cíveis, mas sim pelo aumento de recursos nos tribunais locais e prejuízo à celeridade. [6] Na prática, para que essa violação ocorresse bastaria que o valor da causa exorbitasse à competência dos Juizados Especiais Cíveis e a demanda fosse julgada pela justiça comum com aplicação da tese firmada em IRDR e outra demanda versando sobre a mesma questão de direito fosse julgada de forma diversa pelos Juizados Especiais— não observando a tese (consequência jurídica para a situação-fática padrão semelhante) firmada pelo Tribunal de Justiça (CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Op. Cit. p. 289). [7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil [de 1973]. Vol v. arts. 476 a 565. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 4-5. [8] TESHEINER, José Maria. Uniformização de jurisprudência. Revista Ajuris – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, n. 50. Nov. 1990, p. 179.. [9] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo brasileiro. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2017. p.484 [10] Eis a ementa do julgado: “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA PARA O EXAME DE MANDADO DE SEGURANÇA UTILIZADO COMO SUBSTITUTIVO RECURSAL CONTRA DECISÃO DE JUIZ FEDERAL NO EXERCÍCIO DE JURISDIÇÃO DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. TURMA RECURSAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. I - As Turmas Recursais são órgãos recursais ordinários de última instância relativamente às decisões dos Juizados Especiais, de forma que os juízes dos Juizados Especiais estão a elas vinculados no que concerne ao reexame de seus julgados. II – Competente a Turma Recursal para processar e julgar recursos contra decisões de primeiro grau, também o é para processar e julgar o mandado de segurança substitutivo de recurso. III – Primazia da simplificação do processo judicial e do princípio da razoável duração do processo. IV - Recurso extraordinário desprovido.” (RE 586789, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 16/11/2011, no regime de repercussão geral, DJ 27/2/2012) [11] IRDR nº 70075024752. Rel. Des. Marilene Bonzanini. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Dj 18.12.2018. (grifos originais) No mesmo sentido o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais submeteu a tese firmada no IRDR nº 0124879-52.2017.8.13.0000: “SAMARCO MINERAÇÃO S/A., devidamente qualificada na Inicial, apresentou o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, oriundo da Ação Indenizatória n.º 00056.22-43.2016.8.13.0105, com o propósito de que haja a fixação de tese de direito garantidora da isonomia, da efetividade e da segurança jurídica nas resoluções das causas que encerram controvérsia quanto à mesma questão de direito, em trâmite perante o Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais, relativamente à incompetência dos Juizados Especiais para processar e julgar as ações cominatórias e indenizatórias propostas em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, situada em Mariana, que tenham como fundamento a dúvida/insegurança acerca da qualidade da água fornecida pelo sistema público de distribuição das cidades que captam água do Rio Doce, tendo em vista se tratar de matéria técnica, que demanda a produção de prova pericial complexa e incompatível com o procedimento da Lei nº 9.099/1995.”. [12] Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/jurisprudencia/consulta-de-jurisprudencia/enunciado-76.htm#.Y-VW_XbMJPZ [13] QUINTAS, Fábio Lima. “Imparcialidade judicial: uma ficção gramatical?”, publicado no CONJUR em 20 de fevereiro de 2021, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-fev-20/observatorio-constitucional-imparcialidade-judicial-ficcao-gramatical [14] SMITH, Carl Olav; QUINTAS, Fabio. A aplicação dos precedentes vinculantes: um estudo empírico sobre fatores de influência na convicção dos juízes vitaliciandos na apreciação de demandas de massa. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 8, p. 27, 2021. [15] Sofia Temer pondera que a “independência funcional dos magistrados não pode significar, contudo, comprometimento da unidade da jurisdição, da coerência da ordem jurídica e da uniformidade na prestação jurisdicional”, isso porque a independência “não é ofendida pela eficácia vinculativa dos precedentes dos órgãos que lhe são superiores, como também não é violada pela revisão das suas decisões, o que ocorre em razão do tão festejado duplo grau de jurisdição”. (TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 3.ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2018. p p. 244) [16] TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 3.ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2018. p. 74. [17] Ibidem, p. 75. [18] CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. 2.ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2018. p. 97. [19] CABRAL, Antonio do Passo. Op.cit. p. 96.
2023-02-11T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/observatorio-constitucional-tese-irdr-juizado-especial-vinculacao-inconstitucional
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Diário de Classe
Fabricando a nossa (melhor) história: a narrativa literária e o Direito
Estamos vivenciando no Brasil um momento político que, no mínimo, podemos caracterizar como conturbado. A análise dos atos que culminaram na tentativa de golpe (dessa vez) mal sucedida servem para reforçarmos a necessidade de fortalecer o valor da democracia e os recursos que construímos para legitimá-la e garanti-la. Nesse sentido, a concepção moderna de Estado de Direito assume enorme relevância nas discussões acerca da manutenção desse modelo político que, até o presente momento, mostra-se como o mais coerente com as demandas e formas de organização das sociedades contemporâneas. De tempos em tempos, países de modernidade tardia como o nosso são palco de tentativas frustradas (ou não) de golpes de Estado. Ocorre que, no Brasil, como bem referiu Lenio Streck em artigo publicado nesta semana na Folha [1], esses impulsos golpistas "sempre tiveram, com exceção da Proclamação da República, uma roupagem jurídica", efetivando-se, a partir do direito, um rompimento do próprio direito. Para trazer à tona o que é reverberado com esse tipo de tentativa de ruptura que se diz "legítima" (no sentido de amparada legalmente), o professor Lenio brilhantemente recorre à literatura. A atribuição de sentidos às normas jurídicas — e as disputas decorrentes deste processo — é ilustrada pela longa guerra que vitimou milhares de liliputianos, em As Viagens de Gulliver. O motivo da batalha era a forma com que se quebravam os ovos cozidos, afinal, o dispositivo constitucional número 1 determinava que "Os ovos devem ser quebrados pelo lado certo!". Os leitores do Diário de Classe já devem ter percebido que de tempos em tempos escrevo aqui sobre as tantas relações possíveis entre o Direito e a literatura. A coluna de hoje não fugirá desse projeto, pois acredito que devemos estar comprometidos com a sofisticação da interpretação do/em Direito de forma inclusiva, isto é, a partir do pressuposto de que precisamos compartilhar com os cidadãos que não fazem parte do meio acadêmico/jurídico nossas compreensões (muitas vezes mais bem fundamentadas) acerca dos acontecimentos que inspiram a crença dos sujeitos em valores que guiam não somente suas vidas, mas, também, a organização/manutenção do Estado Democrático de Direito. E a literatura, seja como elemento de provocação por meio de suas narrativas, seja pela sua epistemologia, é um excelente instrumento para tanto. O argumento apresentado pelo professor Lenio de que "todo o golpista sempre terá um jurista para chamar de seu", parte de uma provocação literária e se constrói fitando a nossa história recente (os golpes de 64 e contra o governo de Dilma Rousseff), em que os limites interpretativos foram violados em nome de interesses políticos autoritários e/ou antiemancipatórios. Esse tipo de interpretação (inautêntica) é o que torna ilegalidades legais no Brasil. Mas, como bem explora o artigo em comento, ainda que diante de tamanhos "esforços hermenêuticos", golpes de Estado não precisam ser expressamente proibidos para serem incompatíveis com os princípios constitucionais e, portanto, com o Estado Democrático de Direito. Mesmo que alguns tentem garantir — para usar a provocação do professor Lenio — que determinada forma de quebrar ovos seja a única correta, ela só se sustentaria como tal a partir do peso das justificações invocadas na construção de seu sentido e não pelo cumprimento formal de um rito. Esse sentido é (ou deveria ser) edificado da mesma forma que as histórias são fabricadas. O desafio deste texto reside, portanto, na tentativa de refletir acerca do processo de atribuição de sentidos em direito recorrendo à literatura, ainda que esta geralmente esteja associada à inexistência de limites interpretativos. Contudo, ao analisarmos as narrativas literárias, percebemos nelas a necessidade de contextualizar e reforçar conceitos que se sustentam em redes de valores, da mesma forma que deveríamos proceder em Direito. Minha inspiração para esse texto se deu a partir da releitura recente de uma obra de Jerome Bruner que costumo indicar aos interessados nos estudos jusliterários, qual seja, o livro Fabricando histórias: direito, literatura e vida, em que o autor procura demonstrar que a narrativa "é um negócio realmente sério – seja no Direito, na Literatura ou na vida" [2]. Sendo assim, reforço, esta é só mais uma razão pela qual não devemos deixar a literatura em paz [3]. Quanto ao argumento que pretendo desenvolver aqui, ele é sintetizado especificamente por este trecho: "Gostamos de dizer que a narrativa literária não se refere a nada no mundo, mas tão somente fornece um sentido para as coisas. Entretanto, é precisamente esse sentido das coisas, frequentemente derivado da literatura, que torna possível a referência à vida real. Nós nos referimos a eventos, coisas e pessoas usando expressões que os situam não apenas em um mundo indiferente, mas também em um mundo narrativo: são os 'heróis' a quem oferecemos medalhas por seu 'valor'; são 'contratos rompidos' quando uma das partes não demonstra sua 'boa-fé', e coisas do tipo. Só podemos nos referir a heróis e a contratos rompidos em virtude de sua existência prévia dentro de um universo narrativo" [4]. As contribuições de Bruner são importantes para pensarmos as relações entre o possível e o real, bem como nos enchem de esperança acerca de engajarmo-nos em discursos vinculados à ordem do sensível, e não do racional. Essas questões, que estão vinculadas à abordagem do direito pela literatura, no entanto, não estão na mesma ordem que procuro trabalhar aqui. Vale salientar que não é a intenção do livro mencionando trabalhar o direito a partir de conceitos da teoria literária, conquanto seja inegável que a questão da linguagem — e da intersubjetividade — perpasse a obra em diversos momentos, como bem se vê no trecho acima. Minha reflexão, retomo, alude especialmente ao entendimento de Bruner de que determinados valores (sentido das coisas) fazem parte e são dependentes de um universo narrativo. Isso, traduzido para a linguagem (jus)filosófica, se dá porque o interpretar hermenêutico (crítico) é inimigo do relativismo, afinal "na linguagem existe algo muito além do enunciado" [5], que está contido na intersubjetividade. O horizonte de sentido faz parte de um processo compreensivo em que sempre já existe uma pré-compreensão. Portanto, para fabricarmos a nossa história da melhor forma possível — e finalmente podermos afirmar que existe um jeito realmente certo de quebrar ovos — precisamos estar comprometidos com uma rede de valores que se reforçam entre si e não somente com um dever procedimental. Na literatura, um dos elementos para que um bom texto seja construído é a coerência semântica, ou seja, o texto não pode ser contraditório. Analogamente, se utilizarmos esse recurso para analisarmos o Direito, podemos afirmar que golpes de Estado não fazem parte do Estado de Direito, visto que que para compreendemos o que é o Estado de Direito, precisamos compreender o que é democracia, que, por sua vez, é incoerente com rupturas políticas autoritárias. [1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/no-brasil-todo-golpista-tem-um-jurista-para-chamar-de-seu.shtml?fbclid=PAAaa1CHERAOGGK0xB0QSda3bE7HcbYhdHP0x8tbV-oZH3t4esIO3yRxpaHGY. [2] BRUNER, Jerome. Fabricando histórias: Direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e voz, 2014. p. 117. [3] Sobre esse tema escrevi anteriormente a coluna "Não devemos deixar a literatura em paz". Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-07/diario-classe-nao-devemos-deixar-literatura-paz> [4] BRUNER, Jerome. Fabricando histórias: Direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e voz, 2014. p. 18. [5] Uso as palavras do prof. Lenio no artigo publicado no Estadão "Estamos condenados a interpretar". Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/hermeneutica-juridica-streck/
2023-02-11T08:00-0300
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Processo Familiar
Na pele das palavras, a identidade familiar significante
A vida põe o direito a seu serviço e as palavras dizem ao direito como a vida deve ser servida. A lei não contém palavras ociosas e quando vinculadas ao universo de família, na pele das palavras há uma perfeita identidade familiar significante. A linguagem tem essa arte, combina com a vida; os vocábulos assumem intimidade histórica com a sua própria origem. Nessa linguagem, o universo familiar constela as suas palavras, fazendo-se cheio de estrelas com luz própria, clarificadas pela lei, doutrina e julgados. Um observatório de palavras e expressões legais, conduz-nos, portanto, a muitas reflexões. 1. A força dos étimos. Todas as famílias possuem os seus idosos, na escala ancestral de suas histórias existenciais. É significante essa identidade, quando "IDOSo" tem na palavra o próprio passado. São os IDOS do tempo que simbolizam, no tempo remoto, o existir da pessoa idosa. Essa constatação nos revela uma linguagem onde o étimo e a realidade subjacente fornecem a melhor tradução que se busca comunicar. Étimo (étumon), como a palavra em sua base, radical, verdadeira; linguagem que "manifesta a realidade em seu sentido, mundo e verdade". A propósito, o jurista Rodolfo Pamplona Filho, em seu Instagram (@rpamplonafilho), tem dedicado, às quartas feiras, a coluna Étimo, discorrendo sobre a origem histórica e etimológica das palavras ou das expressões, sob o interesse jurídico que elas conduzem. Nesse ser assim, ganham importância jurídico-etimológica diversos vocábulos e determinadas expressões, valendo referir: (i) Padrinho. o vocábulo "padrinho", do latim patrinus, diminutivo de pater, destinado a designar aquele que foi escolhido para proteger alguém, com uma força existencial de benção e amparo, a tanto que nas cerimonias religiosas (batismo, crisma ou casamento) são apresentados a testemunhar o ato perante o protegido. A legislação tem a seu turno emprestado devida importância à figura do padrinho, como símbolo de proteção. As formas especificas de apadrinhamento, como as do apadrinhamento civil, constante na legislação portuguesa (Lei nº 103, de 11.09.2009) e dos apadrinhamentos afetivo e financeiro (artigos 2º e 3º do Provimento nº 36, de 11.12.2014, da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo) são exemplos que exaltam uma identidade familiar significante. (ii) Matrimônio. O vocábulo "matrimônio", do latim matrimonium, tem no casamento religioso a referência-base da instituição milenar, estando então, em nosso país, o casamento regulamentado no Brasil Colônia pelas Ordenações Filipinas (29/1/1643) atribuindo-se à autoridade eclesiástica a celebração do casamento, sob as regras do direito canônico. Somente pós-República, com a separação formal entre Igreja e Estado, o casamento passa a ser regulamentado no país, pelo Decreto nº 18 (24.91.1890), de autoria de Rui Barbosa, antecedendo o Código Civil de 1916. A sacramentalidade do matrimônio foi muito discutida a partir dos séculos XI-XIII, diante de concepções dicotômicas sobre o seu elemento essencial, a romana (o do consentimento) e a judaica (o da união carnal e o da procriação). Ensina-nos D. Borobio, em reconstrução histórica e de solução adequada que "a síntese é alcançada no século XIII, quando se afirma que o Matrimônio é um sacramento verdadeiro e válido só e formalmente em virtude do consentimento, mas, enquanto esse sacramento não tiver sido consumado pelo ato carnal, pode ser dissolvido". A sua sacralidade foi reafirmada no Concilio de Trento, como sinal da aliança entre Cristo e Igreja, significada pela relação do casal. Esta que se baseia na unidade, na entrega, no amor, tudo conduz ao matrimônio; elevado, por isso, à dignidade de sacramento e à uma comunhão plena de vida. (01). Bem de ver que o seu ritual de celebração tem no amor conjugal "o centro da relação interpessoal e base da sacralidade", como enfatizou o Concilio Vaticano II. Certo que, antigamente, a mulher somente pelo casamento adquiria direitos e deveres legais de mãe de família, tem-se o "Matrimonium" como a junção de "mater" (mãe) e "monium", sufixo a indicar estado, ação, condição; ou seja, a condição de mãe. Há que se dizer, por isso, que o matrimônio é a proteção da mãe. (iv) Casamento. O vocábulo “casamento”, deriva de casa, pelo que tem sido inerente o dever de coabitação, disposto no dever de vida em comum, no domicílio conjugal (artigo 1.566, II, do Código Civil/2002), diversamente da união estável, onde esse dever não figura referido no artigo 1.724 do CC. O casamento difere do casamento religioso (dito matrimônio e sacramento), por sua natureza jurídica, em esfera civil, colocar-se como um contrato de direito de família e, por sua dimensão existencial, ao lado do canônico, como instituição. De toda sorte, ambos não são hierárquicos, inexistindo qualquer preponderância entre um e outro. Convém lembrar, porém, que o Decreto n. 521, de 1890, vindo aditar-se ao Decreto nº 181, do mesmo ano, impôs o poder do Estado proibindo o casamento religioso antes do civil. Em outras palavras, o vínculo estatal servia como pressuposto necessário ao vínculo matrimonial. (iii) Viuvez. O vocábulo da "viuvez" tem, a seu turno, um inexorável liame com a visão sacramental do casamento, quando o seu vínculo jurídico termina com a morte de um dos cônjuges, porém o vínculo do amor permanece, quando a Igreja explica o significado escatológico da viuvez, para uma sua dimensão de espiritualidade. (02). É um especial cuidado refletido no encontro de Cristo com a viúva de Naim (Lucas, 7, 11-17). Com devida propriedade histórica, segundo Christiana Hip-Flores, "o instituto jurídico da viuvez consagrada tem profundas raízes na Tradição Católica, remontando à era apostólica e aos primeiros séculos do cristianismo". Consagra-se à viuvez, durante quatro séculos, uma vida ascética feminina, ensejando a formação de ordem monásticas, como continuidade sacramental do matrimônio. Diz-nos Elsa Tamez, em interessante estudo, que "o ministério para as viúvas pobres nas origens do cristianismo era um verdadeiro serviço, assumido com seriedade, seguindo tradição judaico-cristã. Os problemas que surgem no entorno desse ministério permitem ver que é algo que ocorre na história humana, contra a qual há que se lutar sempre, buscando a integridade, a coerência e a pureza de coração" (03). 2. Nesses vieses relacionais, impõe-se observar, lado outro, situações identitárias familiares, em determinadas expressões de conteúdos indeterminados, quando a lei as menciona, não obstante necessitadas de seu preenchimento por construções doutrinárias e de julgados atinentes. Elencam-se três, por enquanto, diante da brevidade do texto: (I) Comunhão plena de vida. A cláusula geral de "comunhão plena de vida", como norma-princípio que remete as relações familiares a seus valores éticos e afetivos aparece, de logo, inserida no primeiro artigo do Livro de Direito de Família (artigo 1.511 do Código Civil), a dizer que "o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges". Adiante, a cláusula é repetida no artigo 1.513, quando dispõe o estatuto civil que "é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família". A adoção da técnica de tal cláusula ganha uma ampla dimensão, com repercussões notáveis, quando flagrada a contradição interna entre os mencionados dispositivos (artigos 1.511 e 1.513, CC). Afinal, "quem estabelece a comunhão plena de vida? O casamento (art. 1.511) ou a família (art. 1.513)?" — pergunta o jurista Eduardo Silva (2002), identificando, em seu estudo, os erros técnicos do legislador que confunde as instituições entre si, introduzindo, daí, as atecnias no texto normativo. Ele oferece a melhor resposta, pronta e adequada, ao indicar que "o erro técnico em que incidiu o legislador levaria a crer que a comunhão de vida é instituída pela família, e não de que a família é, ela própria, uma comunhão de vida". Bem é certo assim refletir. "Aliás, essa a verdadeira evolução em Direito de Família: uma família que se torna comunhão plena de vida entre seus membros e deixa de ser uma mera unidade econômica agregada pelo poder do homem" — acentuou. Sublinha-se, então, que a cláusula geral da comunhão plena é de conceito aberto, tanto na hipótese (prótase) quanto na consequência jurídica (apódose). Pergunta-se o que vem a ser a cláusula "comunhão plena de vida", enquanto cláusula geral na estrutura do sistema jurídico de família. E mais ainda: como ela repercute e deve repercutir no direito de família, em compreensão do seu próprio significado. A sua especificidade está ínsita do fenômeno familiar, como fato e valor; ou seja, a cláusula de comunhão representa um conceito ético e operativo, contribuindo para o aperfeiçoamento das relações familiares, a partir dos deveres mútuos de cônjuges ou de companheiros (artigo 1.573 CC). A comunhão plena de vida significa compartilhar a família nos seus atributos determinantes, onde para além da norma, estão as pessoas comprometidas entre si, comungando interesses comuns e resultados construídos. Efetivamente, figura como uma cláusula diretiva da existência da comunidade familiar. Essa comunhão é intrínseca, como "unidade valorativa e conceitual" e serve, convenhamos, como estrutura dignificante de cada um dos integrantes do núcleo familiar. Noutro ponto, a comunhão implica uma constatação de vida, "não só com o outro, mas para o outro". Ou seja, a constituição do próprio ser, em sua vida pessoal, como vida destinada para o outro (amar para ser amado, etc.) e não bastando, também o "ser com o outro", em realização de solidariedade plena (Octávio Manuel Gomes Alberto, Lisboa, 2012). O civilista português situa que "a comunhão de vida pressupõe que cada um dos cônjuges esteja permanentemente disponível para dialogar com o outro, auxiliá-lo em todos os aspectos morais e materiais da existência, colaborar na educação dos filhos, etc." De notar que o chamado "dever de comunhão de leito, de mesa e de habitação", denominado "dever de coabitação", em nada significa mais que somente isso. Não necessariamente a comunhão de vida que constituirá a essência da união conjugal ou entre conviventes. Pode haver coabitação, sim, sem que, todavia, os que coabitam comunguem as suas próprias existências em prol de uma existência única e una. Esta existência substancial constitui, a toda evidência, o dever-ser do direito de família, onde homens e mulheres, por auxílio mútuo, integração fisiopsíquica, de interesses e de afetos, destinam-se a formar uma comunidade de vida, na clássica lição de Portalis. Certo, então, pensar que deverá haver uma personalidade moral e jurídica da própria instituição familiar enquanto arrimada na comunhão plena de vida; o que transcende a personalidade de cada um dos partícipes. Assim, a família que como tal se expressa por essa comunhão de plenitudes, é um dos maiores bens jurídicos que a sociedade pode obter: pessoas que comungam vidas e celebram os seus vínculos. Repita-se: A vida põe o direito a seu serviço. (ii) Tempo de convívio. A expressão "tempo de convívio" na guarda compartilhada assume relevante expressão jurídica, com seu novo significado (art. 1.583, parágrafo 2º, do Código Civil, conforme a Lei nº 13.058, de 22.12.2014). Mais precisamente, está escrito: "Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos". Anota-se, necessária uma contribuição do Direito das Famílias à gestão do tempo familiar, como gestão responsável e instituída para um investimento afetivo adequado. Este desafio, a nosso sentir, exige notáveis esforços da doutrina e da legislação, aptos a produzirem casais, filhos e demais familiares melhor realizados pessoalmente por amor, assistência e respeito mútuos. No ponto, a VII Jornada de Direito Civil, do Conselho de Justiça Federal (Brasília, 28-29/09/2015), ofereceu valioso contributo, com três Enunciados direcionados à gestão do tempo familiar. Vejamos: (i) Enunciado nº 603 - A distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada deve atender precipuamente ao melhor interesse dos filhos, não devendo a divisão de forma equilibrada, a que alude o parágrafo 2º do artigo 1.583 do Código Civil, representar convivência livre ou, ao contrário, repartição de tempo matematicamente igualitária entre os pais. (ii) Enunciado nº 604 – A divisão, de forma equilibrada, do tempo de convívio dos filhos com a mãe ou com o pai, imposta na guarda compartilhada pelo parágrafo 2º do art. 1.583 do Código, não deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo instituto da guarda alternada, pois esta não implica apenas a divisão do tempo de permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo genitor que se encontra na companhia do filho. (iii) Enunciado nº 606 - O tempo de convívio com os filhos "de forma equilibrada com a mãe e com o pai" deve ser entendido como divisão proporcional de tempo, da forma que cada genitor possa se ocupar dos cuidados pertinentes ao filho, em razão das peculiaridades da vida privada de cada um. Como se observa, todos os tempos de família precisam ser bem gerenciados. Quando o tempo livre decresce por sobrecargas da vida, é tempo de conceder à família o nosso melhor tempo, com técnicas de gestão para empreender maior efetividade às relações familiares. (iii) União Estável Putativa. Uma nova figura de união estável está em permanente discussão nos tribunais. É a situação de fato de alguém assumir convivência com duas pessoas, ao mesmo tempo, onde a estabilidade de união aparenta uma entidade familiar verdadeira. A união estável putativa decorre de os(as) companheiros(as) acreditarem na exclusividade dessa convivência. Precedentes, os da Apelação nº 2003.001.33248, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e dos Embargos infringentes nº 599.469.202, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, determinaram a partilha igualitária dos bens disputados pelas companheiras. A expressão conceitua uma entidade familiar a merecer o exame do caso concreto para que venha receber o devido enquadramento fático. Posto isto, indispensável que a etimologia das palavras, a origem das expressões, e a criação de conceitos, sejam recepcionadas, com maior desenvoltura, no direito de família, para a sua melhor dinâmica. Essa identidade familiar significante deve ser extraída, com sensibilidade, das palavras e expressões reveladoras de vida que o direito oferece. Afinal, não se confundirão, por certo, com a exclamação feita por Alzira Vargas, filha de Getúlio Vargas, a respeito do seu casamento: "Fui casada em regime de comunhão de dívidas e separação de ideias".   Referências: (01) BOROBIO, D. Matrimônio. A celebração na Igreja. Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993. (02) REES, Elisbeth. Christian Widowhood, p. 400. (03) TAMEZ, Elsa. O ministério para as viúvas e das viúvas. Web: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/Ribla/article/view/7284/5589
2023-02-12T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-12/processo-familiar-familia-pronta-futuro-perspectivas-2023
academia
Embargos Culturais
Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito
O tema das fontes é central no estudo do direito. Um estudo sério de direito comparado consiste, necessariamente, na avaliação das fontes que se pretende compreender e comparar. Por exemplo, mais importante do que atentarmos para um determinado comando do direito de tradição islâmica seria entendermos o substrato da regra, cuja origem desconhecemos. Quem a determina? Quais poderes detém quem tem força para fazê-la valer? De igual modo, uma compreensão de enciclopédia jurídica é na prática uma projeção operacional dos vários sistemas que identificam as fontes do direito. A pergunta fundamental que a experiência jurídica nos põe é essa: de onde vem a força impositiva de um determinado comando? É o fascinante assunto das fontes do direito. É o tema mais apaixonante dos antigos manuais de introdução ao estudo do direito e de introdução ao direito civil. Esses livros são importantes na formação do jurista. Não sei se ainda são estudados. Muito já se escreveu sobre a lei, sobre a doutrina, sobre os costumes, sobre os princípios gerais do direito, sobre a jurisprudência. Esta última, enquanto fonte, parece-nos hoje justificativa de um superlativo hebraico: a jurisprudência se tornou a fonte das fontes. A jurisprudência hoje tudo fixa, tudo altera, tudo comanda. Pior. A jurisprudência engole a si mesma, o que pode se inferir em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no rumorosíssimo caso da anulação de decisão tributária definitiva sem modulação de efeitos (Temas 881 e 885). No contexto do estudo das fontes do direito há um tema hoje esquecido. Refiro-me à equidade. A equidade é um conceito derivado da filosofia de Aristóteles. No Livro V da Ética a Nicômaco, o estagirita mencionou uma régua que havia na Ilha de Lesbos e que media superfícies que não eram planas. Desse modo, metaforicamente, a aferição de uma dada medida levava em conta as características específicas do que se metrificava. Ao contrário das réguas convencionais, que medem apenas superfícies planas, e que, portanto, desprezam características específicas do que se está medindo, a régua de Lesbos permitia uma aferição completa. Era o indicativo de uma medida justa. Do ponto de vista da hermenêutica jurídica, a aplicação da equidade resulta na mitigação dos inconvenientes que resultam da aplicação estrita dos textos, que não leva em conta peculiaridades e aspectos muito específicos de um dado problema. Não se confunde com o conceito de equidade do common law, que é uma das variáveis da estrutura jurídica desse modelo. A equidade é instrumento de oposição à aplicação irrestrita de um texto jurídico que resulte em injustiça objetiva, e que a tradição do direito romano identifica no brocardo summum jus, summa injuria, isto é, o máximo de direito, o máximo da injustiça. Há muitos anos tive notícia de um livro que tratava monograficamente do assunto, e que não conseguia localizar. Em recente evento no Liberty Fund, em São Paulo, conheci o filho do autor do livro. Refiro-me ao livro A Equidade como Fonte do Direito, de Gelson Fonseca, importantíssimo e competentíssimo advogado militante no Rio de Janeiro, nos anos de 1950 e 1960. O livro, que é texto definitivo sobre a equidade, é uma tese para o concurso de livre-docente da disciplina de Instituições de Direito, junto à antiga Faculdade de Ciências Econômicas do Estado da Guanabara. O livro é de 1968. Eu já conhecia e admirava o filho de Gelson Fonseca. Trata-se do embaixador Gelson Fonseca Júnior, que se destacou como diplomata de carreira entre 1968 a 2016, quando se aposentou. O embaixador Gelson, entre outros postos, foi representante permanente junto à ONU, embaixador no Chile, cônsul-geral em Madrid e no Porto. Em São Paulo, conversamos sobre a trajetória do pai, advogado militante, e sobre o livro. Constatei que havia um único exemplar à venda, na Estante Virtual. A generosidade do embaixador resultou no encaminhamento do exemplar raro, que li numa sentada. Aprendi muito. O autor trata da equidade primeiramente sob uma perspectiva histórica. É o ponto de partida para o postulado básico da tese: a equidade encontra-se em todos os sistemas de direito. Na primeira parte do livro o autor expõe as linhas gerais da equidade na tradição judaico-cristã. Nesse sentido, explora a equidade no Antigo Testamento (com a aparente iniquidade do julgamento de Deus) e em seguida a equidade no Novo Testamento, cujo sentido é o amor. Essa comparação é também encontrada em Hans Kelsen, em interessante livro sobre a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras. O autor também trata do conteúdo da equidade na tradição grega e refere-se, entre outros, ao tema do direito natural, como aparece no teatro (Antígona). Nesse ponto, Gelson Fonseca (pai) concebe a equidade como uma parte efetiva do direito não escrito. O estudo da equidade na tradição romana é o ponto alto do livro. Não nos esqueçamos que os pretores decidiam por equidade, o que também afasta a premissa equivocada de que a tradição do common law seria refratária às estruturas conceituais e práticas do direito romano, em qualquer uma de suas fases. Quanto ao direito inglês propriamente dito a equidade tem um papel determinante, quanto à função do rei de distribuir justiça, o que se desdobra ao longo da unificação de seu poder. Após 1066, explica-nos Gelson Fonseca (pai) a fixação do direito era da autoridade local. Cuida-se de um traço peculiar do feudalismo (enquanto um tipo ideal), o que se reflete na construção da topografia e das peças do jogo de xadrez. Na parte final o autor estuda a equidade entre os autores nacionais, a exemplo de Pontes de Miranda, Vicente Rao, Carlos Maximiliano, Caio Mário, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro. Com vários exemplos tomados do direito positivo então vigente (o livro é de 1968), o autor concluiu que a equidade é fonte formal do direito, especialmente na sociedade moderna, "em que a lei é concebida sob o império da razão, como norma técnica do governo, em que ela disciplina relações sociais". Pelo que entendi, o concurso não teria prosperado por razões de formalidades e de procedimento. Estava enganado. Quando da publicação da primeira versão do presente estudo, fiquei sabendo, por intermédio de um amigo comum, embaixador Paulo Roberto de Almeida, que a prova escrita do concurso se realizou. Durou 6 horas. Pela noite, o concorrente único, Gelson Fonseca (pai), teve um infarto. Por isso, o concurso foi interrompido e depois anulado. Ficou o livro: 150 páginas da mais exuberante forma de doutrina, hoje tão rara e tão macunaímica.
2023-02-12T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-12/embargos-culturais-gelson-fonseca-definitivo-equidade-fonte-direito
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Processo Tributário
Reflexão sobre a tutela provisória em ação declaratória negativa
As medidas judiciais preventivas destinam-se a evitar que atos tributários que estão na iminência de acontecer materializem-se. Tomam como pressuposto, destarte, "a incerteza jurídica [...] ante a concreta possibilidade de desencadeamento da atividade fiscal potencial para dar ensejo à constituição ilegítima de determinado crédito tributário" e, tendo em vista o que se objetiva pragmaticamente ao se utilizar essas ações, quando acolhido o pedido, isto é, declarada inexistente a relação jurídica tributária, bloqueia-se o direito potestativo do Fisco constituir o crédito pelo lançamento [1]. Seria correto afirmar, então, que a sentença de procedência gera, por via oblíqua, um efeito proibitivo, por meio de técnica jurisdicional voltada à solução da incerteza sobre a incidência de determinado tributo, associada a princípios limitadores do poder de tributar, denominada, por Paulo Cesar Conrado, de "eficácia proibitiva ex nunc das tutelas declaratórias negativas tributárias" [2]. Dessa forma, "muito embora não constituam norma jurídica em sentido estrito, os enunciados veiculados nas partes dispositiva da sentença [...] possuem a capacidade de produzir 'efeitos normativos secundários' obstativos do direito da Fazenda Pública de constituir o crédito tributário" [3]. Ante a necessidade de garantir segurança jurídica, as tutelas jurisdicionais de mérito, isto é, que analisam objetivamente a questão tributária de fundo, estão aptas a formar coisa julgada, à luz do artigo 502 do CPC/2015, portanto, a produzir efeitos que se prolongam no tempo. Contudo, ante a iminência da aplicação da legislação tributária e o adverso fator temporal da marcha do processo, a segurança jurídica é assegurada por outra modalidade de decisão judicial denominada normativamente de "tutela provisória" (artigo 294 e seguintes do CPC/2015), cuja ausência de vocação à perenidade é, de acordo com Dalla Pria [4], sua principal característica. Distinguem-se, ainda, das tutelas definitivas por seus fundamentos de concessão, o da urgência ou da evidência (ou da não urgência) [5]. Esse tipo decisório no processo tributário, por expressa disposição do código tributário nacional (artigo 151, incisos IV e V), suspende a exigibilidade do crédito tributário, de modo a inibir temporariamente o ciclo de concretização da obrigação tributária, produzindo, assim, nesse específico âmbito processual (o tributário) eficácia acautelatória. Contudo, tratando-se de ação preventiva, uma vez que, no momento do ajuizamento da ação declaratória de inexistência de relação jurídica, não há crédito tributário devidamente constituído, é possível falar em suspensão da exigibilidade do crédito tributário? Qual o efeito prático de se suspender a exigibilidade do crédito tributário se, de fato, não há ainda a constituição do crédito? A concessão de tutela provisória, nesse específico cenário — o da declaratória em processo tributário —, teria o condão de obstar o lançamento? Em caso positivo, como ficaria a questão do prazo decadencial ao direito de lançar? Na literalidade textual do artigo 151 do CTN, suspender a exigibilidade do crédito tributário pressupõe a existência deste, ou seja, "seria necessária a existência de linguagem competente para a sua constituição" [6], o lançamento, documento habilitado pelo sistema normativo que faz emergir a relação jurídico-tributária. Desse modo, a norma que determina a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, instituída no artigo 151 do CTN reportar-se-ia apenas àqueles créditos já devidamente constituídos, pois não haveria como se suspender o que não existe. Lembremos: este é o que o texto do CTN indica. Reputamos, contudo, que essa interpretação limita o alcance conteudístico da disposição normativa, isto é, a norma jurídica que se constrói a partir do texto, considerando o fato de que a jurisdição, por meio do poder geral de cautela, deve ser exercida ainda em estágio de ameaça da lesão de modo a impedi-la [7]. Segundo entendemos, esse dispositivo do CTN está a merecer uma releitura, pois a concessão de tutela provisória em ação declaratória deveria produzir uma ordem judicial que impedisse a constituição do crédito e, consequentemente, sua exigibilidade e exequibilidade, a fim de se consagrar um ponto de intersecção entre o direito material e o processual, justamente porque "a medida liminar tem o condão de impedir o processo de positivação do direito", sua função processual tributária única [8]. Nos moldes do artigo 151, inciso V do CTN, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio das tutelas provisórias concedidas em demandas preventivas, de acordo com Dalla Pria terão como consequência (1) vedar a constituição do crédito tributário enquanto a lide permanecer pendente de julgamento, ou (2) permitir a constituição do crédito tributário com exigibilidade suspensa, obstando-se a realização dos atos subsequentes de cobrança [9]. Embora sejam raras as decisões que, expressamente, vedem o direito potestativo do Fisco de realizar o lançamento, como se deu no caso do Recurso Especial 453.762/RS [10], admitir a interpretação sugerida implica, inevitavelmente, em assumir uma postura a respeito da fluência do prazo decadencial, fixado no artigo 173 do CTN, em cotejo com o enunciado contido no artigo 207 do Código Civil (Lei 10.406/2002). O prazo de decadência visa sancionar a inércia do credor no exercício de seus direitos, mas, diante do cenário de suspensão da exigibilidade do crédito a constituir, "não se figuraria juridicamente aceitável a pretensão de penalizar alguém por se abster da prática de um ato cuja realização estava vedada por ordem judicial expressa" [11]. Ora, se a cobrança está vedada enquanto perdurar a causa de suspensão da exigibilidade, parece inadequado falar-se em lançamento, apenas para "evitar a decadência do direito de efetuar o lançamento" [12]. Se a título de tutela final o objetivo da ação declaratória em matéria tributária é justamente impedir a formação da relação jurídica entre Fisco e contribuinte proponente da demanda, por meio da tutela provisória sua intenção é imediatamente impedir a constituição do crédito tributário. Desta forma, seria coerente que a tutela provisória impedisse tal ato, bem como, na sua vigência, obstasse a fluência do prazo decadencial, evitando, conforme leciona Dalla Pria, "sensível mitigação da eficácia da tutela", pois os efeitos declaratórios negativos não teriam o condão de anular débitos constituídos no curso do processo (para tanto seria necessária uma ação de natureza repressiva) [13] [14]. Porém, fundados na previsão legal do Código Civil — em lei ordinária, portanto — de que o prazo decadencial não se interrompe nem se suspende, jurisprudência e doutrina majoritária caminham no sentido oposto admitindo que, embora as tutelas provisórias tenham o condão de suspender a exigibilidade do crédito tributário, não impedem a sua constituição, a fim de não superar o referido prazo. Não é esse o nosso entendimento, reputa-se que o comando suspensivo da exigibilidade advindo de tutela provisória em ação preventiva impede o Fisco de seguir o processo de concretização da obrigação tributária, de modo que a interrupção da fluência do prazo decadencial é um efeito necessário porque impede, ainda que temporariamente, o ato de constituição do crédito tributário pelo Fisco ou, por outras palavras, que o Fisco exerça o seu direito de lançar [15]. Ao admitir a possibilidade de constituição do crédito tributário durante o curso de ação declaratória, com tutela provisória concedida e em vigor, como o faz a doutrina tradicional, tem-se que reconhecer que "a tutela declaratória negativa, para além dos efeitos obstativos que lhe são peculiares, também produzirá, com relação aos atos de constituição do crédito exarados após a sua propositura, eficácia desconstitutiva anômala" [16], como decorrência da precariedade desses atos realizados após o ajuizamento da ação, face ao "estado de litispendência" gerado com a citação da Fazenda Pública, nos exatos termos do artigo 240 do CPC/2015. Essa postura da doutrina tradicional parece-nos paradoxal diante da natureza da tutela provisória pleiteada e a efetivamente concretizada, pois, o comum é a concessão de tutelas provisórias suspensivas da exigibilidade do crédito tributário nas ações preventivas, que implica a possibilidade de constituição do crédito tributário, ainda que sob condição resolutória, obstando tão somente os atos subsequentes a ela, como inscrição em dívida ativa, ajuizamento da execução fiscal e constrição patrimonial. Ao aceitar tal entendimento, não haveria que se falar na incidência de juros e multa de mora, conforme disposto no caput do artigo 63 da Lei 9.430/96, pois "a mora do sujeito passivo, assim entendida como o estado de inadimplência perante o Fisco, é o elemento preponderante para a aplicação da norma sancionadora", o que não há quando está vigente a norma de suspensão da exigibilidade [17]. Como o objeto da ação declaratória de inexistência de relação jurídico tributária é, justamente, impedir que a lesão decorrente da aplicação de determinada regra instituidora de tributo, produzida fora dos parâmetros normativos materialize-se, a concessão da tutela provisória suspendendo a exigibilidade deveria ter o condão de, enquanto se mantiver em vigor, impedir a constituição do crédito tributário e, com isso, impedir a fluência do prazo decadencial, justamente porque não se trata de inércia do sujeito ativo, mas sim de cumprimento de ordem judicial cuja norma é proibitiva do exercício do direito de efetuar o lançamento.   *Texto oriundo dos debates deflagrados nas aulas do crédito de "Direito Processual Tributário" do curso de mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), ministrado pelo professor Rodrigo Dalla Pria [1] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 248. [2] CONRADO, Paulo Cesar. Processo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 115/116. [3] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 216/217. [4] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 202. [5] Para mais detalhes a respeito das tutelas provisórias e seus fundamentos, sugerimos a leitura dos seguintes artigos: https://www.conjur.com.br/2021-mar-16/camila-vergueiro-processo-tributario-tutela-provisoria https://www.conjur.com.br/2021-mai-23/processo-tributario-dobradinha-fundamento-tutela-provisoria-cpc2015 [6] GONÇALVES, Carla de Lourdes. A suspensão da exigibilidade nas ações preventivas. In: Processo Tributário Analítico. Coord. CONRADO, Paulo Cesar. vol. II. São Paulo: Noeses, 2016, p. 52. [7] A referência é ao seguinte dispositivo do texto Constitucional: Art. 5º. (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [8] GONÇALVES, Carla de Lourdes. A suspensão da exigibilidade nas ações preventivas. In: Processo Tributário Analítico. Coord. CONRADO, Paulo Cesar. vol. II. São Paulo: Noeses, 2016, p. 56 [9] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 261. [10] "PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. SUSPENSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CAUSA SUSPENSIVA CONSISTENTE EM LIMINAR ANTECIPATÓRIA CONCEDIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA. APLICAÇÃO DO ART. 151, IV, DO CTN. [...] 4. Exsurgindo a suspensão prevista no art. 151, IV, do CTN no curso de procedimento de constituição da obrigação tributária, o que se opera é o impedimento à constituição do crédito tributário. [...]". (REsp nº 453.762/RS; 1ª Turma; rel. min. Luiz Fux; DJ 17/11/2003). [11] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 263. [12] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário – Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 233/234. [13] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p.264. [14] Para complementar as informações a respeito dos efeitos das tutelas jurisdicionais de mérito no processo tributário, sugerimos a leitura dos seguintes artigos: https://www.conjur.com.br/2021-mar-02/paulo-conrado-processo-tributario-instrumentalidade https://www.conjur.com.br/2021-mar-09/opiniao-processo-positivacao-acoes-conflitos-tributarios https://www.conjur.com.br/2021-mai-16/processo-tributario-acoes-tributarias-antiexacionais-preventivas https://www.conjur.com.br/2021-mai-30/processo-tributario-mandado-seguranca-preventivo-vs-acao-declaratoria-negativa [15] Em outra oportunidade essa posição já havia sido sustentada por uma das autoras desse texto, no artigo com título "A suspensão da exigibilidade como agente inibidor do 'ciclo de vida' da obrigação tributária", publicado na Revista de Direito Tributário Contemporâneo (RDTC), editada pela Revista dos Tribunais (set/out, 2016. p. 35-50). [16] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 265. [17] MOURA, Nelson Henrique Rodrigues de França. A suspensão da exigibilidade do crédito tributário por medida judicial e a não incidência de multa e juros moratórios no período acobertado pela decisão. In: Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), nº 174. São Paulo: Dialética, 2010, p. 93.
2023-02-12T08:00-0300
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Opinião
Santos e Souza: Negócios jurídicos não condicionáveis
A condição é uma modalidade do negócio jurídico, isto é, um elemento acidental [1], que provém da vontade das partes, e subordina a eficácia do negócio a evento futuro e incerto. É, portanto, um limitador da vontade, como afirma San Tiago Dantas, acompanhado majoritariamente pela doutrina [2]. No entanto, nem toda condição pode ser aposta ao negócio jurídico, bem como nem todo negócio jurídico é condicionável. A primeira hipótese — condições impossíveis, ilícitas e outras — está fora do escopo desse trabalho. Quanto à segunda, Vicente Ráo afirma que existem dois tipos de atos incondicionáveis: os que, de algum modo, violem "o sentimento moral ou o interesse público", ou as declarações unilaterais receptícias (que exigem certo nível de certeza pela afetação ao patrimônio alheio) [3]. No mesmo sentido estão Beviláqua [4] e Carvalho Santos [5], e no direito estrangeiro, Cunha Gonçalves [6]. Em continuidade, Ráo afirma que os negócios jurídicos, em regra, são condicionáveis, com exceções que estão vinculadas à natureza do ato [7]. O brilhante doutrinador enumera três principais ocasiões de negócios que não podem ser condicionados: os que envolvem direitos da personalidade, os que são direitos-dever e os que, por conta de sua função, não comportam elementos de incerteza [8]. Francisco Amaral, destoando pontualmente, defende que as exceções à aposição de condição em negócios jurídicos são os atos unilaterais que devem ter eficácia imediata e os atos jurídico em sentido estrito, que têm efeitos decorrentes da lei [9]. Estes, segundo a nomenclatura de Amaral, denominam-se atos puros. O autor pontua que a aposição de condição é um exercício da autonomia privada. Sendo assim, em campos do direito no qual há pouco espaço para sua manifestação, como no direito da família, essa modalidade não é admitida [10]. Veja trecho no qual o autor sintetiza seu pensamento: "Pode-se assim dizer, sinteticamente, que são incondicionáveis: a) os negócios jurídicos que, por sua função, inadmitem incerteza; b) os atos jurídicos lícitos; c) os atos jurídicos de família, em que não atua o princípio da autonomia privada, salvo reduzidas exceções, pelo fundamento ético-social existente; d) os atos referentes ao exercício dos direitos personalíssimos". (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução [livro digital]. 10 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018).  Salvio de Figueiredo Teixeira, de modo mais sucinto, afirma que os negócios que envolvam relações de estado das pessoas são incondicionáveis, ao passo que os de cunho econômico são, em quase totalidade, condicionáveis (com ressalva para renúncia à herança, por exemplo) [11]. Essa posição é compartilhada por Carlos Roberto Gonçalves [12]. Silvio Rodrigues, de modo diverso, afirma que atos que não admitem condição são os que necessitam constituir-se desde logo de maneira definitiva, de modo que seria inconveniente permitir que uma condição obste a criação de uma situação permanente [13]. Cumpre pontuar, pois, que não parece haver uniformidade na doutrina quanto aos negócios e atos jurídicos incondicionáveis, de modo que, para nós, deve haver uma análise casuística da situação, de modo a analisar se o caso concreto pode ser encaixado em alguma das exceções. Para nós, contudo, os autores parecem convergir para a distinção de atos condicionáveis/incondicionáveis a partir de uma ideia dualista de interesse público e privado. Uma vez que há negócios que não podem ser submetidos a cláusula condicional, portanto, devemos nos perguntar qual o efeito sobre a validade e eficácia dos negócios jurídicos incondicionáveis nos quais, porém, foi aposta condição. Ráo explica que em negócios que envolvam direitos da personalidade a condição considera-se não escrita, de forma que eles "conservam sua eficácia plena (...) desaparece a condição, não o direito" [14]. No segundo contexto, envolvendo direito-dever, Ráo defende que o negócio deve ser considerado nulo caso condicionado, bem como não produz qualquer tipo de efeito. Já na terceira situação, na qual o negócio não comporta aumento de incerteza devido à sua natureza, o autor defende que a condição deve ser considerada como não escrita, e conservar o restante do negócio — como em casos de reconhecimento de filhos e emancipação. Francisco Amaral, de forma mais sucinta, sustenta que a regra é de que a condição deve não ser considerada, subsistindo o restante do ato. Há negócios, porém, que são invalidados, como o casamento e a adoção. O autor, como os demais outros, não estabelece critérios para aferir qual consequência irá recair em cada caso. Em uma análise de seus exemplos, porém, podemos aferir que negócios jurídicos que estejam cercados de certo interesse público sofrem com a invalidade, e não a desconsideração da condição. Silvio Rodrigues, seguindo a tendência da doutrina, não oferece critérios objetivos, mas enumera que casos como o casamento e aceitação de herança estão sujeitos à nulidade caso condicionados, ao passo que a condição na emancipação é considerada não escrita [15]. Carlos Roberto Gonçalves e Salvio de Figueiredo se limitam a afirmar que existem negócios incondicionados, sem explicar quais seriam os resultados da aposição de condições neles. Paulo Duarte, ao falar da designação condicionada de um árbitro, defende que se deve considerar sempre a autonomia privada e vontade das partes em um negócio jurídico. Dessa forma, em negócios condicionados nos quais não se aceita essa modalidade, ela deve ser tida como não escrita, conservando o negócio [16]. Ressalva-se, porém, questões de ordem pública e de cunho ético-moral, como anotou Vicente Ráo, pois o ordenamento jurídico não admite a sobreposição da autonomia privada ao interesse público. Desse modo, parece-nos que o negócio jurídico não condicionável no qual foi aposta condição pode ter dois destinos: 1) a desconsideração da condição, conservando o restante do negócio como se ela não fosse escrita; e 2) a nulidade e ineficácia do negócio por inteiro. As possíveis consequências, no entanto, não parecem ter sido tratadas na doutrina de forma geral e abstrata, cuidando mais os autores a tratarem de casos específicos e, a partir daí, determinar o possível resultado da aposição de condição. Sendo assim, parece-nos que a aposição de condição em negócio que não a admite deve ser analisada casuisticamente, levando em consideração qual a razão de o negócio não admitir acréscimo de incerteza para, a partir daí, afirmar se devemos desconsiderar a cláusula acidental ou nulificar o negócio [17]. A doutrina, com destaque para Vicente Ráo e Salvio de Figueiredo Teixeira, parece adotar, porém, uma linha que relaciona a nulidade do ato às questões que envolvem algum nível mais elevado de relevância social. [1] Sobre a nomenclatura, Caio Mário da Silva Pereira explica que "[c]omo não integram o esquema natural do negócio, dizem-se acidentais — accidentalia negotii —, não no sentido de que concretamente o negócio se desenvolva sem elas, pois que na verdade o vinculam para sempre, mas na acepção de que a figura abstrata do ato negocial se constrói sem a sua presença". (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Introdução ao direito civil - Teoria geral de direito civil [livro digital]. 34 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022). [2] "Estes fatos, estas circunstâncias, as quais pode ficar subordinada a eficácia de um ato jurídico, chamam-se — modalidade dos atos jurídicos. São as autolimitações da vontade. Há três espécies de modalidades (...) A condição é um evento qualquer, futuro e incerto, do qual se faz depender a eficácia de um ato jurídico". (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Edição histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 303-304) [3] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 251. [4] BEVILÁQUA, Clóvis. Theoria geral do Direito Civil. 1953, p. 296; Comentários ao Código Civil, v. 1. 1940, p. 368. [5] SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 1958, v. 3, p. 15. [6] GONÇALVES, Luiz Cunha. Tratado de Direito Privado, 1956, v.4, t. 2, p. 576. [7] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 251. [8] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 251. [9] "Não comportam, assim, condição, os negócios jurídicos unilaterais que devam ter eficácia imediata, não admitindo incerteza, como a aceitação e renúncia de herança (CC, artigo 1.808, 1a parte), ou de legado (...) Outra categoria, a dos atos jurídicos em senso estrito, em que é irrelevante o intento das partes, também inadmite a condição, precisamente porque os efeitos são determinados em lei, diversamente do negócio jurídico, cuja eficácia é ex voluntate". (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução [livro digital]. 10 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018). [10] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução [livro digital]. 10 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018 [11] "A condição, o termo e o encargo implicam certas restrições, obstando a aquisição do direito, impedindo seu exercício, determinando a perda de sua eficácia, ou, ainda, importando em imposição ao que, em virtude do negócio, se torna titular do direito. Ora, isso não se compatibiliza com os atos relativos ao estado das pessoas, como o casamento, a adoção ou a emancipação. Em regra, são admissíveis nos que tenham um conteúdo econômico, mas, mesmo em relação a esses, se há de fazer uma ressalva, pois a aceitação e renúncia da herança não admitem condição nem termo (artigo 1 .808)". (TEIXEIRA, Salvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 2, 2008, p. 298-299). [12] "As condições são admitidas nos atos de natureza patrimonial em geral, com algumas exceções, como na aceitação e renúncia da herança, mas não podem integrar os de caráter patrimonial pessoal, como os direitos de família puros e os direitos personalíssimos. Não comportam condição, por exemplo, o casamento, o reconhecimento de filho, a adoção, a emancipação etc". (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro [livro digital]. 20 ed. São Paulo: Saraiva, v.1, 2022) [13] "Negócios há, entretanto, que por sua natureza repelem a idéia de condição. São atos geralmente ligados ao Direito de Família ou ao Direito das Sucessões e que devem, desde logo, constituir-se de maneira definitiva, criando uma situação permanente. Seria inconveniente permitir que a presença de uma condição, que representa um elemento de incerteza, pendesse sobre tais atos, ameaçando sua eficácia". (RODRIGUES, Silvio. Direito civil – parte geral. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 242). [14] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 253. [15] RODRIGUES, Silvio. Direito civil — parte geral. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 243. [16] "O legislador presume, naturalmente, que as partes só aceitam vincular-se condicionalmente, e que, por conseguinte, não valendo a condição, não estão dispostas a obrigar-se. Ora, no caso da designação de árbitro sujeita a condição, é evidente para qualquer um que a vontade presumível do declarante (aquela vontade que qualquer declaratário normal lhe atribuiria), para o caso de não poder valer a condição, vai no sentido da manutenção da designação, pois é óbvia a preferência de qualquer litigante (preferência reconhecível para um declaratário normal) por um colégio arbitral que integre um árbitro designado por si, em vez de outro que seja nomeado pelo tribunal. O que corresponde, de resto, como vimos, ao modo supletivo de determinação de árbitros. Da nulidade da condição aposta ao acto de designação de árbitro não resultaria, pois, a nulidade deste último, que ficaria ileso, dando-se aquela como não escrita. Note-se, de resto, que, como lucidamente observa MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 719, é essa a solução que o legislador estabelece em várias hipóteses em que estão causa condições apostas em actos jurídicos em relação aos quais não assiste ao declarante 'liberdade de estipulação' (o que é próprio dos simples actos jurídicos)". (DUARTE, Paulo. A intervenção do tribunal judicial no processo de constituição do tribunal arbitral e o princípio do contraditório. In: Revista da faculdade de direito da ULP, v.1, n.1, 2012, p. 9. Disponível em < https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/2970>). [17] Nesse sentido: "[q]uestão que não pode ser resolvida uniformemente é a que diz com as conseqüências de impor-se a um ato ou negócio jurídico a cláusula não admissível. Variam essas conseqüências, dependendo da cláusula e da natureza do ato ou negócio". (TEIXEIRA, Salvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 2, 2008, p. 299).
2023-02-13T11:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-13/santose-souza-negocios-juridicos-nao-condicionaveis
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Tribuna da Defensoria
Ainda a leitura do depoimento policial para fins de confirmação
Um tema que já deveria ter sido pacificado no âmbito do processo penal diz respeito à impossibilidade de leitura, por quem quer que seja, do depoimento policial para a testemunha com mera finalidade confirmatória. Nesse caso, não é necessário sequer fazer o jogo de palavras, utilizando o termo "(im)possibilidade" porque isso sugestionaria a existência de uma dúvida acerca da lisura desse procedimento. Não há qualquer dúvida. O processo penal, como Denis Sampaio menciona nas suas aulas [1], é um instrumento pelo qual o Ministério Público, titular da ação penal, atua unidirecionalmente com o objetivo de confirmar uma hipótese descrita na denúncia. Por outro lado, cabe à defesa a tarefa de infirmar a hipótese ou, tão importante quanto, demonstrar que existem outros caminhos fáticos possíveis, não havendo como se ter certeza sobre a dinâmica dos fatos. Esse processo (necessariamente dialético) de confirmação/refutação de hipóteses tem seu clímax na audiência de instrução e julgamento. E não poderia ser diferente, haja vista que, conforme reclama o artigo 155, CPP, salvo enumeradas exceções, é necessário, para fins de proferimento de uma sentença condenatória, de prova judicializada. E o momento para judicialização da prova é na audiência de instrução e julgamento. Enfrentemos, então, o argumento aventado, explicando porque não é lícita a prática de leitura do Ministério Público do depoimento policiais para fins de confirmação. O ponto de partida, como não poderia ser outro, é o Código de Processo Penal. O artigo 204 do Código de Processo Penal estabelece: Artigo 204. O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito. O depoimento é, portanto, necessariamente oral e, para além disso, espontâneo. Daí porque o exame direto ter como principal característica as perguntas abertas: possibilitar que as testemunhas, de maneira oral e espontânea, tragam a sua versão dos fatos, sem amarras. Após esse processo é que o juiz vai analisar se há prova suficiente para condenação ou não. Pode-se alegar que o parágrafo único do mesmo dispositivo possibilita que a testemunha faça breve consulta a apontamentos. Isso, diferente do que pode ser alegado, não é um permissivo para a leitura do depoimento policial para fins de confirmação. Ainda que a testemunha traga consigo apontamentos escritos para breves consultas, se optar por fazê-lo, ainda está-se preservando o caráter da espontaneidade do depoimento, que é totalmente solapado se o depoimento se limitar a confirmar aquilo que disse em outra oportunidade. Além de ilegal, essa prática vulnerabiliza de sobremaneira o standard probatório, cujo cuidado deve ser o epicentro da atuação defensiva, como ensina a Defensora Pública Lara Teles Fernandes [2]. Quando o membro do Ministério Público lê o depoimento para que a testemunha apenas o confirme, não há como saber, de verdade, se esta, de fato, se recordou do objeto de questionamento, ou apenas está confirmando aquilo porque sabe que disse em outra oportunidade. E essa diferença é assaz importante no processo penal. Se o artigo 155 do Código de Processo Penal veda a condenação exclusiva com base em elementos de informação, a leitura do depoimento para fins de confirmação, não é outra coisa que, desrespeitando a um só tempo a oralidade e a espontaneidade, uma tentativa de modificar a natureza jurídica do elemento, que, em tese, passaria de elemento de informação para prova, possibilitando, assim, uma condenação. Ilegal, diga-se de passagem [3]. Na defesa dessa prática (repisa-se, ilegal), pode-se sugestionar que o processo é público, de sorte que não haveria óbice à leitura de um dos seus elementos, como o depoimento prestado na fase policial. Essa tese, apesar de tentadora, não pode ser acolhida. Uma das principais regras procedimentais que regem a colheita da prova oral, a fim de garantir o seu controle de qualidade encontra-se prevista no artigo 212 do Código de Processo Penal. Nesse dispositivo, há a vedação de quaisquer das partes perguntar às testemunhas: 1 Perguntas que possam induzir a resposta. 2 Perguntas que não tenham relação com a causa. 3 Perguntas que importem na repetição de outra já respondida. Concentremo-nos a análise na primeira vedação. São vedadas perguntas que possam induzir a resposta. Sem ressalva, sem exceção. A fim de garantir a qualidade da prova, nenhuma espécie de pergunta que tenha o condão de induzir a resposta pode ser aceita. E quando se tem isso em mente fica simples confirmar a tese levantada de início: nada tem maior capacidade de induzir a resposta do que ler algo que a testemunha disse em outra oportunidade para que ela apenas confirme. Isso às vezes é bem disfarçado. Às vezes não. Fato é que essa prática é viciada, e não por preciosismo, mas como garantia da qualidade da produção da prova oral. E ao que parece, cabe cada vez mais à Defesa esse controle. [1] SAMPAIO, Denis. Técnicas de inquirição de testemunhas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DstGP5JNR_4. Acesse em 9 fev. 2023. [2] FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração. 2. Ed. Florianópolis: Emais Editora, 2020. [3] TALON, Evinis. E se o MP lê o depoimento da testemunha e pergunta se ela o confirma?. Disponível em: https://evinistalon.com/mp-le-o-depoimento-da-testemunha-e-pergunta-se-ela-o-confirma/. Acesso em: 09 fev. 2023.
2023-02-14T08:00-0300
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Contas à Vista
Conselho de Riscos Fiscais Judiciais, dívida pública e precatórios
O governo federal acertou ao instituir o Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais através do Decreto 11.379/22, cuja função primordial é a de propor medidas de aprimoramento da governança em relação ao macroprocesso de acompanhamento de riscos fiscais judiciais da União, das suas autarquias e fundações. De fato, tal medida é importante e deveria ser adotada para toda a federação, e não apenas para o âmbito federal. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) já exige que anualmente a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) traga um Anexo de Riscos Fiscais, pelo qual devem ser avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas. Ocorre que tal anexo, elaborado no âmbito federal pela Advocacia Geral da União, é frequentemente negligenciado, como se viu no recente e deplorável episódio dos precatórios. Duas Emendas Constitucionais foram necessárias para pedalar o pagamento dos precatórios federais, para que, segundo o ministro Guedes (que não leu o referido anexo), fosse afastado o meteoro que ameaçava as contas públicas em face da pretendida reeleição e do teto de gastos. Tais Emendas Constitucionais geraram um efeito bola de neve, que será sentido nos próximos anos. Ocorre que o teto de gastos está morto, matado pelo artigo 9º da Emenda Constitucional 126, que, de forma juridicamente estranha, determinou sua revogação tão logo sancionada a lei complementar que deve ser proposta até agosto deste ano, com o objetivo de "instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país" (artigo 6º). De fato, poderia haver dúvidas se os precatórios se caracterizariam como despesa ou como dívida. O artigo 30, §7º da Lei de Responsabilidade Fiscal determina que, não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos, passam a integrar a dívida consolidada. Ocorre que, antes disso, os precatórios poderiam ser caracterizados como dívida flutuante, ou seja, aquela de prazo inferior a 12 meses, conceito no qual também entram outros itens (Lei 4.320/64, artigo 92 e Decreto 93.872/86, artigo 115, §1º). Consequentemente, não impactariam o teto de gastos, mas a opção do governo federal de então foi outro. Enterrado o teto de gastos, o papel que o Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais deverá cumprir se potencializa. E a adoção de algum mecanismo semelhante, que obrigue o acompanhamento rotineiro da dívida não bancária seria muito importante também para estados e municípios. Afinal, situações como estas ocorrem em todos os governos do país, sendo que a dívida pública é essencialmente contabilizada como a dívida do governo junto ao setor financeiro, o que é uma visão reducionista. De fato, a dívida pública é muito maior do que a bancária. Alguns exemplos, além dos precatórios, falam por si. Existem dívidas de todos governos junto às empresas decorrentes de contratos cumpridos e não pagos, mesmo havendo o empenho que garantiria o pagamento — não fosse o hábito recorrente de estados e municípios de arbitrariamente cancelar os empenhos ao final de cada ano, conforme expus em outro texto. Os exportadores possuem créditos contra os estados decorrentes dos resíduos de exportação e isso sequer é contabilizado. O Estado brasileiro é mais endividado do que se imagina e os números oficiais apontam. É de crucial importância o papel de um conselho como o recém-criado no âmbito federal, também para estados e municípios, afinal, os credores de contratos empenhados e não pagos, os exportadores que não recebem o resíduo de ICMS na cadeia produtiva, dentre muitos outros, podem vir a ingressar em juízo e aumentar "os riscos fiscais judiciais" e impactar as contas públicas, sem que a alegação de ter surgido um meteoro seja capaz de os afastar. Afinal, o ente público não acaba porque encerra o mandato de seus dirigentes. É importante que este conselho federal funcione, pois nele tem assento os titulares do Ministério da Fazenda, do Ministério do Planejamento e Orçamento e da Advocacia Geral da União, que o presidirá. A iniciativa de um Conselho da Federação, como recentemente efetuado, é igualmente importante, embora suas funções ainda estejam um pouco nubladas. O ideal seria implantar o Conselho de Gestão Fiscal que está previsto no artigo 67 da Lei de Responsabilidade Fiscal com funções definidas, e que já tarda mais de 20 anos. O governo acertou em mirar na dívida. Faltam medidas para a despesa pública. Afinal, não basta olhar apenas para a receita, na qual as medidas propostas são contestáveis (por exemplo, no Carf, seja na reintrodução do voto de qualidade, seja na elevação da alçada recursal), além de apresentar um horizonte bastante nublado para a reforma tributária. O que se busca, conforme determinado pelo Congresso, é a adoção de um "regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país" (EC 126, artigo 6º), o que implica na adequada correlação entre arrecadação, gasto e dívida.
2023-02-14T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-14/contas-vista-conselho-riscos-fiscais-judiciais-divida-publica-precatorios
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Paradoxo da Corte
Imprevisibilidade da Justiça brasileira como fator de insegurança
Diante do resultado do julgamento dos Temas 881 e 885 pelo Supremo Tribunal Federal, fico me perguntando se não seria o caso de me matricular em algum curso de Direito para me atualizar acerca de novos princípios e conceitos que emergem da atual interpretação que a nossa Corte Suprema tem conferido a algumas questões transcendentes, de grande relevância social e econômica. De fato, com o referido julgamento por apertadíssima maioria, o Brasil se torna, com certeza, o único país do mundo no qual a jurisprudência retroage ferindo de morte a coisa julgada material, que tem expresso assento constitucional. Ora, é ressabido que a ordem se descortina essencial tanto à vida individual como ao convívio no seio da coletividade. Toda sociedade, independentemente de seu grau de evolução, pressupõe mínima organização, sem a qual de modo algum poderia subsistir. Conhecida é, a propósito, a exortação de Goethe, no sentido de que é preferível alguma injustiça à desordem, numa significativa demonstração de que ao seu sagaz espírito não passou despercebido que a existência normal do ser humano impõe uma estabilidade que só a ordem permite proporcionar. Essa exigência de ordem, que traz implícita a noção de segurança, indispensável a qualquer modelo de convivência, é de tal sorte profunda, que, ao longo do tempo, irrompe espontânea e natural. Com o desenvolvimento da sociedade, uma das principais funções das instituições públicas é a de construir estruturas de ordem e estabilidade para regrar as relações entre os membros da comunidade. Cabe, assim, às normas jurídicas acrescentar, a essa estabilidade ordenadora das instituições sociais, uma segurança específica e própria, à qual se costuma denominar de segurança jurídica. Como bem destaca Arthur Kaufmann, na esteira, aliás, de secular concepção, um elemento indispensável da segurança jurídica é a força da coisa julgada das sentenças judiciais, significando que um provimento judicial que adquire tal status não mais pode ser impugnado pelos instrumentos jurídicos ordinários. "O processo se encontra terminado: Roma locuta, causa finita" (Filosofía del Derecho, tr. cast. Luis Villar Borda e Ana Maria Montoya, da 2ª ed. alemã de 1997, p. 349). Com efeito, o dogma da coisa julgada visa essencialmente a pôr um ponto final nos litígios. É famoso, a propósito, o brocardo interest rei publicae ut sit litium finis... A imutabilidade que passa a exornar o conteúdo decisório da sentença de mérito transitada em julgado, como expressivo e peculiar fenômeno do processo de conhecimento, tem por escopo, como é curial, de um lado, obstar à eternização dos litígios e, de outro, garantir a paz social, prestigiando a previsibilidade e sobretudo a segurança jurídica, ainda que em detrimento da própria justiça. Não obstante, a teor do artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil, tratando-se de relação jurídica de prestações sucessivas, é possível que, com o passar do tempo, sobrevenha novo entendimento pretoriano, cuja eficácia se projetará para o futuro (ex nunc), ainda que contrária à precedente coisa julgada. Tal fenômeno, aliás, não é incomum, em particular, nas relações tributárias. Determinado tributo poderá passar a ser exigido, por força de norma jurídica ou de decisão em controle concentrado supervenientes, tornando insubsistente a eficácia da coisa julgada formada sobre sentença anterior que havia declarado a inexigibilidade daquele tributo. São, na verdade, situações corriqueiras de mudança do estado de direito a revogação ou a derrogação das leis objeto do controle de constitucionalidade e o advento de novos preceitos normativos, inclusive de natureza constitucional. Desse modo, declarada, por exemplo, constitucional a lei na qual se baseou a sentença para reconhecer não tributável determinada atividade do contribuinte, a obrigação tributária, em relação ao futuro, passará a ser exigível. O efeito vinculante da declaração de constitucionalidade é, sob o aspecto temporal, logicamente posterior à eficácia dessa respectiva decisão, portanto, ex nunc. É, pois, segundo lição de Teori Albino Zavascki, "a partir da data da publicação da decisão do Supremo, cuja eficácia erga omnes lhe outorga incontestável valor normativo, que se opera uma relevante modificação do estado de direito: a da declaração, com efeito vinculante e erga omnes, da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade do preceito normativo. Essa modificação, embora não seja apta a desconstituir automaticamente os efeitos passados e já consumados da sentença que julgou o caso concreto, terá, certamente, influência em relação aos seus efeitos futuros. Relativamente a estes prevalecerá, em substituição ao comando da sentença anterior, o efeito vinculante da decisão proferida na ação de controle concentrado" (Coisa Julgada em Matéria Constitucional: Eficácia das Sentenças nas Relações Jurídicas de Trato Continuado, Doutrina do STJ, edição comemorativa — 15 anos, 2005, pág. 129). Foi nessa direção, em obséquio à garantia da coisa julgada, que, há mais de dez anos, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou a tese atinente ao Tema Repetitivo 340, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.118.893/MG, no sentido de que: "Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade". Ora, todos estes fatores ao longo do tempo infundiram nos contribuintes a certeza de que não seria mais exigida a CSLL até que eventualmente tal orientação fosse modificada. Assim, como bem apontado em lúcido e preciso texto de Hamilton Dias de Souza, diante da situação jurídica então vigente, "empresas que possuíssem decisões, definitivas, que validassem o não recolhimento de determinados tributos não estavam obrigadas a reportar tais fatos em seus balanços, muito menos provisionar os valores aproveitados" (Nota a respeito do julgamento dos temas 881 e 885 de repercussão geral, inédito). É ocioso frisar que a eficiência da justiça e a constância da jurisprudência em relação a determinadas questões de natureza empresarial trazem significativos reflexos no contexto econômico. Na verdade, a insegurança que nasce do advento de um novo precedente, em substituição à orientação consolidada, acarreta um custo social e econômico elevadíssimo, mesmo nos sistemas que não conhecem força vinculante da jurisprudência, uma vez que a situação de incerteza gerada pela mudança somente poderá ser eliminada depois de um período relativamente considerável para que seja consolidada a nova regula. Esse problema foi enfrentado pela Suprema Corte da Alemanha, que revelou grande perplexidade com o fato de que a mudança de rumo dos precedentes judiciais pode mesmo ensejar o "desaparecimento da base do negócio, quando as partes contratantes partiram da análise da situação jurídica que resultava da jurisprudência anterior" (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed., tr. port. José Lamego, Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1997, pág. 617). No entanto, no indigitado pronunciamento por demais tardio, o plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar no último dia 8 de fevereiro, os Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227 (temas de repercussão geral 881 e 885), de forma absolutamente inusitada, por maioria, deixou de modular os efeitos da decisão. O ponto fulcral do debate estabelecido entre os ministros girava em torno da discussão se a exigência de recolhimento da CSLL seria a partir do acórdão ou se retroagiria a 2007, quando o Supremo reputou constitucional a cobrança da contribuição. Deixando então de fixar um marco temporal, ou seja, de modular os efeitos do acórdão, não tenho dúvida em afirmar que o resultado da decisão colegiada vulnera expressamente a coisa julgada, para atingir ex tunc "os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado" atinentes à exigência da CSLL. Isso significa que os contribuintes que estavam garantidos porque tinham a seu favor a eficácia da coisa julgada mesmo antes de 2007 agora passam a dever, certamente com todos os encargos incidentes, a CSLL a partir de 2007 (em muitos casos, mesmo observando-se os prazos decadencial e/ou prescricional aplicáveis)! Como se infere de exemplo fornecido em reportagem estampada no caderno Economia & Negócios, publicada no Estadão de 10 de fevereiro, o "Grupo Pão de Açúcar (GPA) estava isento da CSLL desde 1992, por decisão judicial. Agora, terá de pagar o tributo, retroagindo a 2007 — ano em que o STF definiu que essa cobrança era constitucional. A empresa estimou que terá de pagar R$ 290 milhões". A rigor, invocando mais uma vez o experiente ponto de vista de Hamilton Dias de Souza, "o prejuízo imposto aos contribuintes, relativamente a períodos passados, tem origem na demora do próprio Judiciário, que, apenas em 2023, veio a regrar, por seu tribunal de cúpula, os efeitos de suas decisões sobre os casos transitados em julgado". Não se trata, à evidência, de aposta alguma, uma vez que estes contribuintes tinham assegurada a inexigibilidade da CSLL: a) pela coisa julgada; e b) pelo expressivo pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado na fixação do Tema Repetitivo 340. Sabe-se que esta orientação aplica-se a diversos contribuintes amparados pela eficácia da coisa julgada que lhes asseguravam a inexigibilidade de outros tributos posteriormente declarados constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como IPI na revenda de importados e Cofins de sociedades prestadoras de serviços. Igualmente legítima e compreensível a expectativa, surpreendentemente frustrada, de que o novo entendimento somente agora adotado pudesse ser objeto de modulação. Afinal, assim se dera em situação em tudo semelhante, em que foram resguardados os interesses fazendários em razão da "interpretação até então consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive em sede de recurso repetitivo" (STF, Tema 69). Concluo, por fim, que o referido julgamento, além de rasgar a Constituição Federal, que consagra, no artigo 5º, inciso XXXVI, a garantia fundamental da coisa julgada, produz inequívoca incerteza e insegurança às relações negociais, em detrimento do prestígio ao Supremo Tribunal Federal.
2023-02-14T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-14/paradoxo-corte-imprevisibilidade-justica-brasileira-fator-inseguranca
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Opinião
Arnaldo Godoy: Acordo do Carf e a Hidra de Lerna
Há notícias de avanço de acordo entre governo e OAB em torno do espinhoso tema do voto de qualidade no Carf. Os termos da proposta estão disponíveis no site da OAB, tal como (creio) juntados na ADI nº 7.347. Uma iniciativa louvável. O texto é precedido de justificativas, todas também louváveis, e seguramente centrais no contexto da construção do consenso, especialmente em nicho tão acirrado, a propósito do que vemos na relação entre o Fisco e o contribuinte. Essa última expressão, contribuinte, utilizada no Código Tributário, parece-me, foge à realidade dos fatos. Imposições tributárias são mandatórias, o que afasta o conceito de contribuição, a menos que o percebamos pelo destino da arrecadação (contribuir com as despesas do Estado) e não em relação ao sujeito passivo da obrigação tributária. Melhor chamarmos o contribuinte de cidadão, porque é esse quem recolhe os tributos, inclusive quando à frente de pessoas jurídicas. A proposta de acordo na ADI 7.347, pelo que entendi, suscita que o voto de qualidade (desempate pelo presidente da Turma, indicado pelo ministro da Fazenda) seja considerado constitucional, na esfera da União, quando cumpridos alguns pressupostos. É no conjunto desses pressupostos que, penso, há indícios de dilemas que não se resolvem no plano do acordo. Um dia deverão ser definitivamente enfrentados. Antes, no entanto, os postulados que informam o arranjo que se pretende emplacar. No caso de desempate em favor da Fazenda (para ser mais claro) há previsão de exclusão de multas e cancelamento de representação fiscal para fins penais. O perdedor pagará apenas o principal e ficará livre de ação penal que seria supervenientemente proposta, a juízo do Ministério Público. De igual modo, e na mesma hipótese, o perdedor tem prazo de 90 dias para manifestar interesse em pagamento (e pagar, obviamente, em até 12 parcelas) com a exclusão dos juros, até a data do julgamento. Nesse caso, calcula-se, tão somente, o montante principal do débito. Não se entra aqui na discussão entre o significado de crédito ou de débito, com problematizada por Fábio Fanucchi nos anos de 1970. O inadimplemento chama a incidência de juros. O perdedor estaria autorizado a utilizar créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL (quanto titular dos créditos). Essa fórmula depende de várias circunstâncias, entre elas a condição resolutória de homologação posterior, o que não é novidade nesse tipo de trava negocial. O perdedor poderá inclusive utilizar precatórios para amortização e liquidação do remanescente. Eventual inscrição em dívida ativa afastará os encargos do Decreto-lei nº 1.025, de 21 de outubro de 1969 (honorários). Primeira leitura, apressada (no calor dos fatos, e sigo a autoadvertência que Fernando Faccury Scaff registrou aqui na ConJur em seu artigo sobre recente decisão do STF), dá impressão de que o questionamento judicial da decisão (o que justificaria o não pagamento) acenaria com a retomada dos juros. Vale dizer, e de forma simples: quem questionar judicialmente a decisão contrária, e não pagar, correria o risco de arcar com juros, anteriormente perdoados. Caveat! A iniciativa, insisto, é louvável. No entanto, um analista mais crítico dos fatos poderia alavancar algumas outras questões, como a que coloquei bem acima. O reconhecimento de que o voto de qualidade é um problema (e é, tanto que há a ação e o acordo) dá-nos conta de uma nova forma de suspeição no direito brasileiro: a suspeição por presunção. Nunca vi isso no CPC ou no CPP. Presume-se que a decisão do conselheiro fazendário será pela Fisco e a decisão do conselheiro do contribuinte (rectius, cidadão) será pela insubsistência do crédito. Se válida a premissa, melhor não se decidir dessa forma, ou de forma alguma. Melhor seria a solução do jogo de dados, como lemos na deliciosa sátira de Rabelais. Uma análise estatística poderia clarificar a aporia. Já defendi o voto de qualidade. E o fazia por uma razão de ordem formal. Entendia que a regra da dúvida (com benefício do contribuinte) estaria no CTN como reminiscência do projeto originário de Rubens Gomes de Souza, no qual havia disposições sobre direito penal tributário. Mais tarde, revi a posição. O lançamento é ato que deve ser marcado por certeza absoluta, dado seus reflexos no patrimônio do cidadão, a par de algumas razões de ordem prática, a exemplo da presunção que marca o artigo 3º da Lei de Execuções Fiscais (que é de 1980, e que também exige ajustes). Uma dúvida, e o empate é na realidade uma ambiguidade, retira do lançamento a certeza de que necessita para prosperar no mundo real. O problema não estaria na lei, o problema poderia estar nas agências que aplicam a lei. Tomo essa premissa de Sérgio André Rocha, professor da Uerj. cuja resenha de um de seus livros publicarei na minha coluna Embargos Culturais domingo agora. Há necessidade de uma solução definitiva, quem sabe no contexto de uma justiça tributária especial e especializada, com todos os julgadores remunerados, e independentes de premissas interpretativas de representação do Fisco ou dos contribuintes (cidadãos). O momento exige coragem de se comparar o orçamento do Carf (e os valores adjudicados por suas decisões) com outras instâncias de julgamento, uma delas mais do que centenária. Sou um admirador do Carf e de seus julgadores. Quando coordenador-geral de Assuntos Tributários na PGFN, organizei (ao lado de Paulo Riscado e de Cláudia Gusmão) a definitiva representação do órgão no Carf (nascia a Cocat). Senti na alma a dor de um amigo conselheiro, acima de qualquer suspeita, injustamente emparedado pela Zelotes. Orientei uma ex-presidente do Carf (Adriana Gomes Rêgo) em belíssima dissertação de mestrado, sobre os problemas do Carf. Admiro o atual presidente, Carlos Higino de Alencar, competentíssimo, que foi ministro de Estado, formado em Economia pela USP, em Direito pela UFC, com mestrado e doutorado em centros qualificados estudo, inclusive na França e nos Estados Unidos. Convivo amistosamente com procuradores, advogados e conselheiros que lá atuam. Acompanho os julgamentos com atenção. A iniciativa para pacificação da questão é mais do que louvável. Mas algum crítico poderia nos lembrar, no entanto, o parentesco do acordo com aqueles tratados de paz dos anos de 1910 que plantavam tensões intransponíveis, e que resultaram em mais guerras. Projeta-se um consenso mandatório, o que revela em termos lógicos um oxímoro: são conceitos opostos (consenso e ordem para consentir) que mutuamente se excluem. E se toda sentença de absolvição é a confissão de um erro judiciário (de acordo com um pensador francês, falecido em 1984, amaldiçoado por muitos), uma prévia distribuição dos ônus da condenação, com mais razão, é a confissão de um erro organizacional. A função de qualquer tribunal (incluído o Carf) é garantir a igualdade de tratamento e o efetivo contraditório. É também buscar a solução integral do mérito (quem tem razão), em prazo razoável. O sistema processual (incluído o administrativo) é ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e normas estabelecidos na Constituição. Entre eles, o livre acesso ao Judiciário, restringido com a retomada dos juros como penalidade para quem judicializar a questão. Corre-se o risco de que um contribuinte (cidadão) aceite um lançamento tributário, porque houve empate no Carf (e há dúvida), pagando o que não devia, ainda que com generosos descontos. O problema pode estar enfrentado por enquanto, no que parabenizo os construtores da solução. Mas não está resolvido. É como a figura da Hidra de Lerna da mitologia grega, cujas cabeças, mesmo quando cortadas, se regeneravam ato contínuo.
2023-02-15T20:29-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-15/arnaldo-godoy-acordo-carf-hidra-lerna
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Opinião
Ana Cláudia Pinho: Juízes garantistas e a pauta da igualdade
Há um senso comum (não de todo equivocado) no sentido de que um juiz garantista possui atributos para atuar, preferencialmente, em matérias criminais. O equívoco é, parcialmente, justificado. Explico. O Garantismo de Luigi Ferrajoli — como já destaquei em artigos anteriores — chega aqui no Brasil como "Garantismo Penal", já que vem por meio da tradução de seu Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale (1989), publicada pela editora Revista dos Tribunais, em sua primeira edição, no ano de 2002. Importa registrar que, antes de Direito e Razão, o autor italiano já havia publicado um sem número de textos, artigos e reflexões sobre Teoria do Direito e Política, em livros e revistas especializadas, mas sem tradução para o português. Isto é, Ferrajoli chega ao Brasil tomado por um autor do campo penal, coisa que jamais foi (ele é um grande filósofo do Direito), muito embora domine, de forma impressionante, os fundamentos do Direito e do Processo Penal, o que o credenciou a formular a teoria do Garantismo Penal. Mas, o que poucos sabem é que o Garantismo de Luigi Ferrajoli não se esgota na teoria do Garantismo Penal. Aliás, na quinta e última parte do Diritto e Ragione, intitulada "per una teoria generale del garantismo", o maestro deixa claro que as formulações propostas nas seções anteriores do livro, em relação ao modelo do Garantismo Penal (liberal), podem ser alargadas para outros campos do ordenamento jurídico, a partir da compreensão de três acepções genéricas do termo "Garantismo": i) como modelo normativo de Direito; ii) como teoria jurídica e iii) como uma filosofia política[1]. E, de fato, essa formatação bem mais ampla do Garantismo Jurídico vem, alguns anos depois, na forma do capolavoro do professor Ferrajoli, que é o seu Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia, em três volumes. Aqui Ferrajoli trabalha, com uma profundidade inigualável, fundamentos da democracia e da teoria do direito, a partir do método axiomático, deixando bastante clara a sua preocupação com os rumos e o futuro da democracia constitucional, bem como do sistema de garantia de direitos, não somente em nível local, mas, sobretudo, global. Podemos, assim — após conhecer um pouco mais da obra de Ferrajoli — falar em cinco dimensões do Garantismo: i) penal (liberal), ii) civil, iii) patrimonial, iv) social e v) internacional[2]. De modo geral, aqui no Brasil, as discussões sobre o Garantismo ainda se limitam ao campo penal. Insisto, porém, em algo fundamental: a importância da teoria do Garantismo Penal é indiscutível! (oxalá a conhecêssemos a fundo e corretamente). Todavia, se queremos falar (como é a pretensão deste breve artigo) em uma dimensão mais alargada da teoria cunhada pelo mestre italiano, a fim de situar a questão da igualdade e correlacioná-la com o modelo de juiz garantista, precisaremos ampliar o foco e fazer alguns necessários recortes críticos. Onze anos depois do Principia Iuris, em 2018, Luigi Ferrajoli publica o sensacional Manifesto per l'uguaglianza (Manifesto pela igualdade), no qual se dedica a demonstrar a imprescindibilidade de se compreender o significado complexo e de múltiplos valores pragmáticos do princípio da igualdade. Para isso, parte do que ele chama de domanda di fondo: por quê, por quais razões, a igualdade? Por quais razões o princípio da igualdade é tutelado em todos os ordenamentos jurídicos avançados, como norma de categoria constitucional e fundamento de seu caráter democrático[3]? "A igualdade é estipulada porque somos diferentes (entendida a diferença aqui como a diversidade de identidades pessoais) e porque somos desiguais (entendida a desigualdade aqui como diversidade nas condições materiais de vida)." Com essa resposta apriorística, Ferrajoli abre seu universo de análise, passando por todos os temas mais caros a essa questão, advertindo que é "uma necessidade da razão, um dever moral e uma obrigação jurídica que a política leve finalmente a sério o princípio da igualdade, reduzindo, a nível não só local, mas também internacional, essa gigantesca lacuna de garantias e de instituições de garantias dos direitos fundamentais, de cuja efetividade depende o futuro da paz, da democracia e da segurança geral"[4].        O tema ocupa, no pensamento de Ferrajoli, uma importância destacada. Portanto, diferentemente do que algumas críticas ácidas costumam sugerir — de que se trataria de um autor com ingenuidade iluminista e, de certa forma, desconectado da realidade (sobretudo da realidade de países periféricos, como o Brasil) — Ferrajoli está preocupado, e não é pouco, com os caminhos que o Direito, a democracia, a igualdade e os bens fundamentais estão tomando em nível global[5]. Por isso, aconselho, fortemente, a leitura desse livro. Importante que superemos (ou melhor, extirpemos) alguns mitos… Não é demais relembrar, ainda, que Luigi Ferrajoli foi juiz na Itália e, também por isso, conhece, de forma privilegiada, o funcionamento do sistema de justiça, a estrutura do Poder Judiciário e, sobretudo, a real deficiência do sistema de garantias. Em outras palavras: não se trata somente (o que não seria pouco) de um dos maiores teóricos do Direito da atualidade, senão de alguém que — para além disso — domina de perto a realidade a partir da qual fala. No seu Manifesto, após estabelecer os parâmetros epistemológicos de sua tese (trabalhando conceitos que lhe são caros, como direitos fundamentais, democracia formal e substancial, legge del più debole, antinomias e lacunas, dentre outros), Luigi Ferrajoli transita por temas como: direitos sociais e economia, igualdade e seus inimigos (onde desenvolve questões como a discriminação, a antropologia racista da desigualdade, a posição propriedade x igualdade), trabalho e soberania popular, a utopia concreta da renda mínima garantida, a situação dos imigrantes (que ele chama de "pessoas sem direitos") e, por fim, o seu projeto de um constitucionalismo do futuro. Pode-se ver, com clareza, que existe uma densa e sofisticada formatação teórica para dar conta de aspectos do Garantismo, que estão para muito além do penal (liberal). Conhecer somente uma parte da (complexa) arquitetura ferrajoliana pode credenciar um juiz para lidar — sob a luz do Garantismo — com uma parcela das questões que lhes forem submetidas à análise, mas talvez não para lidar com outras. O juiz garantista, portanto, há de estar preparado para enfrentar a pauta da igualdade, com o mesmo rigor com o qual enfrenta, por exemplo, a pauta do encarceramento em massa. Mas, para isso, é crucial que compreenda o Garantismo em todas as suas dimensões, a partir das formulações próprias e conhecendo, sobretudo, os fundamentos da teoria, aqueles criteriosamente construídos em Principia Iuris. Isso é inegociável! Por quê? Respondo: se o juiz não compreender as bases, não conhecer como se estruturam as categorias ferrajolianas, não estudar a fundo a teoria dos direitos e bens fundamentais, não assimilar corretamente a distinção entre as obrigações de não lesão e as obrigações de prestação, correrá o enorme risco de: i) no campo penal, tornar-se um punitivista e ii) no campo social, não ser arrojado o suficiente para dar conta das pautas da igualdade. Esclareço: um juiz que não compreenda bem os fundamentos e não conheça as dimensões do Garantismo, corre um sério risco de acreditar, por exemplo, ser possível — em nome do que quer que seja (bem comum, interesse público, direitos de determinados grupos vulnerabilizados, etc.) comprometer garantias fundamentais de pessoas acusadas de crimes. Forja-se uma crença de que é possível flexibilizar algumas garantias penais/processuais penais em nome de algo "maior". Já vimos o quanto formulações do tipo “garantismo integral" atacam, na essência, a tese de Ferrajoli[6]. Exemplos muito comuns são de tentativas, tanto teóricas, quanto legislativas, de hiperinflacionar o Direito Penal e amputar garantias caras ao Processo, em nome de pretensos “combates" à corrupção, às drogas, etc. Esse mesmo juiz pode ser totalmente comprometido com as agendas sociais, com a questão da diversidade e compreender muito bem a necessidade de assegurar a igualdade, porém, na seara criminal, pode facilmente claudicar e, por exemplo, desrespeitar garantias constitucionais, em nome de uma "boa causa", se não compreender bem a inexorabilidade dos fundamentos garantistas. Insisto: foi por conta, exatamente, do discurso "das pessoas de bem", em torno do "combate à corrupção" que — de uns tempos para cá — na senda do que Luigi Ferrajoli chama de "gigantismo processual"[7], próprio de um Direito Penal de exceção (e que, entre nós, tem data, nome e sobrenome: 17 de março de 2014 — operação "lava jato") — o Garantismo passou a ocupar as pautas. Agora, não mais as acadêmicas, senão as midiáticas. Deixou de ser tema dos corredores universitários, para virar papo de mesa de bar… Daí a minha insistência (às vezes, reconheço, enfadonha) em falar seriamente sobre Garantismo. É sintomático que o Garantismo tenha ocupado esse lugar de "maldito", com a deflagração da "lava jato" e tudo o quanto de nefasto veio a reboque, próprio daquilo que um sistema penal de exceção põe de manifesto. Um verdadeira cruzada (antigarantista) à emergencia da vez: a corrupção. Eleito o inimigo (e hoje nós bem sabemos quem foi), o sistema penal é apresentado como solução e, para isso, tudo pode, tudo vale; os fins justificam os meios. Essa é a lógica que caracteriza, conforme descrito por Ferrajoli, um modelo de Direito Penal autoritário/substancialista e de Processo Penal inquistório/decisionista, que é o modelo antípoda ao idealizado pelo Garantismo (Direito Penal mínimo/racionalista e Processo Penal acuasatório/cognoscitivista). Eis aí exposto o gravíssimo risco de uma má compreensão da teoria… Esclareço, ainda: do contrário, um juiz totalmente cumpridor das garantias penais e processuais penais, se desconhecer a dimensão mais alargada do universo de Ferrajoli, corre um grave risco de não se implicar com a pauta da igualdade, por não entender essa outra dimensão transformadora (obrigações de prestação) e, assim, permanecer inerte, quando seu agir seria indispensável à sedimentação da democracia. Concluo: o que pretendi deixar claro, a partir de uma breve apresentação (reconheço, superficial) dessa outra dimensão do Garantismo de Luigi Ferrajoli é que um juiz verdadeiramente garantista precisa estar atento para toda essa construção teórica, entendendo as especificidades a partir das quais cada estrutura se compõe. Não dá para misturar as estações. Isso pode implicar graves e irreversíveis riscos à Constituição e à democracia. A coisa é complexa, sim. Mas, Luigi Ferrajoli jamais prometeu facilidades… [1] FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale. Roma: Editori Laterza, 1989. Páginas 891/893. [2] Há uma excelente passagem que esclarece essa formulação, que deixo de transcrever pelo curto espaço desse artigo. FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia. 1. Teoria del diritto. Roma: Editori Laterza, 2007. Páginas 194/198. [3] FERRAJOLI, Luigi. Manifesto per l’uguaglianza. Roma: Editori Laterza, 2018. Página 3.  [4] In op. cit. Página XI (Prefazione). Tradução livre.  [5] Nem mesmo temas como o aquecimento global, o risco dos conflitos nucleares, a morte de milhões de pessoas a cada ano por falta de alimentação básica e de atendimento de saúde, a centena de milhares de imigrantes em fuga, o poder selvagem do mercado, dentre outros, estão fora das lentes de Luigi Ferrajoli. Sobre isso, conferir o indispensável livro Per una Costituzione della Terra: l’umanità al bivio. Milano: Feltrinelli Editore, 2022. [6] Sobre o tema, cf. O garantismo (penal) de Luigi Ferrajoli: apontamentos (des)necessários a certas “críticas” Made in Brazil. PINHO, Ana Cláudia Bastos de. ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. SALES, José Edvaldo Pereira. In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Belo Horizonte, ano 17, n 26, p. 155-186. Jul/Dez 2019. [7] Ao trabalhar a questão da falta de efetividade das garantias no Direito Penal italiano (corresponde à quarta parte do “Direito e Razão”), Luigi Ferrajoli identifica o que ele denomina de um “subsistema penal de exceção”, que toma assento todas as vezes que existe uma opção política por um regime de legislação de emergência, que compromete as garantias, sob a justificativa de combate a algum tipo específico de crime. Na Itália, os anos 70 foram emblemáticos na utilização desse modelo, tendo como alvo o “terrorismo”. Mais tarde, aparece a “máfia" a exigir exatamente a mesma resposta emergencial. Como características desse modelo de exceção, Ferrajoli descreve o gigantismo processual e os maxiprocessos. Tal gigantismo compreende três dimensões: horizontal (abertura de macro investigações contra centenas de imputados, mediante medidas invasivas, baseadas em frágeis indícios), vertical (multiplicação, a cargo de cada imputado, dos delitos adjudicados, circularmente deduzidos uns dos outros - os delitos associativos dos delitos específicos, e vice versa) - ou, ainda, induzidos a título de concurso moral dos adstritos aos co-imputados) e temporal (prolongamento desmedido dos processos, que se arrastam, não raro sem razão, às vezes com intervalos de anos entre a conclusão da instrução e o início do juízo, de modo que se cumpra o máximo de prisão preventiva. In Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 2000. Página 823)  
2023-02-15T12:17-0300
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Opinião
André Soares, tenente-coronel do Exército: O golpismo militar
A tentativa de golpe de Estado que inaugurou o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, perpetrada pelos atos terroristas em Brasília, no último dia 8 de janeiro, ferindo de morte a democracia e a soberania nacionais, tragédia vexatória e sem precedentes na história do Brasil, foi engendrada, comandada e acobertada pela cúpula militar. Assim é que, no epicentro da mais gravosa crise militar desde o término da ditadura, o ápice do desvirtuamento militar golpista no país foi externado pelo general de Exército Richard Fernandez Nunes, comandante militar do Nordeste, em seu artigo Mundo PSIC e a Ética Militar, publicado no blog do Exército Brasileiro (Eblog), em 1/2/2023, e reproduzido pela ConJur. Em seu artigo, o general Richard afirma que "o papel desempenhado pelas Forças Armadas no cenário nacional" está vitimado pelo "atingimento de patamares consideráveis" de "precipitação, superficialidade, imediatismo e conturbação", por "condutas em desacordo com a ética militar". Tem-se, portanto, a comprovação fática cabal do golpismo dos atos terroristas e o testemunho inconteste de autoridade militar da mais elevada hierarquia do Exército brasileiro a demonstrarem que o país foi e continua sendo perigosamente ameaçado por contingências gravemente atentatórias à democracia e ao Estado constituído, perpetradas por integrantes da cúpula militar. E o quartel-general dessa conspiração é a caixa-preta dos serviços secretos, seu braço operacional e mais poderosa organização criminosa do país, absolutamente acima da lei, que é comandada com mão-de-ferro pela alta cúpula militar há mais de meio século, legado maldito do famigerado e extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), criado pela Lei 4.341, de 13 de junho de 1964, cuja atual sucedânea é a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), criada pela Lei 9.883, de 7 de dezembro de 1999, cuja histórica ineficiência, além de escabrosa é também criminosa. O diagnóstico minucioso desse colapso institucional militar revela um histórico no Brasil de graves impropriedades quanto à sua administração e emprego, que demandam urgentes correções em toda sua estrutura. Tais correções vão desde a revisão do papel constitucional das Forças Armadas (artigo 142, Constituição de 1988), dos planos de carreira e currículos de formação militar, que devem ser atualizados em níveis de absoluto comprometimento democrático, de legalidade e de valores ético-morais; a extinção do serviço militar obrigatório (artigo 143, Constituição de 1988), de cunho eminentemente assistencialista, que deve ser substituído pelo profissionalismo do serviço militar voluntário, extensivo às mulheres; perpassando ainda pela procrastinada unificação das polícias militar e civil e desmilitarização do corpo de bombeiros estaduais; bem como a atualização do Código Penal Militar (CP) (Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969) e do Código de Processo Penal Militar (CPPM) (Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969), em obediência aos mais elevados preceitos constitucionais de respeito às liberdades individuais e da presunção de inocência, sem olvidar do digno direito à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal. Quanto à atuação da Justiça Militar, é por demais importante relembrar de bom alvitre as sábias e veementes críticas que lhes foram proferidas em 2013, pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Joaquim Barbosa, que, denunciando ao país a "escandalosa" onerosidade da Justiça Militar, defendeu peremptoriamente a sua extinção. Contudo, a complexidade e gravidade do golpismo militar no Brasil assumem contornos ainda mais graves, extrapolando o alcance da implementação das referidas medidas, as quais, por si só, representam desiderato nunca antes enfrentado pelo Estado brasileiro. Porquanto até mesmo a consecução desse ingente desafio, dando reenquadramento aos militares rigorosamente adstritos ao âmbito institucional, não extirpará o histórico golpista da cúpula castrense. Porque ele é uma degenerescência que, desde o término da Guerra do Paraguai (1870), divorciou as Forças Armadas brasileiras do exercício exclusivo da única e real atividade-fim que legitima verdadeiramente as Forças Armadas em todo mundo: o emprego em combate. Destarte, há quase dois séculos, as Forças Armadas são "não operacionais", significando que quando forem conclamadas ao derradeiro combate, para o cumprimento de sua precípua missão constitucional de defesa da pátria, confiar-se-á o destino do Brasil a militares que nunca combateram, cujo projeto de poder de sua cúpula desvirtuou-se para o "golpismo", que é o destino fatídico que acomete os países possuidores de Forças Armadas "não operacionais". Ademais, por importante, ressalta-se ainda que, contrariamente, países desenvolvidos e democráticos, como Estados Unidos, Israel, França, Reino Unido, dentre outros, que são possuidores de forças armadas profissionais e operacionais, rigorosamente empenhadas no exercício exclusivo da sua real e legítima atividade-fim: o emprego em combate; estão naturalmente imunizados contra golpismos de qualquer natureza. Portanto, a "não operacionalidade" das Forças Armadas é a degenerescência determinante do golpismo dos militares, que protagonizaram os golpes de Estado no Brasil: da Proclamação da República (1889), de 3 de Novembro (1891), da Revolução de 1930, do Estado Novo (1937), da deposição de Getulio Vargas (1945), do Movimento 11 de Novembro (1955), da Ditadura Militar (1964); da recente tentativa de golpe de 8/1/2023; e da próxima tentativa de golpe no país, a ser perpetrada pelo radicalismo de extrema-direita da cúpula militar, inimiga de morte da democracia e da legitimidade do governo Lula. Por fim, que a tentativa de golpe de Estado de 8/1, felizmente malsucedida, tenha servido de alerta derradeiro aos governantes e à sociedade brasileira sobre a descomunal magnitude da ameaça que o golpismo militar representa ao Estado democrático de Direito, contra o qual o Estado constituído está completamente vulnerável. Afinal, verdade seja dita, a recente tentativa de golpe somente não se concretizou porque a cúpula militar golpista se acovardou. Portanto, urge combater essa assombrosa ameaça, o que demanda a quebra do monopólio dos militares sobre o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR), cuja chefia deve ser entregue a um civil, assim como no Ministério da Defesa, eliminando-se definitivamente a influência dos militares sobre a caixa-preta dos serviços secretos e a completa extinção da Abin, condição "sine qua non" também para a edificação de uma nova e eficiente Inteligência de Estado e de um próspero Brasil.  Contudo, caso os governantes e a sociedade persistam na reincidência dos mesmos erros passados, condenar-se-á novamente o Brasil a eternizar-se refém da caixa-preta dos serviços secretos, fortalecendo a criminalidade insaciável dos militares golpistas, ávidos pela deposição dos governos opositores e pela implantação de mais uma ditadura no país.
2023-02-15T11:11-0300
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Opinião
General Richard Fernandez Nunes: Mundo PSIC e ética militar
Em abril do ano passado, em artigo publicado no Blog do Exército Brasileiro, provoquei o pensamento crítico dos leitores com a cunhagem do acrônimo PSIC, para caracterizar o ambiente informacional da atualidade. Decorridos dez meses, retorno ao tema, por constatar que a precipitação, a superficialidade, o imediatismo e a conturbação atingiram patamares consideráveis, devido ao comportamento de muitos civis e militares, quando o assunto abordado é o papel desempenhado pelas Forças Armadas no cenário nacional. Tratando especificamente do Exército Brasileiro, cabe relembrar que sua História, cuja gênese remonta às Batalhas dos Guararapes, confunde-se com a própria evolução histórica do País. A atuação da Força Terrestre é ampla e abrangente, cobrindo nosso território de dimensões continentais com o braço forte e a mão amiga, o que exige tomada de decisões desde os níveis político e estratégico aos ambientes operacional e tático. A cada um desses níveis correspondem especificidades no que tange ao estudo de situação e à liderança. É bem sabido que não há solução tática capaz de corrigir uma formulação estratégica inadequada. E é indispensável destacar que só se chega aos mais altos postos percorrendo-se todos os graus hierárquicos, após décadas de dedicação à carreira das armas. Ninguém ingressa no Exército como general! Essa óbvia constatação é importante para que se compreenda o contexto ético-profissional que distingue a carreira militar. Hierarquia e disciplina, bases institucionais constantes em nossa Lei Magna, representam a própria essência da força armada. São conceitos que traduzem o exato cumprimento do dever e o respeito à cadeia de comando, composta por autoridades, em todos os escalões da estrutura da Força, que alcançam determinada posição, tendo experimentado as vicissitudes de seus subordinados. Esse arcabouço ético também é composto pelos valores indispensáveis a quem se dispõe a seguir a vida militar: patriotismo, coragem, lealdade, camaradagem, espírito de corpo, fé na missão, entre outros. Esses valores, ainda que universais, podem manifestar-se de modo distinto, conforme o nível de atuação considerado. A coragem esperada de um comandante tático, por exemplo, não se expressa da mesma forma que a de um líder no nível estratégico. Semelhante na essência, distingue-se na demonstração. Se do primeiro se requer o acatamento imediato da ordem recebida para conduzir seus subordinados ao cumprimento da missão; do outro se espera firmeza na defesa de princípios e valores, de tal forma que, por vezes, dizer "não" pressupõe muito mais coragem do que alinhar-se a eventuais pressões de caráter político. E o que o Mundo PSIC tem a ver com isso? Tudo! Pois é exatamente na dimensão informacional que temos assistido a condutas em desacordo com a ética militar por parte daqueles que, por indignação, ingenuidade, desconhecimento e, até mesmo, má-fé, têm contribuído para disseminar a desinformação, a relativização de valores e, consequentemente, a desunião que enfraquece o espírito de corpo. Fica a pergunta: a que interesses servem tais pessoas? Analisando-se o que têm expressado, via de regra em mídias sociais e aplicativos de mensagens, que adicionaram a comodidade do anonimato a esse tipo de atitude, facilmente se identificam as componentes PSIC. A precipitação é marca típica desse ambiente repleto de meias-verdades e fake news, onde se disparam e replicam mensagens sem a menor preocupação com a veracidade dos fatos e a idoneidade das fontes. Toma-se como verdade, de modo absolutamente irresponsável, conteúdos com juízos de valor destinados ao ataque a reputações e à crítica a decisões dos escalões superiores. Iniciado o processo, que é realimentado por “gatilhadas” digitais, o que se produz é uma verdadeira marcha da insensatez. A um militar que se preza não se permite essa falta de cuidado e de lealdade para com a instituição a que serve. A superficialidade é outro aspecto dissonante do comportamento ético. A atividade militar é, por natureza, grave e complexa. Em tempos de paz ou de conflito armado, lida-se com o poder dissuasório da Nação. Soluções simples para problemas complexos não são a regra. Tratar o emprego do Exército com base em análises simplórias de "especialistas" de ocasião, é o caminho mais seguro para se chegar a concepções inoportunas, parciais e ineficazes, o que é inadmissível por quem quer que tenha um mínimo de seriedade no processo de tomada de decisão. Quando um militar extrapola a esfera de suas atribuições, e passa a opinar publicamente sobre o que não é de sua competência, contribui para o descrédito na cadeia de comando e no cumprimento da missão. O imediatismo, por princípio, não se coaduna com o caráter permanente atribuído às forças armadas no texto constitucional. A relação custo-benefício de se trocar ganhos imediatos por duradouros resultados positivos costuma caracterizar vitória de Pirro. Os preceitos da ética militar indicam claramente que não se pode prejudicar a reputação e a credibilidade do Exército, conquistadas em séculos de História, por conta do oportunismo de uns e do jogo de interesses de outros, algo que tem sido observado em inúmeras postagens veiculadas em tempos recentes. A conturbação talvez seja o aspecto mais danoso do Mundo PSIC. A excessiva polarização da sociedade e a atuação dos extremos do espectro ideológico no ambiente informacional têm gerado visões radicais, resultando num círculo vicioso de intolerância e de absoluta ausência de diálogo. Essa situação é inaceitável aos membros de uma instituição apartidária, que se orgulha de oferecer oportunidades a todos os brasileiros, sem distinção de classe social, raça, gênero e credo. O inconformismo com a tradicional postura legalista e de neutralidade do Exército tem dado ensejo a insultos a camaradas de longa data, ataques a reputações típicos de regimes totalitários, "vazamentos" de supostas informações, divulgação de memes difamatórios, tudo para tentar atingir a coesão da Força, em flagrante traição ao sacrossanto respeito à hierarquia e à disciplina. Sendo os recursos humanos a força da nossa Força, é imperioso reafirmar diuturnamente a essencialidade da prática e do culto aos princípios e valores característicos da profissão militar para o aprimoramento da capacidade operacional necessária ao cumprimento de suas diversas missões. *artigo publicado originalmente no Blog do Exército Brasileiro
2023-02-15T10:18-0300
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Processo Novo
STF deve modular os efeitos de decisão sobre coisa julgada
Em julgamento concluído em 8/2/2023, o Supremo Tribunal Federal deliberou que as decisões por ele proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado quanto a relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. O assunto é extremamente complexo e pode ser analisado em várias camadas. Nesta edição da coluna me deterei em alguns problemas relacionados, especificamente, à necessidade de modulação de efeitos da referida decisão, para que a tese firmada seja aplicada daqui em diante, e não retroativamente. Nas relações jurídicas de trato sucessivo (ou de trato continuado, expressão contida no artigo 505, inciso I do Código de Processo Civil de 2015), havendo alteração do estado de fato ou de direito, a coisa julgada torna-se ineficaz. Note-se que a sentença transitada em julgado não se torna nula, nesse caso. Ela permanece válida, regendo pedido e causa de pedir formulados em atenção ao estado de fato e de direito que a informaram. É o que ocorre com a sentença que fixa o valor a ser pago a título de pensão alimentícia: havendo alteração da situação financeira das partes, o valor da pensão alimentícia poderá ser revisto. A coisa julgada formada na ação de alimentos não é rescindida, pois ela adere às condições fáticas e jurídicas antes existentes. A superveniência de novas condições (por exemplo, aquele que recebe pensão alimentícia é aprovado em concurso e passa a receber remuneração por seu trabalho) exigirá que novo valor seja estabelecido, já que a sentença antes proferida é ineficaz em relação a essa nova circunstância fática. O Supremo partiu do pressuposto de que, quando ele decide sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma regra jurídica que tenha sido considerada no julgamento de relações tributárias de trato sucessivo, há modificação de estado de direito. As decisões proferidas anteriormente, assim, tornam-se ineficazes diante do novo quadro normativo decorrente da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Seguiu-se o entendimento de que decisão do Supremo que declare o tributo constitucional ou inconstitucional é análoga a uma nova lei que altere o tributo. Alterada a lei, a sentença anterior é ineficaz em relação à nova circunstância jurídica — embora continue a existir validamente em relação as contingências que existiam previamente. Para os ministros do Supremo, sua declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade operaria de modo similar à nova lei que altera o status jurídico em que se baseara sentença antes transitada em julgado. Assim, o tributo poderia ser doravante devido ou indevido, caso o Supremo declare que o dispositivo que instituiu o tributo legal é constitucional ou inconstitucional. O primeiro problema reside exatamente aí. Esse entendimento (quanto à ineficácia de coisa julgada formada anteriormente ante a superveniente decisão do Supremo em controle de constitucionalidade), conquanto tomado à unanimidade pelos ministros da corte, não era pacífico na jurisprudência dos tribunais (na sessão realizada em 8/2/2023, aliás, vários dos ministros afirmaram inexistir manifestação do plenário da corte a respeito dessa questão). Tenha-se presente que mesmo o Superior Tribunal de Justiça se manifestara em sentido diverso, tendo, inclusive, consagrado seu entendimento ao decidir o tema repetitivo nº 340 (REsp 1.118.893, julgado em 23/3/2011). O assunto, portanto, carecia de deliberação pelo plenário do Supremo e, enquanto isso, no Superior Tribunal de Justiça sedimentara-se orientação contrária à que veio a prevalecer, só agora, no Supremo Tribunal Federal. Pode-se afirmar que ao Supremo Tribunal Federal, e não ao Superior Tribunal de Justiça, incumbe dar a "última palavra" a respeito da questão. Mas, assim como tantos outros, também aqui está-se diante de ponto em que há dúvida quanto a se saber se o tema é puramente constitucional, puramente infraconstitucional, ou apenas reflexamente constitucional. Enquanto não houve deliberação do plenário do Supremo Tribunal Federal a respeito, o que havia a nortear não apenas os jurisdicionados, mas também os órgãos jurisdicionais, era a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça. Há, ainda, outros problemas. No caso levado em consideração, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que foi tida como aquela que modificou o estado de direito (a que se refere o artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil) seria a proferida pela Corte em 2007, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 15. No caso, pleiteava-se a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 7.689/1988, mas o pedido foi julgado parcialmente improcedente. Consta, da ementa do referido julgamento, naquilo que nos interessa: "Improcedência das alegações de inconstitucionalidade formal e material do restante da mesma lei, que foram rebatidas, à exaustão, pelo Supremo Tribunal, nos julgamentos dos RREE 146.733 e 150.764, ambos recebidos pela alínea 'b' do permissivo constitucional, que devolve ao STF o conhecimento de toda a questão da constitucionalidade da lei". De acordo com o artigo 23 da Lei 9.868/1999, "efetuado o julgamento" de ação direta pelo Supremo, "proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada". O artigo 24 da mesma Lei, por sua vez, estabelece que "proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória". No caso, e na parte que aqui importa, o pedido veiculado na ação direta de inconstitucionalidade nº 15 foi julgado improcedente, o que conduziria à declaração de constitucionalidade da disposição impugnada. Sempre consideramos inapropriada a ideia prevalecente na jurisprudência majoritária do Supremo (cf., por exemplo, Rcl 1.880-AgR, 431.715-AgRg) no sentido de que, julgada improcedente ação direta de inconstitucionalidade, a regra atacada haveria de ser considera doravante inatacável, insuscetível de ser considerada inconstitucional por outra causa de pedir. Assim escrevemos, em sede doutrinária: "Segundo nosso modo de pensar, a decisão que declara a constitucionalidade (isso é, que julga improcedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade ou julga procedente pedido em ação declaratória de constitucionalidade) apenas rejeita o fundamento que poderia conduzir à inconstitucionalidade da norma. Os juízes do STF não são oniscientes, não sendo possível declarar, a priori, que inexiste qualquer outra razão que possa levar a que se considere inconstitucional a norma. Dizer, como o STF diz nesses casos, que 'a norma x é constitucional', não significa mais que dizer 'o fundamento y não torna a norma x inconstitucional'. [...] Como afirmamos acima, tal conclusão é impossível: o STF não pode a ela chegar, pois não tem condições de afirmar 'a integral constitucionalidade dos dispositivos questionados', já que algum fundamento novo pode vir a ser suscitado no futuro — ou porque 'descoberto' no sistema, ou porque o estado social e econômico, ou mesmo o sistema jurídico como um todo, sofreu alguma mudança" (Constituição Federal Comentada, 7ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, p. 569, em comentário ao artigo 102, § 2º, da Constituição). Essa orientação já foi considerada pelo STF (cf., p. ex., Rcl 4.374). De todo modo, ocorre que, como destacaram os ministros que votaram a favor da modulação na sessão realizada em 8/2/2023, o reconhecimento da constitucionalidade da regra atacada e a consequente ineficácia das decisões proferidas em favor de contribuintes em demandas individuais anteriores não teriam sido proclamadas de forma tão clara, quando do julgamento ocorrido em 2007. Nessa ocasião, o pedido foi julgado improcedente sob o argumento de que, em outras decisões (estas, em recursos extraordinários), o tribunal já teria se debruçado suficientemente sobre essa matéria. No entanto, o Supremo não deliberou, explicitamente, sobre o destino das coisas julgadas formadas em ações movidas anteriormente por contribuintes. Note-se que o Supremo nem sempre agiu (ou age) desse modo. Algo diverso, por exemplo, fez a corte ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 101, em 2009, quando, expressamente, afirmou-se que, a partir de tal julgamento, doravante cessariam os efeitos de decisões judiciais pretéritas e proferidas com indeterminação quanto ao seu conteúdo temporal, se contrárias ao comando contido no julgamento proferido pelo Supremo. Há, por fim, um outro ponto a considerar. De acordo com a tese firmada pelo Supremo, as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado relações de trato sucessivo. Nem sempre, porém, o conteúdo do julgamento proferido pelo Supremo é claro em termos absolutos, quanto ao seu alcance, em relação a sentenças anteriormente proferidas e transitadas em julgado. Em muitas circunstâncias será indispensável confrontar uma a uma as decisões antes transitadas em julgado com aquela proferida posteriormente pelo Supremo, para, então, se poder conferir se seus comandos são efetivamente opostos e excludentes, ou se convivem ao menos em parte. Pode-se, por exemplo, colocar-se em confronto uma decisão transitada em julgado que tenha reconhecido a constitucionalidade de dado dispositivo legal e, posteriormente, sobrevenha julgado do Supremo que tenha dado interpretação conforme à Constituição ao mesmo artigo de lei, de modo a não ficar claro em que medida haverá efetiva oposição entre tais pronunciamentos. Em tais circunstâncias, como proceder? O ministro Teori Albino Zavascki, cujas lições foram tantas vezes invocadas no decorrer do julgamento concluído em 8/2/2023, sugere a seguinte saída: "Qualquer controvérsia sobre a ocorrência ou a extensão da alteração do status quo, ou sobre as consequências dela decorrentes, pode provocar a iniciativa dos interessados em levar o tema à apreciação judicial". Não se tratará, nesse caso, de ação revisional: "não será para provocar a constituição ou a extinção ou a modificação da relação jurídica certificada judicialmente, mas para declarar que esses efeitos já foram operados pela mudança do estado de fato ou de direito" (Coisa Julgada em Matéria Constitucional: Eficácia das Sentenças nas Relações Jurídicas de Trato Continuado, Doutrina do STJ - Edição Comemorativa -15 anos, p. 121). O ajuizamento de ações com esse propósito é indesejável, inclusive porque, em país com dimensões gigantescas como o Brasil, isso poderia ensejar o ajuizamento de milhares de ações com o propósito de esclarecer se e em que medida a decisão posterior do Supremo tornará ineficazes sentenças anteriores transitadas em julgado. No entanto, não se descarta que isso venha a ocorrer, caso não se modifique a conclusão do julgamento que se encerrou em 8/2/2023. Para evitar esse indesejável estado de coisas, é de todo conveniente que, ao realizar controle abstrato de constitucionalidade (em ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo) ou ao firmar tese em julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida sobre questões que digam respeito a relações jurídicas de trato continuado (tributárias ou não), o Supremo Tribunal Federal delibere com clareza acerca de quais decisões transitadas em julgados se tornarão ineficazes, evitando, com isso, o surgimento de nova litigiosidade. Caso isso não ocorra no momento apropriado (isso é, quando do julgamento da ação direta, tal como ocorreu naquela de nº 15, julgada em 2007), o termo inicial da ineficácia deverá ser aquele momento ulterior em que o Supremo vier a se pronunciar sobre a questão (seja em embargos de declaração opostos contra a decisão que julgou a ação direta, seja ao solucionar a controvérsia que inevitavelmente tornará a chegar ao Supremo, tal como sucedeu com os temas 881 e 885, que acabam de ser julgados). Há outras questões a serem consideradas na análise do julgado antes referido. Por exemplo, deve ser tida com reservas a orientação que equipara a revogação de uma lei à decisão do Supremo que declara a inconstitucionalidade de uma lei. Embora essas figuras se mostrem aproximadas naqueles casos em que o Supremo atua como "legislador negativo", não explica os outros modos e as outras formas de controle de Constitucionalidade manifestadas através de decisões interpretativas (interpretação conforme à Constituição, declaração parcial de nulidade sem redução de texto), e muito menos as oriundas de decisões manipulativas (substitutivas, aditivas), a recomendar que a própria tese firmada quanto aos temas 881 e 885 deva ser revista ou, ao menos, esclarecida quanto ao seu alcance. Este é um dos problemas que merecerão análise em edição própria nesta coluna, no futuro.
2023-02-15T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-15/processo-novo-supremo-modular-efeitos-decisao-coisa-julgada
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Consolidação oitentona
Legado da CLT será tema de evento na Faculdade de Direito da USP
Marco histórico na legislação do país, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) será tema de seminário que o Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social (Getrab) promoverá em 2 de março, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Intitulado "80 anos da CLT — Passado, Presente e Futuro das Relações de Trabalho", o seminário tratará do legado da Consolidação e de suas oito décadas de serviços prestados aos trabalhadores. Entre os conferencistas confirmados estão o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho; os ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Alexandre Agra Belmonte e Maria Cristina Irigoyen Peduzzi; e o ministro aposentado do TST Almir Pazzianotto. A organização é do professor titular aposentado da USP Nelson Mannrich, coordenador do Getrab e sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados. Gratuito, o evento ocorrerá das 15h30 às 19h. Haverá emissão de certificados aos participantes. Programação Marcada para as 16h, a conferência de abertura abordará o papel dos grupos de estudos no fomento da pesquisa. Participam do debate o professor Mannrich e o reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior. Em seguida, o diretor da Faculdade de Direito da USP, professor Celso Campilongo, falará sobre "o legado da CLT para as futuras gerações e o trabalho como valor e ética no trabalho". Às 16h40, Peduzzi, Belmonte e Pazzianotto participam do painel "Passado, Presente e Futuro da CLT". Luiz Carlos Amorim Robortella, presidente da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, conduz a mesa. Já o ministro Luiz Marinho participa do encerramento do seminário, às 18h, na conferência "CLT para a Presente e Futuras Gerações de Trabalhadores". Depois, haverá o lançamento do livro 80 Anos da CLT: Passado, Presente e Futuro das Relações de Trabalho no Brasil. Clique aqui para se inscrever
2023-02-16T21:36-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-16/legado-clt-tema-evento-faculdade-direito-usp
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Senso Incomum
A autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição?
Resumo: resta saber se o presidente do Banco Central é o superego da nação. O tema "independência ou autonomia do Banco Central" está na ordem do dia. O novo governo faz fortes críticas à atuação do BC. Afinal, a taxa de juros no Brasil é o dobro da inflação, desbordando do que ocorre com as demais taxas do mundo (vide EUA e União Europeia). Para além da economia, o que o Direito pode dizer? Gilberto Bercovici foi quem melhor tratou do assunto no artigo Sobre o Banco Central Independente [1]. O artigo tem de ser lido. Por juristas, economistas, jornalistas e jornaleiros. Bercovici reconstrói a história institucional do fenômeno. Mostra o fator "privatização dos bancos estaduais" ocorrida na década de 90 como elemento primordial da centralização da autoridade monetária no Banco Central. Diz também que o problema desse processo de reestruturação da política monetária foi o fato de que a recomposição da capacidade de intervenção pública se esgotou na tentativa de controle sobre os gastos públicos. Fala também da bizarrice que foi a equiparação da função de presidente do Banco Central do Brasil à de ministro de Estado em 2004. Isso gerou uma certa confusão institucional: um presidente de autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda (artigo 8º da Lei 4.595/1964) se torna equiparável a ministro de Estado, ou seja, com as mesmas prerrogativas de função daquele que supostamente é seu superior hierárquico na administração pública, o ministro da Fazenda. Mas vinha coisa mais complexa pela frente: a tão falada autonomia do Banco Central (Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021). Pela nova legislação, o presidente e a diretoria do Banco Central passam a ter mandatos fixos e não coincidentes com o mandato do presidente da República, que perde o poder de nomear e demitir os ocupantes dessas funções quando bem entender. Bercovici chama a essa entidade um "Frankenstein" na estrutura administrativa brasileira: uma autarquia não subordinada ao presidente ou a nenhum ministro, um órgão que paira no ar, sem vínculos, sem controles. Esse é o busílis. O Supremo Tribunal teve a chance de dar um fim nesse Frankenstein. Porém, na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6.696, decidiu pela constitucionalidade. Passa um pequeno período de tempo e surgem fatos novos. Taxa de juros estratosférica que coloca em polos opostos o novo presidente eleito e o presidente do Banco Central. O ponto que se põe é: qual seria o dispositivo constitucional que daria suporte à lei que concede autonomia ao Banco Central? Ao argumento de que ele deve ser autônomo para estabilizar a economia, cabe perguntar: a golpe de caneta monetária o presidente do BC tem mais capacidade do que toda a equipe econômica de um presidente da República? A Constituição estabelece quem deve cuidar da economia. E nisso está inserida a estabilidade e a responsabilidade social para com a população. Examinando o texto constitucional, temos que ali estão determinadas as normas para a consecução de políticas públicas que devem visar a erradicar a pobreza e fazer justiça social (por exemplo, artigo 3º). Isso sem considerar o próprio cerne daquilo que chamamos de "Constituição Econômica". Parece que esquecemos que a nossa Constituição tem o claro perfil dirigente. A CF/88 é compromissória e dirigente, filha das Constituições dirigentes do segundo pós-guerra, mormente se pensarmos em países periféricos como o Brasil. Lembro que nos anos 90 cunhei a tese de uma CDAPP — Constituição Dirigente Adequada para Países Periféricos, na esteira da já então criticada Constituição Dirigente tratada pelo constitucionalista J J Gomes Canotilho. Dizia eu, então, no que fui acompanhado por Gilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni, que a nossa Constituição, a par das críticas ao dirigismo original feito pelo próprio Canotilho, continuava dirigente [2]. Mais: de minha parte, a tese do dirigismo constitucional continua válida enquanto não resolvermos o triângulo dialético propugnado pelo próprio Canotilho, inspirado em Johan Galtung (falta de segurança, pobreza e falta de igualdade política). A Constituição ainda vale. E nela nada consta sobre Banco Central independente ou autônomo. Banco Central aparece oito vezes no texto da Constituição. Nenhuma vez sequer se insinua a sua autonomia ou independência para além do poder do presidente da República — basta ver que o regime continua sendo o presidencialista. Trata-se de analisar o papel do Estado na economia. E o do governo. Enquanto não resolvermos esses problemas (pobreza, segurança e igualdade política), ainda precisamos de forte atuação estatal para a consecução desses objetivos constitucionais. Isto é, aqui no Brasil a Constituição que dirige não morreu. E por isso precisamos de uma Constituição que diga o que fazer. Que resgate compromissos. Que resgate as promessas modernas até hoje incumpridas. E a nossa diz claramente como fazer isso. Quer queiramos, quer não queiramos. A Constituição é um fato. Ou ela vale apenas quando se fala em imunidades e isenções? Não parece adequado à Constituição um organismo como o Banco Central autônomo, cujo presidente, sem mandato popular, sem legitimidade, estabeleça as diretrizes do desenvolvimento econômico. Porque, no fundo, é isso que acontece. O Banco Central manda mais que o presidente. O Brasil é uma República representativa. Presidencialista. Elege-se o presidente para elaborar políticas públicas. Que devem ser compatíveis e obedecer a Constituição. Ora, se o presidente do Banco Central resolver triplicar a taxa de juros em relação ao índice inflacionário (duplicada já está) e isso gerar mais pobreza, quer dizer que a atuação do presidente do Banco Central é inconstitucional, porque a Constituição diz o contrário. Pior: a culpa e responsabilidade serão debitadas na conta de quem foi eleito presidente. Da República. E não do Banco Central. Sei que parece uma platitude dizer isso. Mas por aqui há que se dizer o óbvio — que se esconde no anonimato. Tem-se a impressão de que estamos no mundo de paroxismos. Ocorre uma disputa quase fratricida nas eleições. Quase ocorreu um golpe. Elege-se o presidente. E quando ele quer fazer cumprir, para o bem e para o mal, sua plataforma de governo, o presidente do Banco Central atua como superego da nação. Resta saber se o Banco Central pode tanto a ponto de ser esse superego, espécie de grilo falante do sistema político-econômico. Numa palavra final, retomo Bercovici, para dizer que, para além de toda a questão constitucional, o problema da "independência" do Banco Central é menos jurídico e essencialmente político. A pergunta que deve ser feita é: Banco Central independente de quem? Ao que parece, o BC é independente do sistema político e de todo e qualquer controle democrático — com o que se volta à questão constitucional. Por último, alguém dirá que essa questão já está decidida pelo STF. Respondo, dizendo: mas o STF não disse que o modelo anterior era inconstitucional. Consequentemente, então, na pior das hipóteses, a Constituição admitiria mais de uma possibilidade de configuração. Além disso, o fato de o STF dizer por último não significa que esteja sempre certo. E decisões não são eternas. Isto é, o presidente da República pode entender, e o Congresso também, que esse modelo de "independência" do Banco Central criou um problema do ponto de vista político e econômico. Ou, ironicamente, a possibilidade de rever decisões que afetam estruturalmente a vida das pessoas seria inconstitucional? Por isso, diante do problema criado, cabe alterar o modelo de Banco Central. Isso porque a alteração do modelo não é inconstitucional. Ao contrário, tornar-se-ia adequado ao modelo constitucional compromissório e dirigente inscrito na Constituição do Brasil. [1] In Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico. ano 11 – nº 21 | mar./ago. 2022 [2] Recomendo a leitura deste artigo que trata da Constituição Dirigente Invertida, em que cito os três autores: https://www.conjur.com.br/2016-out-27/senso-incumom-rumo-norundi-bordo-cdi-constituicao-dirigente-invertida
2023-02-16T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-16/senso-incomum-autonomia-banco-central-compativel-constituicao
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Prática Trabalhista
Dias de Carnaval: feriado, jornada, atestado falso e justa causa
Um dos principais questionamentos dos trabalhadores e das empresas neste período do ano é, sem dúvidas, se os dias festivos de Carnaval são considerados ou não como feriados nacionais. O assunto é de grande relevância, tanto que foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [1], razão pela qual agradecemos o contato. Com efeito, no Brasil o Carnaval é considerado uma das maiores festas populares do país. Como se sabe, as comemorações são realizadas durante os quatro dias que antecedem a Quarta-Feira de Cinzas [2]. Aliás, o Carnaval já é a data de 2023 mais esperada pelos brasileiros em virtude das restrições sanitárias que ocorreram nos anos anteriores. Este será o primeiro ano, desde o início da pandemia, que não teremos limitações. Neste contexto, surgem alguns questionamentos: neste período os empregados têm efetivo direito à folga? Ainda, o empregador poderá exigir que o(a) empregado(a) trabalhe normalmente em tais dias? Se eventualmente trabalhar, é preciso fazer o pagamento de horas extras? E, mais, quais seriam as consequências em caso de faltar ao emprego? De início, impede destacar que a Lei nº 10.607, de 19 de dezembro de 2002 [3] — que deu nova redação ao artigo 1º da Lei nº 662, de 6 de abril de 1949 [4] —, preceitua, em seu artigo 1º, que são feriados nacionais os seguintes dias: 1º de janeiro; 21 de abril; 1º de maio; 7 de setembro; 2 de novembro; 15 de novembro e 25 de dezembro. E, mais, a Lei nº 6.802, de 30 de junho de 1980 [5], declarou igualmente feriado nacional o dia 12 de outubro, consagrando a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Lado outro, o artigo 2º da Lei nº 9.093, de 12 de setembro de 1995 [6], dispõe que "são feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão". Noutro giro, especificamente no âmbito do Poder Judiciário Federal, a Lei nº 5.010/1966 considera a segunda-feira e a terça-feira de Carnaval como feriados [7]. Dito isso, verifica-se que, de acordo com a legislação vigente, o Carnaval não é efetivamente considerado feriado nacional, e, portanto, poderá haver expediente normal de trabalho. Todavia, poderá ser reputado feriado por meio de legislação estadual ou municipal, como é o caso do Rio de Janeiro, que instituiu a terça-feira de Carnaval como feriado estadual [8]. Logo, não sendo considerado por regra como feriado, o empregador poderá exigir que seus empregados trabalhem normalmente nestes dias, não sendo devido nenhum valor adicional. Entrementes, para fins de acomodar o trabalho com o período de Carnaval, as empresas poderão adotar algumas das seguintes alternativas quais sejam: (1) conceder folgas aos trabalhadores, sem a necessidade de compensação da jornada, em razão da prática dos costumes locais; (2) autorizar a compensação das horas não trabalhadas de forma antecipada; e (3) utilizar do acordo de compensação de jornada individual ou banco de horas. Contudo, para as localidades em que o Carnaval seja considerado feriado, poderá o(a) trabalhador(a) receber o valor do dia com acréscimo de 100%, ou, se for o caso, compensar as horas trabalhadas em outro dia. De mais a mais, com o advento da Lei 13.467/2017 [9], a temática da compensação e do banco de horas teve relevantes mudanças, sendo oportunos os ensinamentos de Henrique Correa [10]: "O banco de horas sofreu alterações trabalhistas. Importante frisar que havia posicionamento jurisprudencial do TST defendendo que os termos compensação e banco de horas eram diferentes. Na compensação, o descanso deveria ocorrer na mesma semana, respeitando o módulo de 44 horas ou, no máximo, dentro de um mesmo mês, respeitando as 220 horas mensais. Nesse caso, a formalização poderia ocorrer individualmente, entre empregado e empregador, incidindo a Súmula nº 85 do TST. Com a Reforma Trabalhista e a consequente modificação do artigo 59 da CLT, o legislador deixou clara a diferença entre os dois institutos: (...). Conforme já sustentamos, a compensação poderá ser realizada entre empregado e empregador em acordo de compensação tácito ou escrito, devendo ser realizada dentro do período de um mês. Portanto, a compensação da jornada é mensal Por sua vez, os §§ 2º, 3º, e 5º do artigo 59 estabelecem a disciplina jurídica direcionada especificamente ao banco de horas que foi dividido em duas modalidades: banco de horas anual e semestral". Portanto, as empresas podem, por meio de acordo individual, tácito ou escrito, estabelecer o regime de compensação de jornada, para que essa ocorra no mesmo mês, observando-se o limite de dez horas diárias. De igual modo, se as partes, por um acordo individual, ajustarem o sistema do banco de horas da Lei 13.467/2017, a compensação da jornada deverá acontecer no período de seis meses. Entretanto, se houver a participação do respectivo sindicato da categoria, a compensação poderá ocorrer em até um ano em decorrência da negociação coletiva. Todavia, em sentido contrário, se a empresa optar pela manutenção do expediente regular nos dias de Carnaval, e caso o(a) empregado(a) vier a faltar ao trabalho, o empregador poderá descontar o dia de salário, assim como poderá deixar de remunerar o descanso semanal remunerado previsto na Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949 [11]. Acontece que uma enorme problemática enfrentada neste período pelas empresas é justamente as faltas dos trabalhadores, sem justificativas, de modo que tal conduta poderá acarretar consequências e penalidades. Nessa perspectiva, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região manteve a justa causa de seis atendentes de pizzaria que combinaram falta coletiva ao trabalho no Carnaval de 2019 [12]. Em outra ocasião, uma trabalhadora foi demitida por justa causa, sob a alegação de má conduta, em razão de participar de bloco de Carnaval quando estava de atestado médico, violando a confiança necessária à relação de emprego. A decisão foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região [13]. Em seu voto, a Desembargadora Relatora, ponderou: "É desnecessário ter conhecimento médico para se deduzir que ir a um bloco carnavalesco não é uma postura de quem está com um quadro de amigdalite e precisa repousar e/ou se recuperar. Desse modo, se a autora se afastou do serviço em gozo de licença médica, amparada por atestado médico que recomendava repouso por dois dias, e restou comprovado que, durante esse lapso temporal, ela praticou ato — inclusive, publicizando em rede social — que destoa de quem supostamente estaria doente, é inegável sua má-fé e a gravidade dessa falta." Aliás, uma pesquisa realizada no ano de 2020 concluiu que na terça-feira de carnaval 77% dos trabalhadores escalados para trabalhar faltaram ao serviço, ao passo que na segunda-feira as ausências foram de 68%, de sorte que na média dos últimos quatro anos mais de 50% dos funcionários faltaram ao trabalho nessa época do ano [14]. Frise-se, por oportuno, que a temática envolvendo as consequências jurídicas pelo uso de atestado médico falso já foi abordada aqui, pelos autores, nesta coluna, razão pela qual recomendamos a leitura [15]. E, mais, é cediço que diversas repartições públicas decretam o período do Carnaval como ponto facultativo, e, por tal razão, nada impede que na iniciativa privada as empresas, em assim desejando, possam também oferecer folgas aos seus colaboradores. O ponto de maior atenção, porém, fica por conta das atividades de interesse coletivo, ligadas à prestação de serviços essenciais, cuja manutenção do trabalho é medida que se impõe. Por isso é importante que, para se evitar conflitos e prejudicar o clima organizacional, que seja estabelecida uma comunicação clara e eficaz, devidamente documentada, entre as empresas e seus trabalhadores, a fim de encontrar o melhor caminho a ser seguido. Em arremate, conquanto o Carnaval não seja tido como feriado nacional, vale lembrar que esse período especial, em razão dos costumes, é marcado por comemorações e festividade em todo o Brasil. Portanto, se revela imprescindível buscar o equilíbrio e definir com transparência como serão desempenhadas as atividades laborais nessas datas. [1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana. [2] Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval_do_Brasil. Acesso em 14/2/2023. [3] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10607.htm. Acesso em 14/2/2023. [4] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L0662.htm#art1. Acesso em 14/2/2023. [5] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6802.htm. Acesso em 14/2/2023. [6] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9093.htm. Acesso em 14/2/2023. [7] Art. 62. Além dos fixados em lei, serão feriados na Justiça Federal, inclusive nos Tribunais Superiores: (...). III - os dias de segunda e terça-feira de Carnaval; [8] Disponível em https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/87738/lei-5243-08. Acesso em 14/2/2023. [9] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 14/2/2023. [10] Curso de Direito do Trabalho, 6ª Edição. Revista atualizada ampliada. Editora JusPodivm, 2021, pág. 764. [11] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0605.htm. Acesso em 14/2/2023 [12] Disponível em https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/carnaval-2022-sem-folia-e-sem-folga. Acesso em 14/2/2023. [13] Disponível em https://www.trt6.jus.br/portal/noticias/2020/09/25/empregada-e-demitida-por-justa-causa-por-participar-de-bloco-de-carnaval-quando. Acesso em 14/2/2023. [14] Disponível em https://valorinveste.globo.com/objetivo/empreenda-se/noticia/2020/03/01/faltas-de-funcionarios-no-carnaval-batem-77percent-aponta-levantamento.ghtml. Acesso em 14/2/2023. [15] Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/pratica-trabalhista-atestado-medico-falso-consequencias-juridicas. Acesso em 14/2/2023.
2023-02-16T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-16/pratica-trabalhista-carnaval-feriado-nacional-jornada-atestado-falso-justa-causa
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Opinião
Fachin e Macedo: Laços entre jurisdições de África do Sul e Brasil
Introdução A jurisdição constitucional brasileira, sua teorização e prática, bem sabe a ontem. Ainda pouco sabe a amanhã. O futuro já se mostra pleno de interrogações. É possível que o Poder Judiciário promova, a um só tempo, a implementação de direitos fundamentais sociais e o protagonismo das pessoas ou de grupos que serão destinatárias e construtoras de prestações dos poderes públicos? Isso pode ser feito por processos de deliberação pública e com a participação direta das partes?         O presente texto apresenta-se resposta afirmativa às questões formuladas. Para tanto, será apresentada a experiência de alguns casos paradigmáticos julgados pela Corte Constitucional da África do Sul, na qual ela desenvolveu o instituto do compromisso significativo (meaningful engagement). Expõe-se que não é qualquer compromisso que poderá ser considerado um compromisso significativo[1]. Destaca-se, também, o fomento à democracia deliberativa pela técnica, porquanto se exige o engajamento efetivo do Poder Público e dos cidadãos para a resolução do problema e na melhoria da política pública. Trata-se da combinação do comprometimento de cidadãos e do Estado na implementação de direitos sociais de forma democrática, tornando o princípio democrático inscrito na Constituição sul-africana, forma e conteúdo da atividade pública. A escolha de tais decisões não se deu por acaso. Ela ocorreu por duas razões. Trata-se de um exercício de direito constitucional comparado, a partir do qual serão apresentadas decisões proferidas em casos que envolvem o direito à moradia e a discussão sobre despejos numa sociedade ainda marcada pelas múltiplas violências do regime brutal de segregação racial e espacial conhecido como apartheid. Em que pese o racismo no Brasil não ter tido esse grau de institucionalização em anos recentes, o país ainda é marcado pelas chagas da escravidão, cujas consequências estão presentes no dia a dia, no racismo estrutural aqui presente[2]. Dos dois lados do Atlântico a segregação racial-espacial soma-se a outras formas de desigualdades e preconceitos, marcando e restringindo a liberdade e a dignidade de pessoas e de grupos. Além dessas — desditosas — proximidades, e para além da curiosidade, há outras político-jurídicas que estão a autorizar a apresentação da experiência sul-africana para estimular futuras reflexões sobre o Brasil. A Constituição sul-africana de 1996 é uma Constituição democrática, centrada na dignidade, na liberdade e na igualdade das pessoas, que prescreve direitos fundamentais sociais, inclusive o direito à moradia[3]. Foi esse documento normativo que alçou a Corte Constitucional condição relevantíssima na vida institucional[4]. Conjugada a dimensão histórico-contextual com a dimensão normativa, há de se reconhecer que a África do Sul enfrenta, como o Brasil, a dificuldade de implementar direitos sociais em situação de enormes desigualdades sociais, marcada pela escassez de recursos e a concentração de renda. Tais razões justificam a escolha do tema. Constituição do compromisso significativo: cinco precedentes Serão apresentados cinco casos nos quais a Corte Constitucional sul-africana afirmou a necessidade de proteção do direito fundamental à moradia e elaborou, paulatinamente, critérios para que sua implementação fosse mais democrática, de modo a estabelecer requisitos tanto para a realização de despejos de grupos vulneráveis, como para a elaboração e a implementação de políticas públicas. Ao assim decidir, contribuiu para a reforma incremental de políticas públicas e de estruturas sociais.  O instituto analisado em seus limites e possibilidades será o meaningful engagement, o qual designaremos por compromisso significativo[5], que possui potencialidades para fomentar a realização dos direitos fundamentais e da democracia. Serão apresentados os cinco casos: Grootboom, Port Elizabeth, Olivia Road, Mamba e Joe Slovo I e II, que constituem a elaboração, com avanços e recuos, desse instituto. O caso Grootboom Segundo Rosalind Dixon[6], o caso Grootboom é um dos casos mais debatidos no âmbito do direito constitucional comparado. Essa repercussão se deu, pois, a decisão da Corte Constitucional sul-africana teria equilibrado a implementação de direitos fundamentais sociais, sem desrespeitar a separação dos poderes e levando em consideração a escassez de recursos. Tais razões de decidir contribuiriam para que autores inicialmente críticos da positivação de direitos fundamentais sociais, tais como Cass Sunstein[7], revisassem seus posicionamentos, por compreender que a criativa solução da Corte Constitucional respondia de forma adequada as objeções anteriormente feitas. Irene Grootboom era uma integrante de um grupo de 900 pessoas, sendo 510 crianças e 390 adultos, que viviam num assentamento informal em Wallacedene. Muitas delas estavam há mais de sete anos na fila para moradias de baixo custo. Com o aumento das chuvas e a chegada do inverno, o grupo ocupou um terreno privado, próximo ao local, que seria usado para a construção de casas populares[8]. O proprietário do terreno obteve uma ordem de despejo, o qual foi realizado de modo violento, sendo que as posses e os materiais de construção do grupo foram destruídos. Desesperado, o grupo retornou a Wallacedene, onde assentaram-se em um campo esportivo que não possuía condições de recebê-los de forma adequada, pois ocorriam diversos problemas, tais como inundações, que colocavam em risco a saúde dos adultos e sobretudo das crianças[9]. Os moradores enviaram comunicações ao município da Cidade do Cabo requerendo providências, com base nos artigos 26. 2 e 28, 1, c da Constituição sul-africana, os quais prescrevem o direito à moradia (artigo 26), o dever de adotar medidas razoáveis, com seus recursos, para atingir a progressiva realização do direito à moradia; e a proteção básica das crianças à saúde, nutrição básica e serviços sociais, além de abrigo (artigo 28, 1, c).Diante da inércia do município, o grupo, liderado por Irene Grootboom, pediu ao Tribunal Superior do Cabo da Boa Esperança uma ordem para obrigar o governo local a fornecer abrigo adequado e alojamento provisório até a obtenção de um local permanente. O pleito foi negado em relação à concessão de abrigo temporário. Contudo, foi deferida a medida para que fosse provido abrigo às famílias com crianças, afirmando-se o caráter absoluto da obrigação com as crianças, fundada no artigo 28, I, c. O governo local recorreu à Corte Constitucional, que apreciou a questão com base no artigo 26 (direito à moradia). Segundo a Corte, a Constituição exige a verificação da adoção, pelo Poder Público, de medidas razoáveis para a efetivar o direito à moradia. No caso, foi reconhecido que a políticas de moradia eram coerentes e coordenadas. Não obstante, elas não eram razoáveis por não adotarem medidas específicas para a população que se encontrava em situações semelhantes — de risco. Ao decidir, a Corte afirmou a dimensão positiva e negativa do direito à moradia. De um lado, determinou-se a obrigação do Estado de promover progressivamente medidas razoáveis para realizar o direito à moradia e, do outro, o dever de não prejudicar ou dificultar o acesso à moradia. Assim, foi declarada a inconstitucionalidade da política pública adotada sem que fosse estabelecida alguma ordem específica a ser cumprida pelo Poder Executivo[10]. Conforme afirmado, o acórdão do caso ganhou fama, sobretudo em círculos acadêmicos do Atlântico Norte, em razão do equilíbrio entre proteção dos direitos fundamentais sociais, produção de modificação na política pública e respeito às prerrogativas do Poder Executivo[11]. Não obstante, houve críticas porque foram estabelecidas medidas muito vagas e pouco detalhadas, o que teria contribuído para a inefetividade da prestação jurisdicional. Inclusive, parcela da comunidade não conseguiu uma moradia mesmo anos após o julgamento do caso, especialmente Irene Grootboom, que faleceu em 2008 sem ter assegurado o direito, 8 anos após o julgamento. César Rodríguez-Garavito ressalta que provimentos estruturais possuem, geralmente, duas dimensões: simbólica e concreta[12]. Do ponto de vista simbólico, a decisão afirmou o papel da Corte e estabeleceu critérios — ainda que mínimos — para a implementação progressiva do direito à moradia. Apesar de não ter se realizado o pedido em sua integralidade (efeito concreto), o provimento influenciou a atuação do Executivo, que criou em 2004 um plano nacional do governo sul-africano (BNG — Breaking New Ground) com o objetivo de erradicar as moradias informais no país no menor tempo possível. A partir dele foram desenvolvidas outras políticas de reestruturação urbana para reformar assentamentos informais[13]. Adiante será exposto como algumas das críticas foram incorporadas pela Corte em decisões posteriores na elaboração do compromisso significativo. Continua na parte 2
2023-02-17T11:01-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-17/fachin-macedo-lacos-entre-jurisdicoes-africa-sul-brasil
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Reflexões Trabalhistas
Autonomia privada coletiva das partes na negociação coletiva
Um dos princípios que norteiam a negociação coletiva é a autonomia privada coletiva, que é o efeito da negociação entre os sujeitos do capital e trabalho, concernente ao reconhecimento, por parte do Estado, da prevalência da norma coletiva, fruto da negociação coletiva, sobre as normas estatais. A autonomia privada coletiva parte do fato de que as normas resultantes da negociação são mais democráticas e têm mais condições de atender especificamente os reclames de seus destinatários, uma vez que elaboradas por eles próprios. O Brasil, em razão dos problemas do movimento sindical, diz-se, não está preparado para a total prevalência das normas negociadas sobre as normas estatais. Os sindicatos não são fortes e amadurecidos o suficiente para esse encargo, faltando representatividade autêntica na maioria deles. Nesse campo, a principal função do Estado é atuar para fazer prevalecer as normas de ordem pública, de indisponibilidade absoluta, que não podem ser objeto de negociação coletiva, salvo para melhorá-las. A Lei nº 13.467/2017 teve como um dos seus principais pilares a prevalência da negociação coletiva sobre a lei, apresentando um rol das possibilidades, quanto do que não poderá ser negociado pelas partes, observados os parâmetros indicados nos artigos 611-A e 611-B da CLT. Assim, se ocorrer violação ao núcleo dos direitos mínimos do trabalhador, o Estado, especialmente o Poder Judiciário, poderá intervir a fim de resguardar a legalidade, razoabilidade e proporcionalidade. A Lei nº 13.467/17 reformulou substancialmente a abrangência e validade das negociações individuais e coletivas que, nos termos da atual legislação, terão prevalência sobre a lei, salvo nos casos expressos descritos na própria lei, porque o objetivo da negociação coletiva é o de adequar as relações trabalhistas à realidade enfrentada pelos interessados, que se modifica constantemente. Assim, é possível a criação de benefícios não previstos em lei e até mesmo a supressão desses mesmos benefícios ou sua modificação por meio de uma negociação coletiva. Mas, caso seja verificada a violação de liberdades individuais e de direitos indisponíveis, o artigo 83, inciso IV, da LC nº 75/93 permite que o Ministério Público do Trabalho proponha ação anulatória de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores. O § 1º do artigo 611-A da CLT, trazido pela Reforma Trabalhista de 2017, impõe limitação ao controle jurisdicional das negociações coletivas, dizendo que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: § 1º - No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação. O artigo 8º, § 3° da CLT, por sua vez, estabelece que no exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no artigo 104 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva. Nota-se que a partir das mencionadas alterações legais, a negociação coletiva se aproxima dos negócios jurídicos do Código Civil, os quais são considerados meio de realização de vontades dos particulares, desde que cumpram os requisitos de validade, existência e eficácia, previstos no referido diploma legal. Desta forma, o artigo 611-A da CLT apresenta um rol exemplificativo do que pode ser objeto de negociação coletiva e o artigo 611-B impõe como objeto ilícito a negociação coletiva que venha a suprimir ou reduzir os seguintes direitos: XXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos; XXIV – medidas de proteção legal de crianças e adolescentes; XXV – igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso; XXVI – liberdade de associação profissional ou sindical do trabalhador, inclusive o direito de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho; XXVII – direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender; XXVIII – definição legal sobre os serviços ou atividades essenciais e disposições legais sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade em caso de greve; XXIX – tributos e outros créditos de terceiros; XXX – as disposições previstas nos arts. 373-A, 390, 392, 392-A, 394, 394-A, 395, 396 e 400 desta Consolidação.
2023-02-17T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-17/reflexoes-trabalhistas-autonomia-privada-coletiva-partes-negociacao-coletiva
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Diário de Classe
Autonomia do Direito: um antídoto contra a barbárie
Recentemente o professor Lenio Streck nos brindou com duas importantes reflexões[2] sobre a tentativa do uso de uma roupagem jurídica para que se tente justificar todo e qualquer anseio autoritário que atente contra a democracia. O cerne das importantes reflexões do professor caminham justamente no sentido de que todo ataque à ordem democrática, de natureza autoritária e totalitária, precede de uma pretensa maquiagem jurídica, com fins de legitimação do ilegitimável. Eis aí o motivo que tem feito com que o tema sobre o lawfare tenha crescido tanto nos últimos anos, pois é justamente a partir do sequestro semântico de conceitos jurídicos, que se tenta a todo o tempo aniquilar um pretenso inimigo — ou até mesmo o Direito — em nome de um pseudo "bem maior". Em outro momento, neste mesmo espaço da Diário de Classe[3], tentei refletir um pouco sobre este fenômeno do lawfare. Ali, busquei tratar um pouco sobre o que seria isto — o lawfare e optei por filiar-me à concepção Streckiana acerca do conceito de lawfare[4], como "a construção fraudulenta do raciocínio jurídico para fins politicamente orientados". A premissa de Streck sobre o lawfare é deveras importante para justamente compreender suas novas reflexões, trazidas no início deste texto. O mundo assistiu atônito aos lamentáveis episódios de depredação e tentativa de golpe de Estado, ocorridos em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. A turba ensandecida entre tantos arroubos retóricos se julgava no Direito de se apossar dos espaços destinados ao Executivo, Legislativo e Judiciário, pois partiam de uma rasa concepção de que "Supremo é o povo", para usar uma entre tantas outras tentativas retóricas de justificar o injustificável. Esta própria premissa, já parte de um grave equívoco interpretativo do parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição da República. Mas será mesmo que este equívoco se dá pelo simples fato de toda uma coletividade ler e interpretar errado ou porque estas ideias vão sendo trabalhadas e postas ponto a ponto na cabeça da coletividade, até o ponto então que uma turba se sinta legitimada a atentar contra a democracia, afinal estariam eles amparados "juridicamente"? Pois bem, como disse dois parágrafos acima, a primeira máxima dita amiúde pelo povo desordeiro seria a de que supremo é povo, tal concepção parte da máxima constitucional de que todo poder emana do povo, eis então o suposto ponto de legitimação que transforma o desejo reprimido em manifestação de histeria. E esta histeria somente existe, porque antes, como bem lembrou o professor Streck, ao colocar o dedo na ferida, existiu alguém, com uma representação simbólica — de jurista, por exemplo — que em algum momento disse que os absurdos praticados no dia 8 de janeiro seriam legítimos. Outro exemplo deste sequestro semântico dos significados constitucionais é o rotineiro pedido de intervenção das Forças Armadas nos poderes legalmente constituídos, sob o falso e errôneo argumento de que o artigo 142, da Constituição autorizaria tal barbárie. Ora, a primeira parte do texto do artigo 142, já seria suficiente para rechaçar qualquer tese ou teoria golpista, mas ainda assim tenha quem diga que a Constituição atribuiu um pretenso poder moderador às Forças Armadas, quando em verdade o objetivo central desta mesma Constituição é que jamais tenhamos qualquer possibilidade de viver sob um governo militar e/ou de exceção, como experimentado de 1964 até 1984. Esta explanação é para que possamos falar do que é mais importante e caro a nós neste momento: a preservação da autonomia do Direito, enquanto instrumento de salvaguarda da ordem democrática. Gilberto Morbach[5] explica assim a autonomia do Direito a partir da CHD, de Lenio Streck O que significa defender a autonomia do fenômeno jurídico? Hermeneuticamente, também aqui é interessante explicar a partir de nosso tempo.Vivemos em época de profundos desacordos morais. Se há poucos consensos em sociedade, paradoxalmente, um deles é precisamente o fato de que discordamos entre nós mesmos. Somos muitos, são muitos nossos desacordos e a tendência é que isso acabe por se acirrar cada vez mais, e sociedades cada vez mais divididas e fragmentadas. Daí a importância da autonomia do direito. Daí a relação direta entre direito, império da lei e democracia. Em tempos de desacordos profundos, qualquer alternativa que não prescinda dos ideais democráticos passa, necessariamente, pela ideia de que esses desacordos não podem ser resolvidos arbitrariamente. A coordenação social precisa respeitar princípios regulatórios. Como já dizia Ortega y Gasset, onde não há um acatamento de certas posições últimas, o resultado é a barbárie. Sem uma instância que os regule, nossos desacordos tornam nossa condição análoga àquela de que falava Matthew Arnold em Dover Beach: a de ignorant armies, clashing by night on a darkling plain [exércitos ignorantes a lutar em uma planície escura]. Neste sentido, Lenio Streck[6] afirma que: a autonomia deve ser entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis (portanto, a autonomia do direito não emerge apenas na sua perspectiva jurisprudencial, como acentua, v.g., Castanheira Neves — há algo que se coloca como condição de possibilidade ante essa perspectiva jurisprudencial: a Constituição entendida no seu todo principiológico), apontando para a Constituição como fio condutor dessa intermediação, cuja interpretação deve ser controlada hermeneuticamente, evitando-se que o sentido a ser atribuído ao seu texto e ao conjunto normativo infraconstitucional vá além ou fique aquém desse fundamento normativo. É justamente a partir desta concepção de autonomia do Direito, que busca-se defender que jamais qualquer pessoa que tenha passado por uma faculdade de Direito, não importa qual seja a sua predileção político-ideológica seja capaz de afirmar que em algum momento o Direito é capaz de autorizar as barbáries que o país vivenciou no último dia 8 de janeiro, pois entre tantas funções nobres que a autonomia do Direito possui, talvez a mais importante seja colocar freio em nossos instintos mais selvagens e primitivos. É dizer: existe um limite! Ou até mesmo como aprendemos quando assistimos as aulas, lemos e escutamos o professor Streck: o Direito está para corrigir a moral e não a moral que está para corrigir o Direito. Ou seja, pouco importa o que o pensa o jurista A, B ou C, o importante é o que o Direito diz ou veda sobre determinados temas, e diante de toda a história institucional e constitucional brasileira, não é difícil imaginar que não há em nenhuma letra sequer de nossa Constituição, que autorize qualquer atentado à democracia! E mais, legitimar qualquer atentado à ordem democrática implica em grave desonra a todos que um dia juraram cumprir e obedecer a Constituição — ou será que a máxima de que quem jura mente está valendo!? Por vezes somos postos em cenários ao qual não concordamos. É normal que de quatro em quatro anos passemos por um momento de (re)avaliar os rumos do país e escolhermos entre o novo — ainda que já não seja tão novo assim — ou a manutenção de um projeto político, e aí é que está a magia do poder democrático que só se constitui com a autonomia do Direito: a certeza de que não importa qual seja o resultado, daqui a quatro anos teremos novas eleições e por conseguinte uma nova oportunidade de escolher nossos representantes. Portanto, que se pare de ouvir a voz das ruas e passe a se ouvir a voz da Constituição, pois se um dia a voz das ruas vencessem, elas mesmo seriam caladas pela sua vitória, pois com a ruptura que pregam, já não haveria mais Constituição para defender o direito de ninguém e aí com quem reclamar? Por isso, que em tempos de carnaval, o samba pode nos levar a refletir sobre algo, pois é certo que “meninos mimados não podem reger a nação”[7]. E o samba aqui é útil, justamente para dar a interdisciplinaridade que nos é cara ao Direito, como o diálogo com a arte e sobretudo com a literatura, como bem alerta a professora Luísa Giuliani Bernsts[8] O argumento apresentado pelo professor Lenio de que "todo o golpista sempre terá um jurista para chamar de seu", parte de uma provocação literária e se constrói fitando a nossa história recente (os golpes de 64 e contra o governo de Dilma Rousseff), em que os limites interpretativos foram violados em nome de interesses políticos autoritários e/ou antiemancipatórios. Esse tipo de interpretação (inautêntica) é o que torna ilegalidades legais no Brasil. Mas, como bem explora o artigo em comento, ainda que diante de tamanhos "esforços hermenêuticos", golpes de Estado não precisam ser expressamente proibidos para serem incompatíveis com os princípios constitucionais e, portanto, com o Estado Democrático de Direito. Mesmo que alguns tentem garantir — para usar a provocação do professor Lenio — que determinada forma de quebrar ovos seja a única correta, ela só se sustentaria como tal a partir do peso das justificações invocadas na construção de seu sentido e não pelo cumprimento formal de um rito. Esse sentido é (ou deveria ser) edificado da mesma forma que as histórias são fabricadas. Como escrevi linhas acima: por mais que eventualmente não gostemos de alguma decisão do Judiciário ou até mesmo do resultado de uma ou outra eleição, que bom que ainda temos o Direito para conter os instintos primitivos. O Direito tem salvado a democracia nos últimos anos, e torço para que continue salvando. Tentaram por à prova o Direito, no dia 8 de janeiro, mas que bom que ele ainda resistiu, e nos salvou mais uma vez. E cabe a nós, que juramos cumprir e obedecer a Constituição, continuar colocando o sino no pescoço do gato, antes que seja tarde e o canto da sereia trague o que temos de melhor: a democracia! _____________________________ Bibliografia: BERNSTS, Luísa Giuliani. Fabricando a nossa (melhor) história: a narrativa literária e o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/diario-classe-fabricando-nossa-melhor-historia-narrativa-literaria-direito CARVALHO GOMES, Jefferson. Lawfare: Quando a lei (ou seu uso estratégico) aniquila o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-21/diario-classe-lawfare-quando-lei-ou-uso-estrategico-aniquila-direito; CRIOLO. Menino Mimado. Disponível em: https://www.letras.mus.br/criolo/menino-mimado/; MORBACH, Gilberto. Autonomia do direito e teoria da decisão: a CHD de Streck. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck STRECK, LENIO LUIZ. No Brasil, todo golpista tem um jurista pra chamar de seu. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/no-brasil-todo-golpista-tem-um-jurista-para-chamar-de-seu.shtml _____________________. Jurista de estimação. Folha de S.Paulo. Caderno Ilustrada Ilustríssima. C8. Publicado em 12/02/2023. _____________________. Enciclopédia do golpe - Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017. p. 119. _____________________. Autonomia do direito e decisão judicial. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/autonomia-direito-decisao-judicial/ [2] Cf. No Brasil, todo golpista tem um jurista pra chamar de seu. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/no-brasil-todo-golpista-tem-um-jurista-para-chamar-de-seu.shtml. Cf. Jurista de estimação. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada Ilustríssima. C8. Publicado em 12/02/2023. [3] CARVALHO GOMES, Jefferson. Lawfare: Quando a lei (ou seu uso estratégico) aniquila o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-21/diario-classe-lawfare-quando-lei-ou-uso-estrategico-aniquila-direito [4] STRECK, Lenio Luiz. Enciclopédia do golpe - Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017. p. 119. [5] MORBACH, Gilberto. Autonomia do direito e teoria da decisão: a CHD de Streck. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck [6] STRECK, Lenio Luiz. Autonomia do direito e decisão judicial. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/autonomia-direito-decisao-judicial/ [7] CRIOLO. Menino Mimado. Disponível em: https://www.letras.mus.br/criolo/menino-mimado/ [8] BERNSTS, Luísa Giuliani. Fabricando a nossa (melhor) história: a narrativa literária e o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/diario-classe-fabricando-nossa-melhor-historia-narrativa-literaria-direito
2023-02-18T11:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-18/diario-classe-autonomia-direito-antidoto-barbarie
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Opinião
Fachin e Macedo: Laços entre jurisdições de África do Sul e Brasil
Continuação da parte 1 O caso Port Elizabeth O segundo caso, Port Elizabeth, guarda relevância com o instituto do compromisso significativo por promover o que Brian Ray descreveu como a procedimentalização do processo estrutural[14], o que pode ser considerado um esboço das medidas que seriam adotadas posteriormente. Neste caso, tratava-se de uma tentativa de despejo de 68 pessoas, das quais 23 eram crianças, que construíram moradias provisórias em terras particulares no Município de Port Elizabeth. Os proprietários e moradores do bairro fizeram uma petição solicitando ao município o despejo contra os ocupantes, o que foi atendido. A Corte Constitucional fundamentou sua decisão especialmente no PIE (Prevention of Illegal Eviction from and Unlawful Occupation of Land Act). lei que regulamenta relações entre o direito de propriedade e à moradia. Em decisão unânime, entendeu-se que o PIE não permite o despejo de ocupantes ilegais sem uma ordem judicial prévia e sem uma análise da equidade e da razoabilidade da remoção, a qual só pode ocorrer se todos os fatores relevantes forem levados em consideração[15]. Baseada nesse raciocínio, a Corte entendeu que não seria razoável promover o despejo, por diversas razões, dentre elas, a desnecessidade de expulsá-los para tornar a propriedade produtiva, a situação de vulnerabilidade dos ocupantes e a falta de comprometimento do município em dialogar com o grupo. Para os fins do presente texto, destacamos dois pontos do processo de procedimentalização do litígio estrutural levado a efeito pela Corte nesse caso. Primeiro, ela adota um papel de supervisão, de modo a incentivar negociações entre o setor público e os segmentos populacionais afetados, com destaque dado pelo redator do acórdão, Ministro Albie Sachs, à mediação como forma de resolver conflitos de interesses e de concretizar princípios constitucionais em tensão[16]. Em suas palavras: Ao procurar resolver as contradições acima, os aspectos processuais e substantivos da justiça e da equidade nem sempre podem ser separados. O papel gerencial dos tribunais pode ter que se expressar de maneiras inovadoras. Assim, um modo potencialmente digno e eficaz de alcançar reconciliações sustentáveis dos diferentes interesses envolvidos é incentivar e exigir que as partes se envolvam em um esforço proativo e honesto para encontrar soluções mutuamente aceitáveis. Sempre que possível, o engajamento face a face ou a mediação conduzida por terceiros devem substituir o combate de oponentes distantes e intransigentes[17]. Além disso, o segundo ponto é que foi enfatizada a relevância da mediação para casos futuros e que os tribunais deveriam ser cautelosos em qualificar uma ordem de despejo como justa e equitativa se não houvesse real diálogo entre o Poder Público e os ocupantes. Esta ideia foi fundamental para a elaboração do compromisso significativo no caso Olivia Road, o qual passamos a expor. O caso Olivia Road Com o objetivo de realizar reformar urbanas, de 2002 a 2006, ocorreram diversos e violentos despejos na cidade de Joanesburgo. Assim como outras cidades da África do Sul, durante o regime do apartheid, a segregação no espaço urbano era uma política praticada para confinar as pessoas negras nas periferias das cidades, e as pessoas brancas residiam em regiões mais centrais, mais caras e com melhor infraestrutura. Essa combinação de discriminação racial e espacial reforçou o processo de degradação das regiões periféricas, resultando em concentração populacional, pequena ou inexistente infraestrutura de equipamentos urbanos ou de lazer, bem como a existência de milhares de pessoas negras vivendo em moradias inadequadas[18]. É sobre esta espacialidade que tais políticas pretendiam agir, para reconfigurar a paisagem da cidade, sobretudo de locais degradados.No plano de regeneração de 2004, dentre as justificativas para sua realização, encontravam-se a necessidade de reforma dos prédios insalubres, sobretudo no centro, a viabilização de investimentos e a valorização dos imóveis. Por tais razões, segundo o município, deveriam ocorrer os despejos. Contudo, o plano não tratava sobre como cumprir o art. 26 da Constituição sul-africana, bem como não explicitava o que fazer com as famílias desalojadas. Eis o pano de fundo da controvérsia. O caso inicia-se com o ajuizamento da ação pelo município no Tribunal Regional de Witwatersrand, no qual foi requerida a autorização para realizar o despejo da região que incluía Olivia Road[19]. Neste Tribunal o pedido foi negado por violar o artigo 26 da Constituição, pois se pretendia realizar o despejo sem providenciar abrigos alternativos. Note-se que tal decisão é consoante com a linha de raciocínio construída nos casos Grootboom e Port Elizabeth ao afirmar o compromisso com o direito à moradia e a necessidade de oferta de abrigos. O município recorreu à Suprema Corte de Apelação, que cassou a decisão, autorizando o despejo. Determinou, nada obstante, que a cidade possuía o dever de providenciar abrigo àquelas pessoas que perdessem sua residência. Os residentes recorreram à Corte Constitucional, que aceitou o caso em maio de 2007. Em 30 de agosto, a Corte exarou a primeira ordem para que fosse realizado um compromisso significativo entre as partes envolvidas no litígio. A decisão retoma os fundamentos dos precedentes Grootboom e Port Elizabeth[20], para afirmar que as partes devem se engajar significativamente[21], isto é, devem realizar um compromisso significativo, assim que possível, para resolver os conflitos e as dificuldades expostas na ação à luz dos valores da Constituição, dos deveres constitucionais do município e dos direitos e deveres dos cidadãos. O compromisso é significativo, pois as partes devem participar realmente na elaboração da solução para a situação. Assim, são elas as protagonistas do desate do problema. Depois de dialogar por alguns meses, as partes entabularam um acordo parcial, segundo o qual o governo municipal não realizaria o despejo e implementaria medidas de limpeza da área residencial, acesso à água e saneamento básico. Outras medidas foram acordadas e a cidade aceitou continuar o diálogo por longo prazo[22]. Encerrada a primeira fase de negociações, as partes retornaram à Corte para que fossem aprovados os termos do acordo e para que fosse proferida decisão sobre a adequação do ajuste aos requisitos do caso Grootboom. A Corte não analisou esta questão, preferindo formalizar o compromisso significativo como um requisito constitucional a ser realizado em todos os futuros casos em que o despejo de residentes pudesse ocorrer[23]. Na decisão a Corte justificou a existência do compromisso significativo nos seguintes dispositivos constitucionais: a seção 152, que trata do engajamento das comunidade locais na resolução de matérias relacionadas à região; a seção 7(2), que fixa o dever estatal de promover e respeitar os direitos fundamentais; a seção 26, que trata do direito à moradia e da importância do diálogo com cidadãos que podem ser despejados, antes que sejam realocados; e a seção 195 que prescreve valores de participação pública nas decisões administrativas[24]. A Corte definiu quatro elementos que devem ser levados em consideração para realizar o compromisso significativo. Primeiro, o compromisso deve seguir um padrão flexível e adaptável aos contextos específicos de cada caso. Segundo, sempre que houver uma política pública de larga escala, como os planos de regeneração urbana, que puderem afetar uma parcela da população, o município deve realizar o compromisso logo no início do planejamento. Vale dizer, o diálogo com os cidadãos deve anteceder a etapa judicial, devendo ocorrer no momento de formulação da política pública. Ainda que isso imponha um custo à Administração, a participação deve ser fomentada para que os grupos afetados sejam participantes ativos na formulação da política e não meros receptores de prestações estatais. Terceiro, reconhece-se a vulnerabilidade dos cidadãos afetados pelos despejos e a necessidade de representação especializada. Por isso, organizações da sociedade podem apoiar as demandas dos grupos e facilitar o processo de negociação, fornecendo informações e contribuindo para que as negociações sejam bem-sucedidas. Quarto, o governo deve manter um arquivo público a respeito de cada compromisso significativo firmado, para que o Poder Judiciário possa analisar não só o resultado das negociações, mas o próprio procedimento utilizado para promover o diálogo entre as partes. Assim, é possível verificar se foram adotadas todas as medidas necessárias para alcançar um acordo com os grupos afetados. Importa frisar que, segundo a Corte, a falha em realizar o compromisso pode ser, per se, razão suficiente para negar um pedido de despejo. Continua na parte 3
2023-02-18T09:25-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-18/fachin-macedo-lacos-entre-jurisdicoes-africa-sul-brasil2
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Observatório Constitucional
Uma jurisprudência elegante para tempos mais civilizados
Nos anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, a jurisdição constitucional no Brasil teve papel marcante na estabilidade das relações, na garantia da segurança jurídica e na solução dos graves problemas de direito intertemporal que foram criados com o estabelecimento de sucessivos planos econômicos no Brasil (Plano Funaro, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor I, Plano Collor II e Plano Real). A complexidade dos efeitos das alterações do padrão monetário desafiava o STF no seu papel de intérprete de uma Constituição ainda nova, com novos institutos e grandes demandas sociais. Era tempo igualmente de formação e estruturação de um sistema financeiro mais consistente cujas fundações balizariam a solidez da economia, com importantes repercussões sociais e políticas. O grande objetivo das instituições políticas na década de 90 era a estabilização da moeda e o combate efetivo à hiperinflação, cabendo ao STF, em matéria estritamente técnica, fixar os parâmetros e regras que definiriam essa tarefa, fixariam as possibilidades e limites da política monetária, com o respeito aos direitos fundamentais. Foi esse cenário que envolveu um dos grandes momentos da história do STF, marcado pela formação da jurisprudência em matéria de segurança jurídica, direito adquirido e aplicação do princípio da irretroatividade das leis no país (artigo 5º, XXXVI, da CF). Por certo, a jurisprudência histórica da corte sempre se orientou para uma melhor compreensão do conteúdo e dos limites da cláusula do "direito adquirido", inclusive com o enfrentamento dos problemas advindos de sua dupla dimensão: legal e constitucional. A redação original do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4/9/1942), editada ainda na vigência da Constituição de 1937, admitia a possibilidade de lei nova retroagir para atingir situações já constituídas. Esse quadro, entretanto, mudou com a promulgação da Constituição de 1946 (especialmente a previsão pioneira contida no artigo 141, § 3º), o que forçou a nova redação do dispositivo legal a partir do Decreto-Lei nº 3.238, de 1/8/1957. A cláusula se tornava uma proteção constitucional, tal como uma garantia fundamental do cidadão, e essa tradição se manteve até a Constituição de 1988. O direito adquirido, entretanto, não poderia servir como limitador caprichoso da ação do legislador na criação e conformação de regimes estatutários. Foi o STF, portanto, que estabeleceu a famosa jurisprudência de que, na dimensão constitucional da proteção, não há direito adquirido a regime jurídico. No âmbito legal, entretanto, essa proteção se dá apenas quando o indivíduo cumpre concretamente todos os requisitos fixados na lei do tempo para adquirir determinado direito. Dessa forma, no plano constitucional, a garantia do direito adquirido é, em realidade, uma questão de direito intertemporal quanto ao sentido de aplicação da nova lei às situações jurídicas (RE nº 226.855/RS, relator ministro Moreira Alves). Resta no plano legal a garantia em concreto do indivíduo em relação à irretroatividade da nova lei. A leitura constitucional do direito adquirido, entretanto, nunca significou uma forma de contornar o princípio da irretroatividade das leis. Ao contrário, estamos, em realidade, diante da mesma proteção ("direito adquirido" em matéria de direito público, "ato jurídico perfeito" em matéria de direito privado e "coisa julgada" em matéria jurisdicional). De fato, o STF fixou, por meio da ADI nº 493, o sentido jurídico próprio desse princípio e a gravidade de sua sedes materiae na Constituição. Em voto antológico naquele julgamento, o ministro Moreira Alves atribuiu o peso devido ao instituto, afastando-o da natureza meramente doutrinária que acabou adquirindo na França ou na Itália a partir de obras como as de Paul Roubier ou de Carlo Francesco Gabba. No Brasil, a irretroatividade não é apenas uma conveniência jurídica, mas um limite efetivo ao legislador e uma garantia do cidadão. Nesse julgado, o tribunal definiu três tipos de retroatividade da lei: a máxima ou restitutória (quando a lei nova desconstitui a coisa julgada ou fatos já consumados, tais como no caso do artigo 96, parágrafo único, da Constituição de 1937); a média (quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de atos jurídicos passados); e a mínima ou mitigada (quando a lei nova atinge somente os efeitos futuros dos atos anteriores, como no caso do Decreto-Lei nº 22.626, de 7/4/1933). Tal como fixado pelo tribunal, em virtude da cláusula constitucional, não se admitiria qualquer desses tipos de retroatividade no Brasil, sendo inconstitucional qualquer legislação que atingisse contratos celebrados no passado ou seus efeitos futuros (tal como se aplicou no RE nº 188.366 e no RE nº 205.999). Se, no plano individual-concreto, o STF reconhecia a impossibilidade absoluta de se ter leis retroativas no Brasil, no plano estatutário-institucional não havia como o indivíduo se opor ao novo estatuto jurídico com base nessa garantia (veja, por exemplo, RE nº 47.931; RE nº 50.325; RE nº 51.606; RE nº 52.060; dentre outros da década de 60). A questão é, acima de tudo, pragmática. Se fosse dada ao cidadão a possibilidade de se opor a qualquer nova lei com base em um "direito adquirido" estatutário, ter-se-ia, em realidade, a impossibilidade absoluta de ação do legislador, uma vez que qualquer nova lei significaria mudança de tratamento jurídico para um indivíduo. Essa importante consequência já era defendida por adeptos da teoria do direito adquirido e da teoria do fato realizado, e por autores da estirpe de Carlos Maximiliano e Savigny. O Tribunal vinha a reafirmar esse entendimento regularmente: RE nº 105.137; RE nº 105.137; RE nº 105.322. Assim, "se a lei nova modificar o regime jurídico de determinado instituto de direito (como é o direito de propriedade, seja ela de coisa móvel ou imóvel, ou de marca), essa modificação se aplica de imediato" (RE nº 94.020). A mesma jurisprudência foi articulada no julgamento da ADI nº 3.105, quando se analisou, por exemplo, a incidência da EC nº 41/2003 e a possibilidade de contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e pensões de servidores públicos. Desafio ainda maior, entretanto, apresentava-se no horizonte. A alteração do padrão monetário, por definição, é necessariamente uma mudança imediata das bases da economia, devendo valer para todos e para todas as situações e, embora se possa defender que tais alterações devam respeitar a irretroatividade máxima ou até média, certamente com ela é incompatível a irretroatividade mínima. Isso quer dizer que para que planos econômicos sejam efetivados sua validade deverá incidir necessariamente sobre contratos em curso, atingindo seus efeitos futuros e parcelas a vencer. Sem essa sutileza na interpretação, admitir-se-ia a circulação paralela de mais de uma moeda e a vigência no país de mais de um regime monetário. Seria o direito "brigando" com a realidade e sacralizando as suas próprias premissas. O STF, entretanto, assumindo a elegância da exceção, afirmou sua posição "no sentido de que as normas que alteram o padrão monetário e estabelecem os critérios para a conversão dos valores em face dessa alteração se aplicam de imediato, alcançando os contratos em curso de execução, uma vez que elas tratam de regime legal de moeda, não se aplicando, por incabíveis, as limitações do direito adquirido e do ato jurídico perfeito" (RE nº 114.982, relator ministro Moreira Alves, DJ 1/3/1991, na linha do que já se julgava no RE nº 105.137, RE nº 106.132, RE nº 116.063, RE nº 110.321). A consolidação desse entendimento veio com o julgamento do RE nº 141.190, que examinou a controvérsia sobre a aplicação do fator de deflação aos contratos anteriores com valor de resgate prefixados: a Tablita. Assim o tribunal se posicionou: "A plano Bresser representou alteração profunda nos rumos da economia e mudança do padrão monetário do país. (...) A tablita representou a consequência necessária do congelamento como instrumento para se manter a neutralidade distributiva do choque na economia. O decreto-lei, ao contrário, de desrespeitar, prestigiou o princípio da proteção do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF) ao reequilibrar o contrato e devolver a igualdade entre as partes contratantes." A exceção à regra geral da cláusula do "direito adquirido" e do "ato jurídico perfeito" foi a solução jurídica efetivamente elegante para um tempo mais civilizado, no qual a jurisdição se esforçava por "limpar" o ambiente de limitações e obstáculos desnecessários e impertinentes aos problemas enfrentados. O esforço de combate à hiperinflação também era assumido pelo STF e se esperava de sua jurisprudência empenho para fornecer a solução jurídica adequada, mantendo-se a consistência e solidez do sistema jurídico-constitucional. Essa jurisprudência, que bem marcou a correta compreensão de institutos e garantias como o do "direito adquirido", "ato jurídico perfeito", "irretroatividade da lei" e "segurança jurídica", fornece um arsenal poderoso para se enfrentar (e resolver) questões jurídicas complexas ainda advindas da interpretação dos planos econômicos. Observa-se, entretanto, hesitação entre os ministros do STJ e do STF no manejo desses conceitos e na aplicação dessa herança jurisprudencial valiosíssima. A ADPF nº 77, julgada em 16/5/2019, foi um bem-vindo lampejo a reavivar esse conjunto jurisprudencial e declarar a plena constitucionalidade do artigo 38 da Lei nº 8.880/94 (Plano Real). A mesma solução elegante formatada pelo STF no passado demonstrou, mais uma vez, a sua utilidade para a solução da questio juris e para o sistema constitucional. Não há motivo, portanto, para que o atual Tribunal, assumindo a sua própria jurisprudência, não resolva em definitivo processos emblemáticos, como a ADPF nº 165 (processo que trata da constitucionalidade dos planos econômicos e no âmbito do qual, em virtude dessa injustificada hesitação, as partes foram impelidas a negociar acordo posteriormente homologado) e o RE nº 1.141.156 (constitucionalidade dos planos econômicos aplicada ao caso dos depósitos judiciais), liberando finalmente o Judiciário e o país de um dos seus mais famosos esqueletos.
2023-02-18T08:00-0300
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Tribunal do Júri
Delimitação do concurso de pessoas para a formação dos quesitos
A decisão final produzida no julgamento perante o tribunal do júri caracteriza-se por ser subjetivamente complexa. Caberá, em primeiro momento, a tomada de decisão pelo Conselho de Sentença. Posterior a esse ato, a consequente sentença pelo(a) juiz(a) presidente. Porém, a formação dessa decisão depende de múltiplos atos processuais e probatórios. Uma das peculiaridades inerente ao procedimento do júri é justamente o julgamento meritório pelos jurados. Eles decidem mediante repostas aos quesitos que lhes são apresentados, e por conseguinte, a formulação desse instrumento decisório dentro dos parâmetros normativos é essencial para que não haja violação à plenitude de defesa, bem como ao princípio da correlação entre acusação e decisão. Dentre as diversas matérias que podem suscitar controvérsias ao longo do julgamento dos crimes dolosos contra a vida, elegemos o concurso de pessoas como ponto nodal do presente artigo. A problemática pode ser sintetizada na seguinte indagação: é dever do órgão acusatório declinar na peça exordial a conduta individualizada de cada um dos acusados, especificando, desde então, a sua respectiva classificação doutrinária — autoria mediata, autoria direita, coautoria, ou mera participação acessória na forma de cumplicidade, indução e instigação — ou considera-se suficiente, nos termos do artigo 29 do CP, que o Parquet descreva o fato naturalístico causador do resultado e o impute a todos os coparticipantes que concorreram para a sua causação? A resposta à indagação acima perpassa por todo o procedimento bifásico do júri, porquanto a matéria tem reflexos em vários momentos decisórios, a saber: 1) recebimento da denúncia, diante da análise dos pressupostos legais (artigo 41 do CPP), e a sua consequente rejeição se considerada "manifestamente inepta" (artigo 395, I, do CPP); 2) exame da presença de indícios suficientes de autoria/participação para a pronúncia (artigo 413, CPP); 3) contornos da fundamentação da decisão de pronúncia, que surtirá efeitos para a sustentação da acusação em plenário (artigo 476, CPP); 4) a formulação dos quesitos (artigo 482, CPP). De início, é imperioso destacar um ponto sensível quanto à inépcia da denúncia que refletirá, não apenas na garantia à plenitude de defesa, mas, também, na elaboração dos quesitos. Preceitua o artigo 41 do CPP que a imputação deverá conter a "exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias". Na hipótese de concurso de pessoas, como ensina Lopes Jr., é "inadmissível uma denúncia genérica que não faça a individualização da conduta praticada por cada réu" [1]. Esse posicionamento doutrinário — que faz uma correta integração entre o direito penal e o processo penal — é agasalho por jurisprudência remansosa do Supremo Tribunal Federal [2]. Acrescenta-se, por ser fundamental à discussão ora ventilada, que não se confunde fenômeno histórico (cunho naturalístico) com fenômeno criminal (enquadramento jurídico) [3]. Dito de outra forma: para que uma situação fática possa ser adjetivada como criminosa, deve existir um injusto penal reprovável. Pode-se afirmar, portanto, que o direito penal material delineia o objeto do processo penal, porquanto ele contém os critérios de seleção para a produção do caso jurídico-penal, "as estruturas de relevância para a constituição jurídico-penal da realidade" [4]. Destarte, o "fato criminoso" narrado na inicial acusatória deve se referir a uma conduta formal e materialmente contrária a uma norma penal (ilícito), suscetível de pena (culpável) e imputada objetiva e subjetivamente ao(s) acusado (s). A acusação buscará a confirmação dessas premissas, ao passo que a defesa deverá refutá-las. Desse embate, serão tomadas as decisões no curso do procedimento bifásico do júri (pronúncia, decisão do Conselho de Sentença, sentença). Como já dito anteriormente, em caso de concurso de pessoas, até mesmo como forma de assegurar o contraditório, o órgão acusatório deve individualizar a conduta de cada um dos acusados, mormente porque o imputado não se defende de um reles fato naturalístico, mas sim de um fato jurídico- penal que lhe foi imputado. Com o advento da Reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, o artigo 29 , consolidou, em substituição ao chamado "sistema unitário formal", o sistema unitário funcional de autor: "quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade" [5]. Na vigência do chamado "sistema unitário formal" de autor, era prescindível individualizar a conduta de cada um dos réus, pois qualquer modalidade de contribuição para o fato criminoso ensejaria uma responsabilização pelo injusto integral [6], ou seja, todos os réus recebiam idêntica punição. Pelo "sistema unitário funcional de autor", atualmente adotado pelo nosso CP, em que pese todos os agentes respondam pelo mesmo delito, cada um será responsabilizado na medida de sua culpabilidade. Destarte, o legislador "funcionaliza" as categorias para fins de punição, de modo que responder pelos mesmos marcos de pena não significa responder pela mesma pena [7]. O artigo 29 do CP delineia que responde pelo crime "quem, de qualquer modo, concorre" para a sua prática. A expressão "concorre" tem o significado de "cooperar" ou "contribuir" e, portanto, possui uma ampla carga semântica, cujo sentido é aferível causal-naturalisticamente. Logo, "concorrer”"é gênero que abarca todo e qualquer comportamento naturalístico que objetivamente contribua para um resultado jurídico. No dispositivo em alusão, o legislador condiciona a responsabilização de cada agente à "medida de sua culpabilidade". Trata-se da materialização do sistema unitário funcional. Não basta, para tanto, se identificar na perspectiva dogmática a categoria do concurso de pessoas (autor direto, indireto, coautor), mas sobreleva-se, até mesmo como forma de assegurar o contraditório e a ampla defesa e a estruturação dos quesitos, delinear um comportamento individualizado apto a se enquadrar na modalidade descrita na peça acusatória. Diante dessas premissas, a problemática ventilada no presente artigo, encontra-se parcialmente resolvida: não basta descrever o fato naturalístico causador do resultado e, com isso, afirmar que todos os coparticipantes concorreram para a sua causação. É absolutamente imprescindível que o comportamento externado por cada um dos imputados seja efetivamente narrado na inicial acusatória, e expressamente referido na fundamentação da pronúncia, como indícios suficientes da autoria ou participação. Não obstante, resta ainda uma indagação: "deve-se indicar na peça acusatória a respectiva modalidade de cada coparticipante, isto é, o autor mediato, o autor direto, os coautores e a eventual modalidade de participação acessória na forma de cumplicidade, indução e instigação?" A resposta perpassa pela definição de quem possa ser considerado autor. Apesar de existir divergência doutrinária, predomina o entendimento de que o nosso ordenamento acolheu o conceito restritivo de autor [8]. Nessa perspectiva, considera-se autor apenas quem age tipicamente, vale dizer: comete a conduta descrita no tipo penal. Portanto, para que o partícipe seja enquadrado no concurso de pessoas, releva-se imprescindível identificar o caráter acessório do seu comportamento em face do principal. Não obstante, é desnecessário a indicação da classificação dogmática no contexto do concurso de pessoas (se autor direto, mediato, cúmplice etc.). Como já dito anteriormente, o que se revela essencial é a descrição minuciosa do comportamento de cada coparticipante, para oportunizar a identificação adequada daquilo que lhe é atribuído e lhe permitir o efetivo exercício de defesa, assim como, ao final, possibilitar ao julgador, na hipótese de condenação, atribuir adequadamente a respectiva classificação para efeitos de juízo de reprovação no contexto da culpabilidade e, assim, impor a pena apropriada, nos ditames da exigência do artigo 29 do CP ("na medida da sua culpabilidade"). A doutrina, como forma de contornar déficits oriundos da adoção do conceito restritivo de autor, trouxe à baila a teoria do domínio do fato. Em que pese essa teoria já tenho sido ratificada por nossos tribunais [9], entendemos que sua adoção é problemática, porquanto sua fundamentação comumente se resume ao argumento retórico de que o agente tinha o domínio sobre o fato e, portanto, pode ser taxado como acusado. Pensamos, todavia, que a ausência da descrição dos comportamentos faticamente evidenciados (e, obviamente, demonstrados) implicará inépcia da inicial acusatória [10], e grande dificuldade na própria elaboração dos quesitos, já que não estariam preenchidos os requisitos do artigo 482 e parágrafo único do CPP. Ademais, é importante mencionar que a teoria do domínio do fato, que, aliás, somente se aplica aos crimes comissivos dolosos, opera com uma tripartição de domínios, a saber o domínio da ação, funcional e da vontade, os quais correspondem, respectivamente, às modalidades de autoria doutrinariamente reconhecidas [11]. Nesse sentido, para que se possa atribuir a um coparticipante uma contribuição é necessário especificar os respectivos comportamentos que se amoldam aos critérios fixados por cada modalidade que se pretenda imputar. Em outras palavras, sequer é necessário em uma inicial acusatória que se indique entre fulano, beltrano e cicrano a respectiva modalidade ou classificação (se autor direto, mediato, coautor etc.), segundo a teoria aplicada, mas sim a descrição minuciosa do comportamento caracterizador de dada modalidade que permitirá ao imputado exercer sua defesa e, obviamente, ao julgador, por sua vez, concluir acerca da classificação correspondente para efeitos de atribuição de pena. A importância destas reflexões deve resvalar na fundamentação da pronúncia que, além de estabelecer os limites acusatórios em plenário (artigo 476, CPP), formará a fonte primária para a estruturação da quesitação. Consequentemente, a correta observância da imputação e o seu controle pela defesa e pronúncia, formarão as vias adequadas para a elaboração do principal instrumento de tomada de decisão no tribunal do júri: os quesitos. [1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 236/207. [2] Habeas Corpus. Direito penal e processual penal. Denúncia genérica. Responsabilidade penal objetiva. Inépcia. Acusação não descreve, de forma minimamente satisfatória, os elementos do tipo penal que imputa ao paciente. Narrativa manifestamente precária no que diz respeito à necessária individualização da conduta do paciente para que se possa verificar sua autoria e, consequentemente, a devida subsunção de seu comportamento ao mencionado tipo penal em termos objetivos e subjetivos. Respeito ao contraditório e ao direito à comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada (art. 8.2.b, CADH). Ordem concedida para trancar o processo penal. (STF, HC 182.458 AgR, rel. min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 27/9/2021) [3] Para uma visão minuciosa da questão, vide SAMPAIO, Denis. Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. 1ª ed. Florianópolis: Emais, 2022, p. 81 e segs [4] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Alflen, Porto Alegre: Fabris Editor, 2005, p. 169. [5] ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 56 e ss. [6] TRIFFTERER, Otto. Die österreichische Beteiligungslehre. Eine Regelung zwischen Einheitstäter- und Teilnahmesystemen? Wien: Manz, 1983. p. 37. [7] KIENAPFEL, Diethelm. "Beteiligung" und "Teilnahme". Zum Verhältnis vom OWiG zum StGB. NJW, 1970, H. 41, p. 1828. [8] Para a diferenciação entre o conceito restritivo e extensivo de autor, vide ALFLEN, Pablo Rodrigo. op. cit., p. 61 e ss. [9] Veja STF, AP 470/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, J. 17/12/2012; também STF, AP 421 - SP, 1ª Turma, rel. min. Roberto Barroso, J. 28/4/2015; na doutrina, expondo os critérios, críticas e fragilidades da teoria veja: ALFLEN, Pablo Rodrigo. op. cit., p. 182 e ss. [10] STF, HC 136.250, rel. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julgado em 23/5/2017. [11] ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft. 9. Auflage, Berlin: Walter De Gruyter, 2015. p. 306.
2023-02-18T08:00-0300
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Opinião
Fachin e Macedo: Laços entre jurisdições de África do Sul e Brasil
Continuação da parte 2 O caso Mamba A despeito do expressivo avanço no caso Olivia Road, a Corte Constitucional não exigiu o cumprimento desse precedente no caso Mamba, no qual, em maio de 2008, ocorreram diversos protestos de caráter xenofóbico, que se iniciaram em Joanesburgo e se estenderam para Durban e Cape Town. Em razão disso, milhares de pessoas foram obrigadas a sair de suas moradias e migraram para outras regiões. Alguns governos provinciais criaram campos provisórios para abrigar as vítimas, como em Gauteng, e foram auxiliados por ONGs que deram apoio logístico e financeiro. Cessadas as práticas violentas, iniciou-se um debate sobre onde deveriam ser realojados os refugiados que estavam nos campos provisórios. Os representantes dos refugiados afirmaram que o fechamento dos campos aumentaria a situação de vulnerabilidade. De outro lado, alguns governos provinciais caracterizaram os atos de violência como incidentes isolados e, por isso, os campos poderiam ser fechados. O governo de Gauteng determinou o fechamento dos campos no final de julho de 2008 e estabeleceu 15 de agosto como a data limite para a remoção de todos os refugiados. Houve oposição política de várias organizações lideradas pela CoRMSA (Consortium for Refuges and Migrants in South Africa) para adiar o fechamento até que houvesse um plano de reintegração dos refugiados. Tal esforço foi ignorado pela província, que manteve o seu cronograma. O CoRMSA ajuizou ação para impedi-lo, mas ela fora julgada improcedente no Tribunal Regional de Transvaal. O Consórcio recorreu à Corte Constitucional que emitiu, no dia 21 do mesmo mês, uma ordem proibindo o fechamento completo dos campos e determinando ao governo provincial a realização de um compromisso significativo, em linguagem semelhante a Olivia Road. O compromisso deveria incluir ONGs e outros grupos da sociedade civil que atuassem na proteção de refugiados para auxiliá-los nos diálogos com a província. As partes também deveriam apresentar o resultado das negociações após algumas semanas[25]. Todavia, o compromisso significativo não foi realizado, efetivamente. A província interpretou restritivamente a decisão da Corte e passou a informar os refugiados dos avanços do plano de fechamento, sem envidar maiores esforços de diálogo com os grupos afetados para procurar uma solução consensual. A Corte tentou promover a realização do compromisso em setembro, sem sucesso, pois a província prosseguiu em sua interpretação inicial e restritiva dos termos da decisão, sem formular qualquer plano de reintegração. Por isso, em outubro de 2018 o CoRMSA desistiu da ação. A excessiva deferência da Corte no caso Mamba foi bastante e duramente criticada[26]. Se comparado com o caso Olivia Road, entende-se que o fator fundamental para distinguir os dois casos foi a vontade política das partes. Em Olivia Road houve vontade e empenho para que se chegasse a compromisso significativo para enfrentar o problema. Em Mamba tal vontade foi diminuta, senão inexistente[27]. Sandra Liebenberg afirma (em crítica quiçá excessiva) que o caso Mamba demonstra os riscos de uma atuação excessivamente deferente da Corte, na qual não é afirmada uma interpretação substancial dos direitos fundamentais em disputa. Isso gera um vácuo normativo que reforça a vulnerabilidade da população afetada em face do Poder Público[28]. Por não haver uma interpretação com conteúdo mínimo que deveria orientar o diálogo entre as partes, foi possível sustentar a interpretação minimalista por parte da província. Por fim, outras medidas, inclusive medidas temporárias ou sancionatórias poderiam, mas não foram emitidas[29]. Tais erros foram corrigidos no caso conhecido como Joe Slovo. O caso Joe Slovo Em Joe Slovo, a Corte Constitucional acrescenta duas melhorias na construção do compromisso significativo: ela estabelece uma interpretação mínima, que auxilia a realização do diálogo e melhora os mecanismos de acompanhamento da prática. A cidade de Cape Town iniciou projeto (N2 Gateway) para construir casas de baixo custo aos moradores. Ela fazia parte da política nacional adotada pela África do Sul desde 2004, para melhorar as periferias do país, como resposta ao caso Grootboom. A comunidade de Joe Slovo era uma comunidade formada por mais de 20.000 residentes símbolo da desigualdade exclusão social e seria afetada pela política. Tais reformas não costumam demandar a remoção dos moradores, porém o governo local optou por fazer uma reforma mais ampla, o que exigiria a realocação dos moradores para outra região. O governo local fez reuniões com a comunidade para informar a forma como o projeto seria implantado, o que contou com a concordância de alguns moradores, pois lhes foi assegurado que iriam pagar aluguéis mais baixos após a reforma. Todavia, após a conclusão das três primeiras fases do projeto, nenhuma das novas casas foi destinada aos moradores originais de Joe Slovo. Esses moradores organizaram protestos formais e informais para impedir a continuidade do projeto. Para superar a situação, o Poder Público recorre ao Tribunal Regional com o objetivo de garantir o despejo dos residentes. O Tribunal autorizou a continuidade das realocações e afirmou que o governo municipal já havia se esforçado suficientemente para dialogar com os moradores. Os moradores originários recorreram diretamente à Corte Constitucional, que proferiu duas decisões neste caso. A primeira, exarada em 2009, chamada de Joe Slovo I, autorizou a continuidade do programa com a realocação dos moradores, porquanto ela fazia parte de uma política pública destinada a assegurar o direito à moradia dos próprios residentes, garantindo-lhes uma moradia temporária. Entretanto, decidiu que deveria ser realizado um compromisso significativo entre a comunidade e a cidade para decidir a melhor forma de implementar a política pública (N2 Gateway). Diferentemente do caso Mamba, a Corte se acautelou. Primeiro, fixou parâmetros e objetivos que deveriam guiar as negociações entre as partes envolvidas do compromisso significativo. Dentre as metas, incluía-se: Primeiro, a ordem desta Core impõe uma obrigação aos demandados de garantir que 70% dos novos lares construídos no local do assentamento informal Joe Slovo são alocados a essas pessoas que atualmente residem lá ou que foram residentes, mas se mudaram após o lançamento do N2 Gateway Housing Project. Em segundo lugar, a ordem desta Corte especifica a qualidade do alojamento temporário em que os ocupantes serão alojados após o despejo; e terceiro, a ordem deste tribunal exige um processo contínuo do envolvimento entre os residentes e os demandados em relação ao processo de alocação[30]. Por outro lado, a Corte decidiu manter a sua jurisdição sobre o caso, exigindo que as partes informassem o andamento e o resultado do diálogo. Assim, eventual ilegalidade ou desrespeito à decisão da Corte poderia ser reportada imediatamente. Essas medidas pressionaram o poder público a manter diálogo efetivo com a comunidade afetada e a reconsiderar a decisão de realocá-la. Após o início dos diálogos, a cidade decidiu rever o seu posicionamento. E, depois do caso ter sido levado à Corte, houve mudança de partido que estava à frente do governo local. O novo governo – da Aliança Democrática – levou em consideração os parâmetros determinados pela Corte e conclui que seria viável a continuidade do projeto sem a necessidade de remoção dos residentes, de modo a atender aos interesses dos moradores da região. Após tal resultado, em 2011, a Corte profere a decisão Joe Slovo II, de modo a revogar a autorização de despejo dos residentes, tendo em vista que as reformas foram realizadas sem a necessidade de realocá-los[31]. Conclusões: compromissos significativos com a Constituição e a democracia Os precedentes apresentados no presente texto estão a demonstrar que a jurisdição constitucional pode desempenhar papel relevante no exercício da tutela de direitos fundamentais em processos estruturais. Descortinam possibilidade de decisões que protejam, respeitem e promovam simultaneamente direitos fundamentais sociais e a democracia. Vislumbra-se possibilidades de afirmação da cidadania pela participação e deliberação coletiva sobre os direitos fundamentais. Tal iniciativa deve ser louvada, mas sem ingenuidades. Alguns limites devem ser reconhecidos para que melhorias possam ser implementadas. Há limites estruturais que são constituintes das sociedades desiguais do Sul-global. Destaca-se as desigualdades que se acumulam de forma interseccional (étnica, gênero, classe e espacial) nas pessoas que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos, de modo a limitar de modo ilegítimo o exercício de direitos fundamentais. Além disso, a democratização também da implementação dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, tal qual levado a cabo pela Corte Constitucional sul-africana, está sujeita a retrocessos e não está, ela mesma, imune ao processo de aprendizagem falível[32] que caracteriza as democracias contemporâneas. Isso pode ser visto nos recuos e retrocessos nos casos Mamba e Joe Slovo I. Para a implementação de compromissos significativos não se deve olvidar das críticas feitas a respeito do diálogo, o qual, como bem lembra Roberto Gargarella, deve ser um diálogo de verdade[33], no qual os grupos vulneráveis possam expressar e tenham seus pontos de vista levados em consideração. Igualmente, há que se reconhecer que a exigência de tentativas efetivas de engajamento e de realizações de compromissos significativos, tal como decidido em Olivia Road não podem estar à disposição do Poder Público, o que o desestimulará a praticá-lo. Por fim, práticas de monitoramento podem ser formas mais fracas (weak forms) de controle de constitucionalidade, mas podem ser mais legítimas e efetivas do que o uso de determinações muito específicas e do uso da cominação de multa em caso de descumprimento[34], as quais podem ser pouco úteis para a resolução legítima do problema. É evidente, contudo, que o uso de mecanismos de monitoramento demanda pessoal adequado para realizá-lo[35], pois a Corte Constitucional sul-africana julga poucos casos se comparada ao Supremo Tribunal Federal brasileiro[36]. Essas e outras questões precisam ser levadas em consideração para que o compromisso significativo seja utilizado, com sucesso, no Brasil. Para saber a futuro a jurisdição constitucional brasileira precisa acertar esse passo e evitar que se lhe aplique, em tempo breve, a frase (como descrita por Rosa Montero no belíssimo livro "Historia del Rey Transparente". Santilana: Madrid, 2005, p. 525): "quanto tú nombras, ya no estoy". O porvir dos processos estruturais e desses horizontes já não tão novos da jurisdição constitucional não pode ser remoto nem estranho. Nele ver-se-á um renascimento ou um crepúsculo. Referências e fontes: ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Government of the Republic of South Africa and Others v Grootboom and Others (CCT11/00). 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São Paulo; Contracorrente, 2021; sobre o racismo estrutural contemporâneo no Brasil: ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. [3] KLUG, Heinz. The Constitution of South Africa: A Contextual Analysis. Oxford: Hart, 2010. [4] HIRSCHL, R. (2009). O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista De Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 251, p. 139–178, 2009; IRSCHL, Ran. Rumo à Juristocracia: As origens e consequências do novo constitucionalismo, Trad. Amauri Feres Saad. Londrina: E.D.A – Educação Direito e Alta Cultura, 2020. [5] É pertinente a observação feita por Matheus Serafim a respeito da tradução do termo, tendo em vista que o engajamento pode ser maior ou menor, isto é, significativo ou insignificante. Porém, assim como ele, adota-se no presente texto o termo compromisso significativo, pois é terminologia que tem sido adotada por outros autoras e autores que escreveram sobre o tema em língua portuguesa. Cf.: SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo: Contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 27 e 81. Na literatura brasileira sobre o tema, ver: BROOCKE, Bianca M. Schneider van der. Litígios Estruturais, Estado de Coisas Inconstitucional e Gestão Democrática do Processo: Um papel transformador para o controle judicial de políticas públicas. Londrina: Thoth, 2021; BROOCKE, Bianca M. Schneider van der. Constitucionalismo Transformador e Litígios Estruturais na África do Sul: O Compromisso Significativo (Meaningful Engagement) e a tomada de decisão participativa. In: CASIMIRO, Matheus, CUNHA, Eduarda (orgs.) Processos Estruturais no Sul Global. Londrina: Thoth, 2022, p. 93-113; CASIMIRO, Matheus; MARMELSTEIN, George. O Judiciário como Fórum de Protestos em Processos Estruturais: Revisitando Grootboom. In: CASIMIRO, Matheus, CUNHA, Eduarda (orgs.) Processos Estruturais no Sul Global. Londrina: Thoth, 2022, p. 139-168. [6] DIXON, Rosalind. “Creating Dialogue about Socioeconomic Rights: Strong-form versus Weak-form Judicial Review Revisited,” International Journal of Constitutional Law (ICON), 5 ( 3 ): 391 – 418, 2007, p. 392. [7] SUNSTEIN, Cass. Social and Economic Rights? Lessons from South Africa. Const. Forum, V, 2000; SUNSTEIN, Cass. Designing Democracy: What Constitution Do. New York: Oxfor, 2001. [8] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Government of the Republic of South Africa and Others v Grootboom and Others (CCT11/00). Joahnesburgo. 2000. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2000/19.html Acesso em: 28/12/2022. [9] MÖLLER, Gabriela Samrsla. Proteção à moradia adequada pelo processo estrutural: litígios e comportamentos das cortes. Londrina: Thoth, 2021, p. 254 e ss. [10] LIEBENBERG, Sandra. The Right to Social Assistance: The Implications of Grootboom for Policy Reform in South Africa. South African Journal on Human Rights., 1 (2), p. 2322-257, 2001, p. 257 e SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo: Contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 96. [11] Cf.: CASIMIRO, Matheus; MARMELSTEIN, George. O Judiciário como Fórum de Protestos em Processos Estruturais: Revisitando Grootboom. In: CASIMIRO, Matheus, CUNHA, Eduarda (orgs.) Processos Estruturais no Sul Global. Londrina: Thoth, 2022, p. 139-168. [12] RODRÍGUEZ-GARAVITO, César. El activismo dialógico y el impacto de los fallos sobre derechos sociales. In: GARGARELLA, Roberto (org.) Por una justicia dialógica: El Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo XXI, 2014, p. 211-244. [13] SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo: Contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 97. [14] RAY, Brian. Proceduralisation's Triumph and Engagement's Promise in Socio- Economic Rights Litigation (2011). Law Faculty Articles and Essays. Cleveland State University 1042. Disponível em: https://engagedscholarship.csuohio.edu/fac_articles/1042 [15] O que está de acordo com a seção 26, 3 da Constituição sul-africana. Sobre o caso cf.: ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Port-Elizabeth Municipality v. Various Occupiers. Joanesburgo (CCT 53/03). 2004. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2004/7.html Acesso em: 28/12/2022. [16] SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo: Contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 98-99. [17] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Port-Elizabeth Municipality v. Various Occupiers. Joanesburgo (CCT 53/03). 2004. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2004/7.html Acesso em: 28/12/2022, parágrafo 39, e SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Ob. Cit. [18] Esta não era a realidade exclusiva da África do Sul durante o apartheid. Na obra “The Color of Law” Richard Rothstein demonstra como a perversa combinação entre políticas pública e práticas de mercado – regras sobre a contratação de financiamentos para a compra de imóveis – reforçaram práticas discriminatórias isolando pessoas negras em bairros periféricos, com infraestrutura ruim, de modo a delimitar espacial e inconstitucionalmente o seu espaço em cidades dos Estados Unidos após a 2ª Guerra Mundial, cf.: ROTHSTEIN, Richard. The Color of Law: A forgotten history of how our government segregated America. New York: Liveright, 2017. [19] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township, and 197 Main Street v City of Johannesburg. Johanesburgo, 2008. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2008/1.html Acesso em: 29/12/2022. [20] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township, and 197 Main Street v City of Johannesburg, p. 8-9. [21] Conforme exposto no início do texto a expressão utilizada é “meaningful engagement”, o que, literalmente pode ser traduzida como engajamento significativo. Porém, optamos, pelo uso da tradução mais difundida, compromisso significativo, tal como: BROOCKE, Bianca M. Schneider van der. Litígios Estruturais, Estado de Coisas Inconstitucional e Gestão Democrática do Processo: Um papel transformador para o controle judicial de políticas públicas. Londrina: Thoth, 2021; BROOCKE, Bianca M. Schneider van der. Constitucionalismo Transformador e Litígios Estruturais na África do Sul: O Compromisso Significativo (Meaningful Engagement) e a tomada de decisão participativa. In: CASIMIRO, Matheus, CUNHA, Eduarda (orgs.) Processos Estruturais no Sul Global. Londrina: Thoth, 2022, p. 93-113, e, SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo: Contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021. [22] Dentre as medidas acordadas estava a reforma de prédios na periferia da cidade, fornecimento de serviços públicos essenciais para a região, além de limitar as taxas de aluguel para não mais de 25% da renda mensal dos ocupantes, além da decisão cf.: SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo, p. 102. [23] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township, and 197 Main Street v City of Johannesburg. Johanesburgo, 2008. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2008/1.html Acesso em: 29/12/2022. [24] ÁFRICA DO SUL. Constituição (1996). Constitution of the Republic of South Africa. Pretória, 1996. Disponível em: https://www.gov.za/documents/constitution-republic-south-africa-1996 Acesso em: 09/12/2022. Além desses artigos da Constituição a Corte se baseou sua decisão na legislação infraconstitucional que exige a participação dos cidadãos em decisões a respeito de reforma urbana (The Housing Act 107 de 1997) e na lei sobre processos e atos administrativos justos, lícitos e razoáveis (Promotion of Adminstrative Justice Act – PAJA DE 2000). [25] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Mamba and Others vs. Minister of Social Development nº 36573/08. Joanesburgo. 2000. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZAGPHC/2008/255.html Acesso em: 30/12/2022. [26] Por exemplo: LIEBENBERG, Sandra. Engaging the paradoxes of the universal and particular in human rights adjudication: The possibilities and pitfalls of 'meaningful engagement'. African Human Rights Law Journal 12(1): 1-29, jan. 2012; CHENWI, Lilian. Democratizing the socio-economic rights-enforcement process. In: GARCÍA, Helena Alviar; KLARE, Karl; WILLIAMS, Lucy A. (eds.) Social and Economic Rights in Theory and Practice: Critical Inquires. London: Routledge, 2015, p. 178-196 e mais recente: GARGARELLA, Roberto. Why Do We Care about Dialogue? ‘Notwithstanding Clause,’ ‘Meaningful Engagement’ and Public Hearings: A Sympathetic but Critical Analysis. In: YOUNG, Katharine (ed.). The Future of Economia and Social Rights. Cambridge: Cambridge, 2019, p. 212-232. [27] LIEBENBERG, Sandra. Engaging the paradoxes of the universal and particular in human rights adjudication: The possibilities and pitfalls of 'meaningful engagement'. African Human Rights Law Journal 12(1): 1-29, jan. 2012 [29] SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo, p. 119. [30] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Residents of Joe Slovo Community, Western Cape v Thebelisha Homes and Others (CCT 22/08). Johanesburgo, 2009. Disponível em: https://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2009/16.html Acesso em: 30/12/2022, p. 03 [31] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Residents of Joe Slovo Community, Western Cape v Thebelisha Homes and Others (CCT 22/08). Johanesburgo, 2011. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2011/8.html Acesso em: 30/12/2022 [32] HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Trad.: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 153-173. [33] GARGARELLA, Roberto. Why Do We Care about Dialogue? ‘Notwithstanding Clause,’ ‘Meaningful Engagement’ and Public Hearings: A Sympathetic but Critical Analysis. In: YOUNG, Katharine (ed.). The Future of Economia and Social Rights. Cambridge: Cambridge, 2019, p. 218-222. [34] TUSHNET, Mark. A response to David Landau. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marcos Félix (orgs.). Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 62. [35] ARENHART, Sérgio Cruz. Processos Estruturais no Direito Brasileiro: Reflexões a partir da ACP do Carvão. Inn: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; COSTA, Suzana Henriques da (coords). O processo para solução de conflitos de interesse público. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 475-492. [36] SERAFIM, Matheus Cassimiro Gomes. Compromisso Significativo, p. 88-89.
2023-02-19T09:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-19/fachin-macedo-lacos-entre-jurisdicoes-africa-sul-brasil
academia
Embargos Culturais
Sérgio André Rocha e a defesa da segurança jurídica tributária
O permanente tema da reforma tributária, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal relativa à flexibilização da coisa julgada na hipótese de tributos de trato contínuo, a decisão também recente do Superior Tribunal de Justiça sobre cobrança de IPI na revenda de produtos importados, a discussão relativa ao voto de qualidade no Carf, a ordem do STF para que a União compense perdas do ICMS de um estado da Federação (Goiás), entre outros, são temas que anunciam e comprovam momento extremamente desafiador para quem gostamos de direito tributário. Nesse contexto há farto material bibliográfico para instrumentalizar o enfrentamento de algumas dessas questões. A prática exige base teórica consistente, sem a qual perde-se no achismo e na repetição de clichês. Entre autores da nova geração de tributaristas sobressai-se também Sérgio André Rocha, que tirou a livre-docência na USP e que leciona na UERJ. Para nossos tempos refiro-me especialmente ao livro Da Lei à Decisão, a Segurança Jurídica Possível na Pós-Modernidade. É a recomendação da semana. O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte Sérgio André apresenta-nos um libelo em favor da segurança jurídica, especialmente com foco nas instituições responsáveis pela aplicação do direito tributário. Muda o foco do problema. Afasta-se da obsessão com a lei. Preocupa-se com as agências que aplicam a lei. Nesse sentido, revela-nos as fragilidades de tipologias tradicionais na matéria, obcecada com a legalidade estrita, com a tipicidade cerrada e com a consequente deificação da lei no direito tributário brasileiro. Essa obsessão com a lei é de algum modo sintoma da forma napoleônica de se compreender a experiência normativa, aspecto que Sérgio André ressalva, inclusive diferenciando a hermenêutica do Pequeno Caporal com a metodologia do positivismo jurídico. Acrescento ao argumento que o legado jurídico napoleônico transcende à codificação do direito privado. Há uma absoluta incorporação da compreensão organizacional de Jean-Jacques Rousseau, para quem a vontade geral que se revelava na lei referendava a imposição normativa sobre decisões e opções. Vontade geral e soberania se equivalem na teorização política de Rousseau. A indivisibilidade da soberania decorreria da indivisibilidade da própria vontade geral. Esta última, vontade geral, seria substancialmente distinta de uma vontade de todos. O formalismo jurídico, de algum modo, é subproduto dessa concepção de democracia. Não se confunde com o positivismo jurídico, como enfatiza o autor. Ao mesmo tempo em que reconhece a qualidade de muitos tributaristas da velha guarda, Sérgio André apresenta conjunto de impugnações e senões. É o que se lê, por exemplo, na passagem em que problematiza concepções de Alberto Xavier (jurista português que viveu no Brasil, aqui falecendo em 2016, aos 74 anos). Sérgio André percebe em passagens de Alberto Xavier uma desconfiança para com a autoridade administrativa. Sérgio André também argumenta contrariamente à posição de alguns autores que insistem em similitudes conceituais entre o direito tributário e o direito penal. Surpreende-se com a frágil equiparação entre o bem jurídico "liberdade" e o bem jurídico "patrimônio", que está no núcleo daqueles que aproximam o direito penal e o direito tributário. Ilustra com as normas penais em branco, que são recorrentes no direito penal, o que contrastaria com a legalidade e a tipicidade cerrada que marcariam o direito tributário, especialmente como lemos em Ricardo Mariz de Oliveira. Nesse ponto, Sérgio André conclui que "uma das características da teoria formalista brasileira é uma claríssima desconfiança dos órgãos de aplicação do direito, principalmente da autoridade administrativa, que é vista como alguém que tende a abusar de seu poder". Esgotado o tema da lei (que é marcado pela obsessão com o formalismo), Sérgio André avança para o problema da decisão, estudando o processo tributário. É a segunda parte do livro. Parece-me a parte mais polêmica. Sérgio André coloca abertamente problemas que matizam e maculam o Carf. Defende uma justiça tributária especial e especializada, "que selecionasse, desde o concurso, julgadores com formação e conhecimentos tributários e contábeis sólidos, abrindo-se a concorrentes sem formação jurídica formal — ou seja, o julgador não teria que ser necessariamente formado em direito". Não pretende simplesmente o mais do mesmo. Há recentemente uma profusão de dissertações acadêmicas sobre o Carf. Adriana Gomes Rego apresentou aqui em Brasília uma belíssima tese (melhor elogio para um trabalho de mestrado) por mim orientada. Acrescento os trabalhos de Luiz Eduardo de Oliveira Santos (orientado por Liziane Paixão) e de Margaret Nunes (orientada por Maurício Timm do Vale. Margaret preocupa-se com o Carf enquanto instânica especializada de verdadeiro acesso à justiça fiscal. O Carf é um tema central na compreensão de nossa justiça, assim no âmbito acadêmico como na lide diária. Ao propor esse novo tribunal (que Sérgio André denomina de Novo Carf, como explica na nota de rodapé 83), parece-me, enfrenta os dois maiores problemas do tribunal administrativo com o qual hoje contamos. Há necessidade de uma justiça especializada, dada a complexidade dos assuntos. A seleção de especialistas atende a esse requisito. O Carf, no entanto, queiramos ou não, gostemos ou não, é um tribunal vinculado ao Ministério da Fazenda. Pode parecer natural que conselheiros que representam a Fazenda Pública possam carregar em suas decisões uma compreensão fazendária dos problemas. É o que a filosofia hermenêutica denominaria de instância de pré-compreensão. Não tenho dados empíricos para essa afirmação, não consigo exemplificar objetivamente. Registro apenas uma especulação, que a discussão em torno do voto de qualidade parece confirmar, pelo menos quanto ao problema colocado. Escrevi sobre isso aqui na ConJur ao longa da semana. Sérgio André é um pensador do direito tributário. Lembra-me muito Ricardo Lobo Torres, sobre quem também já escrevi nessa coluna, a propósito do tema do mínimo existencial. Sérgio André tem opiniões firmes, com as quais concordo, a exemplo do postulado de que a tributação pode ser usada para combater desigualdades, mas sempre com o necessário cuidado, para que não se crie um outro problema. Um novo tribunal para questões tributárias poderia resolver miríade de problemas, se pensado e operacionalizado com cautela e parcimônia, com a lentidão dos herbívoros e não com o assanhamento e a pressa dos carnívoros. Basta uma comparação entre o orçamento do Carf e de outros tribunais, à luz das questões que são julgadas no Carf, em comparação com questões tratadas em outros ambientes decisórios. O problema não está na lei. O problema pode estar nas agências decisórias. É essa a lição que extraí desse excelente livro, que é antecedido por prefácio de Marciano Seabra de Godoi, competente professor da PUC-MG.
2023-02-19T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-19/embargos-culturais-sergio-andre-rocha-seguranca-juridica-tributaria
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Público & Pragmático
Responsabilização por patrocinar ou financiar atos de corrupção
 A Lei Anticorrupção (Lei Federal nº 12.846/2013) não somente inovou ao introduzir a responsabilidade objetiva das empresas por práticas de corrupção e fraude à licitação/contratos públicos, como também trouxe em seu rol taxativo alguns atos lesivos que, por uma rápida leitura, parecem não estar relacionados às práticas que a referida lei visa coibir, mas que visam responsabilizar condutas que, de alguma forma, contribuam para sua ocorrência, sendo esse o caso do ato lesivo de patrocinar ou financiar atos de corrupção previsto no inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção. Antes de analisar o ato lesivo em questão, é importante destacar que a Lei Anticorrupção foi promulgada com o objetivo de preencher uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro e responsabilizar as pessoas jurídicas por práticas de corrupção e fraude à licitação ou contratos públicos, uma vez que o crime de corrupção previsto no Código Penal e os crimes no contexto de licitações e contratos públicos alcançariam somente as pessoas naturais. A mensagem da Presidência da República ao apresentar o PL nº 6.826/2010 [1], que deu origem à Lei Anticorrupção, aos membros do Congresso Nacional deixa bastante claro esse objetivo: "O anteprojeto tem por objetivo suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos". Sobre essa lacuna preenchida pela Lei Anticorrupção, um contexto importante é que o Brasil, a partir da ratificação das convenções internacionais de combate à corrupção, especificamente, as convenções da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ficou sujeito ao monitoramento periódico por essas organizações acerca da implementação dos compromissos assumidos. Dentre os apontamentos desse monitoramento periódico, um dos principais pontos foi a ausência de uma legislação no Brasil que punisse as empresas por práticas de corrupção. Nesse sentido, durante a tramitação do PL nº 6.826/2010, foi apresentado parecer no 649 de 2013 do Senado Federal [2] contendo as razões para aprovação do então projeto de lei conforme seguinte trecho: "A corrupção é hoje, como se sabe, um dos grandes males que afetam a administração pública de grande parte das nações, desde as subdesenvolvidas até aquelas em estado avançado de desenvolvimento econômico e social. (...) O controle da corrupção passou a ter, portanto, fundamental importância no fortalecimento das instituições democráticas e na viabilização do crescimento econômico dos países, motivo pelo qual foram elaboradas a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção e a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, das quais o Brasil é signatário. Com isso, nosso país obrigou-se a punir as pessoas jurídicas que cometem atos de corrupção, contra a administração pública nacional e, em especial, aqueles denominados de suborno transnacional, caracterizado pela corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e de organizações internacionais. Surgiu daí, portanto, a necessidade de elaboração de legislação específica que alcançasse, por meio da responsabilização administrativa e civil, as pessoas jurídicas responsáveis pelos atos de corrupção descritos nos acordos internacionais, posto que os atos de corrupção ativa e passiva estabelecidos como crime em nosso direito penal têm o poder de atingir apenas as pessoas naturais". Isso posto, há duas conclusões iniciais a se fazer: a primeira é que a Lei Anticorrupção foi promulgada especificamente para prevenir e responsabilizar as pessoas jurídicas por práticas de corrupção ou fraudes em licitações e contratos públicos; e a segunda é sobre quais são os bens jurídicos tutelados pela referida lei conforme previsto no caput de seu artigo 5º: (a) o patrimônio público nacional ou estrangeiro; (b) os princípios da administração pública; ou (c) os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de corrupção. Portanto, qualquer interpretação acerca dos atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei Anticorrupção deve estar, obrigatoriamente, em conformidade com seu propósito e os bens jurídicos por ela tutelados. Com base nessas conclusões, é possível analisar os atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção e verificar que os incisos I e IV seriam normas de aplicação autônoma sendo que, numa simples leitura, resta claro em sua redação que a conduta em questão se refere a, respectivamente, atos de corrupção e fraude à licitação/contratos públicos. Por outro lado, verifica-se que os atos lesivos previstos nos incisos II, III e V do artigo 5º da Lei Anticorrupção seriam normas que dependem da aplicação de outras normas (aquelas dos incisos I e IV), ou seja, dependem da ocorrência de práticas de corrupção ou fraude à licitação e contratos públicos para que a Lei Anticorrupção seja aplicável. Esse entendimento decorre da própria redação do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção "comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei" ao mencionar, expressamente, que o patrocínio, financiamento, subvenção terá como finalidade "a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei". Dessa forma, não se trata da conduta de financiar, patrocinar ou subvencionar quaisquer atos ilícitos, mas somente aqueles previstos na Lei Anticorrupção, sob pena de se ter uma interpretação extensiva e contra a finalidade da lei, o que seria inadmissível. Portanto, a própria redação do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção já informa que, para configuração desse ato lesivo, será necessária a prática de corrupção ou fraude à licitação e contratos públicos. Aqui não se trata da responsabilização da pessoa jurídica que se utiliza de intermediários (pessoa física ou jurídica) para praticar a corrupção, visto que essa conduta já estaria coberta pelo inciso I da Lei Anticorrupção que proíbe oferecimento de vantagem indevida para agente público tanto de forma direta quanto indiretamente. Assim, o propósito do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção seria responsabilizar aquelas empresas que não tenham, direta ou indiretamente, praticado o ato de corrupção (inciso I da Lei Anticorrupção), mas tenham contribuído de forma relevante para esse ato, por exemplo, patrocinando ou financiando o ato de corrupção praticado por outrem. A mencionada mensagem da Presidência da República ao apresentar o PL nº 6.826/2010 traz esse propósito, especificamente, no seguinte trecho: "(...) com relação à responsabilização na esfera administrativa, a presente proposta de legislação prevê meios para impedir que novas pessoas jurídicas constituídas no intuito de burlar sanções impostas administrativamente mantenham relações com a Administração Pública. Tal prática gera uma cadeia de empresas constituídas com o proposito único de fraudar e lesar a Administração Pública, o que deve ser impedido. Ademais o anteprojeto cria mecanismos para combater a utilização de terceiros para ocultar os reais interesses da pessoa jurídica ou os verdadeiros beneficiários de determinadas condutas ilícitas". Para exemplificar, a conduta do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção seria o caso hipotético em que a empresa A contrata os serviços da empresa B cujo objeto não seria uma prestação de serviços legítimos (contrato fictício), de forma apenas a mascarar o pagamento de valores (financiamento) que será utilizado pela empresa B para o pagamento de vantagem indevida a um agente público (corrupção). Nesse caso hipotético, a empresa A poderá ser responsabilizada pelo ato lesivo do inciso II (financiamento) e a empresa B pelo ato lesivo previsto no inciso I (corrupção) ambos do artigo 5º da Lei Anticorrupção. Conclui-se, portanto, que a conduta da empresa A contribuiu de forma relevante para a prática de corrupção, na medida em que financiou a empresa B e possibilitou que esta praticasse o ato lesivo do inciso I. O Manual de Responsabilização de Entes Privados publicado pela Controladoria Geral da União [3] traz exatamente esse entendimento ao discorrer sobre o ato lesivo do inciso II artigo 5º da Lei Anticorrupção: "Trata-se de hipótese legal em que a pessoa jurídica será responsabilizada por ter, pelas formas descritas no tipo (financiamento, custeio, patrocínio, subvenção) concorrido para a prática de ato lesivo diverso, por outra pessoa jurídica. Busca-se responsabilizar todo tipo de auxílio a práticas de corrupção. Tal dispositivo encontra amparo no artigo 27 da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, bem como no artigo 1º da Convenção da OCDE de combate à corrupção de Funcionários estrangeiros. Ambos os tratados encorajam os estados compromissários a adotarem medidas legislativas para tipificação de práticas consubstanciadas em cumplicidade, auxílio ou incitamento de condutas corruptas." Se não houvesse o ato lesivo do inciso II, uma empresa que tenha comprovadamente financiado, patrocinado ou subvencionado a prática de corrupção de uma outra pessoa jurídica, mas que não tenha praticado direta ou indiretamente a corrupção, ou seja, cuja conduta não fosse enquadrada no ato lesivo do inciso I, essa empresa não seria responsabilizada pela Lei Anticorrupção apesar de ter contribuído de forma relevante para o ato de corrupção. Apesar de o ato lesivo de patrocinar, financiar ou subvencionar ser uma norma de aplicação combinada com outra norma (ato lesivo I ou IV da Lei Anticorrupção), não quer dizer que a mesma pessoa jurídica possa ser responsabilizada por ambos os atos lesivos em razão de uma única conduta. Uma única conduta de uma mesma pessoa jurídica não poderia configurar, concomitantemente, o ato lesivo do inciso I e o ato lesivo do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção, ou seja, não poderia uma pessoa jurídica ser responsabilizada pelo ato de corrupção e também por financiar este ato em razão de uma mesma conduta. Portanto, é imprescindível que se tenha um ato lesivo da Lei Anticorrupção praticado por outra pessoa jurídica por meio de uma outra conduta que poderá ser responsabilizada pelo ato de corrupção. Do contrário, o concurso de atos lesivos seria a regra e, consequentemente, a aplicação dessa majorante da pena não seria um fator agravante aplicado apenas nos casos que a justificassem, mas seria sempre aplicada para os casos de responsabilização pelo inciso I.   [1] Mensagem da Presidência de República a respeito do Projeto de Lei nº 6.826/10, em 8/2/2010.Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01y0vif4dwwszh1wip9i19phki1 609320.node0?codteor=735505&filename=Tramitacao-PL+6826/2010, acesso em 16/2/2023 [2] Parecer nº 649/2013 publicado pelo Senado Federal, em 5/7/2013. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4003724&ts=1630411033410&disposition=inline, acesso em 16/2/2023. [3] https://www.gov.br/corregedorias/pt-br/assuntos/painel-de-responsabilizacao/responsabilizacao-entes- privados/manual_de_responsabilizao_de_entes_privados-2022.pdf, acesso em 16/2/2023.
2023-02-19T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-19/publico-pragmatico-responsabilizacao-patrocinar-ou-financiar-atos-corrupcao
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Opinião
Lenio Streck: E o robô passou na prova da OAB!
Venho escrevendo sobre o ChatGPT (ler aqui e aqui). Hoje faço um acepipe da coluna que sai na quinta-feira. É que as notícias abundam. O portal Terra noticia que o ChatGPT, sistema de inteligência artificial (IA) da OpenAI, capaz de criar textos, já provou ser um bom aluno: a ferramenta "foi aprovada" no exame final do Master in Business Administration (MBA) da Universidade de Wharton, no Exame de Ordem (MBE) e também no Exame de Licenciamento Médico dos Estados Unidos (USMLE). O sistema já vinha preocupando professores pela sua habilidade na criação de textos, que pode ser usada para trapacear em testes. Sobre o robô estelionatário falarei na coluna Senso Incomum. A aprovação no MBA foi parte do estudo realizado pelo professor Christian Terwiesch, que usou a inteligência artificial GPT-3, da OpenAI e usada no ChatGPT. Ele concluiu que a IA seria aprovada com nota B a B- no exame de MBA — nos Estados Unidos, os critérios de avaliação são por letra, sendo A equivalente a 10. Já o Estadão dá conta de que, em um experimento conduzido por Daniel Marques, filósofo, advogado e presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), o sistema marcou 48 pontos dos 80 possíveis na prova de primeira fase da Ordem dos Advogados do Brasil aplicada em 2022 — para obter aprovação, são necessários 40 pontos. Pronto. Eis aí a prova do paradoxal sucesso que, por ser paradoxal, é, ao mesmo tempo, a prova do fracasso. Porque o robô mostra o fracasso da humanidade. Para ficar no nosso ramo, se o robô consegue passar no exame da OAB, não é talvez porque o robô seja bom; é porque o modelo de prova é um fracasso. Quiz show que denuncio há tantos anos. É até inacreditável que isso precise ser dito. Alguém tem mesmo fé num modelo em que um robô é aprovado? Aguardamos o próximo passo: como se sairá o robô na prova da magistratura? Ou do MP? Ou da AGU? O ponto: estamos formando profissionais de direito sem que se exija qualquer raciocínio prático — atenção: no sentido próprio do termo — desses profissionais? O processo cognitivo — não vou nem falar de outras dimensões, sobre as quais falarei na quinta-feira — que marca o direito está para além do que as máquinas têm a pretensão de responder em primeiro lugar. Se o robô tem êxito no teste, o fracasso é do teste. O fracasso é nosso, pois. Continuemos com isso. Vamos logo saber que o robô escreve melhor as notícias, faz melhores músicas e melhores pinturas. Deux ex machina mostrando o ponto do não retorno da estupidez humana. A única coisa que o robô ainda não faz é responder a pegadinhas. Dia desses vi a prova. Perguntaram para o ChatGPT se ele conhecia o Mario. O robô perguntou "qual o Mário"? Bingo. O robô ainda precisa se aperfeiçoar. No ramo das anedotas. No resto ele já, no seu começo, mostrou que é melhor que a maioria dos alunos que fazem a prova da OAB. Ou dos alunos dos EUA como mostra o portal Terra. O robô está engatinhando. Logo, logo, é ele quem perguntará coisas sobre o Mário. E todos nós atrás do armário com o ChatGPT.
2023-02-21T14:31-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-21/lenio-streck-robo-passou-prova-oab
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Opinião
Maicon Volpi: Princípio da causalidade e processo cooperativo
Sobre a responsabilização de umas das partes pelas despesas processuais e honorários advocatícios, quando do encerramento da relação jurídica processual, doutrina e jurisprudência tem feito referência ao princípio da causalidade, "segundo o qual aquele que deu causa à instauração do processo, ou ao incidente processual, deve arcar com os encargos daí decorrentes" [1]. Ocorre que aludido conceito aponta apenas para o resultado prático da aplicação deste princípio. Contudo, para que se promova uma aplicação racional deste princípio, evitando-se eventuais decisionismos carregados de subjetividades, é necessário investigar os fundamentos e a própria natureza jurídica do instituto processual, o qual vem sendo bastante aplicado. Buscando respostas acerca das questões acima, verifica-se que o tema é bastante controvertido na doutrina e na jurisprudência. A 3ª Turma do STJ, por exemplo, já concluiu que "o princípio da causalidade não se contrapõe ao princípio da sucumbência. Antes, é este um dos elementos norteadores daquele, pois, de ordinário, o sucumbente é considerado responsável pela instauração do processo e, assim, condenado nas despesas processuais. O princípio da sucumbência, contudo, cede lugar quando, embora vencedora, a parte deu causa à instauração da lide" [2]. Observa-se aqui a adoção daquilo que denominamos de posição integracionista do princípio da causalidade ao próprio princípio da sucumbência. Contudo, há críticas na doutrina quanto a esta posição, pois promoveria uma confusão entre elementos de direito material e de direito processual. Luciano Andraschko relembra que "o Brasil adotou a teoria abstrata (Calmom de Passos, Chiovenda e mesmo Liebmann, com sua teoria eclética), e não a teoria concretista (Wash e Büllow), segundo a qual o direito de ação pressupõe a existência real do direito material pleiteado" [3]. Verifica-se aqui a adoção de uma posição não-integracionista, que reconhece o princípio da causalidade como verdadeiro postulado de derrotabilidade da regra geral. A posição que denominamos de não-integracionista parece-nos mais propensa a fornecer as respostas buscadas acima (fundamentos e natureza jurídica da causalidade), pois promove uma consideração relevante acerca da distinção dos elementos da relação jurídica material e processual, além de buscar não as consequências da aplicação, mas a própria racionalidade da aplicação do princípio. Como bem destacado por Luciano Andraschko, "por uma questão de lógica jurídica, jamais o mero exercício do direito de ação poderia importar em sucumbência, pois como se resolveriam os honorários em caso de sucumbência parcial?" [4]. Para além deste questionamento, que encontra resposta divergente do defendido pelos aqui chamados integracionistas, no artigo 86, parágrafo único, CPC, vale ainda destacar que o artigo 85, caput do CPC vinculou a sucumbência apenas àquele que foi vencido na demanda, apresentando-se o §10 do mesmo dispositivo como verdadeira regra de derrotabilidade. E sobre os fundamentos do princípio da causalidade, na atualidade, parece-nos claro trata-se de uma concretização do modelo de processo cooperativo, cujo fundamento está "na necessidade de uma equilibrada distribuição da cota de participação para cada um dos participantes do processo" [5]. Em que pese a manifestação atual mais clara deste princípio, previsto no artigo 6º do CPC, esteja na concretização, pelo atual CPC, dos deveres do magistrado, certo é que todos os sujeitos do processo estão pautados, dentro da relação jurídica processual, por deveres, decorrentes da boa-fé objetiva. Assim, entendemos que violação destes deveres, decorrentes da boa-fé objetiva, dentro de uma relação jurídica processual, traz a derrotabilidade da regra geral, segundo a qual o vencido arcará com os ônus da sucumbência. Trata-se, em verdade, de sanção processual àquele que ilegitimamente provocou as perdas e danos a outra parte, ainda que vencedor da demanda. Trazendo para análise exemplo clássico apresentado por Yussef Said Cahali "o princípio da causalidade e sua adequada aplicação em sede de embargos de terceiro, assume particular relevância na hipótese de embargos de terceiro oferecidos pelo compromissário comprador de imóvel, com título não registrado, e que tenha sido penhorado na execução contra o alienante. (...) se a penhora somente ocorreu porque o compromissário comprador não procedeu ao respectivo registro imobiliário, fazendo com que o exequente fosse levado a equívoco ao requerê-la com base no registro imobiliário ainda em nome do devedor-executado, nada justifica seja o embargante beneficiado com honorários em razão de uma lide a que ele próprio deu causa" [6]. Voltando às considerações apresentadas poderíamos afirmar que, neste caso, o embargante descumpriu com seu dever legal, de modo que a resistência a uma pretensão formulada legitimamente deu-se em razão da violação deste dever jurídico pelo autor, de modo que a condenação do embargado nos ônus da sucumbência representaria violação ao princípio da boa-fé objetiva, pois, em verdadeiro comportamento contraditório, seria premiar aquele que não cumpriu com os seus deveres legais. Consequentemente, e como sanção ao inadimplemento de seus deveres, o embargante terá que responder com os ônus da sucumbência, não obstante vencedor na demanda [7]. A mesma ratio supra pode ser aplicada aos inúmeros outros exemplos de aplicação do princípio da causalidade, como: 1) apresentação de embargos de terceiro, como o cônjuge do devedor, para a exclusão de sua meação, cabendo os ônus da sucumbência ao executado, que não cumpriu com o seu dever processual de indicar bens (considerado, inclusive, ato atentatório à dignidade da justiça, nos termos do artigo 774, inciso V, do CPC); 2) extinção da demanda, pela perda do objeto de ação personalíssima (artigo 85, §10, CPC), como na hipótese de negativa de fornecimento de tratamento médico ou medicamento (descumprimento de dever legal), omissão em razão da qual o autor da demanda falece; dentre outros. Neste quadro, vislumbramos o princípio da causalidade como uma sanção processual (natureza jurídica), que importa na derrotabilidade da regra de atribuição dos ônus da sucumbência ao vencido, atribuindo-os ao vencedor da demanda, sendo o fundamento desta sanção a inobservância de deveres, dentro da relação jurídica processual ou material antecedente, os quais decorrem da boa-fé objetiva. O modelo cooperativo de processo contribui para a incrementação destes deveres, em especial na relação jurídica processual, na medida em que busca uma equilibrada distribuição da cota de participação dos sujeitos processuais, inclusive impondo-lhes deveres. [1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa do REsp n. 264.930-PR, relator ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 16.10.2000. [2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n 303.597-SP, relatora ministra Nancy Andrighi, DJ de 26.06.2001. Fls. 153. [3] ANDRASCHKO, Luciano. Direito Hoje. Honorários Advocatícios: princípio da sucumbência ou da causalidade. Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2389. Acessado em 06/02/2023. [4] ANDRASCHKO, Luciano. Direito Hoje. Honorários Advocatícios: princípio da sucumbência ou da causalidade. Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2389. Acessado em 06/02/2023. [5] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. 4 ed.; capítulo 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. [6] CAHALI, Yussef Said. Honorários Advocatícios, 3ª ed., Editora Revista dos Tribunais, p. 988. [7] Conforme enunciado de Súmula do STJ, nº 303: "Em embargos de terceiro, quem deu causa à constrição indevida deve arcar com os honorários advocatícios".
2023-02-22T06:03-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-22/maicon-volpi-principio-causalidade-processo-cooperativo
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Feito histórico
Antonella Galindo é a primeira mulher trans na direção da FDR
A Faculdade de Direito do Recife elegeu no último dia 13 os professores Torquato Castro Jr. e Antonella Galindo para os cargos de diretor e vice-diretora da instituição.  A chapa vencedora recebeu 650 votos, contra 331 da chapa formada pelos professores Ivanildo Figueiredo e Humberto Carneiro. A professora Antonella Galindo é a primeira mulher trans a atuar na direção da instituição fundada em 1827, e que é a mais antiga do gênero no país, ao lado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nascida no mesmo ano. Antonella é formada pela Universidade Católica de Pernambuco, possui mestrado e doutorado em Direito pela FDR e fez estágio na Universidade de Coimbra, em Portugal. Já Torquato Castro Jr. é advogado, doutor em Direito pela PUC-SP e professor titular de Direito Civil da UFPE. Eleições As eleições são feitas apurando os votos dos três segmentos da Faculdade, corpos docente, discente e funcional, tendo respectivamente o peso de 70%, 15% e 15% nos resultado eleitoral. Os números finais da votação por categoria foram: DOCENTES Torquato de Castro Jr./Antonella Galindo - 33 votos Ivanildo Figueiredo/Humberto Carneiro - 32 votos DISCENTES Torquato de Castro Jr./Antonella Galindo - 583 votos Ivanildo Figueiredo/Humberto Carneiro - 290 votos SERVIDORAS E SERVIDORES Torquato de Castro Jr./Antonella Galindo - 34 votos Ivanildo Figueiredo/Humberto Carneiro - 9 votos
2023-02-23T21:44-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/antonella-galindo-primeira-mulher-trans-direcao-fdr
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Opinião
Juliana David: A desculpa psiquiátrica nos tiroteios escolares
Lembro que, da última primeira vez que assisti ao documentário Bowling for Columbine (Tiros em Columbine), de Michael Moore, ainda estava no início da faculdade de Direito e, singelamente, era bem menos sóbria e cuidadosa sobre minhas reflexões do que sou hoje. De forma ingênua, eu — e creio que boa parte das pessoas viu o documentário logo nos idos dos anos 2000 a 2010, quando misoginia e machismo eram temas restritos a poucos blogs e fóruns, sem toda a reverberação que vemos atualmente nas redes sociais e na mídia. Tirei como conclusão que o bullying, essa entidade incorpórea que polui a experiência de tantos jovens na escola, essa sim era a culpada pelo boom dos school shootings (tiroteios escolares). Errada estava, claro. Esse fenômeno dos tiroteios escolares, como o conhecemos hoje, ganhou lugar nas manchetes, nas notícias e no imaginário popular especialmente devido à experiência americana. Em 2022, foram 193 incidentes com armas de fogo em escolas nos Estados Unidos [1]. No pequeno espaço que tenho aqui, não me atrevo a tentar destrinchar todos os aspectos difíceis envolvendo a questão dos massacres escolares — propostas republicanas de treinamento e fornecimento de armas para professores, os shooting drills, treinamentos feitos para crianças se protegerem em caso de um tiroteio escolar, as demandas democratas por mais leis voltadas à restrição de armas de fogo na land of the free, ou até a própria história dos Estados Unidos e como ela vem entrelaçada com a produção e venda de materiais bélicos. Meu tema de análise aqui, hoje, é "simplesmente" o seguinte: por que, nestes casos, verificamos uma tendência de cobertura midiática sobre o estado de saúde mental do atirador como espécie de justificativa para o crime? Primeiramente, o discurso que vincula atiradores escolares a transtornos mentais provavelmente surgiu após o atentado de Sandy Hook, no qual o atirador matou sua mãe, fez outras 26 vítimas e, por fim, tirou a própria vida. À época, o relatório publicado pela promotoria de Danbury concluiu que o atirador, Adam Lanza, tinha Síndrome de Asperger e que "seus traços obsessivos e ansiosos" foram os principais fatores que o tornaram um recluso social [2]. Além disso, não é difícil encontrarmos artigos e notícias narrando como o Adam Lanza, por conta de seus transtornos mentais, se tornou vítima de violência psicológica (bullying), o que seria, anos depois, a causa da tragédia [3]. Bom, em primeiríssimo lugar, esse discurso absolutamente torto vincula pessoas com transtornos mentais a atiradores escolares, e contribui — de forma, a meu ver, até eugenista — para estigmatizar ainda mais uma parcela da população que já é tão estigmatizada — portadores de transtornos mentais ou condições diversas, como depressão, bipolaridade, autismo, etc. Em segundo lugar, se sofrer bullying, ostracismo social e viver com transtornos psicológicos fossem fatores determinantes para o surgimento de um atirador escolar, veríamos muito mais school shooters de camadas oprimidas na sociedade — negros, LGBTQIAs, mulheres. Veja, indivíduos que são vitimizados todos os dias por racismo, homofobia, transfobia, machismo e misoginia. Em franco contraste, o que é possível perceber é que os atiradores escolares são, em sua maioria, homens cisheterossexuais e, grande parte das vezes, brancos [4]. Em seu artigo, chamado Masculinidade adolescente, homofobia e violência, os autores Michael S. Kimmel e Matthew Mahler se propuseram a analisar esse fenômeno. Os autores sugerem que, para além de uma análise somente sobre a forma dos tiroteios (histórico familiar, de transtornos mentais, ou explicações culturais amplas), devemos analisar o conteúdo dos incidentes, ou seja, a narrativa que acompanhou a violência. Segundo Kimmel e Mahler, então, os school shooters não seriam desviantes com transtornos psicológicos, mas, sim, homens que, em conformação exagerada com a masculinidade, naturalizaram o uso da violência como meio legítimo para responder a um cenário percebido como humilhante por eles [5]. Em outro artigo, Suicídio de assassinos em massa: masculinidade, entitlement, e tiroteios escolares, os autores Rachel Kalish e Michael Kimmel também escrevem sobre o fenômeno comum do suicídio dos atiradores após as mortes, bem como do entitlement como fator determinante para a violência perpetrada por esses indivíduos. Segundo os autores [6]: Quando esses ataques à identidade masculina afetam alguém ao ponto de pensamentos suicidas, cometer um assassinato em massa pode ser uma forma instrumental de alcançar um senso de poder; e enquadrar o seu suicídio com violência e agressão pode servir para torná-lo mais poderoso. Não ouso afirmar que tenho uma solução simples para um fenômeno criminal tão complexo quanto os tiroteios escolares, porém, certamente, o caminho para tratarmos esse problema de forma eficaz certamente passa pela reconstrução da masculinidade na nossa cultura ocidental. [1] JORNAL NACIONAL. Número de tiroteios em escolas é o maior em dez anos. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/08/19/numero-de-tiroteios-em-escolas-nos-eua-e-o-maior-em-10-anos.ghtml [2] Scheper-Hughes, N. (2018). How to talk (and not to talk) about school shootings. Anthropology Today, 34(2), 3-4. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8322.12417 Disponível em https://escholarship.org/uc/item/4hk3j76x [3] Adam Lanza's Obsessions In Chilling Detail. https://youthtrainingsolutions.com/news/adam-lanzas-obsessions-in/ [4] Kimmel, M. S., & Mahler, M. (2003). Adolescent Masculinity, Homophobia, and Violence: Random School Shootings, 1982-2001. American Behavioral Scientist, 46(10), 1439–1458. https://doi.org/10.1177/0002764203046010010 [5] Idem. [6] Rachel Kalish & Michael Kimmel (2010). Suicide by mass murder: Masculinity, aggrieved entitlement, and rampage school shootings, Health Sociology Review, 19:4, 451-464, DOI: 10.5172/hesr.2010.19.4.451
2023-02-23T13:13-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/juliana-david-desculpa-psiquiatrica-tiroteios-escolares
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Caminhos da Justiça
Supremo promove seminário sobre direitos e relações de trabalho
A relação entre os direitos constitucionais e o mundo do trabalho será tema de seminário que o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat) promoverão nos dias 2 e 3 de março, na sede do STF, em Brasília. Intitulado "Seminário Internacional sobre Direitos Constitucionais e Relações de Trabalho: Caminhos das Cortes Superiores para a Efetividade da Justiça Social", o evento é destinado à magistratura e a membros do Ministério Público, e as inscrições vão até esta sexta-feira (24/2). Segundo a organização do evento, as vagas são limitadas a 200 pessoas, mas quem não conseguir participar de forma presencial poderá acompanhar a transmissão nos canais do STF, do TST e da Enamat no YouTube. Mais informações podem ser obtidas no site do evento ou pelo e-mail [email protected]. Patrimônio Cultural e Natural O Superior Tribunal de Justiça vai sediar, entre 15 e 17 de março, o "Simpósio Internacional de Direito do Patrimônio Cultural e Natural — 50 anos da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural: os próximos 50 anos". Organizado pelo STJ em parceria com o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o simpósio fará um retrospecto das cinco décadas de implementação da Recomendação de Paris, analisando conquistas, lacunas e desafios, com um olhar para o futuro. Na oportunidade, os juízes brasileiros lançarão a Declaração Judicial de Brasília sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural. A coordenação-geral do simpósio é do vice-presidente do STJ, ministro Og Fernandes. A coordenação científica é do ministro do STJ Herman Benjamin. O evento tem apoio da Embaixada da França no Brasil, da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Mais informações estão disponíveis na página do simpósio. Com informações das assessorias de imprensa do STF e do STJ.
2023-02-23T08:22-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/supremo-promove-seminario-direitos-relacoes-trabalho
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Senso Incomum
IA, a classe dos inúteis e o cão que empurrava crianças no rio!
1. Não se fala de outra coisa: de como estão matando a cognição e como isso não importa para as novas guildas pós-modernas Vários textos chamam a atenção para os perigos da Inteligência Artificial e o novo ChatGPT. Listo aqui brevemente: Justo Barranco escreve sobre a morte da arte diante de nossos olhos. Mostra o quadro premiado na Colorado State Fair. É de uma máquina. O Reino Unido convidou dois cientistas de Oxford — Michael Osborne e Michael Cohen — para falarem sobre a IA e os seus perigos. Mostraram que existem perigos em comum entre a IA e a guerra nuclear. O resumo está na entrevista de Osborne na Folha do dia 19/2 último. 2. O robô que faz estelionato de segundo nível Aqui na ConJur, Henderson Fürst (aqui) e Alejandro Arrabal (aqui). Fürst mostra as inconsistências do ChatGPT. A inconfiabilidade e os efeitos colaterais. Arrabal mostra talvez o mais grave problema: o das fontes e do plágio. A inexorabilidade disso. Veja o "diálogo" de Arrabal com o robô: Arrabal: "Você afirmou que foi 'treinado com uma grande quantidade de texto da internet'. Então, existe a possibilidade dos textos que lhe forneceram, serem de autoria reconhecida, e você não mencionar as fontes?" Resposta do ChatGPT: "Eu sou treinado usando uma técnica chamada 'aprendizado por transferência de conhecimento' que me permite aproveitar o conhecimento adquirido a partir de grandes quantidades de texto. Durante meu treinamento, não foi fornecida a mim qualquer informação sobre as fontes dos textos que usei, então não posso citar fontes específicas quando forneço informações.(...)" A pergunta vai no cerne. Há uma vigarice institucionalizada no ar. Não há mais fontes, a não ser as da água mineral. Já quase não havia. Os humanos já não citam. Apropriam-se. Mas agora temos um robô que aprendeu com os humanos. Ele se apropria de todo o conhecimento para que esse, em uma anarco-epistemologia, passe a ser livre. Veja-se que o robô diz que não cita fontes porque é assim alimentado. Alimentação aqui é conteúdo derramado na internet por qualquer pessoa. É como a Wikipedia. É como o google, que responde de acordo com o que tem. E não adianta o robô trabalhar com fontes: como lidará com contextos? E as paráfrases? E os textos que falam de outros textos? O ChatGPT é um vigarista de segundo nível. Um metavigarista. Com estilo, é claro. Convenhamos: os textos do ChatGPT são (bem) melhores do que alunos copiadores. E de néscios das redes sociais imitadores-plagiadores. O robô faz do limão do emaranhado de informações uma espécie de "conhecimento reciclado". Junta tudo, seleciona e vomita o que tem. Como dizem Osborne e Cohen, se pedir para o robô a solução para o câncer, ele pode sugerir matar a humanidade. 3. E o cachorro aprendeu rapidinho! Um cão estelionatário...! Adorei a história que Osborne conta sobre o cachorro que salvou uma criança que se afogava no Sena. Como recompensa, ganhou um bife. Tempos depois, ele salvou outra criança. Ganhou um bife. Uma terceira vez e mais bife. Descobriram, na sequência, que o cachorro empurrava crianças no Sena para ir salvá-las. Eis o ChatGPT: um produto da mediocridade do mundo, o resultado do venire contra factum proprium inerente à humanidade pós-moderna: ela joga informações quaisquer na rede; empilha informações, dados, textos. O robô, produto da humanidade, pega tudo e, sobranceiro, responde às demandas. Pronto: a humanidade tira proveito de sua própria torpeza. Ou de sua própria mediocridade. A quem interessa que robôs façam os trabalhos escolares, os desenhos etc.? A quem interessa que, em vez de se ler Machado, o robô apresente um resuminho explicativo? Há um ponto filosófico aqui, e isso precisa ser dito. Porque vale para essa algoritmização do mundo, dos robôs que fulminam recursos e o ChatGPT. É uma questão de accountability hermenêutico. Sobre fundamentação, ou, como gosto de definir, accountability, sobre fundamentação da fundamentação. Quais são as fontes adotadas pelo ChatGPT — ou quais são os critérios adotados pelo robô que fulmina seu recurso — para dizer isto ou aquilo, esteja isto certo e aquilo errado ou vice-versa? Porque o busílis está para além de respostas potencialmente erradas. Mesmo nas respostas certas. Quais foram as condições para que o robô chegasse na resposta certa? Quem escreveu? Quem disse? Onde? Qual é a origem? Quais são os critérios de seleção? Não sabemos. 4. E vendem cursos de Lei Seca — uma barbada para o ChatGPT Vi que já inventaram um aplicativo chamado Socratic by Google. Mais um santo expedito dos preguiçosos e aproveitadores. Você fotografa uma questão qualquer de concurso ou quejandice e ele dá as respostas tipo ChatGPT. Pronto. Eis aí uma solução para o nível dos concursos quiz shows que exigem hoje decorebas a ponto de três juízes venderem cursinho de Lei Seca... Nota: descobri que Lei Seca não tem nada a ver com álcool. São os tempos "pós-modernos"... 5. O paradoxo pós-moderno: quanto mais informação, mais néscios Interessante: quanto mais informação, mais néscios. Deveria ser o contrário. Por que isso é assim? Porque, como já disse T.S. Eliot antes do advento do smartphone, bem antes, que informação (que qualquer um tem à mão) não é conhecimento; conhecimento não é saber; e saber não é sabedoria. A quem interessa que um robô julgue processos (sem que se diga quais são os critérios de julgamento)? A quem interessa que um robô ofereça respostas prontas (sem dizer de onde tirou essas respostas)? Arautos da técnica sempre vêm "ah, eu nunca disse que robôs são como humanos, humanos têm emoções". Claro. Bem meigo isso. Reduzem tudo a uma (falsa) dicotomia racionalidade/emoções, como se o processo cognitivo não tivesse desde-já-sempre um elemento moral. Qual é a responsabilidade moral do robô? Pois é. Eis o ponto. Fundamentação da fundamentação. Não há. 6. Por que não existe intelectual bronzeado Tampouco há mágica. Não existe intelectual bronzeado (é uma metáfora, antes que um néscio apareça para dizer que ele conhece exceções e ele mesmo é uma delas, com o que confessa que é um néscio...!). Lembremos sempre do cachorro... Não subestimemos os robôs e nem os cães...! Como disse um presidente de companhia de IA há algum tempo, contato por Ronaldo Lemos na Folha: A IA vai destruir o mundo; mas até lá muitas empresas serão construídas para fazer boas vendas de tecnologia. A diferença para com a bomba atômica é que esta funciona se não for utilizada; já a IA é destrutiva já no seu uso! 7. Vem aí uma nova classe social: a dos inúteis O famoso historiador Yuval Harari, em artigo publicado no The Guardian, intitulado O Significado da Vida em um Mundo sem Trabalho, matou a charada: uma nova classe de pessoas deve surgir até 2050: a dos inúteis. "São pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão empregáveis", diz o historiador. Bingo. Só acho que surge bem antes. Muito antes. Harari tem razão. Isso se os robôs não acionarem, antes, a guerra nuclear. 8. Post scriptum: segunda-feira, 27 de fevereiro, 18h30, farei uma live com Victor Drummond, especialista em direito autoral, no meu canal no Instagram sobre o tema ChatGPT. Então: @lenio_streck e @interartisbrasil. Como fica a criação literária, artística e jurídica diante dessa tecnologia?
2023-02-23T08:00-0300
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Opinião
Francisco de Assis e Silva: Rui Barbosa, 100 anos
Na semana que vem, dia 1º, rememora-se os 100 anos da despedida de um grande brasileiro: Rui Barbosa. Naturalmente, muito se dirá sobre o jurista e sobre o político que foi. Mas relevante lembrar também o poeta — o polímata, escritor, jornalista, tradutor, fundador da Academia Brasileira de Letras. O estadista, grande político e fundador da República, era um orador ímpar, sem esquecer seu múnus de ministro das Relações Exteriores do Brasil de 1911 a 1912. Cruzou do império à república, onde desembarcou como seu maior expoente. Poucos ocuparam a função de político, como deputado, senador com honra e respeitabilidade. Como sói acontecer com quem tem coragem de ter opiniões próprias, foi alvo de críticas contundentes — como a uma imaginada inflexibilidade na interpretação de princípios republicanos e por ter-se dedicado mais às questões jurídicas que à política, depois de implantada a república. Os críticos não ponderaram que a missão relevante de então já havia sido cumprida. Rui Barbosa foi um defensor dos direitos dos escravos e acreditava que todas as pessoas, independentemente de raça, deveriam ser tratadas igualmente. Não apenas a luta contra a escravidão foi sua bandeira, mas sim, a principal e mais ampla delas a igualdade entre as pessoas. Humanista, acima de tudo, semeou o iluminismo em muitos textos insistentemente citados até hoje, no Brasil e no mundo, como o célebre trecho da "Oração aos Moços": "Não tenham medo de serem grandes; não temam trabalho; não repugnem sacrifícios: na verdade, a grandeza consiste numa atitude constante diante do trabalho e dos sacrifícios necessários para alcançar os elevados objetivos da existência." Porém, a nós advogados o mais profícuo talvez seja o que definiu o principal papel do ofício:   "Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos." Ao fugir da legalidade abandona-se a liberdade a quem detém o poder. Para dizer o que é a liberdade, portanto, esse valor deve sempre estar inserido no contexto da legalidade para que dela não se afugente aqueles que querem fazer da liberdade de nada existir para pregar a ausência daquilo que lhes é útil. Ou seja: a não liberdade de todos ou de uma parte das pessoas, como sempre pregou Rui. O poeta, papel de que pouco se fala, é fundamental para se enxergar Rui Barbosa de corpo inteiro. Suas obras principais incluem obras primas como Cristo na Cruz, A Sepultura e O Antigo Testamento. Um trecho encantador da sua verve: "Três âncoras deixou Deus ao homem: o amor à pátria, o amor à liberdade, o amor à verdade. Cara nos é a pátria, a liberdade, mais cara; mas a verdade, mais cara de tudo. Damos a vida pela Pátria. Deixamos a Pátria pela liberdade. Mas à Pátria e à liberdade renunciamos pela verdade. Porque este é o mais santo de todos os amores. Os outros são da terra e do tempo. Este vem do céu e vai à eternidade..." Ao finalizar, e a título de celebração, uma pérola da liberdade e da Justiça no tempo, adaptada na fala do paraninfo na minha graduação que, provavelmente, adaptada ou reproduzida, muito possivelmente será lembrada em discursos de paraninfos de bacharéis em Direito pelos próximos cem anos: "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, a lesa no patrimônio, honra e liberdade." Viva Rui! Viva o Direito!
2023-02-24T11:13-0300
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Opinião
Tatyanne de Araújo: Celebração do sufrágio feminino no Brasil
A luta das mulheres por igualdade em diversos aspectos possui datas marcantes e o dia 24 de fevereiro é um desses dias a ser lembrado e comemorado na história brasileira, por homens e mulheres. Neste dia, no ano de 1932, as mulheres conquistaram o seu direito ao voto no Brasil. Mas até chegar aí muitas lutas foram travadas. A Revolução Francesa e a Revolução Industrial são pontos históricos que representam uma luta social e política como um todo e principalmente para as mulheres. A exemplo da história da escritora e ativista francesa Olympe de Gouges, que no período da Revolução Francesa ousou reivindicar a participação das mulheres na política ao questionar a conhecida Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, em que uma série de direitos eram assegurados, mas na prática não eram aplicados às mulheres em sua plenitude. A partir disso, em 1791, Gouges criou o que chamou de Declaração dos direitos das mulheres e da cidadã, com críticas às diferenças de direitos entre homens e mulheres. Com um ambiente político absolutamente masculino, seus apontamentos não tiveram atenção e por isso decidiu por enviar um exemplar à rainha Maria Antonieta, o que motivou sua sentença de morte. Teve como fim trágico a guilhotina, de maneira a reprimir outras mulheres que tivessem a ousadia de pleitear a igualdade de direitos e participação na sociedade.  Outra escritora de destaque foi a britânica Mary Wollstonecraft, que é 1792 tornou público uma obra criticando um escrito do famoso Jean Jacques Rousseau, este que afirmava que a capacidade intelectual das mulheres era reduzida. Mary então rebateu ao argumentar que, bastava que as mulheres recebessem a mesma educação e acesso ofertados aos homens, e assim poderiam se igualar intelectualmente.    Na história mundial, a busca pelo direito ao voto feminino é a ideologia defendida pelos primeiros movimentos feministas. Mulheres não batalhavam apenas pelo direito ao voto, isso era um dos reflexos do conjunto de desigualdades enfrentadas. O voto, como uma das facetas da democracia,  representa um direito não do homem ou da mulher, mas do ser humano. Nesse contexto, no início do século 19, a Inglaterra foi protagonista nessa luta, sendo o país de maior destaque no movimento sufragista, que reuniu mulheres pleiteando sua participação na política e igualdade de gênero. O movimento teve como pioneira Millicent Fawcett, atuando de maneira pacífica na tentativa de diálogo com o Poder Legislativo britânico, sem sucesso. Anos mais tarde, os movimentos ganharam desígnios mais resistentes em virtude do não reconhecimento desse direito, tendo Emmeline Pankhurst à frente de mais um movimento social que foi às ruas em protesto por seus direitos, com consequentes atos de violência, como a lamentável morte da professora Emily Davison que, como um ato de protesto, atirou-se na frente do cavalo de Jorge 5º, então rei da Inglaterra. O movimento sufragista ganhou força em todo o mundo, sendo a Nova Zelândia, em 1893, o primeiro país a reconhecer o direito de voto às mulheres, com destaque para a ativista Kate Sheppard. Em seguida, a Finlândia, em 1906. Na Inglaterra, apesar de ter sido um dos países pioneiros nessa luta, apenas em 1918 existiu um avanço significativo, com a autorização para que mulheres acima de 30 anos pudessem votar. Em seguida, os Estados Unidos em 1920. A França também tardiamente em 1945, mesmo sediando relevantes fatos históricos nesse sentido. No Brasil, antes do celebrado dia 24 de fevereiro de 1932, igualmente existiu uma trajetória histórica de mulheres brasileiras que exerceram papel essencial para essa conquista. Sem dúvidas, as influências dos movimentos mundo afora colaboraram para encorajar as brasileiras, como, por exemplo, a potiguar Nísia Floresta, que decidiu publicar uma tradução livre da obra de Mary Wollstonecraft, em 1832, difundindo as ideias de defesa do direito de participação das mulheres na política e na sociedade. Outra personalidade fundamental foi a baiana Leonilda de Figueiredo Daltro, que, como professora, dedicou-se à defesa dos direitos das mulheres e ao ensino, na tentativa de conscientizar através da educação o necessário reconhecimento à igualdade. Responsável por fundar o Partido Republicano Feminino em 1910. Lançou-se como candidata à Intendência Municipal em 1919 e a deputada federal em 1933. Bertha Lutz, em 1922, na mesma linha de Leonilda, criou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, na tentativa de convencer e pressionar o governo a legitimar a participação feminina. Pouco tempo depois, em 1927, o estado do Rio Grande do Norte inovou em seu Código Eleitoral retirando a distinção de gênero aos eleitores, permitindo, portanto, que mulheres pudessem votar. Contudo, todos os votos femininos foram anulados pela Comissão de Poderes do Senado. Ainda em 1928, no Rio Grande do Norte, Alzira Soriano tornou-se a primeira mulher a ocupar um cargo na política brasileira, ao candidatar-se a prefeita do município de Lajes e vencer.  Alguns anos depois, no governo de Getulio Vargas, uma atenção maior fora dada à causa das mulheres. Iniciou-se um projeto de reforma do sistema eleitoral com a previsão do voto feminino, porém com restrições, em que apenas viúvas e solteiras com renda própria poderiam votar e no caso de mulheres casadas com renda própria, o voto somente seria permitido se o marido autorizasse. Todavia, essas restrições ocasionaram insatisfação, sendo mais uma vez motivo de reinvindicação, a qual fora atendida. Vargas revisou o texto e no dia 24 de fevereiro de 1932 foi publicado o novo código eleitoral, que garantia às mulheres o direito de votar e de serem votadas.   Sem dúvidas a luta das mulheres é contínua. Embora, atualmente, sejam a maioria no eleitorado brasileiro, representando cerca de 52%, sua participação como representantes ainda tem em muito a avançar.  Essa falta de representação igualitária em muito carrega a questão histórica. Poucas são as mulheres que encaram o desafio de estar à frente de um cargo público e é necessário que elas estejam presentes nesses espaços. Quem melhor do que mulheres para criar leis sobre mulheres?  Visando estimular a participação feminina na política, foi promulgada pelo Congresso a Emenda Constitucional 117, que determina que os partidos políticos destinem um mínimo de 30% dos recursos públicos para campanha eleitoral às candidaturas de mulheres, com a intenção de que se proporcione igualdade de condições nas disputas eleitorais. Com o intuito de ampliar a participação feminina, o Tribunal Superior Eleitoral também lançou, em junho de 2022, campanhas de estímulo a essa participação.  Traçando os números desse cenário político em 2023, no Senado Federal de 81 cargos para senador, apenas 11 deles estão sendo ocupados por mulheres. Na Câmara dos Deputados, de 513 cargos, somente 91 deles estão sendo ocupados por mulheres. Mesmo se tratando de um número ainda distante de uma equiparação de gênero, representa um avanço de 18,2%, com a observação da presença inédita de 2 deputadas trans.  Dessa maneira, percebe-se que mesmo diante dos avanços já conquistados, muito ainda há em se evoluir e é preciso que homens e mulheres sigam nessa luta para garantir o acesso adequado a informação, bem como um espaço adequado à participação das mulheres que assim optarem por atuar na política. Decerto, a participação democrática feminina é de caráter essencial, tanto no ato de votar, como de ser votada.  __________________________ [1] MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. p. 14. [2] KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar: dos primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre, 2013. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/72742/000884085.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 19 de fev. de 2023. p. 40. [3] MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. p. 18. [4] TOSI, Marcela. Voto feminino: a história do voto das mulheres. Diposnível em: ≤https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [5] REZENDE, Milka de Oliveira. Movimento sufragista. Brasil Escola. Disponível em: ≤https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/movimento-sufragista.htm≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [7] MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. p. 22. [8] TOSI, Marcela. Voto feminino: a história do voto das mulheres. Diposnível em: ≤https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [9] MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. p. 108. [10] TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2022. Eleições 2022: mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. Disponível em: ≤https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [11] CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2022. Congresso promulga   cota de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas femininas. Disponível em: ≤https://www.camara.leg.br/noticias/864409-congresso-promulga-cota-de-30-do-fundo-eleitoral-para-candidaturas-femininas/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [12] TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2022. Eleições 2022: mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. Disponível em: ≤https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [13] SENADO FEDERAL, 2022. Bancada Feminina saúda senadoras eleitas e faz balanço positivo de 2022. Disponível em: ≤https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/07/bancada-feminina-sauda-senadoras-eleitas-e-faz-balanco-positivo-de-2022≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. [14] CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2022. Bancada feminina aumenta 18,2% e tem duas representantes trans. Dispnível em: ≤https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023.   Referências CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2022. Bancada feminina aumenta 18,2% e tem duas representantes trans. Disponível em: ≤https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2022. Congresso promulga   cota de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas femininas. Disponível em: ≤https://www.camara.leg.br/noticias/864409-congresso-promulga-cota-de-30-do-fundo-eleitoral-para-candidaturas-femininas/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar: dos primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre, 2013. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/72742/000884085.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 19 de fev. de 2023. MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. REZENDE, Milka de Oliveira. Movimento sufragista. Brasil Escola. Disponível em: ≤https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/movimento-sufragista.htm≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. SENADO FEDERAL, 2022. Bancada Feminina saúda senadoras eleitas e faz balanço positivo de 2022. Disponível em: ≤https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/07/bancada-feminina-sauda-senadoras-eleitas-e-faz-balanco-positivo-de-2022≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2022. Eleições 2022: mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. Disponível em: ≤https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-  a-maioria-do-eleitorado-brasileiro≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023. TOSI, Marcela. Voto feminino: a história do voto das mulheres. Disponível em: ≤https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/≥. Acesso em: 21 de fev. de 2023.
2023-02-24T06:28-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-24/tatyanne-araujo-celebracao-sufragio-feminino-brasil
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Opinião
Tiago Bunning: O filtro necessário no testemunho de policiais
A discussão sobre a valoração do testemunho policial é antiga, mas recentes posições dos tribunais superiores, em especial do STJ, revelam uma importante preocupação com o standard probatório atribuído a prova testemunhal proveniente de policiais. A razoabilidade precisa estar regrada — ao menos pela jurisprudência. Se de um lado vedar a produção desse tipo de prova não seria aceitável, na mesma medida é imprudente revestir de fé pública o depoimento policial [1]. Quem pensa dessa forma esquece que a "prova tarifada", quando se cria um sistema de hierarquia entre as provas, era sistema de valoração típico de períodos autoritários, cunhado em processos inquisitórios, nos quais se creditava valor a partir da espécie e não do conteúdo da prova. Em tom crítico, Rubens Casara adverte que a presunção de veracidade, baseada na fé pública, representa retrocesso à figura da "testemunha acreditada" típica do período em que o direito islâmico clássico, de verniz autoritário, atribuía o poder de falar a verdade a pessoas escolhidas como honestas e decentes pelo presidente do tribunal [2]. Não é menos descabido reduzir a discussão do tema à afirmação de que o artigo 202 do CPP autoriza que "toda pessoa poderá ser testemunha" [3]. As autoridades policiais e os agentes de polícia não funcionam como "toda" pessoa para a persecução penal, pois diferentemente de qualquer um do povo, eles são agentes públicos que integram órgão de segurança pública (artigo 144 da CF/88), responsáveis pela prevenção e apuração dos crimes e consequentemente vinculados ontologicamente a esta função. Por todos, Aury Lopes Jr. adverte para uma condenação natural decorrente da apuração e repressão do fato, ressaltando ser "evidente que o envolvimento do policial com a investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os atos (e eventuais abusos) praticados" [4]. Pode passar despercebido, mas a legislação processual penal não ignora esta diferença entre os sujeitos, por exemplo quando faculta a "toda" pessoa (populares) a realização da prisão em flagrante, enquanto obriga de forma imperativa que as autoridades e os agentes de polícia prendam quem quer que seja encontrado em flagrante delito, reconhecendo que o papel constitucional daqueles que integram órgão de segurança pública tem consequências com suas funções em relação a persecução penal. As autoridades policiais e os agentes de polícia devem apurar os fatos, colhendo provas, dentre elas a prova testemunhal, por isso não cabe a eles funcionar como testemunha para preencher um vazio de outras provas. Ainda que em situações excepcionais seu testemunho possa revelar detalhes da investigação, e por isso não é razoável impor uma vedação absoluta ao testemunho policial, seu conteúdo será sempre incapaz de preencher o todo necessário para uma condenação penal. É neste ponto que falamos em uma razoabilidade regrada, para dizer que, em busca de um equilíbrio em prol de sistema acusatório que preserve a presunção de inocência, já passa da hora que os tribunais imponham limites a valoração do testemunho policial. A jurisprudência começa a caminhar para esta direção a partir do HC 598.051/SP, julgado pela 6ª Turma, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, reconhecido por seus votos substanciosos e responsáveis por overruling. Após verificar que falta verossimilhança no testemunho policial que alega consentimento livre do morador que autoriza a entrada em seu domicílio para formação de prova incriminatório em seu desfavor, criou-se um filtro em tais casos, reconhecendo ser necessário a prova da legalidade da voluntariedade do consentimento a partir da declaração assinada ou de registro em vídeo e áudio. A posição foi acompanhada pela 5ª Turma em caso de relatoria do ministro Ribeiro Dantas no HC n. 616.584/RS, unificando o tema no STJ. Se por essas razões o testemunho policial, isoladamente, não é suficiente para justificar a legalidade do ingresso em domicilio, o que justifica aceita-lo como única prova valorada em sentenças condenatórias? Do mesmo modo que falta verossimilhança na alegação de consentimento do morador que autorizou a produção de uma prova em seu desfavor, também não é provável que o testemunho policial não busque corroborar os atos anteriormente praticados no momento da prisão ou durante a investigação. Nesse ponto merece prestígio a posição que começa a surgir na 5ª Turma do STJ, a partir dos ministros Ribeiro Dantas e Reynaldo Soares da Fonseca, que no julgamento do AREsp 1.936.393/RJ reconheceram que "a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. É necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo". No caso, a Turma restaurou a sentença absolutória reconhecendo inconsistências nos depoimentos dos agentes policiais, sendo ressalvado o entendimento ainda mais abrangente dos ministros Ribeiro Dantas e Reynaldo Soares da Fonseca, que propõem um filtro similar aquele já adotado em relação aos casos de ingresso em domicílio. Em conclusão, a melhor opção a ser adotada se orienta pela razoabilidade, como diria o provérbio "nem tanto ao mar, nem tanto ao solo", mas caminhando para redefinir o standard probatório do testemunho policial, sobretudo quando se trata de prova isolada nos autos, não confirmada por qualquer outro elemento independente, por exemplo, o depoimento de outros testemunhas, gravações em áudio e vídeo, declarações ou outras provas admitidas na legislação. Em um Estado Democrático de Direito que protege a presunção de inocência, aceitar que pessoas sejam condenadas tão somente a partir do depoimento de policiais sem qualquer outra fonte de prova independente ou elemento que abone o testemunho, não porque se desconfia do testemunho policial, mas porque é inusitado que a Polícia Judiciária e o Ministério Público sejam incapazes de produzir qualquer outro elemento de prova além da simples oitiva dos responsáveis pela prisão ou pela investigação. [1] "(...) Registre-se que os depoimentos dos policiais têm valor probante, já que seus atos são revestidos de fé pública, sobretudo quando se mostram coerentes e compatíveis com as demais provas dos autos. A propósito: AgRg no AREsp nº 1.317.916/PR, 5ª Turma, rel. min. Joel Ilan Paciornik, DJe de 5/8/2019; REsp nº 1.302.515/RS, 6ª Turma, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJe de 17/5/2016; e HC nº 262.582/RS, 6ª Turma, Rel. min. Nefi Cordeiro, DJe 17/3/2016. (...) (AgRg no HC nº 606.384/SC, relator ministro Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 22/9/2020, DJe de 29/9/2020)" [2] CASARA, Rubens. Presunção de veracidade dos depoimentos de agentes públicos: testemunhas acreditadas, da tradição islâmica ao autoritarismo brasileiro. In: Processo Penal do Espetáculo (e outros ensaios). 2ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 209/210. [3] "1. É pacífica a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de que, nos moldes do art. 202 do Código de Processo Penal, qualquer pessoa pode ser testemunha, inclusive a autoridade policial, não havendo que se falar em impedimento ou suspeição do delegado somente pelo fato de, em razão da natureza de seu cargo, ter presidido a fase inquisitorial. (...) (AgRg no RHC n. 117.506/CE, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 10/10/2019, DJe de 18/10/2019)" [4] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 543.
2023-02-25T15:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/tiago-bunning-filtro-necessario-testemunho-policiais
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Debate atual
Lewandowski e professores lançam livro sobre liberdade de expressão
Com o objetivo de analisar aspectos jurídicos da relação entre Direito, mídia e comunicação social, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, e seus colegas professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Heleno Torres e Pierpaolo Bottini, lançaram o livro Direito, mídia e liberdade de expressão: custos da democracia. A obra, editada pela Quartier Latin, é uma coletânea de artigos de professores que integraram uma disciplina ministrada a alunos da pós-graduação em 2020 e propõe uma reflexão sobre a correlação existente liberdade de expressão e democracia nos dias de hoje. Os textos tratam dos limites dos direitos fundamentais à comunicação e à liberdade de expressão, bem como a proteção da intimidade e outros. Trazem também doutrina e jurisprudência, além de aplicação de normas no âmbito da produção de difusão de informações. Ao jornal Folha de S.Paulo, Bottini explicou que o livro resulta de debates em um momento histórico do país no qual a liberdade de expressão passou a ser cerceada por milícias virtuais e pelo próprio governo. E Torres disse que o curso permitiu discutir o princípio constitucional da liberdade de expressão nas suas múltiplas dimensões.
2023-02-25T11:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/lewandowski-professores-lancam-livro-liberdade-expressao
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Ambiente Jurídico
Considerações sobre o saneamento básico dos nossos dias
Num doce balanço a caminho do mar; ah, se ela soubesse que quando ela passa, o mundo inteirinho se enche de graça, e fica mais lindo por causa do amor... por causa da vida, do meio ambiente, da ética esperada de cada um de nós, da justiça em dar a cada um o que é seu, da espiritualidade que confia na máxima de que Deus é onipresente e onisciente, sendo um presente para cada um de nós e estando presente em cada ser único que habita nossa terra pátria. Ao balanço de uma das canções mais icônicas da nossa geração, a de maior execução no mundo após Yesterday, dos Beatles, vemos a inspiração do poeta Tom Jobim, letrada por Vinícius de Moraes, ainda em 1962, retratar mais do que a Garota de Ipanema adolescente deslumbrante de 18 anos que fazia todos pararem para vê-la desfilar na Praia de Ipanema. Em minha visão, a música é também e especialmente dirigida às águas, aos recursos hídricos protegidos, limpos, balneáveis, que podem ser consumidos pela humanidade em seu estado original, hoje uma utopia, porque o homem, lobo do próprio homem, conforme Thomas Hobbes, não respeitou o recurso natural mais consumido no mundo, a água, fonte de vida e da vida, nossa querida água, considerada um direito humano fundamental. Efetivamente, o acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade e reconhecido pela ONU como "condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos" (Resolução 64/A/RES/64/292, de 28/7/2010). No Brasil, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), antes mesmo da Constituição de 1988, estabeleceu regras ambientais de proteção diferenciada, algo inovador e disruptivo para a época, instituindo, por exemplo, a responsabilidade objetiva pelo dano ambiental e a tríplice responsabilização dos infratores: penal, civil e administrativa. Ela conceituou em seu artigo 3º, V, que são recursos ambientais a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. Portanto, nossa legislação conceitua o tema e o protege em normas jurídicas bem estruturadas. Consoante o artigo 225 da CF, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbindo ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e as futuras gerações. É, pois, um direito intergeracional. Quanto aos recursos hídricos, cada geração vem recebendo os mananciais em condições piores da que seus ancestrais. Estamos degradando o recurso ambiental mais precioso, e assim estamos agindo contra nós próprios, que integramos a natureza, somos partes de Gaia, e prejudicamos a atual geração e as que estão por vir. Se Pachamama tem ¾ de água, somos o espelho da mãe. Isso porque nosso organismo adulto também é composto aproximadamente de 70% do líquido precioso. E esse líquido está sobretudo nas porções intracelulares de nosso ser. Nascemos com em torno de 90% de água e vamos desidratando ao longo da vida. Na velhice, já com a pele ressecada, estaremos com algo ao redor de 50% do ouro azul. Por isso é tão importante tomarmos entre dois e três litros de água por dia. Nascemos na água e ela nos mantém vivos. Mas não basta termos acesso a uma quantidade ideal de água. É preciso mais. Temos o direito fundamental de acesso à água em quantidade suficiente e qualidade adequada, como defendo no pioneiro livro Visão Jurídica da Água. A Lei nº 9.433/97, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece fundamentos e objetivos claros e precisos, como assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, com vistas ao desenvolvimento sustentável; a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais; e incentivar e promover a captação, a preservação e o aproveitamento de águas pluviais. Por outro lado e complementarmente, estabelece como fundamentos que a água é um bem de domínio público (divididos na CF entre União e Estados); a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; a gestão deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; a gestão hídrica deve ser descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades. Como leciono no livro Gestão da Água e Princípios Ambientais, os municípios não detêm domínio sobre os mananciais hídricos, mas o artigo 30, V, da CF dispõe sua competência para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, e o saneamento é no mais das vezes uma temática de interesse local. Esse serviço pode ser prestado diretamente pelo poder público municipal, por convênio com os estados, e assim tem sido há décadas, por intermédio das companhias estaduais de saneamento, ou delegados à iniciativa privada. A Lei nº 11.447/2007 estabeleceu as diretrizes nacionais do saneamento. Ela veio a ser alterada e complementada pela Lei nº 14.026/2020 (novo marco do saneamento). Traça como fundamentos a universalização integral do acesso e a efetiva prestação do serviço; que o saneamento abrange o abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos; adoção de métodos, técnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e regionais; eficiência e sustentabilidade econômica; utilização de tecnologias apropriadas, considerando a capacidade de pagamento dos usuários e a adoção de soluções graduais e progressivas; estímulo à pesquisa; transparência das ações; controle social; segurança, qualidade e regularidade; integração das infraestruturas e serviços com a gestão eficiente; adoção de medidas de fomento à moderação do consumo; redução e controle das perdas; prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços; seleção competitiva do prestador dos serviços; e prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Um aspecto central é a universalização do saneamento. Escrevi em 16/12/2017, neste ConJur, sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): "Eles foram consolidados em 17 objetivos a serem alcançados até 2030. Alguns dizem respeito, direta ou indiretamente, aos recursos hídricos. E um, em particular — ODS 6 — define o propósito de, em 2030, chegarmos com acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos, bem como ao saneamento e higiene, acabando-se 'com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade'". Ocorre que, quanto mais nos aproximamos de 2030, mais percebemos a distância para alcançarmos a universalização tão sonhada. Os mananciais, de um modo geral, estão cada vez mais poluídos. As causas dessa triste realidade são conhecidas, e estão todas ligadas à ação do homem, que é o único ser vivo que destrói sua própria casa. As consequências são nefastas, atingindo todos os seres que habitam a Mãe Terra, especialmente gerando doenças e mortes. A forma de enfrentamento da crise hídrica passa por ações efetivas do poder público e da coletividade. O novo marco do saneamento assentou o prazo da universalização, estabelecendo no artigo 11-B: "Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento". A pergunta que não cala é: será que mais perto do novo prazo definido não teremos nova alteração legislativa para ampliar as metas de universalização? Em artigo didático e preciso, intitulado Saneamento: responsabilidade primária do Estado, publicado em Zero Hora neste ano, Flávio Presser, engenheiro civil, conselheiro da Abes e uma das maiores autoridades em saneamento do Brasil, já tendo sido gestor do Dmae, de Porto Alegre, e da Corsan, que atende a maioria dos municípios gaúchos, afirma sobre a universalização que "todos terão de ser atendidos, independentemente de terem ou não capacidade de pagar". No texto, leciona que não basta a participação privada para atingir a meta; é fundamental uma regulação do serviço por agências econômica e administrativamente independentes, e qualificadas. E que o poder público saiba celebrar bons contratos e os acompanhe devidamente, sendo eles complexos e de longo prazo. Conclui sentenciando: "Em suma, a participação privada na prestação dos serviços de saneamento nem de longe significa a redução do papel do Estado, e este não pode se eximir de suas responsabilidades". Iniciei falando de Tom Jobim e concluo com a música Águas de Março, interpretada por Tom e Elis Regina. Estamos encerrando o verão de 2023 com a vinda das águas de março. Faltam, portanto, dez anos para a tão sonhada universalização do saneamento. Mais do que um sonho, uma utopia, é uma promessa de vida. O que seria do ser humano se não sonhasse. Mas não basta sonhar, é necessário agir, executar, fazer acontecer. E para tanto devemos nos unir em esforço máximo, poder público, coletividade e cada um de nós, para que todos tenham satisfeito o direito básico de beber água de qualidade, em quantidade suficiente e qualidade adequada.
2023-02-25T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/ambiente-juridico-saneamento-basico-nossos-dias
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Diário de Classe
A importância de uma cultura legalista nas Forças Armadas
Em 11 de novembro de 1955, o marechal Henrique Teixeira Lott disse não a uma tentativa de golpe que visava impedir a posse de Juscelino Kubitschek, presidente que havia acabado de ser eleito democraticamente. Articulou-se, então, ativamente, para impedir ataques aos Poderes constituídos. O presidente assumiria, mas essa não seria a última vez em que Lott seria necessário na defesa do Estado Democrático de Direito [1]. Sua conduta abnegada chegaria, em outros momentos de crise, a levar populares às ruas sob os gritos de "Viva o Marechal da Legalidade!" [2]. Em vários desses momentos, Lott teria uma atuação que beneficiaria forças políticas com as quais ele — homem de direita, nacionalista e católico de linha tradicionalista — não concordava pessoalmente. A imparcialidade de sua posição institucional se sobreporia às preferências pessoais. Seu biógrafo registra que, já quando criança, no seu primeiro desfile do Colégio Militar, a família perguntou-lhe se não os havia visto enquanto marchava. Lott respondera: "eu os vi, mas um soldado não olha para os lados" [3]. A coragem e imparcialidade de Lott foram virtudes fundamentais, que marcaram seu nome na história. E, como ele, há vários outros nomes de legalistas notáveis. Mas é importante que não se individualizem esses feitos, concentrando-os em seus líderes mais famosos. Tais manobras legalistas foram resultados da ação conjunta de inúmeros rostos anônimos nos quartéis. Afinal, instituições não se confundem com a vontade de um único indivíduo, sendo necessário coordenar comportamentos, processo sempre difícil, contraditório e pouco linear. Uma cultura de respeito à legalidade é a base fundamental para fazer comportamentos convergirem de modo não destrutivo. É certo que alguns disputarão o sentido dessa legalidade, já que textos de lei precisam ser interpretados. Desacordos realmente ocorrem na aplicação do direito, mas não podem chegar a corroer um consenso mínimo: as regras básicas do funcionamento democrático. Sua identificação deve ser um "caso fácil". A elas, todo o Estado e a sociedade devem respeito. Nesse quadro, o papel atribuído às Forças Armadas ao longo de nossa história constitucional foi o de "sustentar" e "garantir" os "Poderes constituídos". Nas democracias contemporâneas, essa missão se refina, indo além da pura lógica de segurança e defesa, alcançando também uma dimensão social em questões relativas ao meio ambiente, educação, esporte, cidadania, desenvolvimento nacional, apoio à sociedade, ciência e tecnologia, dentre outros [4]. Sendo assim, suas atribuições se entrelaçam cada vez mais com a burocracia estatal, se aprimorando por meio de uma governança colaborativa Essa nova inserção na sociedade, somada à lógica dos diálogos que tem pautado as relações entre instituições pelo mundo, a afasta completamente do extemporâneo conceito de um Poder Moderador, que alguns buscam forçar equivocadamente na interpretação do artigo 142 (como Lenio Streck e outros têm criticado). O afastamento não representa de modo algum uma perda, e sim uma vantagem para proporcionar a necessária neutralidade que as nobres missões das FA exigem, fartamente justificada de uma perspectiva administrativa. Como na metáfora popularizada por Streck, a Constituição opera como o mastro do navio em que se amarrou Ulisses, impedindo que ele se jogasse ao mar sob a tentação provocada pelos cantos das sereias. A cultura da legalidade é esse mastro para a hierarquia e a disciplina no meio militar. Na burocracia em geral, quando cargos decisórios de natureza técnica são instrumentalizados politicamente, surge um conflito de interesses que maculará as instituições, as quais deveriam ser impassíveis face às maiorias de ocasião, garantindo a alternância democrática de poder. Um arranjo institucional que poderia evitar ou minimizar o desgaste provocado pelo entrelaçamento da política com a burocracia seria o insulamento burocrático [5]. Não se trata aqui de uma demonização generalizada da política, nem da defesa de uma tecnocracia, mas apenas do reconhecimento de que certos setores funcionam melhor sob uma lógica política e outros sob uma lógica técnica. As FA se inserem nessa segunda lógica, ao prestarem um serviço público de extrema importância e periculosidade, que precisa ser desligado do ciclo das paixões eleitorais. Tratar disciplina e hierarquia com o rigor científico da gestão é encará-las sob a perspectiva comportamental. Elas não brotam espontaneamente da essência de um sujeito, sendo na verdade uma resposta à estrutura de incentivos nas quais ele está inserido. Se a estrutura de incentivos de uma instituição premiar posicionamentos políticos, eles tenderão a ocorrer. Para evitar que isso ocorra, já existem quatro características das FA que poderiam obstar estes problemas, quais sejam: (1) Trata-se de instituição estruturada com um corpo permanente estável, composto por militares de carreira selecionados por concursos públicos; (2) Os procedimentos internos das unidades buscam ser espelhados e uniformizados; (3) Trata-se de uma instituição socialmente inserida, alcançando todas as faixas sociais; e (4) Os posicionamentos políticos são expressamente vedados aos seus membros da ativa. Vale comentar que a ideia de insulamento burocrático trabalhada aqui não se trata da visão ultrapassada de um total fechamento de um órgão, que em qualquer estrutura administrativa poderia levar a degenerações elitistas, corporativistas e autoritárias. Há, sim, a necessidade de combinar ao insulamento burocrático mecanismos contemporâneos de uma governança democrática [6], aprimorando sua gestão e accountability. Por exemplo, as nomeações do Comando combinam elementos da burocracia militar e do poder civil. Ademais, há a necessidade de articulação, coordenação e harmonização de pareceres, sobretudo em assuntos afetos à Política Nacional de Defesa, levada a efeito pelo Decreto nº 5.484, 2005 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse sentido, é grande a importância da Assessoria Parlamentar do Ministério da Defesa, que se liga com a Assessoria Parlamentar do Gabinete do Comandante do Exército [7] e suas congêneres da Marinha e da Força Aérea. O mencionado assessoramento de modo algum compromete o insulamento, uma vez que o referido sistema se irradia para os entes federados, tendo como regramento institucional que seus membros sejam isentos, impessoais e apartidários e dispensem um tratamento isonômico a todos os parlamentares independentemente de partido ou ideologia. Mesmo com essas e outras garantias, várias instituições sofrem para se blindar contra o famoso problema da captura, como as agências reguladoras em relação aos players do mercado que regulam. Capturas essas que propiciam, segundo Fernando Henrique Cardoso, uma espécie de infiltração clientelista no insulamento, gerando assim "anéis burocráticos [...] um mecanismo pelo qual implicitamente se define que a administração é supletiva aos interesses privatistas, e esses fluem em suas relações com o Estado, através de teias de cumplicidade pessoais" [8]. No caso da burocracia militar, o desafio se torna imensamente maior enquanto pairar sobre a Força o mito de que ela exerceria um papel de Poder Moderador, algo inexistente nos arranjos institucionais das democracias contemporâneas, e que gera um imaginário nocivo de excepcionalidade. No âmbito interno, fomenta a sublevação das tropas; no externo, fomenta a competição interinstitucional, através da confusão de competências e atribuições. Abster-se do poder, deter-se diante do Rubicão, sempre foi o gesto supremo de honra militar em prol das autoridades constituídas. Exercer a deferência às demais entidades democraticamente legitimadas para agir é a versão contemporânea dessa prática, que fomenta a lealdade intrainstitucional e a cooperação interinstitucional. [1] Veja-se o material a seu respeito disponível no CPDOC. [2] CARLONI, Karla Guilherme. Marechal Henrique Lott: Memória, Mito e História. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009. [3] WAGNER, William. O soldado absoluto: uma biografia do Marechal Henrique Lott. Rio de Janeiro: Record, 2020. [4] Vide Revista a Defesa. https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/copy_of_estado-e-defesa/revista-a-defesa-trienio-2019-2021-1/2022/revista_a_defesa.pdf. Acesso em 20 fev. 2023; [5] "O insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. Ao núcleo técnico é atribuída a realização de objetivos específicos. O insulamento burocrático significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel". NUNES, E. D. O. A gramática política do Brasil: clientelismo, corporativismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Garamond, 1997. p. 54” [6] CAVALCANTE et al. Do insulamento burocrático à governança democrática: as transformações institucionais e a burocracia no Brasil. In: Pires et al (Orgs.) Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Ipea/Enap, 2018. p.59-83. [7] A Assessoria 4, ou Parlamentar, é a que trata dos assuntos relacionados com o Poder Legislativo Federal. Cabe a ela acompanhar, no Congresso Nacional, a tramitação de proposições legislativas; estabelecer contatos e ligações com os parlamentares; acompanhar a tramitação dos Planos Plurianuais, da Lei de Diretrizes Orçamentárias, da Lei de Orçamento Anual e das emendas parlamentares, de acordo com as necessidades do Exército. Além disso, essa Assessoria possui as seguintes missões: elaborar estudos e análises sobre a conjuntura política nacional, conforme a necessidade do Comandante do Exército; encaminhar as demandas dos parlamentares aos órgãos competentes; emitir pareceres sobre Projetos de Lei de interesse da Força, em consonância com pareceres circunstanciados do Órgão de Direção Geral e dos Órgãos de Direção Setorial; e divulgar os Projetos Estratégicos no âmbito do Congresso Nacional. Vide Blog do Exército Brasileiro https://eblog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/o-sistema-de-assessoramento-parlamentar-do-exercito.html. Acesso em 20 fev. 2023 [8] CARDOSO, Fernando Henrique. A construção da democracia: estudos sobre política. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 99-100.
2023-02-25T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/diario-classe-importancia-cultura-legalista-forcas-armadas
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Observatório Constitucional
Tribunal Constitucional alemão e o financiamento de partidos
Uma lei que eleva os recursos públicos para financiamento dos partidos políticos em 15% por ano é aprovada no parlamento de modo relâmpago em prazo de dez dias da sua apresentação como projeto. Parece um caso anedótico, mas não é: trata-se da Lei Alemã de Modificação da Lei dos Partidos Políticos e outras Leis, de 10 de julho de 2018 (Gesetzes zur Änderung des Parteiengesetzes und anderer Gesetze). Um grupo de 216 deputados do Parlamento (Bundestag) questionou a lei em controle abstrato de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht — BVerfG) com base no argumento de que o legislador não haveria se desincumbido do ônus de justificar o porquê do valor legalmente fixado, mas apenas defini-lo em lei sem apontar os critérios utilizados para tanto. Em 24 janeiro de 2023, o Segundo Senado do tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei. Para fins do presente artigo, dois argumentos utilizados na decisão são de grande relevância: a) em caráter de obiter dictum, o tribunal apontou que distorções substanciais no processo de elaboração de uma lei podem levar à sua inconstitucionalidade formal e b) como ratio decidendi, entendeu-se que durante o processo legislativo de elaboração da Lei impugnada não foram apresentados argumentos suficientes para justificá-la. Em relação ao primeiro argumento em caráter de obiter dictum, com base na ideia de causa petendi aberta das ações de controle abstrato de constitucionalidade, o tribunal analisou a questão da constitucionalidade formal da Lei em face do artigo 77 (regras do processo legislativo); artigo 38 (igualdade entre os parlamentares para participação no processo legislativo); e artigo 42 (publicidade dos trabalhos parlamentares), todos da Lei Fundamental Alemã (Grundgesetz — GG). O Tribunal partiu da constatação de que a GG não estabelece diretrizes para a duração do período de apreciação dos projetos durante o processo legislativo. Entretanto, "Ainda que à maioria parlamentar seja concedido um amplo espaço de conformação [Gestaltungspielraum] na definição do percurso procedimental no Parlamento, aponta-se que ele extrapolará concretamente a constitucionalidade formal da lei editada, caso os mencionados princípios sejam totalmente ou substancialmente desrespeitados sem justificativas concretas" (nr. 96). A despeito das colocações feitas acima, o tribunal não realizou a avaliação da constitucionalidade formal do processo legislativo extremamente acelerado que levou à aprovação da lei impugnada, pois foi identificada outra razão pela qual a norma impugnada foi considerada materialmente inconstitucional. Trata-se aqui de um caso claro de minimalismo judicial, em que o BVerfG poderia ter decidido a questão da constitucionalidade formal da lei impugnada, mas decidiu não o fazer pelo fato de haver outro fundamento jurídico suficiente para julgamento do caso. Na escolha do "caminho argumentativo" da decisão[1], o tribunal deixou expressa — em caráter de obiter dictum — uma importante consideração sobre a possibilidade de se avaliar a constitucionalidade formal de uma lei à luz do seu processo de produção, tendo em vista o respeito a princípios constitucionais como a igualdade entre os parlamentares e a publicidade dos trabalhos legislativos. Já a ratio decidendi do acórdão centrou-se nos deveres constitucionais de fundamentação a serem adimplidos durante o processo legislativo. O Tribunal entendeu que a lei impugnada efetivamente violou a norma constante do artigo 21, parágrafo 1, frase 1, da GG: "Os partidos participam na formação da vontade do povo". Isso porque deste dispositivo extrai-se um "mandamento de procedimentalização" (Prozeduralisierungsgebot) que exige a apresentação de razões para a tomada de decisão legislativa. Somente com o atendimento dessa exigência constitucional pode ser assegurada a necessária independência dos partidos políticos para que, de um lado, possam ter os mínimos recursos necessários para desempenho de suas atividades e, de outro, não sejam excessivamente dependentes do Estado. No caso em exame, o tribunal entendeu que esse mandamento de procedimentalização deveria ser objeto de um controle jurisdicional ainda mais rigoroso, uma vez que se trata de área da legislação em que não há um conflito de posições políticas entre os parlamentares tão acentuado. Os mecanismos de competição política e debate parlamentar oferecem menores possibilidades de controle pelas minorias políticas, uma vez que seus interesses se alinham predominantemente aos das maiorias. Em face disso, o Tribunal entendeu que a extensão do controle de constitucionalidade das leis pode ser ampliada para avaliar também as justificativas apresentadas durante a tramitação legislativa, como forma de contrabalancear esse alinhamento de interesses parlamentares. Cabe destacar que, no curso do processo judicial, o Parlamento e o governo trouxeram aos autos argumentos e dados que supostamente justificariam a tomada da decisão legislativa, em razão da elevação dos custos dos partidos políticos decorrentes da digitalização e do aumento das formas de participação de seus filiados em suas atividades. O tribunal, contudo, entendeu que tais argumentos deveriam constar do histórico legislativo, ou seja, dos documentos do processo legislativo como o projeto e sua justificação, os pareceres das comissões e notas taquigráficas dos debates. Nas palavras do tribunal: "Uma justificativa rasa da decisão legislativa para elevação do limite absoluto do financiamento estatal dos partidos políticos não é suficiente. O desejado ganho de racionalidade decorrente da função de compensação da procedimentalização somente pode ser efetivamente alcançado quando as exigidas investigações de fato e ponderações ocorrerem no processo legislativo e forem correspondentemente documentadas. A procedimentalização dirige-se à construção da decisão e não à sua apresentação, ou seja, sua justificação retrospectiva" (nr. 131). O Tribunal então pontua que a justificativa do projeto de lei, os depoimentos de especialistas em audiência pública perante Comissão do Bundestag e manifestações orais de parlamentares favoráveis ao projeto durante seu debate não foram suficientes para atender as exigências constitucionais de se apontar os critérios pelos quais se chegou ao valor para financiamento estatal dos partidos políticos (no caso, 190 milhões de euros por ano). Por essa razão, o tribunal declarou a inconstitucionalidade e nulidade da lei questionada. Embora recente, o caso já chama atenção no debate alemão. Questiona-se se o BVerfG não estaria compreendendo indevidamente a legislação como atividade administrativa ("legislação no modo administração"), no sentido de uma ampliação do controle judicial de constitucionalidade das leis em semelhança ao controle judicial dos atos administrativos [2]. Também se levantam dúvidas se tal prática não desconsideraria a lógica política do processo legislativo, sobrecarregando-o com demandas de informações empíricas com ele incompatíveis [3]. Como já destacado neste Observatório [4], trata-se de mais uma decisão alinhada com tendência relativamente recente no direito comparado de expansão do controle judicial de constitucionalidade sobre o processo legislativo, em que se utilizam outros parâmetros de controle para além das regras constitucionais tradicionais de competência, inciativa e quóruns de votação. Nesse mesmo sentido, proponho que a partir da ideia de devido processo legislativo, é possível reconstruir as normas jurídicas que disciplinam o modo específico de produção normativa legislativa para compreender suas diretrizes e limitações em uma democracia representativa e deliberativa como a brasileira. Isso permite que, de um lado, seja respeitado o espaço de discricionariedade epistêmica e normativa do legislador em postura deferente da jurisdição constitucional, e, de outro lado, sejam submetidos a controle judicial o modo concreto pelo qual uma lei é elaborada em face do arcabouço constitucional que rege o processo legislativo [5]. A recente decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão insere-se neste debate, em particular sobre o chamado "controle semiprocedimental" de constitucionalidade [6], aqui entendido como um modelo de controle judicial de constitucionalidade material de um ato, em que os fatos e argumentos do processo legislativo em concreto são elementos juridicamente relevantes e não apenas meramente auxiliares da interpretação jurídica. Não se trata apenas de investigar se o processo de elaboração de uma lei atende às regras constitucionais tradicionais. Nesse modelo, outras exigências constitucionais derivadas dos princípios do devido processo legislativo (como o "mandamento de procedimentalização" apontado pelo BVerfG) são também levadas em consideração para saber até que ponto os fatos e prognoses elaboradas durante o processo legislativo devem ser objeto de deferência judicial ou se a jurisdição constitucional deve fazer uma investigação própria, com novos argumentos e informações produzidas já no momento de controle repressivo de constitucionalidade. E qual a relevância dessa discussão para o Brasil? Como exemplo da pertinência desse debate no caso brasileiro, pode-se mencionar o julgamento em andamento da ADI 7.222, em que se questiona a constitucionalidade da Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022, que fixou o piso salarial dos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras. A maioria do STF referendou a medida cautelar concedida pelo relator, ministro Luís Roberto Barroso, que determinou a suspensão da norma impugnada até sejam "esclarecidos os seus impactos sobre (i) a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade (...) (ii) a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa (...) e (iii) a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos". Citando Ana Paula de Barcellos [7], o ministro relator apontou que "a observância de um devido procedimento na elaboração legislativa exige que quem apresente uma proposição normativa apresente, também, a justificativa correspondente" [8]. Quando apreciar o mérito da ADI 7.222, o STF terá oportunidade de se debruçar sobre o significado do devido processo legislativo, em especial do princípio da deliberação parlamentar, no que se refere ao exame da profundidade dos argumentos apresentados durante o processo de elaboração da lei impugnada tanto para fins de sua constitucionalidade formal quanto material. Nesse momento, o julgado recente do BVerfG poderá ser mais uma das decisões do direito comparado que poderá ser levada em consideração para tanto. [1] Cf. Victor Marcel Pinheiro, Decisões vinculantes do STF: a cultura de precedentes, São Paulo, Almedina, 2021, p. 183. [2] Cf. Uwe Volkemann, Ein bisschen kleinlich: Zum jüngsten Urteil des Bundesverfassungsgerichts in Sachen Parteienfinanzierung, Verfassungsblog, 27/1/2023. Diponível em: https://verfassungsblog.de/ein-bisschen-kleinlich/ [3] Cf. Timo Sewtz, Schuldet der Gesetzgeber doch mehr als das Gesetz? – Das Urteil des BVerfG zur Parteienfinanzierung, Junge Wissenschaft in Öffentlich Recht, 7/2/2023. Disponível em: https://www.juwiss.de/4-2023/ [4] https://www.conjur.com.br/2022-fev-26/observatorio-constitucional-regimes-urgencia-regimentos-congresso-sao-inconstitucionais [5]Cf. Victor Marcel Pinheiro, Devido processo legislativo: princípios, elaboração das leis ordinárias no Congresso Nacional e controle judicial, Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022. [6] Essa expressão foi cunhada por Ittai Bar-Siman-Tov, Semiprocedural Judicial Review, Legisprudence 6 (2012), pp. 271-300. No Brasil, veja-se Natasha Schmitt Caccia Salinas / Guilherme da França Almeida, Controle judicial de projetos legislativos — uma análise exploratória, RIL 57 (2020), pp. 125-150. [7] Ana Paula de Barcellos, Direitos fundamentais e direito à justificativa: devido procedimento na elaboração normativa. Belo Horizonte: Fórum, 2016. [8] STF, ADI-MC 7.222, rel. min. Roberto Barroso, j. 19/9/2022, p. 33.
2023-02-25T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/observatorio-constitucional-tribunal-constitucional-alemao-financiamento-partidos
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Tribunal do Júri
Juiz de garantias é retoque democrático no procedimento do júri
Em 23/1/2020, entrou em vigor o chamado "pacote anticrime". Dentre as mudanças implementas pela Lei 13.964/19 merece destaque a (tentativa de) implementação do juiz de garantias no ordenamento brasileiro. Infelizmente a constitucionalidade dessa figura jurisdicional foi questionada nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299 e 6.300. Em 15/1/2020, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, concedeu medida liminar, na qual determinou a suspensão da implementação do juiz de garantias pelo prazo de 180 dias. Após uma semana dessa decisão (em 22/1/2020), o ministro Luiz Fux, à época vice-presidente da Suprema Corte e relator das ADIs acima referidas, revogou a liminar retromencionada e determinou a suspensão sine die da implementação do juiz de garantias até que a decisão fosse referendada em sessão plenária. Recentemente, o STF divulgou os processos pautados para julgamento no primeiro semestre de 2023 e, lamentavelmente, o juiz de garantias não consta na listagem. Defendemos a constitucionalidade (formal e material) do juiz de garantias, mas vamos transcender a essa discussão por não ser o foco de reflexão do presente artigo. Pensar na implementação do juiz de garantias é estabelecer o essencial foco à concretização do sistema acusatório, caracterizando uma verdadeira guinada epistemológica rumo ao almejado processo penal democrático. Nos meandros do Tribunal do Júri, a discussão sobre a implementação do juiz de garantias suplanta a questão de constitucionalidade. Algumas vozes defendem a prescindibilidade dessa figura jurisdicional, pois os jurados — juízes do fato — não participam da fase investigatória, e, por conseguinte, já teriam sua imparcialidade genuinamente resguardada para decidir a causa face à originalidade cognitiva do Conselho de Sentença. Ademais, em reforço à tese de desnecessidade de implementação do juiz de garantias no procedimento do júri, defende-se que, como a decisão do caso perpassa por um colegiado, o acusado estaria naturalmente protegido contra eventual parcialidade [1]. Entretanto, faz-se fundamental apontar a única conclusão possível frente aos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos e à própria constituição federal: o juiz de garantias é figura essencial também no procedimento do júri, por diversos fundamentos. Em primeiro plano, destaca-se a ênfase normativa em determinar que "a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo" (CPP, artigo 3º-C, 1ª parte). Se o pacote anticrime não excepcionou os crimes dolosos contra a vida dessa cobertura, não cabe ao intérprete fazê-lo, em nítido prejuízo aos acusados e à própria topografia constitucional do tribunal do júri. Como se sabe, o procedimento do júri é bifásico. O objetivo da fase de admissibilidade da acusação é garantir que o acusado não seja submetido a julgamento em caso de imputações infundadas. Dessa explanação, decorre uma ilação lógica: o avanço do judicium accusationis para o judicium causae não é algo automático, dependendo de decisão judicial que aprecie a viabilidade legítima do prosseguimento do feito. Atualmente, o juiz responsável para pronunciar já foi demandado para outras questões dentro do processo (como medidas cautelares, pedido de prisão, diligências probatórias, recebimento da denúncia). A teoria da dissonância cognitiva [2] explica que, quando um magistrado tem postura ativa durante a persecução, suas posições influenciam, muitas vezes até involuntariamente, nas suas posteriores decisões no curso do processo e há ainda uma tendência — desvalorização dos elementos dissonantes — de se rechaçar informações em sentido contrário. Destarte, para assegurar que o acusado será pronunciado com imparcialidade, é imperioso que haja uma distribuição de competência funcional: um juiz que fique responsável pelo acompanhamento da investigação e pelo recebimento da denúncia, ao passo que outro magistrado deve colher a prova no judicium accusattiones, e posteriormente decidir pela pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária do acusado. Conforme lição de André Maya, "percebe-se a importância do juiz de garantias também para o procedimento do júri, na medida em que sua função é justamente preservar a imparcialidade do juiz competente para a instrução e para o julgamento. Ao afastar da investigação criminal o juiz competente para presidir o judicium accusationis e decidir sobre a pronúncia, se está otimizando a imparcialidade deste e, como consequência, reforçando a densidade da decisão de pronúncia enquanto efetivo filtro de admissibilidade" [3]. Se o mesmo juiz que acompanha a investigação e recebe a denúncia é também o responsável por presidir o judicium accusationis, ele não terá isenção suficiente para pronunciar o acusado, tornando-se inócua essa fase de instrução, cujo objetivo é a verificação/refutação da admissibilidade da acusação. É bem verdade que, para a decisão de pronúncia, não se exige demonstração da comprovação da autoria e participação para além de qualquer dúvida razoável (beyond a reasonable doubt). Não obstante, o standard probatório exigido para a decisão de pronúncia é mais rigoroso do que o exigido para o mero recebimento da denúncia. A decisão de pronúncia não é uma homologação da anterior decisão de recebimento da denúncia. Caberá ao juiz togado, com base nas provas produzidas sob o crivo do contraditório, decidir se a persecução que se desenvolveu na primeira fase desfruta de legitimidade para prosseguir. O estado de inocência do acusado o protege contra eventuais acusações temerárias. Ademais, existe interesse público em coibir gastos com processos desnecessários. Acrescenta-se que na hipótese de os jurados desclassificarem a imputação dolosa contra a vida para outra diversa, o juiz-presidente angaria a competência para o julgamento da causa, o que significa dizer, em termos práticos, que o mesmo juiz que acompanhou a fase investigatória, recebeu a denúncia, atuou no judicium accusattiones e presidiu a sessão plenária, assume a decisão meritória da causa. Outrossim, também como forma de assegurar um julgamento imparcial, a regulamentação do juiz de garantias, consoante redação do §3º do artigo 3º C do CPP, determina a exclusão física do caderno investigatório (exceto com relação os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas cautelares ou de antecipação de provas) dos autos do processo penal, devendo aquele permanecer acautelado na secretaria do juízo de garantias. Essa medida é essencial para que o juiz togado decida com a necessária originalidade cognitiva durante a primeira fase do procedimento do júri. Na sistemática vigente, os autos do inquérito policial seguem no caderno processual, reverberando prejuízos para o acusado também na fase do plenário do júri. A partir do momento em que os jurados têm acesso ao conteúdo da investigação — por exemplo, pela menção a um depoimento testemunhal colhido no inquérito durante os debates —, abre-se uma possibilidade de que os jurados formem seu livre convencimento com base em elementos informativos. Ainda que a defesa se empenhe em explicar aos jurados que elementos informativos não são provas, o fato é que os jurados são dispensados de conhecimentos jurídicos. E mais: como não há a justificativa explícita da decisão, a defesa técnica ficará sem possibilidade de recorrer dessa ilegalidade. Se a decisão de pronúncia, segundo entendimento consolidado dos nossos tribunais superiores [4], não pode ser lastreada exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase investigatória, quiçá pode correr-se o risco de que os jurados condenem alguém com base nesses dados. Já discorremos sobre isso aqui na coluna em 18/9/2021, em 9/7/2022 e em 16/7/2022. Os atos de investigação são precários e não deveriam sequer ser trazidos ao processo para evitar qualquer contaminação decisória. Ademais, se ao juiz togado é vedado fundamentar uma decisão condenatória "exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas" (CPP, artigo 155), com muita mais razão não pode fazê-lo os jurados. O Tribunal do Júri, como indica a sua própria posição topográfica (CF, artigo 5º, XXXVIII), é uma garantia fundamental do cidadão frente ao poder punitivo estatal. A implementação do juiz de garantias é essencial na concretização do judicium accusattiones como efetivo filtro de admissibilidade da acusação, na medida em que garante uma divisão funcional de competência, de forma que o juiz que acompanhou a investigação e recebeu a denúncia reste impedido de exercer jurisdição para a primeira e segunda fase do procedimento do júri. Além disso, o acautelamento dos atos de investigação na secretaria do juízo de garantias, excetuados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas cautelares ou de antecipação de provas, garante que a decisão de pronúncia seja dotada de originalidade cognitiva. A exclusão garante ainda que os membros do Conselho de Sentença não condenem alguém com base em elementos informativos. Também como consequência desejada em busca de um júri democrático, "a implementação do juiz das garantias também serviria para estimular que as partes efetivamente produzissem provas na presença do juiz natural, isto é, perante os jurados componentes do Conselho de Sentença" [5]. Certamente a instalação do juiz de garantias no júri aproximará o procedimento de seus ideais de proteção, proporcionando uma maior racionalidade na apreciação da prova e, assim, evitando decisões injustas. [1] Argumento utilizado pelo min. Dias Toffoli no julgamento da medida liminar das ADIs "(...) deve ser afastada a aplicação do juiz de garantias dos processos de competência do Tribunal do Júri, visto que, nesses casos, o veredicto fica a cargo de um órgão coletivo, o Conselho de Sentença). Portanto, opera-se uma lógica semelhante à dos Tribunais, o julgamento coletivo, por si só, é fundamento de reforço de imparcialidade". [2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 71-74 [3] MAYA, André Machado. A importância do juiz de garantias para o Tribunal do Júri no Brasil. In Estudos em Homenagem aos 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil. Rodrigo Faucz e Daniel Avelar (Org.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 84. [4] STF, HC 180.144/PI, rel. min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. em 10/10/2020; STJ, HC 589.270/GO, rel. min, Sebastião Reis, 6ª Turma, j. em 23/2/2021; STJ, HC 560.552/RS, rel. min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 23/2/2021. [5] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 174.
2023-02-25T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/tribunal-juri-juiz-garantias-retoque-democratico-procedimento-juri
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Opinião
Cecilia Rabêlo: Federal do Ceará x Conservatório de Música
Nas últimas semanas, uma decisão judicial proferida pela Justiça Federal do Estado do Ceará [1] chamou atenção. O caso em questão é o litígio entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, instituição dedicada ao ensino da música em Fortaleza. O cerne da questão judicial é, em suma, a posse em relação ao imóvel no qual o conservatório funcionou durante anos e aos bens que estão situados no referido local. A universidade, após ganhar judicialmente a reintegração do imóvel, agora luta pela posse dos bens móveis que estão no local, tais como partituras, instrumentos musicais, dentre outros. Não pretende-se aqui tecer comentários acerca da questão jurídica da posse ou propriedade em relação aos referidos bens, móveis e imóvel. Para isso há o Poder Judiciário, que já enfrenta a questão. Destaca-se, no entanto, o teor da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal, em recurso interposto pela UFC em relação à negativa do juiz de 1ª instância em conceder à universidade o seu pleito, que era de impedir que o conservatório se utilizasse dos bens móveis (pianos, partituras, entre outros) para continuar exercendo o seu trabalho, que é ensinar música. Para tanto, o magistrado, além de avaliar tecnicamente o caso sob o ponto de vista do direito processual civil, administrativo e em relação às questões de posse e propriedade, aprofundou a análise para o aspecto dos direitos culturais que estavam ali presentes, e que não haviam sido considerados até então. Segundo a decisão, o caso não se tratava apenas sobre posse e a propriedade, mas sobre patrimônio cultural, sobre bens culturais de uma instituição que cumpre um papel fundamental na história da cidade de Fortaleza e cuja atuação é plenamente reconhecida socialmente como relevante do ponto de vista artístico e cultural. Diante da sensibilidade jurídica do caso, as regras de Direito Civil, segundo o magistrado, seriam insuficientes, demandando também um sopesamento dos direitos artísticos e culturais, direitos de propriedade intelectual e direitos históricos envolvidos, todos de base constitucional e direitos humanos universais. De fato, não é possível tratar a continuidade ou não de uma instituição cultural, bem como o destino dos bens que integram o seu acervo, como mera questão incidental dentro de um litígio possessório. O acesso aos bens e serviços culturais e, consequentemente, o pleno exercício dos direitos culturais pela comunidade, devem ser objeto de análise pelo Judiciário em casos como esse, dando a devida importância ao impacto que tais ações judiciais podem ter para a garantia desses direitos. É claro que não se está aqui afirmando que regras de Direito Administrativo ou Civil devem ser menosprezadas em detrimento dos direitos culturais. O que se busca, no entanto, é que os direitos culturais sejam o parâmetro de análise quando se está tratando da continuidade ou não de instituições culturais, públicas ou privadas, cujo trabalho possui notória relevância para a comunidade e para a efetivação desses direitos. Afinal, a própria Constituição prevê os direitos culturais como direitos fundamentais, o que, por si só, já é suficiente para balizar todo o caso sob essa perspectiva. Por força da referida decisão judicial, o conservatório manteve a posse sobre os bens que integram o seu acervo e pode dar continuidade ao seu trabalho, agora em outro local. Os direitos culturais prevaleceram.
2023-02-25T07:11-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/cecilia-rabelo-universidade-federal-ceara-conservatorio-musica
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Embargos Culturais
O Homem que Odiava Machado de Assis, de José Almeida Júnior
Nas últimas cinco linhas de O Homem que Odiava Machado de Assis, de José Almeida Júnior, o leitor é surpreendido com a solução do mais recorrente enigma da literatura brasileira: a fidelidade (ou infidelidade) de Capitolina. E não se trata de um romance policial, como aqueles deliciosos livros do Garcia-Roza. Trata-se de um romance histórico, gênero dificílimo, que corre o risco de não ser nem romance, e nem história. Porém, em O Homem que Odiava Machado de Assis, o leitor tem muita história e muito romance. É um livro que não dá para parar de ler. E creio ser esse juízo o que melhor qualifique positivamente uma obra literária. No contexto de uma trama muito bem engendrada, desfilam personagens de ficção (Pedro Junqueira, o principal deles, Nicole, Padre Narciso, Joana) e personagens reais (Machado de Assis, Carolina Novais, Nabuco, Alencar, Patrocínio, Cotegipe, Rio Branco). O autor explora o tema do ciúme em Machado de Assis, e o consequente/antecedente tema do adultério, que são os pontos condutores da narrativa, ainda que tecida em forma da epifania do ódio, indicado no título do livro. Há também temas paralelos de realidade indiscutível, a exemplo da aversão de Silvio Romero em relação a Machado de Assis. O romance histórico precisa ter história (e José Almeida trata, entre outros da abolição da escravidão e do problema da mão-de-obra na lavoura do café). O romance histórico precisa ter romance (e o coração indeciso de Pedro Junqueira é convincente). O romance histórico precisa de um enredo que segure o leitor (e a relação entre Pedro Junqueira e Carolina Novais — esposa de Machado de Assis — resolve o problema). O romance histórico precisa de alguma precisão topográfica (e a descrição da Rua do Ouvidor e da confusão do cais Pharoux na hora do embarque são de precisão topográfica impressionante). A referência aos "tigres", escravos que levavam excrementos para o mar é também muito precisa. O romance histórico não é o mundo do real, é o mundo do possível. É a história que aconteceu, ou que quase aconteceu, como nos explica Ruy Castro nas primeiras linhas de Os Perigos do Imperador, um Romance do Segundo Reinado. Essa ponte (ou tensão) entre realidade e possibilidade é que o romance histórico resolve em forma de verossimilhança. O autor, José Almeida Júnior, é muito ousado e certamente feriu os idólatras do Bruxo do Cosme Velho. Em O Homem que Odiava Machado de Assis, o escritor fluminense é retratado como invejoso, complexado, corrompido pela vaidade. São muito ousadas as referências à esposa de Machado de Assis (sempre apresentada no cânone como companhia modelar e insuperável). O leitor tem duas opções: ofendido, deixa o livro de lado (sairá perdendo, garanto); ou então assume e compreende o óbvio, no sentido de que se trata de um romance, e que, portanto, ao autor é permitido criar. O leitor vai se chocar. Porém, garanto de novo, o resultado estético é imbatível, ainda que as formulações morais possam ser condenáveis, não do autor, bem entendido, mas dos personagens. O Homem que Odiava Machado de Assis é a história de um brasileiro descendente de portugueses, muito rico, que perdeu a mãe e que foi inicialmente criado no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, pela mesma rica senhora que cuidou de Machado de Assis. Era tia do narrador. Com a morte da protetora, Pedro estudou no Pedro II, e mais tarde em Coimbra. No Porto, conheceu Carolina (que será esposa de Machado). Qualquer revelação do enredo, a partir daqui, seria deslealdade para com o leitor. Tem que ler. Há no livro um problema que alcança todo autor de romance histórico, isto é, se escreve na época em que os fatos se passam. O perigo do anacronismo é cilada permanente. No caso, a situação ainda se complica porque parte da narrativa se passa em Portugal: xícara ou chávena? Como acomodar em uma narrativa do século XIX expressões como "está de brincadeira", "borocoxô", "atolar de trabalho", "pegar no flagra", "pinguços", "bateu remorso" e tantas outras, que realmente não convivem com "ouvidos moucos". É necessário um pacto entre autor e leitor. Este último deve entender que é para ele que o livro foi escrito, e não para os imaginários contemporâneos da narrativa. O tema da escravidão em Machado de Assis, que é fundamental em sua fortuna crítica, estimulou o autor na composição de um enredo de tirar o fôlego. De quebra, uma alusão ao plágio em Memórias Póstumas de Brás Cubas e um estudo supostamente psicológico da obsessão de Machado de Assis com o tema do adultério. Na narrativa, até Machado de Assis tem uma amante (Inês Gomes) por conta de quem quase teria perdido o emprego no ministério, que tanto prezava. Será que Inês Gomes existiu? Chamada de "a desconhecida" na imagem de Lúcia Miguel Pereira (a grande biógrafa de Machado de Assis), essa estranha personagem é a prova definitiva de que José Almeida Júnior pesquisou profundamente o assunto. É, em resumo, um interessantíssimo livro que explora "a grande dor das coisas que se passaram" de certo verso de Camões.
2023-02-26T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-26/embargos-culturais-livro-homem-odiava-machado-assis-jose-almeida-junior
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Processo Tributário
Interlocutória antecipada parcial de mérito, execução e recurso
A crise de inadimplemento [1] instaurada na relação jurídica de direito material entre fisco e contribuinte por ocasião do não pagamento de um crédito tributário vencido é o pretexto necessário para o desencadeamento de atos normativos subsequentes — inscrição do débito em dívida ativa e emissão da respectiva certidão — que resultarão no ajuizamento da execução fiscal. É a partir desse meio processual (o executivo fiscal), cujo objetivo último é a realização do direito material mediante a prática de atos constritivos e expropriatórios do patrimônio do devedor, que se torna possível estabelecer o vínculo de conexidade instrumental entre direito material e direito processual [2], naquilo que se denominou causalidade circular [3]. Pela ótica do executado, a presunção juris tantum de certeza, liquidez e exigibilidade do crédito tributário inadimplido (artigo 3º da Lei nº 6.830/80), decorrente que é (a presunção) da natureza do título extrajudicial que a materializa, limita os meios de defesa do devedor, o qual poderá se valer da exceção de pré-executividade e os embargos à execução, através dos quais a pretensão (na acepção de direito material, isto é, o direito de exigir) da Fazenda Pública poderá ser afastado. Voltando-se a atenção especialmente para a exceção de pré-executividade, observa-se que o manejo dessa via excepcional tem o condão de transmutar a atuação executiva fiscal em atividade tipicamente cognitiva do direito material tributário [4], cenário ideal para a prolação do que o código de processo civil de 2015 denominou de decisões antecipadas parciais de mérito, principalmente em face da circunstância de não ser incomum que um mesmo título executivo, por comodidade e economia processual, materialize uma pluralidade de fatos tributáveis, aos quais podem ser contrapostas diversas causa de pedir. O ponto que se põe a debate está relacionado com o regime do recurso cabível contra essa decisão antecipada parcial de mérito que, conquanto tenha o conteúdo definido pelo artigo 487, isto é, trate do mérito da causa, assume, por expressa disposição do artigo 356 do CPC, natureza de típica decisão interlocutória, resultando numa disparidade de tratamento entre as partes litigantes. Disso decorre, quase que intuitivamente, a seguinte indagação: em homenagem ao artigo 7º, CPC [5], não seria razoável atribuir ao agravo de instrumento que impugna decisão interlocutória antecipada parcial de mérito o mesmo regime jurídico da apelação? Em outra oportunidade [6], embora atendo-se às ações antiexacionais, tratou-se nessa coluna a respeito das decisões antecipadas parciais de mérito, destacando-se, naquela ocasião, que havendo mais de um pedido ou diversidade de causas de pedir na ação submetida à apreciação do Judiciário, o artigo 356 do CPC autoriza que o juiz, mediante decisão interlocutória antecipada parcial, mas com cognição plena e exauriente, resolva o mérito, cuja decisão, na ausência de interposição de recurso (o referido agravo de instrumento), resulta em coisa julgada material (artigo 356, §3º, CPC). Aplicando esse regramento ao âmbito da execução fiscal, em se tratando de pretensão executiva relativa a mais de um período ou débito executado [7] e arguindo-se na exceção de pré-executividade, por exemplo, prescrição, decadência ou inconstitucionalidade da exação, causas de pedir típicas de mérito, à luz do artigo 487, I e II do CPC, e que afetarão apenas parte do crédito tributário, prosseguindo-se o feito executivo em relação ao restante, o juiz deverá proferir decisão antecipada parcial de mérito, cuja recorribilidade será exercitada por meio do Agravo de Instrumento. Assim, se a exceção impugna total ou parcialmente os débitos exequendos, mas é acolhida parcialmente ou rejeitada integralmente, o vencido — o executado e, também, o exequente frente ao conteúdo acolhido — sujeitar-se-ão ao regime do recurso de agravo de instrumento, dotado de efeito meramente devolutivo, sem possibilidade de sustentar oralmente suas razões ou de se valer da técnica de julgamento prevista no artigo 942 [8], CPC, se o acórdão ratificar os termos da decisão agravada (artigo 942, §3º, II [9], CPC). Por sua vez, estivéssemos diante de exceção acolhida integralmente, extinguindo o feito executivo, o conteúdo de mérito teria sido veiculado em sentença, oportunizando à Fazenda a interposição de recurso de apelação, dotado de efeito suspensivo automático, que permite sustentação oral e a ampliação da colegialidade quando o resultado do acórdão não for unânime (técnica de julgamento prevista no artigo 942 do CPC), mesmo na hipótese em que o acórdão confirme o conteúdo da decisão recorrida. Embora o teor da decisão que acolhe integralmente a defesa incidental ofertada para extinguir a execução fiscal — sentença — seja exatamente o mesmo daquela que acolhe parcialmente as alegações (ou integralmente a impugnação parcial) da exceção — decisão antecipada parcial de mérito —, qual seja, o afastamento do direito de exigir (pretensão) da Fazenda Pública, há discrepância entre o regime recursal a que se submete esse tipo decisório, se comparado àquele que é próprio às sentenças de mérito. Indiscutível a escolha legislativa pela adoção de um duplo critério para distinguir sentença de decisão interlocutória (artigo 203, §§ 1º e 2º, CPC), isto é, a finalidade do ato (se extingue ou não o processo) e o conteúdo do pronunciamento judicial (se contém uma das situações dos artigos 485 e 487), aspecto este, inclusive, confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme fora abordado em outra oportunidade nesta coluna ao (recorribilidade da decisão sobre impugnação ao cumprimento de sentença [10]). Contudo, reputamos que, nas hipóteses em que a decisão interlocutória versa sobre o mérito da demanda, ou seja, é dotada de conteúdo do artigo 487, CPC, embora o recurso cabível seja o agravo de instrumento, o regime jurídico recursal a ser observado deve ser o mesmo destinado à apelação. Isso porque, normativamente, como apontado, há um duplo critério para definir o regime recursal do ato decisório, que diz justamente com a finalidade do ato decisório (extinção ou não do processo, no caso, o executivo fiscal) e o conteúdo do pronunciamento (se de mérito ou não). Entretanto, o regime recursal aplicável a cada tipo decisório, in casu, é injustificadamente distinto, muito embora haja expressa determinação legal de garantir a paridade de tratamento dos meios de defesa (artigo 7º, CPC) e a isonomia entre as partes. Não negamos que o acolhimento parcial de mérito da exceção (ou a sua improcedência em função do seu conteúdo) ensejará a interposição de agravo de instrumento, mas, porque toca o mérito, o procedimento desse agravo deve ajustar-se à possibilidade de sustentação oral [11], interposição de recurso adesivo [12], ampliação da colegialidade, inclusive nas hipóteses em que o resultado do julgamento do recurso mantiver (e não reformar) a decisão de origem (artigo 942, CPC), bem como assegurar o efeito suspensivo automático [13]. Estamos, assim, reconhecendo a inaplicabilidade, a essa específica situação, do quanto disposto no artigo 356, §2º, CPC, frente à necessidade de preservação das ideias de isonomia, garantida às partes em relação ao exercício de seus direitos, faculdades processuais e meios de defesa, além de resguardar a coerência do microssistema processual.   - Texto oriundo dos debates deflagrados nas aulas do crédito de Direito Processual Tributário, do curso de mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), ministrado pelo professor Rodrigo Dalla Pria [1] Sobre a tutela executiva e a crise de inadimplemento, sugere-se a leitura do seguinte texto: https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/cantanhede-tutela-jurisdicional-executiva-inadimplencia [2] A respeito desse ponto, o de que o processo é instrumento do direito material, remetemos o leitor e a leitora ao seguinte texto: https://www.conjur.com.br/2021-mar-02/paulo-conrado-processo-tributario-instrumentalidade [3] "Note-se que tudo começa e termina na seara material, num deslocamento cíclico que pode ser chamado de causalidade circular. Neste movimento, o processo configura mero parêntese no ciclo de concretização do direito, estando destinado a possibilitar a constituição de normas individuais e concretas efectuais (materiais) que, ao se tornarem definitivas, retornarão ao ponto inicial para retomar ou encerrar o processo de positivação". DALLA PRIA, Rodrigo. O direito ao processo. In: CONRADO, Paulo Cesar (Coord.). Processo tributário analítico. Vol. 1. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2015. p. 29. [4] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2020. p. 521. [5] Art. 7º - É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório. [6] https://www.conjur.com.br/2022-jun-26/processo-tributario-julgamento-antecipado-parcial-merito-processo-antiexacional [7] A certidão de dívida ativa pode conter diversos períodos de apuração e, também, tributos distintos, como por exemplo, taxa e IPTU, IRPJ, PIS, Cofins e CSLL. [8] Art. 942. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores. [9] Art. 942. (...) § 3º. A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em: II - agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito. [10] https://www.conjur.com.br/2022-out-16/processo-tributario-recorribilidade-casos-impugnacao-cumprimento-sentenca [11] A propósito, no Anteprojeto do Código de Processo Civil havia possibilidade de sustentação oral no recurso de agravo de instrumento que impugna decisão interlocutória de mérito (http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496296). Essa seria a previsão do enunciado do art. 875 do Código, caso não tivesse sido vetado: Art. 857. Na sessão de julgamento, depois de feita a exposição da causa pelo relator, o presidente, se o recurso não for de embargos declaratórios de agravo de instrumento ou de agravo interno, dará a palavra, sucessivamente, ao recorrente e ao recorrido, pelo prazo improrrogável de quinze minutos para cada um, a fim de sustentarem as razões do recurso ou do pedido de rescisão. § 1º Assegura-se a defesa oral prevista no caput à ação rescisória e ao agravo de instrumento interposto de decisões interlocutórias que versem sobre o mérito da causa (grifo nosso). § 2º. (...). Na doutrina, esse entendimento também vem sendo construído: "Reproduzindo o direito anterior (art. 875, caput, do CPC de 1939, e art. 554 do CPC de 1973), ao veto à sustentação no agravo de instrumento, exceto na hipótese do artigo 937, VIII, falta base plausível, haja vista a importância assumida por esse recurso. Por exemplo, o agravo de instrumento interposto contra a extinção parcial do processo (art. 354, parágrafo único) e o julgamento antecipado parcial do mérito (art.356, § 5º). E, de toda sorte, comportando o agravo de instrumento questões processuais de maior relevo, isso fato limitando o número de decisões agraváveis, já não se pode temer o excesso de sustentações orais em agravo de instrumento e o prolongamento das sessões do tribunal por esse motivo. Seja como for, não é o objeto virtual do agravo de instrumento o motivo do veto. Por um lado, suscitada como preliminar nas razões ou nas contrarrazões da apelação (art. 1.009, § 1º), a matéria nela versada será objeto de debate oral; de outro, decisões sobre o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito , debatidas oralmente quando objeto de apelação, nos exemplos ministrados, não comportam sustentação só porque veiculadas em agravo de instrumento. Essa desconcertante contradição e a inconsistência geral depõem contra o critério legal. Não é decididamente, ponto alto da lei. Por isso, o art. 7º, IX da Lei 8.906/1994 assegura a sustentação em qualquer recurso, regra posteriormente declarada inconstitucional. 241. E as hipóteses dos arts. 354, parágrafo único, e 356, § 5º, tornarão a polêmica duradoura. Já há quem admita a sustentação oral no agravo de instrumento versando sobre o mérito (art. 1.015, II)". (ASSIS. Araken. Manual dos Recursos. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017, p.400) [12] No âmbito do direito privado, já é possível identificar julgados que atribuem esse tratamento igualitário quanto ao recurso adesivo: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ADESIVO. NÃO CABIMENTO. ASTREINTES. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. EFEITO COERCITIVO. 1. O art. 997, § 2º, inciso II, CPC, limita as hipóteses de cabimento de recurso adesivo à apelação, recurso extraordinário e recurso especial; 2. Somente seria admissível o recurso adesivo em agravo de instrumento se interposto em face de decisão proferida na forma prevista pelo art. 356, CPC, que admite a solução de mérito parcial quando formulado mais de um pedido e um ou mais deles mostrarem-se incontroversos e estiverem em condições de julgamento imediato; 3(...). 5. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. Recurso adesivo não conhecido. (TJDFT. Agravo de Instrumento nº 0726458-80.2019.8.07.0000. Relator desembargador Romeu Gonzaga Neiva. 7ª Turma. Data do julgamento: 11/3/2020. Data da publicação no DJE: 28/4/2020) [13] O que é diferente de "suspensão da exigibilidade", vide o seguinte artigo: https://www.conjur.com.br/2022-mai-15/processo-tributario-suspensao-processos-suspensao-exigibilidade.
2023-02-26T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-26/processo-tributario-interlocutoria-antecipada-parcial-merito-execucao-recurso
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Estúdio ConJur
IDP abre inscrições de mestrado em Administração Pública em SP
Estão abertas, até às 23h59 de 14 de março, as inscrições para o mestrado profissional em Administração Pública, Políticas Públicas e Gestão Governamental do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em São Paulo. As disciplinas do mestrado são organizadas, para fins didáticos, em torno de cinco áreas de interesse: Políticas Públicas e Desenvolvimento Social; Gestão Pública Contemporânea e Modernização do Estado; Regulação, Concorrência e Infraestrutura; Controle da Administração e Combate à Corrupção; e Gestão do Judiciário e Meios Alternativos de Solução de Conflitos. O mestrado em Administração Pública do IDP-SP terá encontros presenciais mensais às quintas, sextas e sábados. A grade permite que o mestrando conclua em pouco mais de um ano a carga horária mínima exigida das disciplinas. Dessa maneira, o segundo ano do curso fica voltado quase que inteiramente para o desenvolvimento e defesa da dissertação.  Além disso, uma das principais características do mestrado é a metodologia de ensino, que, além de uma sólida formação teórica, confere especial atenção à análise de estudos de caso e de aplicações práticas do conhecimento à gestão pública. O processo seletivo ocorre em duas etapas. Na primeira, haverá a avaliação do currículo e da carta de apresentação do candidato. O currículo deve apresentar todas as as informações acadêmicas e profissionais do postulante, demostrando a sua experiência e principais competências. Já a carta de apresentação é um documento que descreve e analisa os principais acontecimentos das trajetórias profissional e acadêmica. Trata-se de uma narrativa de avanços do candidato de forma mais detalhada do que o currículo. A segunda etapa consiste em entrevista com a banca examinadora. É um momento para a banca conhecer o candidato, compreender melhor a trajetória acadêmica, profissional e as suas motivações para cursar um mestrado profissional. O valor do curso pode ser pago em 24 parcelas de R$ 3.347,50 ou 30 parcelas de R$ 2.811,90. As aulas começam dia 4 de abril. Clique aqui para ler o edital de seleção Clique aqui para fazer sua inscrição
2023-02-27T19:20-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-27/idp-abre-inscricoes-mestrado-administracao-publica-sp
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Direito Civil Atual
A jurisprudência do STJ sobre o fortuito nas relações de consumo
O capítulo IV do Código de Defesa do Consumidor trata da "qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos". Dividido em seis seções, há uma prescrição aprofundada de que as relações contratuais entre fornecedores e consumidores deve atender a um dever contratual que garanta segurança ao consumidor. A primeira seção, por exemplo, trata especificamente sobre tal dever, trazendo três artigos inteiramente voltados aos cuidados que o fornecedor deve ter com esse aspecto (artigos 08–10). Dessa preocupação deriva a segunda seção, que trata da chamada "responsabilidade pelo fato do produto e do serviço". Aqui há um detalhado sistema de responsabilidade civil objetiva, tratando dos fatos do produto e do serviço, que podem colocar em risco a segurança do consumidor. Para o tema desta coluna, interessa observar que o caso fortuito não figura entre as hipóteses de exclusão de responsabilidade civil do fornecedor, previstas nos artigos 12, §3º e 14, §3º. Embora não exista a sua previsão expressa no CDC, jurisprudência e Dogmática têm admitido essa hipótese de afastamento da causalidade na responsabilidade civil, que retira as suas raízes da sistemática do instituto insculpida no Código Civil. O caso fortuito é prescrito pelo Código Civil como sinônimo de força maior no art. 393, especificando-se, no parágrafo único, que "o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". Conforme Otavio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo, é preponderante na Dogmática a opinião de que caso fortuito e força maior são institutos equivalentes segundo a sistemática do Código Civil. E para os autores, com a ressalva de algumas exceções na legislação especial, os efeitos do caso fortuito e da força maior são idênticos, razão por que não existiria sentido prático em distingui-los[1]. Há, na Dogmática, quem até elabore diferenciações abstratas entre os institutos, embora ao fim se reconheça a ausência de relevância prática na distinção[2]. O efeito primário do caso fortuito ou força maior seria "uma isenção de responsabilidade pelos prejuízos resultantes do casus"[3], que seria um evento necessário e impossível de evitar ou impedir. Contudo, pela própria natureza das relações de consumo — especialmente sob a luz do profissionalismo dos fornecedores[4] — viu-se necessária a elaboração da distinção entre o chamado fortuito interno e o fortuito externo. A jurisprudência do STJ tem contribuído fortemente para o estabelecimento de parâmetros e critérios que procuram garantir maior segurança jurídica e objetividade para a solução de casos. Tratando especificamente do fortuito externo e o fortuito interno, tem se entendido que este é aquele acontecimento que tem relação com a atividade desenvolvida pelo fornecedor, de forma que não exclui a responsabilização civil; aquele é totalmente desconectado, estranho e alheio, com a atividade desenvolvida, admitindo-se, nesse caso, o afastamento da responsabilidade do fornecedor. Esse entendimento consolidou-se em algumas situações paradigmáticas. A título exemplificativo, o Superior Tribunal de Justiça julgou caso no qual um menino de seis anos, em um passeio escolar, foi brincar em um escorregador e caiu sobre o próprio braço, causando-lhe fraturas graves no cotovelo e punho, tornando necessária a colocação de pinos mediante cirurgia. Nessa situação, entendeu o STJ que a salvaguarda da integridade física dos alunos faz parte da sua atividade de ensino, i.e., "o colégio é responsável pelo bem estar das crianças, tanto dentro do estabelecimento de ensino, quanto durante os passeios por ele organizados". Assim, embora tenha reconhecido tratar-se de fortuito, qualificou-o como interno, não se excluindo a responsabilidade da instituição de ensino.[5] Outro caso de grande repercussão foi o episódio do atirador da sala de cinema no Morumbi Shopping, em 1999, quando um jovem, estudante de medicina, entrou na sala de cinema e, portando uma metralhadora, abriu fogo contra o público, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Nessa situação, o Tribunal analisou os elementos do caso e afirmou que não se revelaria "razoável exigir das equipes de segurança de um cinema ou de uma administradora de shopping centers que previssem, evitassem ou estivessem antecipadamente preparadas para conter os danos resultantes de uma investida homicida promovida por terceiro usuário, mesmo porque tais medidas não estão compreendidas entre os deveres e cuidados ordinariamente exigidos de estabelecimentos comerciais de tais espécies".[6] Como pode ser observado na própria fundamentação, o ataque de um criminoso fortemente armado seria fato estranho à atividade desenvolvida pelo shopping, razão pela qual seria um fato capaz de excluir o nexo causal e afastar a responsabilidade civil. É importante destacar, ainda, que o fato nunca é analisado em si mesmo, mas assim o é dentro do contexto da atividade do fornecedor. O ataque criminoso de alguém fortemente armado tem uma valoração em um cinema em um Shopping; outro em uma instituição bancária. Mais recentemente, o STJ enfrentou caso que chamou a atenção, envolvendo acidente que levou uma utente à óbito no metrô de São Paulo.[7] No caso, uma jovem caiu na via férrea na estação Barra Funda em decorrência de um desmaio, o que levou ao seu atropelamento. No julgamento do REsp, indagou-se se haveria um fato do serviço apto a ensejar a responsabilização do metrô ou o desmaio da jovem, caindo na linha férrea, seria um fortuito externo? A resposta da Corte passou por reconhecer, também nesse caso, a existência de fortuito externo. O que merece destaque nesse caso, contudo, é a discussão da técnica que se colocou. Isso porque as linhas metroviárias de São Paulo possuem tecnologias distintas. As linhas 4 (Amarela) e 5 (Lilás) são operadas por concessionárias e apresentam uma tecnologia mais moderna; possuem as "portas de plataforma" (Platform Screen Doors — PSD), que são espécies de "paredes" de vidro, separando os utentes dos trilhos, de forma que apenas abrem quando o metrô está na estação. Assim, caso a jovem tivesse sofrido o desmaio em alguma dessas linhas, não teria caído no trilho pelo fato de que lá existem esses bloqueios. A discussão que se colocou, portanto, foi: não haveria uma falha na prestação do serviço, em face da ausência dos mecanismos necessários para garantir a segurança dos usuários contra essa espécie de acontecimento? Ou seja, caso o desmaio tivesse ocorrido nas linhas equipadas com PSD, o óbito não teria ocorrido. Logo, não estaria configurado o fato do serviço? A resposta do STJ foi no sentido de que, além de se tratar de fortuito externo, a mera existência de tecnologia superior (linhas com PSD) não transforma as outras tecnologias, ipso facto, em tecnologias defeituosas. Isso porque o próprio artigo 14, §2º, CDC prescreve que "o serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas". A regra da responsabilidade civil objetiva que opera dentro do CDC (excluídas exceções como aquelas previstas no art. 14, §4º), faz com que a exclusão da responsabilização do fornecedor acabe ficando bastante limitada à verificação da causalidade, aspecto esse grifado pelo Min. Luis Felipe Salomão. Dentro das hipóteses de exclusão da causalidade, é possível de se verificar, portanto, que a jurisprudência observa critérios que se entrelaçam. Ora, é bastante evidente a configuração de um dano na medida em que um passageiro morre em uma das linhas do metrô. Mas, no caso analisado, não ficou configurado um defeito no serviço, seja pelo fato de ocorrência de um fortuito externo (desmaio), seja pelo fato de que a existência de equipamento mais moderno e seguro não configura, por si só, um defeito na prestação dos serviços. Com tais julgados e suas respectivas fundamentações, vê-se a grande contribuição que o Superior Tribunal de Justiça tem prestado para conciliar a especificidade do profissionalismo do fornecedor — e seu ônus decorrente da responsabilidade objetiva — com a existência de situações imprevisíveis no âmbito das relações de consumo. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] RODRIGUES JR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. As consequências da pandemia e o caso fortuito ou força maior. In: ANASTASIA, Antonio; TOFFOLI, Dias; TEBET, Simone (Org.). Comentários ao REJET (Lei 14.010/2020) pelos autores do anteprojeto. São Paulo: RT, 2020. p. 142. [2] Nesse sentido, exemplificativamente: MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das obrigações. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 340; DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 364–365; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: teoria geral das obrigações. 24. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. v. 2. p. 336–337. [3] RODRIGUES JR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. As consequências da pandemia e o caso fortuito ou força maior. In: ANASTASIA, Antonio; TOFFOLI, Dias; TEBET, Simone. Comentários ao REJET ( Lei 14.010/2020) pelos autores do anteprojeto. 144. [4] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 614. [5] STJ, REsp 762.075/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª T., j. 16.06.2009, DJe 29.06.2009. [6] STJ, REsp 1.133.731/SP, rel. Min. Marco Buzzi, 4.ª T., j. 12.08.2014, DJe 20.08.2014. [7] STJ, EREsp 1.936.743/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2.ª S., j. 14.06.2022, DJe 08.09.2022.
2023-02-27T08:44-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-27/direito-civil-atual-jurisprudencia-stj-fortuito-relacoes-consumo
academia
Tribuna da Defensoria
A cúpula dos tribunais e o acesso à Justiça dos Vulneráveis
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará a partir de 7 de março de 2023 se, diante de grave lesão à ordem pública decorrente do desalojamento judicial forçado contra 450 famílias vulnerabilizadas, a tutela do interesse público secundário-patrimonial de empresa de energia há de preponderar ou não sobre o interesse público presente na adequação constitucional de políticas públicas. Embora a resposta acima possa parecer óbvia diante da indisponibilidade de direitos fundamentais e da relevância social de políticas públicas, o quadro do julgamento anterior pela presidência e pela Corte Especial (SLS nº 3.156-AM [1]) do Tribunal da Cidadania preocupa e conduz à situação diversa. No caso, considerou-se presente interesse público na tutela do patrimônio (imóvel) da concessionária de energia e como meramente "privado" o interesse protegido pela Defensoria Pública na causa, razão pela qual se afastou sua legitimidade e interesse para o pedido de suspensão. Tudo em detrimento da avaliação dos impactos sobre políticas públicas e direitos fundamentais indisponíveis da numerosa população (hiper)vulnerabilizada. À mente da população necessitada vem a questão: os interesses patrimoniais da empresa de energia valeriam mais o interesse público que a tutela da higidez de políticas públicas e dos direitos indisponíveis da população vulnerável? Em verdade, vários sinais de "alertas constitucionais" devem ser "ligados". A começar pelo fato preocupante de que, ao considerar a atuação defensorial-coletiva como interesse meramente privado, o decisório o STJ manifestou uma "cegueira" para com o "litígio real", nas palavras de Boaventura de Sousa Santos [2]. Lamentavelmente, o "litígio real" permaneceu oculto, pálido e disfarçado sob a fórmula processual do acórdão. Ora, como passar invisível aos olhos dos tribunais o impacto à ordem público-social da extração a fórceps de 450 famílias — dentre as quais presume-se a presença de (hiper)vulneráveis, tais como crianças, idosos, enfermos, grávidas etc —, se a desorganização social decorrente do decisório afetará diretamente políticas públicas de moradia e os demais direitos conectados? Assim, são centenas de pessoas que sequer sabem para onde irão após o desalojamento, as quais não desaparecerão em um "passe de mágica" judicial, e pelas quais os entes federativos não querem ter quaisquer responsabilidades mesmo sabendo do interesse público sobre o debate — preferindo o silêncio processual e material. O acórdão comentado somente reforça a invisibilidade jurídica do povo já vulnerabilizado... Aliás, demandas similares a essa, não raras vezes, são debatidas em processos estruturais — conforme pesquisa de Gabriela Möller [3] —, sendo legítimos "processos civis de interesse público", como leciona Carlos Alberto de Salles [4] há tempos. Com efeito, o próprio legislador implicitamente presume um "interesse público manifesto" [5] em tais demandas possessórias coletivas ou multitudinárias quando impõe a intimação necessária de Ministério Público e Defensoria Pública para intervir em tais demandas (CPC, artigo 554, § 1º e artigo 565, § 2º), reforçando a defesa [6] dos direitos fundamentais envolvidos. Não se pode perder de vista que, tanto no Supremo Tribunal Federal, quanto no STJ, o grande "motor" para reconhecimento da legitimação institucional de entes como o Ministério Público e a Defensoria Pública, vem sendo a relevância social da matéria sub judice. Foi assim, por exemplo, que o STF reconheceu a relevância social da legitimidade ministerial para a tutela de direitos individuais homogêneos ligados ao DPVat (RE-RG nº 631.111), e o STJ, em várias outras ocasiões, admitiu a legitimidade da Defensoria Pública para fins de atuação coletiva – vide em especial: REsp nº 555.111-RJ; REsp nº 1.264.116-RS e REsp nº 1.106.515-MG. Destarte, trata-se da primazia de mérito e de um verdadeiro "in dubio pro justitia socialis" [7]. Por outro lado, os pedidos de suspensão não são exclusividade dos entes federativos — sendo passíveis de utilização por entes particulares e despersonalizados [8], como as Casas Legislativas (STF, SS nº 3121/AM; STJ, AgRSS nº 413/GO). Registre-se, desde logo, a posição do STJ de aplicar a concepção de "ente despersonalizado" para fins de admissão da legitimidade coletivo-institucional da Defensoria Pública — ver os Recursos Especiais nº 555.111 e nº 181.580-SP. Assim como a jurisprudência, por um lado, reconhece em casos específicos a legitimidade de entes despersonalizados, por outro lado, a teoria jurídica também o faz. Nessa linha, Elton Venturi [9] se utiliza do microssistema de processo coletivo, a partir da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), para permitir aos legitimados coletivos o uso dos pedidos de suspensão, em especial diante da dicção aberta à máxima amplitude ou atipicidade (Zaneti Jr. e Garcia [10]) do artigo 83 [11], ampliando assim a "legitimidade suspensiva" para todos os legitimados coletivos "ope legis" a fim de abrandar a possibilidade do interesse privado subjugar o real interesse público. Outro ponto incapaz de afastar a legitimidade do Estado Defensor para casos como este em apreço, é a exigência de a Defensoria ser parte no processo originário. Sobre o tema, as lições de Cássio Scarpinella Bueno [12] indicam que a legitimidade no pedido de suspensão incide não só para aquela que é parte, "mas também outra que demonstre interesse jurídico na sustação dos efeitos da decisão". No mesmo sentido, Elton Venturi [13] afirma que expressão legislativa "pessoa jurídica de direito público interessada" amplia a legitimação para os pedidos de suspensão, não exigindo do proponente ser impetrado ou requerido. Ainda sobre a mesma questão, o STJ pacifica: "(...) A jurisprudência do STJ não exige que a parte requerente do pedido suspensivo seja parte na ação originária (...)". (STJ, AgInt na SLS nº 2.865/MA, rel. min. Humberto Martins, Corte Especial, j. 16/3/2022, DJe de 5/4/2022). Nessa esteira, em específico sobre o interesse institucional-coletivo da Defensoria Pública em demandas nas quais a mesma não é parte originária, Camilo Zufelato [14] leciona: "(...) a defesa dos interesses em jogo nos processos coletivos não deve ser realizada somente pelos atores processuais, autor e réu: há que se estendê-la para alcançar atores sociais que, embora possam não figurar nos polos processuais, são reconhecidamente empenhados na defesa dos interesses em discussão na lide coletiva. É exatamente o caso da Defensoria Pública, órgão estatal comprometido e atuante na tutela dos necessitados, segundo a dicção constitucional." A inquietante pergunta é: uma vez caracterizando grave lesão à ordem pública impactante sobre a sociedade, em especial sobre os seus segmentos mais vulnerabilizados, poderia o "Estado Defensor", a Defensoria Pública, lançar mão de Pedidos Defensoriais de Suspensão (PDS) [15] à presidência dos tribunais? Para não desguarnecer o acesso à justiça coletiva a resposta deve ser sim, claro. Mas sob quais condicionantes? Nessa senda, o primeiro passo é avaliação do interesse institucional [16] da Defensoria Pública e sua coincidência com o interesse público primário. Existindo interesse público primário na tutela da ordem pública, diante da repercussão em direitos coletivos e políticas públicas conectados à missão constitucional da Defensoria Pública deve se confirmar a legitimação e interesse defensorial, seja pela relevância social da pauta, seja em razão da intermediação da tutela de interesse primariamente público. Em casos tais, o direito de estar em juízo da Defensoria Pública, para defesa em efetivo exercício de sua função constitucional (e legal), avaliza a personalidade judiciária do Estado Defensor. Nessa linha, democraticamente, extrai-se do STF: "(...) A Defensoria Pública tem a garantia de estar em juízo para defesa de suas prerrogativas e funções institucionais (...)". (STF, SL 866 AgR, rel. Dias Toffoli (presidente), Tribunal Pleno, j. 13/9/2019, g.n.). O precedente citado deveria ser lembrado para ampliar a legitimação defensorial e não para reduzi-la. Afinal, qual a melhor maneira de proteger e preservar uma função institucional senão pelo seu exercício e aceitação pelos tribunais? Sob tal perspectiva, uso defensorial dos pedidos de suspensão decorrem também do inciso XI [17] da LC nº 80/1994, no sentido de que o exercício da função é sua melhor e natural defesa. Todavia, os fundamentos de um pedido defensorial de suspensão em prol do interesse público primário e dos vulneráveis podem ser muitos outros. A "teoria dos poderes implícitos" — aplicado com sucesso pelo STF (ADI 6852) ao avaliar a prerrogativa de requisição defensorial —, é um bom começo a partir da função constitucional defesa dos vulneráveis (artigo 134). Mesmo no plano infraconstitucional, a Lei Orgânica da Defensoria Pública é clara ao permitir a ela o uso de todos "meios" adequados a consecução de seus fins institucionais de defesa dos vulneráveis — ver em especial os incisos VII, IX, X e XI do artigo 4º da LC nº 80/1994. Para além do microssistema de processo coletivo, atualmente, o próprio CPC (artigo 1.059 [18]) determina um diálogo com as regras do pedido de suspensão — ou seja, o CPC e o Microssistema de Processo Coletivo tem relação de "eficácia direta" e de "mão dupla", como lecionam Didier Jr. e Zaneti Jr. [19]. Dito de outro modo, se houver interesse público primário, até mesmo as ações possessórias multitudinárias e coletivas (artigo 554, § 1º e artigo 565, § 2º) se relacionam com as regras legais de pedido de suspensão – quais sejam: LACP, artigo 12, § 1º; LMS, artigo 15; Lei nº 8.038/1990, artigo 25; Lei nº 9.494/1997, artigo 1º; Lei nº 8.437/1992, artigo 4º. Com efeito, o STF (STA 800 e SL 866) vem admitindo o uso de pedidos de suspensão pela Defensoria Pública, mas não ainda quando o Estado Defensor busca amparo de interesse público primário em prol de vulneráveis – casos geralmente gravíssimos. Assim, existem decisões do STF (SL nº 1.075/TO) e do STJ (SLS nº 3.156/AM) negativas à investigação do "litígio real" e da percepção de um "Processo Civil de Interesse Público" nos pedidos de suspensão da Defensoria. Em sentido oposto, Elton Venturi [20] afirmou a impossibilidade de se inibir a Defensoria de usar os pedidos de suspensão em prol de suas finalidades institucionais — a defesa dos hipossuficientes e dos direitos humanos. Sob a tendência de reforço das atribuições do Estado Defensor para fins de suas finalidades institucionais (ver: STF, ADI nº 6.852), deve-se valorizar a instituição a fim de melhorar a prestação da justiça e a efetivação das promessas constitucionais respectivas — como já asseverou Alexandre Freitas Câmara [21]. Tal valorização, contudo, jamais virá no sentido subestimar ou substituir as demais funções essenciais à justiça, como disseram César Leonardo e Aline Gardinal [22]. Na verdade, confirmar a legitimação defensorial para pedidos de suspensão é efetivar constitucionalização do processo [23] em prol dos vulneráveis processuais [24], potencializando em articulação arrojada a primeira e segunda ondas renovatórias de acesso à Justiça [25] em prol das coletividades vulneráveis, seguido tendência crescente há tempos na teoria jurídica brasileira [26] [27] [28] [29]. Com efeito, negar a legitimidade defensorial para pedidos de suspensão quando o interesse público também socorrer aos vulneráveis é equivalente a negar acesso à justiça e à democracia processual à parcela igualmente relevante da sociedade: os vulnerabilizados. A referida negativa, pensada a partir de Lenio Streck [30], equivale a negar uma "condição de possibilidade" exigida constitucionalmente para a democracia processual brasileira. Resta o apelo à Constituição para o abrir de olhos das cúpulas dos tribunais ao interesse público primário que, concomitantemente, socorre aos vulnerabilizados. Adaptando e parafraseando Luigi Ferrajoli [31] sobre Defensoria Pública: é preciso reconhecer que o interesse público-constitucional referente aos vulneráveis não é menos interesse público que aqueles de outras instituições. Desse modo, negar-se à análise de mérito sob a cegueira quanto ao "litígio real" e ao "Litígio de Interesse Público" resvala também em um "ativismo às avessas", um "passivismo" [32], em época na qual os tribunais já não podem negar seu caráter jurídico-político em demandas coletivas, pois, em casos tais, decidir "não decidir" já é decidir — pensando à luz de Boaventura de Sousa Santos [33]. Em síntese, mormente perante o Tribunal da Cidadania, deve-se considerar passado o tempo das "elites voadoras" — nas palavras de Zygmunt Bauman[34] —, aquelas distantes da realidade social. E, finalmente, adaptando-se Ovídio [35], resta a questão: Estariam as cúpulas dos tribunais fechadas aos mais vulneráveis? Em breve, uma das possíveis respostas será dada por meio dos ED no AgInt na SLS nº 3.156-AM, através da Corte Especial do STJ. Aguardem... [1] "AGRAVO INTERNO CONTRA DECISÃO QUE NÃO CONHECE DE PEDIDO DE SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. DEFENSORIA PÚBLICA. ILEGITIMIDADE ATIVA. AGRAVO IMPROVIDO 1. A suspensão de segurança, via excepcional de defesa do interesse público, depende da existência de ação cognitiva em curso proposta contra o Poder Público requerente e constitui incidente no qual se busca a reparação de situação inesperada que tenha promovido a alteração no status quo ante em prejuízo da Fazenda Pública. 2. Hipótese em que se trata, na origem, de ação de reintegração de posse proposta por empresa de energia contra particulares, em que foi deferido o pedido de atribuição de efeito ativo para a reintegração da empresa na posse do imóvel, não havendo que se falar em prejuízo do Poder Público que autorize o cabimento da medida suspensiva, tampouco em legitimidade da Defensoria Pública para atuar na defesa dos interesses privados dos assistidos. 3. Agravo interno improvido." (STJ, Corte Especial, AgrInt na SLS nº 3156/AM, eel. Maria Thereza de Assis Moura, j.16/11/2022 a 22/11/2022 – sessão virtual). [2] SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito. São Paulo: Cortez, 2014, p. 120. [3] MÖLLER, Gabriela Samrsla. Proteção à moradia adequada pelo Processo Estrutural: litígios e comportamento das Cortes. Lodrina (PR): Thoth, 2021, p.331-349. [4] SALLES, Carlos Alberto de. Processo Civil de Interesse Público. In: _______. Processo Civil e interesse público: O processo como instrumento de defesa social. São Paulo: RT, 2003, p. 39-77, em especial p. 57. [5] Para debates sobre o referido termo, vide: ROCHA, Caio Cesar. Pedido de Suspensão de decisões contra o Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 176-178. [6] Sobre o direito defesa e políticas públicas em tais casos, vide, respectivamente: CARVALHO, Sabrina Nasser de. Direito de defesa nos conflitos fundiários. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; ALMEIDA FILHO, Carlos. Ocupações irregulares urbanas: análise das políticas públicas de moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. [7] Sobre o tema: CASAS MAIA, Maurilio. A legitimidade coletiva da Defensoria Pública para a tutela de segmentos sociais vulneráveis. In: Marques, Cláudia Lima. Gsell, Beate. (Org.). Novas tendências de Direito do Consumidor: Rede Alemanha-Brasil de pesquisas em Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2015, p. 431-459. [8] Sobre as legitimidades tradicionais e não tradicionais dos Pedidos de Suspensão, vide: BEZERRA, Isabel Cecília de Oliveira. Suspensão de tutelas jurisdicionais contra o Poder Público. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 151-158. [9] VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. 2ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 88-89. [10] ZANETI JR., Hermes. GARCIA, Leonardo Medeiros. Direitos Difusos e Coletivos. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 32. [11] CDC, "Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela." (g.n.) [12] BUENO, Cássio Scarpinella. Manual do Poder Público em Juízo. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 151-152. [13] VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. 2ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 77. [14] ZUFELATO, Camilo. Revista Digital de Direito Administrativo, São Paulo, v. 3, n. 3, p.636-657, 2016, p. 637, g.n.. [15] Sobre o tema: ALMEIDA FILHO, Carlos Alberto S. CASAS MAIA, Maurilio. O Estado-defensor e sua legitimidade para os pedidos de Suspensão de Liminar, Segurança e Tutela Antecipada. Revista de Processo, v. 239, p. 247-261, Jan. 2015; GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. Defensoria Pública e a tutela coletiva de direitos: teoria e prática. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 249-259. [16] Sobre interesse institucional, vide: Bueno, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 459 ss. [17] LC 80/1994, "Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (...) IX – impetrar habeas corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução;" (g.n.) [18] CPC, "Art. 1.059. À tutela provisória requerida contra a Fazenda Pública aplica-se o disposto nos arts. 1º a 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, e no art. 7º, § 2º, da Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009." [19] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 16ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 94. [20] VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 86/87. [21] CÂMARA, Alexandre Freitas. Legitimidade da Defensoria Pública Pública para ajuizar Ação Civil Pública: um possível primeiro pequeno passo em direção a uma grande reforma. In: SOUSA, José Augusto Garcia de. (Coord.). A Defensoria Pública e os Processos Coletivos: comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 45-50. [22] LEONARDO, César Augusto Luiz. GARDINAL, Aline Buzete. O papel da Defensoria Pública como instrumento do acesso à justiça aos vulneráveis. RDP, Brasília, Volume 17, n. 91, 143-165, jan./fev. 2020. [23] ZANETI JR., Hermes. Constitucionalização do Processo: o modelo constitucional da Justiça Brasileira e as relações entre Processo e Constituição. São Paulo: Atlas, 2014. [24] TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012. [25] Cappelletti, Mauro. Garth, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. [26] Britto, Adriana Silva de. A Defensoria Pública e a Tutela Coletiva: o encontro das ondas renovatórias potencializando o acesso à justiça. Rio de Janeiro: UERJ, 2006, p. 140. [Dissertação de mestrado]. [27] Em especial, ver: SOUSA, José Augusto Garcia de. Solidarismo jurídico, acesso à justiça e funções atípicas da Defensoria Pública: a aplicação do método instrumentalista na busca de um perfil institucional adequado? Revista de Direito da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro, nº 1, jul./set. 2002. [28] ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 319 e 336. [29] QUEIROZ, Roger Moreira de. Defensoria Pública e Vulnerabilidades para além da hipossuficiência econômica. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021. [30] "A Defensoria é a condição de possibilidade em um país de modernidade tardia para dar um mínimo de democracia e Justiça à essa população imensa, que, historicamente, ficou de fora do butim social". (STRECK, Lenio. Jurisprudência personalíssima: "abandonar as próprias vontades para julgar é o custo da democracia". Revista Consultor Jurídico, de 14 de Agosto de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-10/entrevista-lenio-streck-jurista-advogado-procurador-aposentado. Acesso em: 27 fev. 2023). [31] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2014, p. 537. [32] Sobre "passivismo judicial", vide: RAMALHO, Raineri. STF e o neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 114-118. [33] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da Justiça. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 100; 102 e 108-109. [34] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 102 e 106. [35] "O tribunal está fechado aos pobres" ("Cura Pauperibus Clausula Est"), frase latina e secular de Ovídio.
2023-02-28T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/tribuna-defensoria-cupula-tribunais-acesso-justica-vulneraveis
academia
Fábrica de Leis
Por um pouco de realismo nos estudos sobre processo legislativo
Na linha das participações passadas (aqui e aqui) nesta Fábrica de Leis, o argumento da coluna de hoje segue com a pregação de uma nova atitude epistemológica, teórica e normativa a respeito do processo legislativo. Aqui, vai-se chamar esse conjunto de reivindicações de "realismo". Falta à maior parte da literatura brasileira essa postura. O texto se dedica a explicar cada um desses três sentidos do realismo: 1) epistemológico, 2) teórico e 3) normativo. Em primeiro lugar, do ponto de vista da epistemologia, o realismo nos estudos sobre processo legislativo se caracteriza por uma perspectiva empírica. Nessa perspectiva, a produção do conhecimento sobre o processo legislativo deve se preocupar em revelar o que e como é o real processo de elaboração das leis; a descrição precisa se voltar para os fenômenos da realidade, o processo como ele é de fato, fundado na experiência. A ideia aqui é deixar um pouco de lado concepções excessivamente teóricas (descasadas da realidade), as ideias "metafísicas" sobre um processo legislativo ideal que não existe (e talvez nunca vá existir) no mundo dos fatos. Já se têm muitas obras no mercado e na academia com esse viés. Vou insistir em não citar nomes, mas apenas as características dessas produções, para que o leitor reconheça com um simples folhear. Por exemplo, um livro que pretenda descrever como é o processo legislativo a partir da citação das normas dos regimentos internos das Casas Legislativas, sem uma única ressalva sequer ou a mais mínima contextualização quanto ao seu descumprimento (ou inaplicabilidade na prática) de uma série dessas disposições regimentais. O rito ordinário by the rule é o menos seguido nas rotinas cotidianas do Congresso Nacional. Por mais que possam parecer regimes excepcionais, o mais frequente é a adoção dos regimes de urgência. Inclusive, o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, por exemplo vem adotando a prática de só levar a plenário (leia-se, incluir na ordem do dia) as matérias cujo prévio requerimento de urgência tenha sido aprovado. Onde isso está escrito? Em lugar nenhum! Como é que se descobre? Pois é, para quem não tem conhecimento da prática, com pesquisas empíricas. É o caso, por exemplo, dessa investigação que analisou a tramitação dos projetos de leis que acrescentaram novas tipificações ao Código Penal entre 2010 e 2019 com o objetivo de examinar a utilização do rito de urgência, as respectivas justificativas apresentadas e testar a hipótese conectando com um pretenso direito penal de emergência. Entre os achados, está o de que na Câmara dos Deputados todos os PLs analisados correram sob urgência urgentíssima, mas inexiste um padrão temporal quanto à esperada celeridade da tramitação, pois mesmo sob um rito urgente foram observadas demoras superiores a cinco anos. Agora, é preciso ter cuidado com pesquisas apenas parcialmente empíricas ou que até são empíricas, mas cobrem uma parte muito diminuta da dinâmica legislativa e têm pouco potencial explicativo para revelar novos achados sobre o que efetivamente move os legislativos ou quais assuntos dominam a pauta e a produção legislativa. Esse é o caso das pesquisas que pretendem analisar só as matérias em tramitação ou só as justificativas iniciais das proposições legislativas apresentadas nas Casas Legislativas, por exemplo. Nos últimos tempos, várias têm sido as produções com esse tipo de preocupação. De modo geral, faz-se um recorte temático — algum assunto como religião, armas, militares, aumento de penas, etc. — e daí acabam-se extraindo supostas conclusões sobre a tendência da legislação porvir ou uma hipotética influência de determinado segmento no processo legislativo. Há aqui uma clara extrapolação. O esforço até que é válido, mas é preciso recordar que existe um enorme abismo entre as matérias que simplesmente estão em tramitação nas Casas Legislativas e as que realmente foram ou serão aprovadas. Do retrato de umas nada se pode concluir a respeito das outras. Daí, é necessário cautela na hora das inferências, pois, como muito, revela-se o conteúdo de propostas (o que pode ter algum interesse), mas não muito mais do que isso. Sem a aprovação, da mera tramitação não se podem inferir "tendências" ou "influências" de forma categórica. Isso porque, com frequência, a apresentação de proposições cumpre um papel exclusivamente simbólico. Ao protocolizar uma iniciativa, o parlamentar autor pode ter apenas sinalizado para suas bases eleitorais ou grupo de interessados, mas por vezes não há a menor chance de a matéria se tornar lei. O mesmo se pode dizer em relação ao estudo só das justificativas iniciais das proposições. Essa é outra tendência de pesquisa legislativa que está na moda, mas padece do mesmo vício de parcialidade. É que a análise dos argumentos apresentados na versão original da proposição diz muito pouco sobre a argumentação dos legisladores. Assim como o exame de uma petição inicial de um processo judicial diz quase nada sobre a sentença. A lógica é a mesma. O processo legislativo é dinâmico, as proposições estão sujeitas a emendamento durante a tramitação, muitas ficam pelo meio do caminho, o desfecho é quase imprevisível. Quem olha só justificação inicial não tem como revelar um verdadeiro "padrão argumentativo" dos legisladores. No máximo, expõe os móveis iniciais. A argumentação legislativa somente pode ser captada em sua integralidade a partir de estudos que acompanhem toda a tramitação. Além disso, o exame deve ater-se, não somente aos documentos legislativos oficias, mas também avançar sobre as atas taquigráficas das sessões e audiências, integrando os pareceres escritos e o debate parlamentar real. Do contrário, a pesquisa será incompleta. Por isso, deve-se tomar muito cuidado com os achados desse tipo de pesquisa. Como se disse, até são "meio" empíricas, mas esse é um esforço que parece mais preocupado com o rótulo da pesquisa (o pesquisador poderá afirmar que fez uma pesquisa empírica) e com a pontuação para fins de carreira acadêmica, do que propriamente com o espírito científico voltado para a produção de conhecimento novo e útil sobre a realidade do processo legislativo. Atende apenas em parte a reivindicação de realismo no sentido aqui usado. Em segundo lugar, do ponto de vista da teoria, o realismo no processo legislativo também precisa partir das considerações empíricas sobre as características da dinâmica real dos processos de elaboração da legislação. A teoria precisa ser o resultado dessas considerações, precisamente para desfazer os "mitos" que se criam ao redor do processo legislativo. A propósito desses mitos, alguns foram brilhantemente citados aqui. O realismo teórico nos estudos sobre processo legislativo considera a ideia de um devido processo legal (e as expressões congêneres que a literatura vem utilizando, como devido procedimento na elaboração normativa) um mito, uma peça de pensamento metafísico — perdão, leitor, pela repetição dessa crítica já feita nesse espaço —, conscientemente manejada para fins não acadêmicos, e que precisa ser desembaçada. Isso deve ser feito trazendo à tona como os legisladores, a partir das práticas reais que adotam em cada sistema, realmente aprovam as leis. Por exemplo, isso pode ser feito apontando algumas verdades. Não há como exigir uma estrita pertinência temática das emendas parlamentares. Já se tratou da problemática aqui. Nesse sentido, veja-se que, mesmo após o julgamento da ADI nº 5.127, Cesar Rodrigues van der Laan dá conta de que os legisladores continuaram apresentando emendas sobre matérias vinculadas apenas por afinidade, pertinência indireta ou mera conexão ao tema originário. Mas quem acompanha a produção sobre processo legislativo sabe que há escritos por aí chegando a defender a inconstitucionalidade de "emendas jabutis" até em PECs. Sim, já se viu até um texto que extrai — ninguém sabe de onde — que os legisladores não podem apresentar emendas no processo de reforma constitucional. Agora, tentar criar uma régua para medir os diferentes graus de pertinência temática adotados pelos parlamentares, ninguém quer. Fazer um exame quantitativo e qualitativo do que foi considerado "contrabando legislativo" pelas próprias Casas Legislativas, ninguém faz. Existe uma lista infindável de assuntos que carecem de estudos empíricos que os mapeiem, por exemplo: a produção legislativa do plenário versus a produção das comissões; a frequência dos recursos ao plenário (artigo 58, § 2º, inciso I, in fine, da CF); a utilização dos mecanismos de obstrução, da sistemática de votação (simbólica versus nominal); a média dos quóruns das sessões correlacionando com outras variáveis; o perfil dos projetos iniciados pelo presidente da República, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (a hipótese é que esses últimos têm perfil mais técnico, denso); o perfil da legislação de autoria de parlamentares mulheres (ou outros cortes por partido, região, idade, escolaridade); a taxa de sucesso e a taxa de dominância segmentados por assunto; os perfis dos vetos derrubados versus os que foram mantidos (algo nesse sentido foi feito pela pesquisa citada aqui); a quantidade de proposições que foram impugnadas e tiveram liminares suspendendo a tramitação legislativa; as matérias mais veiculadas via medidas provisórias (ao que parece, predominam os temas tributários, mas é preciso ter uma noção do todo); etc. Existem mais temas, mas os indicados já são o suficiente para mostrar que existe toda uma agenda de pesquisas sobre o processo legislativo em aberto. Vista de modo realista, a atividade dos legisladores não é, nem pode ser, equivalente a uma "operação mecânica", como se o raciocínio legislativo fosse silogístico, fruto de uma combinação necessária e inflexível de etapas ineludíveis para a aprovação das leis. O espaço de atuação dos legisladores é mais amplo do que o sugerido pela literatura que tenta dar conta do processo legislativo. A maior parte dos estudos é muito mais dogmática do que efetivamente "realista". Em terceiro lugar, do ponto de vista normativo, finalmente, o realismo é partidário da ideia de que o processo legislativo precisa ser, na medida do possível, racional. A preocupação que impulsiona a elaboração da legislação deve ser racional quanto aos fins e quanto aos meios. Mas o foco do realismo normativo nos estudos sobre processo legislativo não é fornecer mais uma teoria metaética com relação a como as leis e o seu respectivo processo de criação deveriam ser. No sentido aqui adotado, o realismo normativo se volta para o desenvolvimento de uma forma de examinar a legislação, isto é, o produto da atividade legislativa, de forma convergente com o seu respectivo processo de criação. Precisamente porque, na linha do que já se desenvolveu acima, reivindica-se a consideração dos aspectos empíricos que circundam o processo legislativo, essa mesma realidade deve ser, em alguma medida, espelhada na interpretação a ser adotada quanto ao texto legislativo. Sempre que uma lei é aprovada, algo é certo: os legisladores quiseram aprovar a lei nos termos em que foi feita. O discurso jurídico pode até acabar lançando mão de outras hipóteses, mas dificilmente essas estarão justificadas em termos de um realismo normativo. Na interpretação do que os legisladores pretenderam a partir dessa ação institucional não se pode negar o seu caráter intencional, agora se esse vai prevalecer ou não é outra questão, que não será aprofundada hoje. Mas a problemática da intenção do legislador já foi algo desenvolvida aqui. Como se vê, o realismo aqui reivindicado para o processo legislativo não coincide de todo com as teses tradicionais do realismo jurídico em sentido amplo. Rejeita-se, por exemplo, a tese da indeterminação fatal das normas legislativas (ou algumas das versões dessa tese, notadamente a de uma indeterminação radical ou estrutural), embora não se exclua a intencional, isto é, a desejada pelos legisladores, ou a contingente, isto é, excepcional e circunstancial. O realismo no processo legislativo tampouco abraça uma separação categórica entre o direito e a moral. Atenção, não é que direito e moral sejam equiparados ou não possam ser distinguidos conceitualmente, mas sim que existem pontos fortes de conexão entre ambos quando o assunto é a atividade legislativa. É que a atividade de legislar não pode prescindir da moral, ainda que não seja em um sentido normativo. Os legisladores precisam recorrer a conhecimentos e acabam fazendo escolhas de caráter moral, seja para conhecer as demandas sociais, seja para satisfazê-las. Enfim, já é honra de caminhar para o encerramento da coluna, mas não sem antes fazer uma última observação. É curioso notar que o realismo jurídico se dedicou mais à adjudicação (aplicação do direito) do que à legislação (criação do direito). De fato, com exceção ao póstumo The Theory of Rules, de Karl N. Llewellyn — que seria o mais próximo de uma abordagem realista sobre as normas, mas ainda assim o foco é a interpretação no contexto da common law e não tão focado na legislação propriamente —, não existem maiores teorias do realismo jurídico sobre a legislação. Jeremy Waldron em seu The Dignity of Legislation chega a culpar o realismo jurídico pelo "descrédito" da legislação e do que os parlamentos fazem [1]. O autor talvez incorra em algum exagero, mas chama a atenção para um ponto importante. Basta recordar que Oliver W. Holmes em The Path of the Law chegou a definir o direito em termos de previsões do que os juízes farão, como vão julgar os casos, colocando ênfase na experiência judicial. A partir dessa ideia, constata-se que nada parecido foi produzido voltado para prever o que os legisladores farão. Atenção, isso não significa a pretensão de que o direito seja definido nos termos do "legislado", mas sim o anseio de tentar saber de antemão como os legisladores vão legislar. Simplesmente inexiste material equivalente que permita esse tipo de convite a raciocinar a partir da ótica dos legisladores. Entre todas as funções jurídico-políticas de um Estado de Direito, a aprovação das leis parece ser a mais importante de todas. Se isso é verdade, então, para dar conta das práticas reais de elaboração das leis, parece ser necessário um pouco de realismo nos estudos sobre processo legislativo. [1] Por exemplo, no seguinte trecho, no original: "What could possibly be meant by anyone's insisting that legislation is not law? At its least controversial, the claim embodies a healthy dose of Legal Realism. A bill does not become law simply by being enacted, or taking its place in Halsbury or in the statute-book. It becomes law only when it starts to play a role in the life of the community, and we cannot tell what role that will be - and so we cannot tell what law it is that has been created - until the thing begins to be administered and interpreted by the courts. Considered as a piece of paper with the stamp of parliamentary approval, a statute is not law, but only a possible source of law". (WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 10)
2023-02-28T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/fabrica-leis-realismo-estudos-processo-legislativo
academia
Direito Digital
Tratamento de dados pelo Estado e seus limites constitucionais
O Tribunal Constitucional alemão se posicionou, no último dia 16 de fevereiro, pela inconstitucionalidade do novo software de análise de dados utilizado pela polícia de Hessen e de Hamburgo. O objetivo do uso do software em questão volta-se a uma maior racionalização e otimização do combate ao crime e  identificação de potenciais criminosos de forma preventiva pela policia alemã. A plataforma digital de análise de dados chamada "HessenDATA" [1] utilizada especialmente para combater o terrorismo, o crime organizado e a pornografia infantil, percorre bancos de dados estabelecendo relações e referências advindas do cruzamento de grandes quantidades de dados, com resultados que dificilmente poderiam ser atingidos por investigadores dentro dos quadros fáticos das investigações criminais. Indiretamente, a decisão também tem um impacto em outros estados federais como a Baviera e Renânia do Norte-Vestfália, que já se valem do software ou estavam em estagio de preparação [2]. Em audiência oral perante o Tribunal Constitucional alemão em dezembro de 2022, um funcionário do ministério de Hessen descreveu um exemplo de sucesso da utilização rotineira do software: após uma série de assaltos à caixas eletrônicos, um suspeito fora pego pela polícia. Os dados do dispositivo de navegação do  veículo utilizado para a fuga foram levantados e analisados com base no software HessenDATA. A partir dos resultados gerados, foi possível construir provas contundentes de que o carro havia estado em cada um dos locais onde ocorreu a série de explosões e roubos, o que levou à condenação do suspeito. Do ponto de vista jurídico, a decisão ataca autorizações legais presentes nas leis estaduais de Hessen [3] e de Hamburgo para análise e avaliação de dados pela polícia por meio de uma aplicação automatizada (software). O parágrafo 25 da lei estadual de Hessen criou pela primeira vez na Alemanha uma base legal para esse tipo de análise automatizada de dados dentro de investigações criminais, tendo sido utilizada em aproximadamente 14.000 casos por ano, dos quais 12.000 casos de acordo com o parágrafo 25 1 alt. 1 HSOG, ou seja, na forma da prevenção de certos delitos [4]. Dentro deste contexto, a correlação de dados permite análises em vários níveis que gerariam até mesmo novas suspeitas, bem como outras etapas de análise no processo ou medidas operacionais subsequentes, ao estabelecer conexões entre pessoas, grupos de pessoas, instituições, organizações, objetos e coisas, a exclusão de informações e de descobertas insignificantes. E aqui é que surge o problema central ligado ao direito à autodeterminação informativa. Tradicionalmente, a autodeterminação informacional é compreendida a partir dos contornos conferidos pela decisão do Censo Alemão de 1983 [5]. No caso julgado no ano do meu nascimento, a construção do novo direto da autodeterminação informativa girava em torno da violação decorrente da possibilidade de comparação de dados (advindos do censo) para preenchimento de lacunas (parágrafo 9 inciso 1 da Lei do Censo) em órgãos de registro civil das municipalidades ("Meldewesen"), ou seja, criava uma zona de indiferença entre finalidades para execução administrativo-municipais e estatísticas decorrentes do compartilhamento [6]. Ao final, isso violaria requisitos clássicos da burocracia estatal num sentido weberiano de "Ohne Ansehen der Person" [7] (necessidade de indiferença a requisitos personalisticos no tratamento pela burocracia estatal), envolvendo novos contornos propiciados por novas técnicas burocráticas de criação de perfis individuais pelo Estado [8], violando especialmente o livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental presente na constituição alemã [9]. Já no atual caso, os contornos informacionais e jurídicos ganham distintos requisitos e consequências devido ao avanço tecnológico. No caso da plataforma de cruzamento de dados HessenDATA, o Tribunal focou novamente no perigo da formação de perfis decorrente do potencial do software acima pelos contornos conferidos pela base legal na modalidade de prevenir infrações penais graves [10]. Também a realização de cruzamentos de dados em abstrato sem vinculação a um perigo justificadamente concreto ("hinreichender konkretisierende Gefahr") de um caso individual  justificante  necessitaria de uma base legal mais concreta, descritiva e protetiva, sendo assim inconstitucional na forma atual da lei de Hessen [11]. O elemento preventivo desatrelado de um caso concreto na forma de geração de novo conhecimento por mecanismos automatizados elevaria [12] exponencialmente o risco de formação de perfis a serviço de um "predictive policing" [13], no qual sistemas algorítmicos de machine learning e inteligência artificial gerariam novo conhecimento sobre indivíduos. Um elemento levantado também pelo Tribunal seria a crescente assimetria de conhecimento entre Estado e empresas que prestam o serviço de softwares, com riscos para o exercício de direitos fundamentais dos indivíduos [14]. Diferentemente do caso do Censo de 1983 [15], a proporcionalidade esteve no centro do julgamento atual. Entretanto não a proporcionalidade à la brasileira. Não se trata da "farra dos princípios“ que concederia ao julgador um falso acesso à "verdade", nem de se aplicar uma fórmula matemática (mágica) para resolver um ou todos os casos [16]. Ao determinar um prazo concreto ao legislador de Hessen para reconfigurar a base legal em questão, ao longo da decisão o Tribunal Constitucional alemão constrói diversos critérios balizadores da intervenção em direitos fundamentais decorrentes do tratamento automatizado de dados a serem levados em consideração pelo legislador na atribuição de redigir o dispositivo. Com a decisão, o Tribunal Constitucional Alemão procura balizar uma atualização da autodeterminação informacional para o ambiente das novas tecnologias de sistemas automatizados alimentados por diferentes bases de dados. O julgado traz importantes lições dentre elas acerca da necessidade de base legal concreta e clara em forma de lei para casos nos quais ocorrem mudança de finalidade no tratamento de dados pelo Estado. Mas, acima de tudo, traz uma importante lição sobre um saudável dialogo institucional entre parlamento e Tribunal constitucional ao afastar-se da prática de modulação de efeitos pelo próprio Tribunal, atribuindo critérios balizadores para que o próprio parlamento crie e aplique os parâmetros constitucionais da questão [17]. [1] Em 2017, o Estado de Hesse adquiriu o programa "Gotham" da empresa de software Palantir e  passou a utilizar o software sob o nome "hessenDATA". [2] No momento a Baviera fechou um contrato guarda-chuva com a empresa americana Palantir para que suas forças policiais possam utilizar o software da empresa americana sem procedimentos adicionais ou restrições para aquisição e utilização. [3] Artigo 25a da Lei de Hesse sobre Segurança e Ordem Pública (HSOG) na sua reforma de 25 de junho de 2018. Texto do Artigo 25a "As autoridades policiais podem, em casos individuais justificados, continuar a processar dados pessoais armazenados por meio de um pedido automatizado de análise de dados para o combate preventivo de infrações penais referidas no artigo 100a (2) do Código de Processo Penal ou para a prevenção de um perigo para a existência ou segurança da Federação ou de um Estado Federado ou para a vida, membro ou liberdade de uma pessoa ou propriedade de valor significativo, cuja preservação é exigível pelo interesse público, ou se for de se esperar um dano equivalente ao meio ambiente". (Tradução livre) [4] Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 -1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 12. [5] Sobre a decisão do censo alemão relacionando com o caso brasileiro do IBGE ver: Ricardo Campos, Juliano Maranhão, e Juliana Abrusio, A proteção de dados pessoais no STF e o papel do IBGE, 29 de maio de 2020, https://www.conjur.com.br/2020-mai-29/maranhao-campos-abrusio-protecao-dados-stf-ibge [6] "Contudo, o compartilhamento de dados colhidos para fins estatísticos e não anonimizados ou tratados estatisticamente para fins de execução administrativa pode interferir de forma inadmissível com o direito à autodeterminação informativa". BVerfG, Urteil des Ersten Senats vom 15. Dezember 1983 — 1 BvR 209/83 —, notas marginais de (1-215), aqui nota marginal 164. (Traducao RC) [7] Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, 1976, p. 825 e ss. [8] Relacionado com o julgamento da ADPF 695 do Cadastro Base do Cidadão, ver minha sustentação oral no STF tocando justamente o ponto da relação entre formação de perfis e autodeterminação informacional. Pleno (AD) - Compartilhamento de dados (1/2) — 1/9/22 https://www.youtube.com/watch?v=_W4groz-AFI. Aqui o principal trecho da decisão do censo de 1983 que toca o ponto da formação de perfis: "(…) porque um registo abrangente e catalogação da personalidade através da combinação de dados da vida individual para criar perfis de personalidade dos cidadãos é também inadmissível no anonimato das pesquisas estatísticas". BVerfG, Urteil des Ersten Senats vom 15. Dezember 1983 — 1 BvR 209/83 —, notas marginais de (1-215), aqui nota marginal 169. [9] Gabriele Britz, Freie Entfaltung durch Selbstdarstellung, 2007. p. 6 e ss. [10] Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 -1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 49. [11] "Ao permitir a análise ou avaliação automatizada de dados em geral para a prevenção de crimes graves, os regulamentos carecem de uma especificação suficientemente restritiva do motivo da intervenção e a exigência de pelo menos um perigo concreto não é cumprida". Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 —1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 154. [12] "O peso da intervenção também é maior se a polícia obtiver informações sobre pessoas através da análise ou avaliação de dados e fizer dela o ponto de partida para outras medidas operacionais, que objetivamente não têm relação com uma má conduta concreta e não causaram a intervenção policial através de seu comportamento, ou seja, se a tecnologia de esclarecimento  automatizada aumentar o risco de pessoas objetivamente não envolvidas se tornarem o alvo de outras medidas policiais de esclarecimento". Notas marginais 77. [13] Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 -1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 98,100, 121, 147. [14] "Então, ao mesmo tempo, o controle estatal sobre esta aplicação ameaça ser perdido. Se for utilizado software de atores privados ou de outros estados, há também o perigo de manipulação desapercebida ou de acesso desapercebido aos dados por terceiros". Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 — 1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais nº 100. [15] Classico sobre o tema Introdução de Spiros Simitis em: Spiros Simitis, Gerrit Hornung, Indra Spiecker (Orgs.), Datenschutzrecht, primeira edição 2019, notas marginais 28-48., ver também Marion Albers, Informationelle Selbstbestimmung, Baden-Baden 2005, p. 234 e ss. [16] Sobre a critica a ponderação, ver meu livro Ricardo Campos (Org.) Crítica da Ponderação. Método Constitucional entre a Dogmática jurídica e a Teoria Social, São Paulo 2016. [17] Sobre o assunto ver https://www.conjur.com.br/2020-fev-11/ricardo-campos-jurisdicao-constitucional-perigo-consequencialismo
2023-02-28T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/direito-digital-tratamento-dados-estado-limites-constitucionais
academia
Opinião
Parreira Neto: Teoria geral do direito do agronegócio
Como discutíamos em outro artigo neste portal [1], o fenômeno jurídico representado pelo objeto do direito do agronegócio (complexo agroindustrial) poderia ser analisado desde as perspectivas normativa, de conteúdo-composição e de integração-eficácia, as quais, respectivamente, fariam menção ao regime jurídico do agronegócio, às atividades econômicas organizadas e ao conceito de rede de negócios jurídicos agroindustriais.    Considerado o esforço de abstração que deve guiar o intérprete da regra ao princípio, temos que a teoria geral busca a identificação de elementos comuns em determinado ramo jurídico, seus denominadores comuns, que podem ser encontrados em todo seu campo de aplicação, representando o que seria, na perspectiva da lógica aristotélica, os chamados "universais", propriedades que um objeto tem em comum com outros e que acabam por representar, no campo científico, a base de toda produção acadêmica.   Propomos a tratar neste artigo sobre a caracterização das atividades econômicas organizadas, que formam o conteúdo do complexo agroindustrial, como sendo base para o conceito de empresa agroindustrial, sustentando, ao final, que tal empresa tem potencial de servir como instituto central de sistematização da teoria geral do direito do agronegócio. A teoria geral do direito agrário contemporâneo, em particular a partir de Flávia Trentini, buscando afastar-se de uma perspectiva meramente fundiária ou subjetivista e considerando a importância da atividade econômica na seara agrária, tem apontado como central para esse ramo do direito o instituto da empresa agrária, definida a partir dos elementos economia e organização relacionados ao desenvolvimento de um ciclo biológico (agrariedade), que apresenta potencialidade para reunir em sua órbita "outros institutos de fundamental importância: da propriedade ao contrato" [2]. No mesmo sentido, colhemos da obra de Ricardo Zeledón [3] que o direito agrário se constitui, essencialmente, como um direito de atividade, tendo como fim a produção de seres animais e vegetais, no contexto de um ciclo biológico que utiliza recursos naturais, sendo que essa atividade só poderia ser verificada através da empresa (agrária), assumindo esta, desse modo, papel de protagonista nesse ramo jurídico. Na esteira dessa constatação, considerando que o conteúdo do complexo agroindustrial, objeto do direito do agronegócio, é constituído por atividades econômicas organizadas, podemos vislumbrar a existência de um correspondente conceito de empresa a englobar todas essas atividades.  Tais atividades econômicas organizadas, integradas pelo conceito de rede de negócios agroindustriais, dariam nascimento a uma empresa própria no ramo do direito do agronegócio: a empresa agroindustrial. Empresa essa que, segundo Renato Buranello [4], impacta especialmente o regime jurídico do agronegócio, no qual devem estar presentes suas prescrições. Nessa acepção, considerada a união de todas as atividades de um dado sistema agroindustrial pela integração promovida pelo conceito de rede de negócios, o regime jurídico em questão seria, de modo mais abrangente, a regência do fenômeno conceitual da empresa agroindustrial. O conceito de empresa se apresenta de maneira teoricamente neutra, sendo qualificado pela função que lhe é atribuída, podendo ser assim, de natureza comercial, rural ou, como temos apontado, de natureza agroindustrial. Logo, em razão das atividades que promove, a empresa adquire caracterização própria, sendo que, no âmbito do agronegócio, as diversas atividades econômicas verificadas nos sistemas agroindustriais (SAGs) acabam por qualificar tal empresa com o mesmo predicado desses sistemas, qual seja, "agroindustrial". Em sua atual fase de desenvolvimento, a agricultura e pecuária nacionais apresentam-se como fruto da integração/fusão das atividades típicas do setor primário com as dos demais setores da economia, dando-se particular ênfase na integração entre a lavoura e a indústria, que acaba por chancelar a caracterização dos sistemas de produção como sendo de natureza agroindustrial. Desse modo, a agricultura moderna é marcada tanto pelo fato de operacionalizar-se por meio de atividades econômicas organizadas quanto por sua ligação com a agroindústria e demais atividades dos sistemas, caracterizando-se, por consequência, uma verdadeira empresa que une atividades de natureza empresarial com as decorrentes da industrialização em sentido amplo. Considerando a perspectiva do direito agrário, cuja lógica pontual é aplicável ao direito do agronegócio, temos que a empresa agrária apresenta, de uma forma geral, os elementos empresário, estabelecimento e atividade. O empresário encontra-se encarregado de realizar atividade econômica organizada de modo profissional, sendo que a organização dessas atividades consiste na combinação que aquele faz dos fatores de produção, em particular capital e trabalho. Tais elementos podem ser vislumbrados segundo a doutrina independentemente da dimensão dos negócios de um determinado empresário, aplicando-se tanto a grandes quanto pequenas atividades empresariais [5]. Tomando o conceito de sistemas agroindustriais, temos que são definidos em razão de um produto em particular, no entanto, envolvem todas as atividades que estão incluídas em uma dada cadeia de produção, caracterizadas pela articulação de operações comerciais e financeiras, fluxo de troca entre fornecedores e pelo caráter sucessivo de operações de transformação encadeadas. Fala-se assim em um sistema que abrange desde o fornecimento de insumos até a entrega do produto final ao consumidor, atividades essas que envolvem sempre o caráter de organização, economia, e por conseguinte, adquirem a feição profissional que lhe outorga a qualificação de empresária. Como traça a doutrina, o desenvolvimento da agropecuária ao redor do mundo requereu o desenvolvimento de sistemas industriais para que a produção se guiasse rumo à eficiência, qualidade e disponibilidade, o que foi marcado especialmente pela integração indispensável entre agricultura e indústria [6]. Dentro do desenvolvimento dos sistemas industriais surge o conceito mais específico de sistemas agroindustriais (SAGs), que, fruto da integração dos setores primário, secundário e terciário da economia, representa todo o elo de operações de natureza econômica que caracterizam o amplo espectro de atividades abarcadas pelo agronegócio na figura do que se denomina complexo agroindustrial. Como ocorre no direito agrário, com a utilização do conceito extrajurídico de agrariedade para definir o elemento comum que promove a harmonização dos institutos estudados e a própria caracterização da empresa agrária, o direito do agronegócio se vale de um conceito de base econômica, sistema agroindustrial, para definir seu objeto imediato. Esse conceito econômico acaba por guardar íntima relação com a noção de empresa agroindustrial que buscamos expor. Isso porque cada um dos sistemas agroindustriais é composto por atividades econômicas organizadas, operacionalizando-se através dessas atividades, que individual e coletivamente podem ser tomadas como sendo empresárias, constituindo a essência daquela empresa.  Retomando o tema particular do regime jurídico, dissemos que o mesmo representa uma perspectiva normativa. Entretanto, cabe ponderar que esta, tomada genericamente, pode ser dividida nos campos conceitual e normativo (stricto sensu). Consideramos aqui a ótica da Filosofia do Direito, segundo a qual toda teoria geral apresentaria as faces que se ocupam com a definição de conceitos (o que é e o que não é direito) e com o modo de funcionamento/aplicação das normas e conceitos (como o direito deve ser e como as instituições devem atuar)  [7]. O regime jurídico do agronegócio poderia, assim, ser tomado desde uma perspectiva conceitual, analisando o que caracteriza e define suas normas, tomando-se, particularmente, o conceito de sistema agroindustrial, que qualifica a empresa agroindustrial tutelada, considerada sua ligação embrionária com o direito comercial e naturalmente com todas as atividades econômicas de natureza empresarial. O campo conceitual seria o campo da identificação das normas, de definição do que pertence e do que não pertence ao ramo jurídico. Da mesma forma, desde a visão conceitual, no âmbito do direito agrário a qualificação e identificação das normas também se operaria mediante um conceito fundamental, externo ao direito, agrariedade, que qualifica todos os institutos desse ramo (especialmente a empresa agrária) e estabelece a sistematização de seu estudo pelo intérprete. Considerando a perspectiva normativa, divisamos o campo da aplicação dos princípios, das normas de caráter programático que moldam o sistema jurídico e determinam a base de incidência das diversas normas e lançam as bases de atuação das instituições e pessoas responsáveis pela elaboração, aplicação e respeito às normas jurídicas, respectivamente representados pelas funções prioritárias do legislador, juiz e cidadão comum [8]. Nesse mesmo campo, verificamos, ainda, a ocorrência dos suportes fáticos e a incidência das normas que regem o sistema, expressando a forma como a regulação do direito se opera na prática mediante os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos pelo acionamento das prescrições contidas na estrutura da norma. Encontramos então, no caso do agronegócio, a ocorrência dos fatos da vida que as normas selecionam para ingresso no mundo jurídico, especificamente, as atividades econômicas organizadas que lhe servem como base e a operação da integração dessas mesmas atividades na forma de uma rede de negócios. Logo, na perspectiva normativa encontramos tanto o princípio norteador quanto o fato regulado pelo direito, demonstrando como o sistema jurídico opera a formatação das atividades econômicas e a orientação geral da atuação das instituições. Da noção de sistema agroindustrial, das atividades econômicas organizadas e da rede de negócios que representam, derivamos princípios que consistem nessa dimensão normativa do direito do agronegócio, expressado na forma de prescrições que determinam como as normas devem ser e como as instituições devem atuar na aplicação-interpretação dessas normas.   Princípios como segurança alimentar, função social da cadeia agroindustrial e desenvolvimento sustentável são abstraídos a partir de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento, como o são os elementos que compõem e integram o direito do agronegócio na forma de atividades organizadas. Considerando a segurança alimentar em particular, temos que esse é o princípio resultante da inferência lógica realizada a partir da constatação da existência de um sistema agroindustrial que atua como fornecedor de gêneros alimentícios, representado pela interligação de operações que vão do fornecimento de insumos até a entrega ao consumidor final. Verificou-se, em primeiro lugar, um fato: a existência de um sistema que garante alimentos à população; depois disso, o direito, notando a importância daquele fato (sua função social), passou a tutela-lo em termos principiológico. A tutela de todo o sistema, assim, à parte a discussão sobre os interesses individuais ao longo da cadeia de negócios, ocorre, primordialmente, em função do cumprimento da segurança alimentar. Vemos, por conseguinte, que a teoria geral, considerando as dimensões conceituais e normativas, ressalta as relações decorrentes dos sistemas agroindustriais e da empresa agroindustrial, que delimitam a identificação de normas como pertencendo ao sistema, e as relações oriundas das atividades econômicas organizadas e da rede de negócios que integra todas essas atividades, representando o que seria o reflexo prático do quanto definido em termos conceituais. Consideradas todas as atividades econômicas no interior do complexo de relações jurídicas que é o agronegócio, abarcando temas como fornecimento de insumos, produção nas unidades agrícolas, industrialização, armazenamento, logística e distribuição de produtos, subprodutos e resíduos de valor econômico, temos que um elemento em comum acaba por unir todas essas atividades sob o campo de incidência do direito do agronegócio. Tal elemento, considerado o caráter econômico de todas as atividades mencionadas, encontra plena expressão no conceito de empresa agroindustrial, verificada em todas etapas presentes em um dado sistema agroindustrial, revestindo-o de juridicidade. O direito do agronegócio seria, assim, a regência do fenômeno conceitual da empresa agroindustrial. Trata-se, por fim, de considerar o quanto vem sendo tratado em termos de teoria geral do direito agrário contemporâneo, reconhecendo que a atividade econômica, na forma de empresa, é o elemento central a ser tutelado, o que permite, por consequência, a devida concretização dos princípios que regem a atividade rural e que se traduzem em benefícios indispensáveis para a sociedade em geral.   _________________________ [1] https://www.conjur.com.br/2023-jan-28/manoel-parreira-teoria-geral-direito-agronegocio [2] TRENTINI, Flávia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 10. [3] ZELEDÓN, Ricardo Zeledón. Derecho agrario contemporâneo. San José: IJSA, 2015, p. 178. [4] BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. Editora Saraiva. Edição do Kindle., pos. 699. [5] TRENTINI, Flávia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 23. [6] BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. Editora Saraiva. Edição do Kindle., pos. 363. [7] DWORKIN, Reinaldo. Taking rights seriously. Harvard University Press. Edição do Kindle, pos. 34. [8] DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Harvard University Press. Edição do Kindle, pos. 51.
2023-03-01T20:50-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-01/parreira-neto-teoria-geral-direito-agronegocio
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Opinião
Renato Silveira: Um século sem Ruy Barbosa
Em 1º de março de 1923 o Brasil perdia o maior de seus filhos: Ruy Barbosa. Passado um século, sua memória ainda vive, mas, mesmo assim, deve, sempre, ser ressaltada. Advogado, tribuno, jurista, diplomata, escritor, jornalista e orador, foi cultuado em vida e perpetuado após sua morte. O Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), que, em 1918, teve a possibilidade de lhe outorgar o título de associado honorário, imortaliza, uma vez mais, seus respeitos à figura maior do Advogado Ruy Barbosa, participando, assim, de forma indireta, na história da elaboração da Oração aos Moços. De todo modo, passados tantos anos, vários dos detalhes da história de Ruy talvez sejam menos presentes na memória popular do que já se verificou em outros momentos. Talvez, pois, seja aqui o momento de recordar algumas das passagens da representação maior da Advocacia nacional. Ruy Barbosa político, foi deputado e senador por incontáveis anos. Foi ministro e candidato à Presidência da República por duas vezes. Ruy, diplomata, encantou o mundo na 2ª Conferência de Paz, recebendo a alcunha de Águia de Haia do Barão do Rio Branco. Mas, para além disso, Ruy, Advogado, tem a história de uma vida a ser, sempre, rememorada. Nascido na Bahia, estudou no Recife e se transferiu a São Paulo, junto à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, para a conclusão de seu curso. Aliás, no mesmo ano de sua chegada, já participava de seu primeiro momento civilista, enaltecido que foi pelo Iasp, de 1918.  Já formado, de volta à Bahia, inaugurou sua atuação junto ao Tribunal do Júri. Ganhou fama e se tornou político. Com a República, assumiu espaço no gabinete de Deodoro da Fonseca. Mas foi com a duvidosa ascensão da ditadura de Floriano que se coloca como esgrimista do Direito, ingressando com inúmeros habeas corpus e outras tantas medidas junto ao Supremo Tribunal Federal. Combateu veementemente aquela versão do militarismo como se colocava. Foi ao exílio. Jornalista, escreveu com primor. Foi, à distância, o primeiro defensor de Dreyfus, antes mesmo do J'Accuse, de Zola. Voltou ao Brasil e atuou em todas as áreas. Falou, escreveu e advogou no Direito Civil, Comercial, Internacional e no processo tanto inovou. Atuou na campanha civilista e cativou o Brasil. A inteligência lhe era inerente, adesivada ao seu ser. Por todos reverenciados, suas Obras Completas são de um sabor muito particular. Não existe, enfim, tema estranho e que não tenha sido por ele, de alguma forma, abordados. Se fosse possível a missão de reduzir sua importância ao Direito nacional em poucas linhas, talvez devessem ser escolhidas, no entanto, algumas não de um seu trabalho científico, mas de uma resposta a uma consulta feita pelo paradigma de advogado que foi Evaristo de Morais. Ainda hoje encontrada em O dever do Advogado, tem-se que o causídico, inquietado em aceitar o encargo da defesa de determinado acusado, solicitou a opinião de Ruy. Este, traçando uma das mais belas defesas do atuar como advogado, conduziu o amigo no caminho do aceite da causa, afirmando "por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado, assim entendido e exercida assim, terá foros de meritório, e se recomendará como útil à sociedade". A colocação da importância da defesa, e em prol das garantias individuais, é marca indelével de Ruy. Aliás, acompanha toda sua vida, e para além dela. E se mantém reconhecida por todos aqueles que dela tem um mínimo conhecimento. É verdade que críticas e vitupérios existiram, como se viu das difamações postas por Magalhães Jr., em Rui, o homem e o mito. Mas foram estas respondidas a seu tempo, entre outros, pela própria Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cada contestação, vírgula e acusação foi retrucada com a veemência da Escola que teve Ruy como um dos seus mais ilustres alunos. Aliás, mais do que isso, já que a Ruy Barbosa foi dada a maior honraria das Arcadas, quando estas atribuíram a ele o título de seu primeiro Professor Honorário. O Iasp, repisando a felicidade vivida há mais de cem anos, quando da mencionada efeméride, externaliza, uma vez mais, a gratidão e regozijo da terra paulista por ter, Ruy, se transplantado para ela quando seu gênio ia florescer. Isso, ombreado ao deslumbre e honra pela dimensão do que Ruy fez pelo país, pela Justiça e pelo Direito. Não deixa de ser ironia da história, ou mesmo, peça do destino, que ele, elemento fundamental civilista, contra a onda militarista de então, tenha tido seu busto, que honrava o STF, vilipendiado e atacado durante os vândalos atos de Brasília, em 8/1/2023. Por isso, e por tantas outras razões, nesta data, o Instituto dos Advogados de São Paulo saúda a memória do grande baiano, que tantos inspirou (e continua inspirando), convidando as novas gerações a se debruçar nos pensamentos e escritos impagáveis do saudoso Conselheiro. Vivas eternos a Ruy Barbosa.
2023-03-01T09:11-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-01/renato-silveira-seculo-ruy-barbosa
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Consultor Tributário
Houve mesmo surpresa na decisão do STF sobre a coisa julgada?
Observa-se, na imprensa, forte repercussão de uma recente manifestação do Supremo Tribunal Federal, no equacionamento dos temas 881 e 885 de sua jurisprudência com repercussão geral. Tais temas tratam das relações tributárias de caráter continuado, nas hipóteses em que o contribuinte tem em seu favor sentença transitada em julgado afirmando a invalidade da cobrança de um tributo, mas a jurisprudência da corte se firma em posição contrária. Fala-se, com o recente pronunciamento do STF, no "fim da coisa julgada", algo que, com todo o respeito aos posicionamentos discrepantes, parece um tanto exagerado. Basicamente o que o Supremo Tribunal Federal fez foi decidir que a sentença que afirma inválida a cobrança de determinado tributo, em uma relação jurídica continuada ou continuativa, produz efeitos para o futuro, abrangendo o período posterior àquele discutido no processo. Entretanto, se houver mudança na situação de fato, ou de direito, os efeitos da sentença, a partir de então, não se produzem mais. Isso, aliás, não foi dito pelo STF, mas pela legislação processual, e pela própria literatura especializada, há muito tempo. A discussão, em verdade, girava em torno de saber se uma mudança jurisprudencial, em torno do entendimento sufragado na decisão passada em julgado, equivaleria a uma "mudança na situação de fato ou de direito". O tema, repita-se, não é novo. Em 2004, Helenilson Cunha Pontes obteve a livre docência em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo com tese sobre o assunto, depois publicada pela editora Dialética. Nela, defendia que a simples mudança de entendimento do STF, mesmo em sede de controle difuso, poderia ensejar a cessação de efeitos de decisão passada em julgado em sentido contrário, relativamente a fatos posteriores. Em 2006, na segunda edição de meu Processo Tributário, também tratei do tema. Divergi, contudo, ligeiramente, de meu mestre Helenilson, concordando que a mudança de entendimento, se havida em sede de controle concentrado, produz efeitos normativos, erga omnes, equivalendo a lei nova. Neste caso, realmente, a coisa julgada em sentido contrário deixa de produzir efeitos a partir de então. Mas, se a mudança de entendimento se der em sede de controle difuso, sem efeitos expansivos, essa conclusão não seria viável. Neste ponto residia a nossa divergência, pois defendia, e ainda defendo, a necessidade de se mover nova ação para rediscutir o tema. Em qualquer caso, a partir da ADI ou da ADC, se concentrado ou controle, ou a partir dessa nova discussão judicial, se a mudança se opera no difuso, os efeitos, sobre quem tinha coisa julgada favorável, são sempre ex nunc. No mesmo ano de 2006, o professor Hugo de Brito Machado, meu pai, coordenou, em parceria entre o Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e a editora Dialética, obra em torno da coisa julgada em matéria tributária, da qual participaram diversos tributaristas, e processualistas, a maior parte deles chegando a essas mesmas conclusões. Neste livro, inclusive, enfrentam-se questões que continuam em aberto na jurisprudência, mas que por certo serão filhotes dos temas em exame, como a de saber se igual posição deve ser adotada diante de mudança no entendimento do STJ sobre questões legais, quando os precedentes forem submetidos à sistemática dos recursos repetitivos, o que nos parece ser o caso; bem como se se aplica igual entendimento na situação inversa, de coisa julgada que afirma devido um tributo, o qual posteriormente vem a ser reconhecido inválido pelo STF: pode o contribuinte ser obrigado a pagar tributo inconstitucional, para todo o sempre, por conta de um instituto criado para protegê-lo, e que não pode ser invocado pelo Estado em seu desfavor (Súmula 654/STF)? A resposta parece ser não. Quanto ao tema e às críticas que injustamente se lhe dirigem, é preciso entender a questão teórica, e conceitual, que subjaz. Quando uma sentença afirma procedente um pedido, reconhece a existência, a inexistência, ou o modo de ser de uma relação jurídica. Em se tratando de jurisdição tradicional, concreta, tem-se a afirmação do direito subjetivo de alguém, o qual decorre de uma situação de fato, e de normas jurídicas que conferem a essa situação de fato a consequência de gerar o tal direito subjetivo. Nessa ordem de ideias, o direito subjetivo, reclamado no processo e declarado na sentença, pode decorrer de um fato havido de modo isolado no tempo. Ocorreu só uma vez, necessariamente antes do ingresso da ação. Alguém, por exemplo, é humilhado pelo comissário de bordo de uma companhia aérea, em um voo específico. Diante dessa humilhação, move ação de reparação de danos, e se sai vitorioso. Recebe a indenização. Com o trânsito em julgado da decisão, o direito assim reconhecido, e a indenização recebida, não poderão ser questionados, ressalvadas as excepcionais hipóteses de cabimento da ação rescisória. Essa conclusão não se modifica se os tribunais mudarem sua orientação, depois, sobre se de humilhações semelhantes decorreria, ou não, o direito à indenização. Se os julgadores passarem a ser mais rígidos ou mais complacentes com situações análogas. Tampouco a decisão será atingida por lei posterior, que eventualmente assevere a inexistência do dever de reparar o dano em tais casos. A situação será diferente, porém, se a sentença afirmar a existência, a inexistência, ou o modo de ser de um direito subjetivo, quando este decorre de situações de fato que se repetem, ou renovam, no tempo, e sobre as quais as mesmas normas continuam incidindo, mesmo depois de ajuizada a demanda ou após seu encerramento. Uma sentença que reconheça o dever de um pai pagar alimentos ao filho não produz efeitos apenas em relação ao passado, mas para o futuro, enquanto se mantiver a situação de fato reconhecida na sentença, da qual decorre o dever de pagar alimentos, por exemplo. Mas seus efeitos podem cessar, ou podem ser rediscutidos, se a situação mudar, o pai perder o emprego, o filho tornar-se maior de idade e passar a ganhar seu próprio dinheiro etc. No campo do Direito Tributário, se uma decisão afirma que determinado contribuinte, proprietário de um imóvel com características "x", é isento do IPTU nos termos da lei "y", essa sentença produzirá efeitos enquanto a lei "y" permanecer em vigor, e enquanto o contribuinte for proprietário do referido imóvel com características "x". A sentença, por certo, pode excepcionalmente ser objeto de ação rescisória, mas, ressalvada essa hipótese, o certo é que, em regra, produzirá efeitos relativamente ao período abrangido na ação, e por todo o futuro. Seus efeitos sobre fatos futuros perduram enquanto a lei "y" permanecer em vigor, e o imóvel com características "x" continuar pertencendo ao contribuinte. Não será preciso mover nova ação, para ver reconhecida a isenção relativamente ao IPTU, a cada ano. Mas, se o imóvel tiver suas características alteradas, ou se a lei isentiva for revogada — ou declarada inconstitucional em ADI — a sentença deixará de produzir efeitos, a partir de então. Foi isso, e apenas isso, o que o STF decidiu, nos temas em questão. Que uma ADI, por ter efeitos erga omnes, equivale à edição de uma lei nova, fazendo cessar os efeitos de uma sentença que firmara posição em sentido contrário, mas apenas relativamente a fatos havidos a partir de então. Não houve fim da coisa julgada. Pelo contrário. Neste ponto, a pretensão inicial do Fisco foi bastante refreada, pois este pretendia cobrar o tributo em torno do qual a disputa foi colocada (a CSLL), mesmo daqueles que possuíam ações afirmando sua invalidade, e mesmo antes de o STF firmar posição por sua validade. E, depois de resolvida a questão em sede de Recurso Extraordinário, em 1992, a União passou a cobrar de muitos contribuintes, ignorando a coisa julgada que tivessem em seu favor. Ao julgar os temas, o STF afirmou que isso não é possível, sendo lícito cobrar apenas sobre fatos havidos a partir de quando se julgou ADI sobre o tema, afirmando a validade da contribuição, e respeitando-se a anterioridade. Afinal, como dito, a ADI tem efeitos sobre todos, tal como uma lei nova. O período em torno do qual havia a controvérsia mais séria, em relação ao qual era razoável a posição dos que se confiavam na coisa julgada para não pagar, era aquele compreendido entre 1992 (ano do julgamento do RE dando por válida a exação apenas entre as partes daquele processo), e 2007 (ano do julgamento da ADI, dando a exação como válida para todos). E, para esse período, o STF agora deixou claro que a cobrança não pode ocorrer, relativamente àqueles que possuíam sentenças com trânsito em julgado dando pela invalidade da exação. Quanto ao período posterior, pode-se até discordar da posição da corte, a crítica acadêmica é livre, mas afirmar-se que equivale ao fim do instituto da coisa julgada parece um tanto exagerado. Como se uma lei nova, dando nova disciplina ao tributo, não pudesse torná-lo devido a partir de então. Basta pensar na decisão que afirma inválida uma cobrança, por falta de fundamento legal, decisão esta que deixa de produzir efeitos quando o poder público, corrigindo o vício, edita lei dando esse fundamento à cobrança, que daí para a frente passa a validamente acontecer. Algumas reflexões, porém, podem ainda ser feitas, diante do assunto. Primeiro, sobre a decadência. A decisão firmada no julgamento dos temas não altera a fluência dos prazos prescricionais ou decadenciais. Assim, mesmo podendo, em tese, exigir o tributo desde 2008, o Fisco só poderá fazê-lo, por certo, se os lançamentos respectivos tiverem ocorrido dentro do prazo de decadência. Um contribuinte que jamais tenha sido autuado, nesse período, e que esteja sem pagar a CSLL até hoje, naturalmente só poderá ser compelido a pagar as quantias em aberto relativamente aos últimos cinco anos, contados da notificação do lançamento que vier a ser feito. Segundo, mas não menos importante, é interessante notar que este é mais um efeito colateral, sentido muitos anos depois, de um remédio amargo e inadequado para o excesso de processos nas cortes superiores, em torno do qual até já escrevi aqui na ConJur: a jurisprudência defensiva. Em face dela, recursos não são conhecidos por questiúnculas vazias e inúteis, ou, mais recentemente, até pela acusação de incorrerem em falhas verdadeiramente inexistentes. Julgadores chegam a afirmar a falta do pré-questionamento, por exemplo, apesar de o artigo supostamente não pré-questionado estar transcrito e debatido em diversos pontos do acórdão recorrido... A consequência é essa: sujeira colocada debaixo do tapete, que transborda anos depois, sob a forma de decisões passadas em julgado em sentido discrepante daquele firmado nas cortes superiores, levando a mais processos, com discussões relativas à falta de isonomia, quebra da concorrência, necessidade de relativização da coisa julgada etc.
2023-03-01T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-01/consultor-tributario-tema-coisa-julgada-houve-surpresa-entendimento-stf
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Opinião
Furtado Coêlho: O advogado da Federação e da República
Em 1º de março de 2023, rememora-se o falecimento do grande e inestimável Ruy Barbosa, ocorrido há exatos cem anos. O notável baiano, nascido no dia 5 de novembro de 1849 e filho primogênito de João José Barbosa de Oliveira e Maria Adélia Barbosa de Almeida, exerceu com maestria os ofícios de advogado, jurista, deputado, senador, ministro, diplomata, tradutor, jornalista e membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Igualmente aos numerosos ofícios, a publicação de Ruy é vasta. A Fundação Casa Rui Barbosa reuniu em 137 tomos, com os mais variados temas, a poesia, discursos, peças jurídicas, entre outros, o trabalho produzido e publicizado por Ruy Barbosa em todos esses campos que atuou. Instigado pela robustez do trabalho e pela importância de Ruy nos rumos jurídicos políticos do Brasil me investi no desafio de escrever uma obra que busque destacar a atuação do advogado Ruy Barbosa e os caminhos percorridos na formação da República e da Federação, que ainda atualmente, o notabilizam como referência na compreensão do Estado brasileiro. O fio condutor que une os trabalhos escolhidos para figurar nesta obra é a atuação de Ruy Barbosa como advogado dos princípios e valores contidos na Constituição de 1891[1] e no regime recém-inaugurado: a República federativa. A começar pela grafia do nome do homenageado, afinal, o correto é Ruy ou Rui? Neste texto e no livro, optou-se pela adoção da forma com "y", pois é a grafia constante em sua certidão de nascimento e a qual o próprio Ruy utilizou em toda sua vida. O nome post mortem, grafado com "i", surgiu a partir das "Instruções para a organização do vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa", datado de 1943; contudo, tais instruções foram superadas pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor no Brasil desde 2009, que retomou o uso das letras "k", "w" e "y". A vida de Ruy advogado e político nasce precocemente por influência do pai, que embora médico nutria apreço pela vida política e certa frustração por não ter elegido a carreira de advogado como ofício. Em 1866, Ruy iniciou os estudos na Faculdade de Direito de Recife e, ainda calouro, participa da Associação Acadêmica Abolicionista criada por Castro Alves, Augusto Alves Guimarães, Plínio de Lima e outros. No ano seguinte ao ingresso na faculdade, sua mãe falece e Ruy tem uma congestão cerebral.  Insatisfeito com rumos de sua vida universitária em Recife transfere sua matrícula para a Faculdade de Direito de São Paulo. Já no estado de São Paulo, Ruy se integra à campanha abolicionista e organiza, junto a Luiz Gama, Américo de Campos, Bernardino Pamplona e Júlio Cesar de Freitas Coutinho, a criação do jornal Radical Paulistano. No exercício da advocacia afirmava que se orientava por: Um invencível horror à violência, uma sede insaciável de justiça constitui o fundo de minha índole e tem modelado irresistivelmente a minha vida inteira. Simpatizei sempre com os fracos, respeitei sempre os vencidos, patrocinei sempre os opressos. Minha estreia na tribuna popular, ainda estudante, foi a defesa de um escravo contra o senhor. Minha estreia na tribuna forense, foi a desafronta da honra de uma inocente filha do povo contra a lascívia opulenta de um mandão. Minha estreia na tribuna parlamentar foi o patrocínio da eleição de um conservador contra o partido liberal em que eu militava[2]. As palavras de Ruy Barbosa não se restringem a artifícios de retórica; como o próprio relata, seu trabalho como advogado foi pautado na defesa de pessoas oprimidas assim como o trabalho parlamentar. Seu pendor à justiça e à superação das desigualdades é reconhecido e celebrado ainda nos tempos atuais pela mais alta Corte do país. Diversos julgados do Supremo Tribunal Federal ainda trazem os ensinamentos de Ruy Barbosa como diretriz de julgamento e provam sua atualidade. O julgamento da ADI 3.330, de relatoria do ministro Ayres Britto e julgada em 2013, versava acerca da possível inconstitucionalidade do Programa Universidade para Todos (Prouni), uma iniciativa de concessão de bolsas de estudos em universidade privadas a discentes que cursaram ensino médio em escola pública ou ainda, em escola particular, desde que com bolsa que cobrisse 100% do custeio da mensalidade escolar. A ADI foi rejeitada e traz na ementa, o seguinte excerto ao se referir à máxima aristotélica que versa sobre tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais: [...] máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem.[3] Ruy Barbosa, à altura deste julgamento já havia falecido há noventa anos mas seguiu como referência na interpretação de valores de justiça e Educação e foi lembrado na defesa de um dos programas sociais que mais permitiu ingresso de pessoas de origem humilde em universidades brasileiras. Em 1874, o pai de Ruy falece. Diante do pouco dinheiro, assume o ofício do pai como secretário da Santa Casa da Misericórdia da Bahia ao tempo em que exerceu também a condição de jurisconsulto e, com seus pareceres, logrou muito prestígio e notoriedade, "mas paralelamente advogou sempre, consagrando à advocacia atenções de enamorado, porque só ela satisfazia plenamente as tendências básicas do seu espírito e da sua formação"[4]. Ruy foi destacado político, iniciando a carreira na Bahia em 1878 quando foi eleito deputado para a Assembleia Legislativa Provincial, meses depois angariou novo pleito e foi eleito deputado geral à 17ª Legislatura. Em dezembro do mesmo ano, já com seus 29 anos de idade, Ruy e sua família migram para morar na cidade do Rio de Janeiro, capital do país naquela época e futura capital federal. Nas palavras de Rubem Noguera, “a capital federal, sim, porque foi com a república que Ruy atingiu ao máximo da sua grandeza de profissional do direito, de vigilante intransigente da lei, de advogado forense infatigável e perfeito"[5]. Enquanto estava no Rio de Janeiro, além da atividade parlamentar como deputado geral de 1878 a 1884, continuou exercendo a advocacia e o jornalismo. Ainda sob o regime monárquico, defendia com vigor a abolição da escravatura, a separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e eleições diretas. Nesse escopo, cabe o destaque de outra recente lembrança das contribuições de Ruy Barbosa para o constitucionalismo brasileiro, dessa vez no âmbito da liberdade religiosa, celebrada na ementa da ADI 6.669. Nesta ação, a Procuradoria-Geral da República questiona normas do estado do Maranhão que criam cargos em comissão de capelão religioso nos quadros da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros Militar, da Polícia Civil e das Secretarias Estaduais de Administração Penitenciária e de Segurança Pública. Nas palavras do relator, ministro Nunes Marques, "cumpre respeitar a liberdade religiosa e de crença dos servidores, que também são cidadãos (CF/1988, artigo 5º, V e VI). Tamanha sua relevância, a liberdade religiosa é garantia expressa contida na Primeira Emenda à Constituição norte-americana; no Brasil, é prevista desde a Constituição de 1891, por influência de Rui Barbosa".[6]. Ruy Barbosa foi um dos autores da primeira constituição republicana do Brasil, promulgada no dia 24 de fevereiro de 1891, sendo responsável por grande parte do seu texto, como também se tornou uma espécie de fiador do novo regime que se implantava no país: a república federativa. Ruy por duas vezes foi candidato à Presidência da República, em 1910 e 1919, perdeu nas duas ocasiões, mas na condição de senador, homem público e notável jurista, participou ativamente da política brasileira e internacional. Na oposição ao governo de Floriano Peixoto, protestou e denunciou com eloquência as arbitrariedades políticas, tanto na tribuna do Senado e no Jornal do Brasil como também no Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando o habeas corpus como um instrumento jurídico na defesa das garantias individuais contra a ilegalidade e os abusos de poder. Os trabalhos jurídicos de Ruy Barbosa contra o mau uso do estado de sítio deram vazão à primeira interpretação liberal da Constituição: "O Estado de Sítio — sua natureza, seus efeitos, seus limites" e "Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo". Nessas publicações, Ruy critica o uso do estado de sítio pelos governistas, alegando que confundiram tal situação com o estado de guerra; o estado de sítio suspendia apenas algumas das garantias constitucionais, e não todas, como queriam os florianistas, e, por fim, aquilo que, naquele momento, o habeas corpus era o único remédio capaz de impedir a degeneração do estado de sítio pela razão do Estado[7]. Interessava a Ruy Barbosa, para além da possível ilegalidade das prisões, firmar a tese da competência do STF para questionar e anular quaisquer atos dos Poderes Executivo e Legislativo que não mostrassem compatibilidade com a Constituição, nos moldes do judicial review estadunidense. Uma de suas preocupações quando da colaboração na Constituição de 1891 havia sido fortalecer o Poder Judiciário, afigurando o STF como sucessor republicano do poder moderador do império[8]. Diante do destaque que os habeas corpus impetrados por Ruy Barbosa alcançaram na formação da doutrina jurídica brasileira e na combustão política, o jurista protagonizou a chamada "Doutrina brasileira do habeas corpus", que ampliava a aplicação do writ para além dos casos de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, servindo também como instrumento hábil a interromper a violação de quaisquer direitos do cidadão. Em que pese a superação do preceituado na doutrina brasileira do habeas corpus diante da reforma constitucional de 1926, seguem alguns julgados que rememoram as contribuições de Ruy para a atualidade das discussões referente ao writ: HC 111.074 [9], HC 102.041[10], HC 83.238[11], além de outros diversos processos que referenciam à doutrina preconizada por Ruy Barbosa sem que a menção esteja expressa na ementa. Ruy não era um mero mimetizador dos Estados Unidos da América tampouco pode ser reduzido ao adjetivo de pernóstico, como muitos o acusam. Suas ideias tiveram fortes influências dos ideais liberais estadunidenses, mas foi sobretudo a observância dos aprimoramentos argentinos que a Constituição Republicana de 1891 foi promulgada para selar a modernização do modelo liberal democrático federativo e republicano no Brasil. Acerca das acusações de pernóstico ou prolixo, prima destacar que Ruy é produtor de vasta obra que foi fundamental para a consolidação do Estado brasileiro como o temos até os dias atuais, em sua forma republicana e federativa. Diante da escassez de doutrina em língua portuguesa que se adequasse às peculiaridades brasileiras, Ruy arvorou-se de tal incumbência, redigindo suas peças e discursos com vasta doutrina e por diversas vezes utilizando estudos traduzidos e adaptados aos novos rumos da República federativa recém-criada. Ruy dedicou sua vida à representação do país e de seus valores, tomou para si a tarefa de evoluir uma nação. Por fim, cabem as palavras do próprio Ruy Barbosa na tribuna do Supremo Tribunal Federal em 1914 durante a exposição do HC 3.536: "mais vale emudecer, deixando toda responsabilidade do feito ao critério do tribunal, que dar, com uma exposição truncada e infiel da controvérsia, incompleta ou errônea ideia da sua justiça"[12]. Ruy possuía vasto vocabulário e se utilizava de sua eloquência e cultura na defesa das causas e de seus ideais, esses elementos revelam as possibilidades que o eminente advogado dispunha na defesa do que acreditava e ajudava, naquele momento a construir. No HC 3.536, Ruy defendia a publicação de seus discursos no Senado em jornal de grande circulação local. A defesa do uso da palavra por Ruy era basilar para a defesa da justiça. No livro "Ruy Barbosa: O advogado da Federação e da República" é realizada, após breve biografia, a análise de algumas obras escritas por Ruy, a exemplo do HC 3.536 anteriormente citado. Tais peças auxiliam a compreensão da trajetória que justificam o título dado ao livro e constituem uma singela homenagem à memória desse valoroso advogado. [1] BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte. 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 13 fev. 2023. [2] PALHA, Américo. História da vida de Ruy Barbosa. Coleção Homens do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Minerva Ltda., 1948. p. 19. [3] ADI 3330, Relator(a): AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 21-03-2013 PUBLIC 22-03-2013 RTJ VOL-00224-01 PP-00207 [4] NOGUEIRA, Rubem. O advogado Ruy Barbosa: Momentos culminantes de sua vida profissional. 5º ed. São Paulo: Editora Noeses, 2009,  p. XXXVI. [5] NOGUERA, Rubem. O advogado Ruy Barbosa: Momentos culminantes de sua vida profissional. 5º ed. São Paulo: Editora Noeses, 2009, p. 44. [6] ADI 6669, Relator(a): NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 11/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-233  DIVULG 24-11-2021  PUBLIC 25-11-2021 [7] LYNCH, Christian Edward Cyril. O caminho para Washington passa por Buenos Aires. A recepção do conceito argentino do estado de sítio e seu papel na construção da República brasileira (1890-1898). RBCS, v. 27, n. 28, fev. 2012. [8] IDEM [9] HC 111074, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00406 [10] HC 102041, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-03 PP-00669 [11] HC 83238, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/11/2003, DJe-075 DIVULG 23-04-2009 PUBLIC 24-04-2009 EMENT VOL-02357-01 PP-00069 [12]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus no 3536/RJ. Paciente: Rui Barbosa. Coator: Presidência da República. Relator: Ministro Oliveira Ribeiro. Rio de Janeiro, julgado em 5 de junho de 1914. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur92383/false. Acesso em: 13 fev. 2023.
2023-03-01T07:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-01/furtado-coelho-advogado-federacao-republica
academia
Opinião
Alexandre Lopes: A PRF e os pseudodilemas da segurança pública
Baseado na peça de Samuel Beckett (1906-1989), a alegoria de Esperando Godot parece ter influenciado alguns órgãos governamentais no último ciclo de governo, encaixando-se com relativa precisão no caso da Polícia Rodoviária Federal. A expressão esperando Godot, outrora, era bastante utilizada para indicar algo pouco provável, resultante de uma busca infrutífera. Por essa lógica teatral, poderíamos dizer que segmentos da PRF teriam depositado nos governantes de ocasião parcela significativa de esperança de valorização do órgão e da carreira, justamente aquela menos valorizada dentre o conjunto de carreiras típicas de estado do serviço público federal. Assim como na peça de Beckett, que se passa numa estrada incerta (que poderia ser uma rodovia), a espera por Godot se revelou infrutífera, ao menos sem o resultado esperado. Ao final, restou a frustração e, no caso da peça, a imobilidade das personagens, demonstrando desesperança e incredulidade com o resultado da espera. A alusão à peça serve apenas para ilustrar a condição atual da PRF. Instituição policial estruturada a partir de um modelo singular e dinâmico, de carreira horizontalizada, fugindo do modelo clássico vigente nas polícias brasileiras, que encontra sentido de complexidade na aparente simplicidade de seu modelo. Neste novo cenário político, a instituição é posta novamente frente a um novo dilema: ajustar sua atuação institucional, com ênfase na segurança de trânsito. Ao longo de 94 anos de sua existência (a PRF é polícia mais antiga da União) esse foi um debate recorrente, adquirindo maior sentido e clareza nos últimos 30 anos, a partir do avanço da criminalidade e complexidade da segurança pública no país. A esse cenário deve ser associado o fato de que rodovias, antes ambientes tipicamente rurais, em muitos pontos, adquiriram novas características a partir do processo de urbanização das cidades brasileiras, constituindo-se modal para atuação de organizações criminosas. Na última década no século XX (anos 90) já era possível perceber uma mutação no fenômeno da criminalidade que exigiria alterações no modelo de fiscalização da PRF. Para fazer frente à circulação e transporte de drogas, armas, veículos roubados, produtos contrabandeados, roubo de cargas, crimes ambientais, assalto a ônibus, dentre inúmeros outros crimes, seria preciso repensar o modelo de patrulhamento para as próximas décadas. A dúvida era: como fazer isso sem perder a essência de policiamento rodoviário, com ênfase no trânsito e segurança viária ao longo de 75 mil quilômetros de rodovias federais? De início, a ideia da criação de uma polícia ostensiva da União ganhou simpatia, mas não avançou interna e politicamente. Outras ideias menos criativas não afloraram. Depois, vimos despertar um bosquejo em torno da ideia de polícia de ciclo completo, que garantiria relativa independência do vetusto monopólio do inquérito, baseado na figura da "autoridade policial", como única fonte de acesso ao titular da ação penal (MP) e ao Judiciário. Muito embora tenha havido pequenos avanços, são temas que ainda carecem de maior atenção e amplo debate, visando reformas que possibilitem democratização e efetivo diálogo entre órgãos de segurança pública e justiça criminal em nosso país. Paralelo a esse cenário, resultante da preocupação com os indicadores de segurança viária e de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para redução de mortes e lesões no trânsito, viu-se uma série de iniciativas e investimentos na área, trazendo avanços para engenharia de tráfego, modelos de concessão de rodovias, fiscalização eletrônica e atualização da legislação de trânsito. Esse conjunto de fatores, associado à modernização da instituição e, por outro lado, ao avanço indiscriminado da criminalidade, permitiu a PRF na última década desenvolver um modelo de policiamento próprio e singular, com significativo avanço nos indicadores de combate à criminalidade, obtendo resultados seguidamente expressivos nessa área [1]. Em relação aos indicadores de trânsito, desde 2018 os números apresentam uma tendência de estabilidade, com pouquíssimas variações [2]. Destacam-se três aspectos fundamentais no avanço da PRF. O primeiro passa pela modernização tecnológica, com a criação e desenvolvimento de inovações e tecnologias específicas para atender à necessidade do órgão. O segundo aspecto guarda relação com o desenvolvimento da área de inteligência, com formação de cultura e expertise específica para atuação de agentes do órgão, que passou a servir de referência dentro do concorrido nicho de sistema de inteligência. O terceiro ponto está relacionado à criação da universidade corporativa, centro de excelência e conhecimento na área de segurança pública, constituindo exemplo no segmento de educação corporativa. Nesse sentido, buscando superar a dicotomia segurança de trânsito versus criminalidade, a instituição desenvolveu de forma autoral um modelo total de policiamento, que serve de referência para vários estados e municípios, que utilizam padrões de artificial intelligence (AI) na construção de soluções customizáveis de segurança pública em vários pontos do país. O modelo de policiamento permitiu, por exemplo, que a PRF fosse mencionada como um dos órgãos policiais que mais apreende drogas e armas no mundo. Nos últimos anos o grau de assertividade nas abordagens da PRF cresceu de forma sistemática, permitindo otimização na atuação dos agentes policiais, seja atuando no combate à criminalidade ou na segurança de trânsito. Particularmente no caso da PRF, que realiza policiamento rodoviário, esse parece ser um debate ultrapassado e enviesado, aparentemente baseado em premissas equivocadas. Justamente porque o modelo de policiamento adotado pela PRF preconiza uma atuação circular e multidirecional, permitindo ao agente, orientado por inteligência ou por regra de experiência, iniciar e direcionar a fiscalização para trânsito ou criminalidade, a depender das circunstâncias técnico-operacionais que se impõem durante o procedimento de fiscalização. Hodiernamente, a partir dos avanços tecnológicos e de inteligência não é concebível atuação unidirecional da PRF (e demais órgãos com competências similares), por exemplo, partindo-se unicamente da fiscalização de trânsito decorrente da segurança viária para eventualmente avançar no aspecto da criminalidade. Essa é uma visão ultrapassada, que traduz absoluta incompreensão do complexo cenário de segurança pública e que traria grande retrocesso para o combate à criminalidade no país. O debate que ora se coloca, aparentemente baseado na disjunção na atuação do órgão, parece não fazer sentido. Decerto, a atuação inusual fora das rodovias ou incursionando morros ou favelas em centros urbanos é medida excepcional, justificável apenas em casos específicos. O tema tem sido acompanhado com certa perplexidade dentre alguns operadores de segurança pública, na medida que a PRF se notabilizou nos últimos anos como case de sucesso, com destacada atuação no combate à criminalidade. Não há dúvidas que a atuação da PRF precisa encontrar validade na Constituição e na legislação correspondente. Essa pretensão de validade não deve olvidar da tensão que é decorrente da facticidade que é imposta pela realidade, cujo condição conforma a racionalidade vigente. A atribuição constitucional da PRF descrita § 2º do artigo 144 da CF/88 deve ter em conta o adequado cotejo entre facticidade, limites semânticos e interpretação constitucional. Há, ainda, que se considerar a coerência sistêmica e integridade do ordenamento jurídico, aplicável no peculiar contexto de segurança pública brasileiro. Distorções ou excessos praticados não podem macular o trabalho desenvolvido. Comportamentos distorcidos, via de regra, são resultantes de condutas solipsistas daqueles que cedem indiscriminadamente aos eflúvios subjacentes de poder, distanciando-se da realidade e do interesse público. São variáveis que obscurantizam os direitos humanos e comprometem o grau de democraticidade institucional. Esperando Godot é um marco literário que inaugura o chamado teatro do absurdo, marcado essencialmente pela abordagem irracional dos fatos. Noutra concepção, a agenda de segurança pública deve ser prioritária em um país com elevado déficit social e desigualdade histórica, devendo ser essencialmente marcada pela racionalidade nas decisões dos gestores de ocasião, o que exige uma visão cognitivamente desenviesada dos fenômenos. Deve-se compreender e operar segurança pública de forma científica, ainda que orientada a um pragmatismo político-democrático. [1] Atlas de combate ao crime. Polícia Rodoviária Federal. Brasília. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/prf/pt-br/assuntos/atlas-da-prf/atlas-de-combate-ao-crime/atlas_combate-ao-crime.pdf. Acesso em: 20.fev.2023. [2] Atlas de década de ações para a segurança viária. Polícia Rodoviária Federal. Brasília. Disponível em: https://www.gov.br/prf/pt-br/imagens/atlas-portal_interativo.pdf. Acesso em: 20.fev.2023.
2023-03-02T21:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-02/alexandre-lopes-prf-pseudodilemas-seguranca-publica
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Senso Incomum
Ainda o ponto fulcral do direito hoje: o que é um precedente?
1. E continua a desobediência ao Superior Tribunal de Justiça. E por quê? Porque não temos (ainda) um "sistema de precedentes" Leio no ConJur mais uma — justa — reclamação de ministro do STJ contra descumprimento de "precedentes" da corte. O ministro Schietti mais vez coloca na mesa o problema (leia aqui). O problema é recorrente. Já escrevi aqui dizendo que talvez o problema esteja na seguinte questão: não temos um sistema de precedentes. E teses não são precedentes. Enquanto não enfrentarmos isso de frente continuaremos no mesmo patamar. O STJ e o STF "compraram" uma ideia equivocada sobre o conceito de precedente: por ela, os Tribunais Superiores "são cortes de precedentes". Isso, com a devida vênia, não existe em nenhum país do mundo. E por uma razão: precedentes são contingenciais; jamais são feitos para decidir casos futuros. Peço desculpas por me repetir. Veja-se os seguintes textos e livro — aqui, aqui, aqui, aqui (e livro). 2. O que é, efetivamente, um "precedente" que possa ser invocado na forma do artigo 489, do CPC (e do 315 do CPP)? Eis o ponto. Outro dia outra notícia me chamou a atenção: "Desrespeito a um único acórdão não é ofensa a jurisprudência, diz STJ". No recurso, a parte trouxe à tona o artigo 489, §1º, VI, que diz que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que "deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento". Não quero discutir a questão de fundo, sobre de onde veio o "precedente" (sic) invocado pela parte. Falo da clareza do texto do inciso VI. E por qual razão um julgado não seria suficiente para ser invocado? O texto me parece claro. E que deve valer. Até ser declarado inconstitucional — o que não parece ser o caso. Todavia, o STJ redefiniu o dispositivo, para dizer que "a indicação de julgado simples e isolado não ostenta a natureza jurídica de 'súmula, jurisprudência ou precedente' para fins de aplicação do artigo 489, parágrafo 1º, VI, do CPC". Segundo a corte, para ser invocado um julgado pressupõe "multiplicidade de julgamentos no mesmo sentido". 3. O que é razão de decidir stricto sensu de um julgado? A sua holding? Vejam o interessante caso do in dubio pro usuário de drogas quando há dúvida sobre a quantidade Cabe a indagação: por que um julgado importante não é precedente? Vamos fazer um teste? A 6ª Turma do STJ decidiu, recentemente, que a existência de dúvida razoável sobre se uma pessoa flagrada com drogas é traficante ou usuário deve ser resolvida pela adoção de interpretação mais favorável ao réu, mesmo que a ação penal ainda esteja em andamento. Assim, deu provimento ao recurso em Habeas Corpus para desclassificar a conduta imputada a um homem que estava sendo processado por tráfico de drogas. Ele agora responde por consumo pessoal. Como se chega a um resultado de julgamento? Parece evidente que, em circunstâncias similares, poderei invocar o precedente acima na forma dos artigos 489 e 315. A holding (o princípio) é: a dúvida na aferição da tipificação em casos de crime de entorpecentes em face da quantidade deve favorecer o indiciado-réu. Mas vou mais longe, para dizer que até mesmo é possível invocar o dubio pro réu para além desse caso, revogando o antigo "in dubio pro societate". Eis a força de um julgado. Eis a força do que é verdadeiramente um precedente. Sim, aqui, se levarmos a sério o sentido de precedente, o julgado antes elencado pode ser invocado no caso seguinte. E o próprio tribunal terá de o aplicar, a não ser se fizer um distinguishing. 4. Por que volto a repetir: o que é isto — o precedente? Uma decisão já pode ser precedente? Primeira questão: a decisão do STJ que diz que "um-acórdão-não-é-jurisprudência-mas-também-não-é-precedente", é ou não é, ela mesma, um precedente? Ela é um precedente que passou pelo filtro na "forma qualificada"? De todo modo, pelo visto, ela — a decisão — só será quando se formar jurisprudência. Mas aí será jurisprudência. Pergunto: então para que serve o instituto chamado "precedente"? Um tribunal não pode decidir o que é um precedente. Por quê? Porque o procedente exsurge das contingências. Não se fazem precedentes. Segunda questão: precedente seria uma das decisões que fazem "jurisprudência"? Quantos "precedentes" fazem jurisprudência? Três? Cinco? Dez? Dois? Por que não um a menos? Ou a mais? Ou um só? "Lenio Streck está dizendo que toda decisão judicial é um precedente"? Não. Nem de longe afirmo isso. Toda e qualquer decisão, não. Mas uma só pode. Dependendo do contexto. Dei o exemplo acima do in dubio pro reo. Isto porque sempre disse que precedente não nasce, mas se torna precedente. É por isso que sempre insisti que precedentes não são teses gerais e abstratas pro futuro. Mas meu ponto é que um "sistema de precedentes", ou mesmo a própria exigência de fundamentação do 489 — esqueçamos por um momento a tal "cultura de precedentes" —, mostra que, se há uma decisão pretérita de tribunal trazida e alegada, o tribunal, pela exigência de fundamentação, deve mostrar por que a razão de decidir não se aplica. Ora, um precedente é uma decisão paradigmática, que é reconhecida como tal pelo próprio tribunal e pelos tribunais subsequentes, a partir dos fatos que a engendraram e dos princípios que embasaram uma holding, ratio, a "razão de decidir". O ponto é: razão de decidir. Mas tanto já discuti sobre isso, tanto já briguei, que o ponto hoje nem é esse. É uma questão de fundamentação, de respeito à lei e respeito a um direito fundamental que tem o cidadão de uma resposta constitucionalmente adequada — que não tem como ser adequada se um tribunal pode decidir de forma ad hoc dar nomes às coisas. 5. Uma decisão que altera a posição do tribunal pode ou não ser invocada como precedente? Como falei em dois textos recentes (Equívocos sobre a "cultura de precedentes" à brasileira: novo round e Decisão do TJ-CE mostra que não há cultura de precedentes), qualquer decisão pode virar precedente. Ou não. De que maneira o tribunal muda de posição? Tomando uma decisão. E essa decisão que mudou uma posição não pode ser invocada como "precedente"? Se não, há que esperar novas decisões iguais? Como serão invocadas? Parece que estamos diante de um grande problema: o dos "precedentes", cuja tese o tribunal absorveu de um grupo de doutrinadores que afirmam que precedentes são feitos pro futuro (e aí está o problema, porque no mundo todo — e isso é fato — precedentes não são feitos para o futuro, porque não são leis e Judiciário não faz leis) e do alcance do artigo 489, parágrafo 1º. Explico. Se o inciso VI trata do distinguishing, havendo uma decisão de tribunal que decidiu a matéria discutida em um determinado sentido que lhe seja favorável, por qual razão a parte não pode invocar essa decisão como sendo um precedente? Pense-se, como falei acima, em um julgado do próprio STJ ou até mesmo do STF...! Se não pode invocar na forma do artigo 489, isto quererá dizer, então, que qualquer decisão (ou duas ou três) que ainda não receberam o "selo de qualidade" podem ser reproduzidas ou ignoradas sem critério, pela simples razão de que não são "precedentes" e ainda não são "jurisprudência"? Sendo mais claro: vingando essa posição, isto significará dizer que o próprio tribunal estará autorizado a decidir sem qualquer critério sobre o enfrentamento (ou não) das razões jurídicas adotadas em julgamento anterior, uma vez que a decisão que gera (por ser uma só) não poderá vir a servir de precedente ou jurisprudência. E, é claro, essa posição jamais será considerada jurisprudência, porque não poderá ser invocada e a parte sequer poderia fazer um distinguishing que fosse. Uma boa tautologia. E, afinal, quais são os critérios epistemológicos pelos quais se distingue um precedente "comum" e um "qualificado"? 6. De que adianta o causídico invocar julgado anterior se o tribunal só aceita "precedentes qualificados"? Além disso, a ideia de que o juiz não é obrigado a enfrentar os fundamentos jurídicos deduzidos com base em julgamento anterior invocado pela parte desprestigia a própria noção de contraditório como direito de influência e proibição de decisão surpresa, uma das bandeiras do CPC/2015. Logo, de que adianta ao advogado argumentar com base em julgamentos anteriores de tribunal se esses julgamentos, por não serem "precedentes qualificados", não precisam ser enfrentados pelo próprio tribunal? Mas o tribunal poderia fundamentar a sua decisão com "meros julgados" sem força de "precedente qualificado"? Querem constatar? Um acordão do STJ para dizer que não basta mencionar um julgamento para ser precedente nos termos do inciso VI do artigo 489 cita o AgInt no AREsp nº 2.028.275/MS que, até prova em contrário, não é nem "precedente" e nem jurisprudência (naquilo que o STJ entende por). E então? Percebem a complexidade do problema? Seria, então, a "cultura de precedentes" somente a "cultura dos precedentes qualificados", rótulo atribuído apenas aos precedentes oriundos dos Tribunais Superiores ou de procedimentos voltados a firmar "teses jurídicas"? O problema persiste... 7. Diante disso, como fica o enunciado "desrespeito a um único acórdão não é ofensa à jurisprudência"? O caso Marbury não seria precedente? Brady v. Maryland também? E há diferença entre decisões em habeas corpus e de outros ramo do direito? Insisto: um precedente não nasce precedente. Torna-se! Isto quer dizer que qualquer decisão, por circunstâncias das mais variadas, pode vir a se tornar um precedente. Mais: quando um tribunal de um estado ou TRF julga um caso e ali descobre uma nova linha de raciocínio jurídico, por qual razão estaria proibido que esse entendimento venha a mudar toda a cadeia discursiva no plano nacional? Não fosse assim e teríamos um sistema petrificado. É por isso é que precedentes não são feitos para o futuro. E quando for Habeas Corpus? Quando se decide, em sede de HC, sobre decisão que deveria ter garantido a liberdade do paciente (HC 780.947), isso não é precedente no genuíno sentido para ser invocado no caso seguinte? E quando o STJ decide que não cabe condenação baseado em fotografia da arma, isso não é precedente per se? E quando o STJ decide que o Habeas Corpus pode ser usado para averiguar se há excesso de prazo na etapa de formação da culpa, e, consequentemente, na manutenção de medidas cautelares contra a pessoa que é alvo de investigação criminal (RHC 147.043), isso não é precedente válido? Cidadãos (réus, pacientes, indiciados), em situações similares, não podem ter a seu favor as razões de decidir desses precedentes? Ainda uma questão: no Brasil há que se cuidar para que uma frase ou uma pequena parte de um julgado não vire "precedente" tipo prêt-à-porter. No caso, em quantos processos uma manchete do ConJur será repetida para afastar, por exemplo, um precedente? Por exemplo, veja-se o problema quando for um julgado do STF ou um julgamento de Habeas Corpus na Suprema Corte ou no STJ: "Desrespeito a um único acórdão não é ofensa a jurisprudência, diz STJ". Para reflexão! É por isso que, parafraseando o famoso livro de Lionel Shriver, precisamos falar sobre precedentes. 8. Sempre é difícil dizer qual o ponto mais sensível do sentido de "precedente": talvez o principal seja "um precedente não é uma regra geral e tampouco é algo pro futuro" Mientrastanto, reforço o que venho falando sobre precedentes: não há multiplicidade de decisões que antecederam Marbury v. Madison. Pelos critérios brasileiros, não seria precedente? Não se trata de dizer que lá é common law e, aqui, civil law. Nos dois sistemas, precedente não é feito para o futuro. E lembro que os assentos portugueses foram considerados inconstitucionais. Eram como as nossas "teses" ou "súmulas". Temos de reler Castanheira Neves, para citar apenas um autor importante. Por último: quando digo que precedentes não podem ser teses abstratas "tipo leis" e que não devem ser feitas pro futuro, não me sustento apenas em um parte da família dos sistemas jurídicos. Lembro, a propósito, que o artigo 12, parágrafo 3º, da Lei Orgânica do Poder Judiciário da Espanha, diz que também não poderão os juízes e tribunais ditar instruções, de caráter geral ou particular, tratando da aplicação ou interpretação do ordenamento jurídico. Isto é: juízes e tribunais emitem normas particulares; em nenhum caso emitem normas gerais e abstratas. Ou seja, não parece que nossas teses teriam guarida em países como Espanha, Portugal, entre outros. Sobre o que é um precedente, diz um dos doutrinadores espanhóis expert no assunto, Francisco Laporta: se em um caso anterior se coloca uma solução razoável ou justa, essa solução será também razoável ou justa para um caso posterior semelhante a esse em seus aspectos relevantes (sua holding). Isso serve para precedentes horizontais e verticais.
2023-03-02T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-02/senso-incomum-ainda-ponto-fulcral-direito-hoje-precedente
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Estúdio ConJur
FGV abre inscrições para evento sobre liberdade de expressão no RJ
A FGV Conhecimento abriu inscrições para o seminário "Liberdade de Expressão, Redes Sociais e Democracia", que acontecerá no próximo dia 13 de março no Centro Cultural da Fundação Getulio Vargas, que fica na Praia de Botafogo, 186, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. As inscrições são gratuitas. O evento contará com debates a respeito da governança digital nos três Poderes sob a perspectiva do Estado Democrático de Direito. Também estarão em pauta a função do Judiciário na democracia, proteção de dados, regulamentação da inteligência artificial e o papel das grandes empresas de tecnologia. Os painéis contarão com juristas e autoridades governamentais, políticas, empresariais e jornalísticas. A programação terá a participação dos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, além de Luis Felipe Salomão, Marco Aurélio Bellizze, Antonio Saldanha Palheiro e Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça.  O seminário é promovido pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, em parceria com a Rede Globo e com apoio do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Clique aqui para se inscrever. Confira a programação completa: 9h30: Abertura Luis Felipe Salomão: ministro do STJ, corregedor nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, professor da FGV e coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento);  Carlos Ivan Simonsen Leal: presidente da FGV; Antonio Cláudio Ferreira Netto: diretor Jurídico Corporativo da Globo; e  Andrei Augusto Passos Rodrigues: diretor-geral da Polícia Federal.  10h15: Democracia digital Gilmar Mendes: ministro do STF e professor do IDP. 10h45: O papel do Judiciário na democracia Alexandre de Moraes: ministro do STF, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, professor associado da Universidade de São Paulo e professor titular pleno da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 11h30: Painel 1 - Os três Poderes da República e a governança digital — uma visão contemporânea Moderador:   Luis Felipe Salomão: ministro do STJ, corregedor nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, professor da FGV e coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento). Palestrantes: Rodrigo Pacheco: presidente do Senado Federal; Flávio Dino: ministro da Justiça e Segurança Pública; e Patricia Campos Mello: editora-geral e colunista da Folha de S.Paulo. 13h: Almoço 14h30: Painel 2 - Governança digital — big techs, proteção de dados, inteligência artificial e regulação Moderador: Marco Aurélio Bellizze: ministro do STJ, professor da FGV e coordenador acadêmico da FGV Conhecimento. Palestrantes: Otávio Margonari Russo: diretor de Combate aos Crimes Cibernéticos da Polícia Federal; Andreia Saad: diretora Jurídica Tributária, Societária e Regulatória da Globo; Gustavo Binenbojm: procurador do Estado do Rio de Janeiro, professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor da FGV e professor emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro; Caroline Tauk: juíza federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e coordenadora acadêmica do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento; e Marcelo Lacerda: diretor de Políticas Públicas e Relações Governamentais do Google Brasil. 16h: Painel 3 - Comunicação, tecnologia e liberdade de expressão Moderador: Heraldo Pereira: jornalista da Globo e mestre em Direito pela Universidade de Brasília.  Palestrantes: Antonio Claudio Ferreira Netto: diretor Jurídico Corporativo da Globo; Antonio Saldanha Palheiro: ministro do STJ e coordenador acadêmico da FGV Conhecimento; André Mendonça: ministro do STF; Benedito Gonçalves: ministro do STJ e do TSE; Monica Guise: gerente de Políticas Públicas para Integridade da Meta no Brasil; e Orlando Silva: deputado federal. 17h30: Encerramento Luis Felipe Salomão: ministro do STJ, corregedor nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, professor da FGV e coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento); Elton Leme: desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, professor da FGV e coordenador adjunto do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento.
2023-03-03T14:08-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-03/fgv-abre-inscricoes-evento-liberdade-expressao-rj2
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Estúdio ConJur
Livro Mosaico de estudos jurídicos será lançado na 3ª em Brasília
O livro Mosaico de estudos jurídicos (Coleção IDP), que será lançado na próxima terça-feira (7/3) em Brasília, reúne artigos que abordam diversos temas atuais e relevantes do Direito brasileiro.  A obra foi idealizada por seus coordenadores, os advogados Gabriela Lima e Luiz Ros, como forma de celebrar a conclusão do mestrado em Direito Constitucional de alunos da turma de 2019 do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) — da qual fizeram parte. A partir dessa ideia, o grupo de 15 autores, composto por Ana Beatriz Brusco, Ana Paula Villas Boas, Bárbara Bueno, Éder Machado, Eurípedes Souza, Flávia Ximenes, Geórgia Valverde, João Roberto Silva, João Sérgio dos Santos, José Luiz Galvão, Marcos Pereira, Maria Letícia Gontijo e Matheus Barra, transformou suas dissertações de mestrado em artigos que tratam dos mais diversos temas. Entre eles, política educacional, modulação de efeitos em matéria tributária, teoria dos jogos, proteção de dados e Direito Penal Econômico. Assim, os fragmentos textuais de cada aluno foram reunidos em suas diferentes cores, formas e tamanhos, formando um belo mosaico jurídico. A obra conta com a apresentação do professor Paulo Gonet, que definiu o livro como sendo de interesse contemporâneo, composto por artigos “marcados pela sinceridade de propósitos intelectuais”. O prefácio é do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que qualificou a obra como “atual e provocativa”. O Mosaico de estudos jurídicos será lançado na terça-feira (7/3), a partir das 18h, no IDP Norte, que fica na SGAN 609, Módulo A, Asa Norte, em Brasília.
2023-03-03T13:39-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-03/livro-mosaico-estudos-juridicos-lancado-brasilia
academia
Opinião
Opinião: Revista jurídica veta autoria de IA em textos
A Civil Procedure Review (CPR), uma revista eletrônica e de acesso gratuito especializada no campo do Direito Processual com mais de 13 anos de publicações [1],  diante do enorme impacto do uso da inteligência artificial (IA) na academia (sobretudo por meio de aplicações que empregam os chamados "modelos de processamento de linguagem natural", a exemplo do ChatGPT — talvez a novidade tecnológica mais impactante nos últimos anos) decidiu, em linha com diretrizes europeias, introduzir duas novas regras para a publicação de textos acadêmicos em suas edições: Regra 1: Nenhuma ferramenta de IA pode ser indicada como coautora de texto acadêmico submetido à Civil Procedure Review para publicação. Todo o conteúdo do texto acadêmico deve ser produzido exclusivamente pelo (s) autor (es) humano (s). Regra 2: O uso de ferramentas de IA e a respectiva extensão/função, ainda que em caráter auxiliar, devem ser revelados em todos os textos acadêmicos submetidos à Civil Procedure Review para publicação. Os autores devem informar claramente a utilização da IA na produção do texto, a função e o modo como foi empregada, a fim de garantir transparência e honestidade acadêmica. Essas regras visam a garantir integridade acadêmica, transparência e qualidade dos trabalhos publicados, tendo sido inspiradas numa recente decisão da revista Nature, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo [2]. A primeira regra estabelece que a IA não pode ser coautora de artigos publicados na CPR. Essa medida pretende evitar equívocos na atribuição da autoria dos textos. Embora a IA seja uma tecnologia cada vez mais utilizada em diversas áreas da pesquisa científica, o que evidentemente inclui os campos de investigação de um jurista, é importante ressaltar que a tecnologia não tem a capacidade de criar conhecimento novo (embora possa elaborar bons textos com base no conhecimento humano acumulado a que tenha acesso), muito menos emitir juízos valorativos. O crédito pela autoria de um artigo deve ser atribuído apenas a indivíduos que efetivamente contribuíram para sua concepção e produção [3] [4]. De outro lado, a IA não pode assumir responsabilidade pelo conteúdo do texto, o que, em todo periódico científico, traz consigo relevantes questões de originalidade, potencial infringência de direitos autorais e outros ilícitos passíveis de gerar sanções criminais e civis. É incompatível com a primeira regra a submissão à CPR de obras totalmente criadas a partir da IA (computer-gerated works), que utilizem exclusivamente o resultado (output) do trabalho advindo de uma aplicação de IA gerado a partir do comando (input) formulado pelo respectivo usuário. Obras produzidas com a ajuda de programas ou ferramentas de IA, mas que ainda exigem uma contribuição significativa e tomada de decisão de um criador humano (computer-assisted works), são admitidas, sujeitas ao cumprimento da Regra 2 [5]. A segunda regra estabelece que o uso de IA deve ser revelado pelo autor do artigo, juntamente com a extensão e a função dessas ferramentas em seu trabalho. Essa medida visa a aumentar a transparência e a responsabilidade dos autores em relação ao uso dessas ferramentas tecnológicas, bem como fornecer aos editores, revisores e leitores informações importantes sobre a metodologia utilizada na pesquisa e na produção do texto. A análise de quais informações devem ser apresentadas pelo autor, relativamente ao uso de IA na elaboração do seu trabalho, pode variar caso a caso. Todavia é possível vislumbrar um conjunto de diretrizes, ou boas práticas de integridade acadêmica, que devem orientar o autor da obra que se utiliza de IA no cumprimento do seu dever de transparência: 1) indicar quais aplicações de IA foram utilizadas pelo autor da obra; 2) apontar quais foram os inputs utilizados para provocar o funcionamento das aplicações de IA; 3) indicar quais outputs foram gerados a partir dos inputs pelas aplicações de IA; e 4) apontar em que medida esses outputs foram utilizados no seu trabalho, bem como os critérios racionais/a fundamentação do autor da obra para seu aproveitamento ou descarte. Embora a IA possa oferecer algumas vantagens no processo de produção e edição de textos acadêmicos, nos campos de investigação de um jurista (filósofo ou cientista de um objeto cultural), é importante também considerar suas possíveis desvantagens, usando essa ferramenta com cautela e consciência de suas limitações: a) Aparentes vantagens do uso acadêmico de IA que se utiliza de processamento de linguagem natural, como ChatGPT, e da IA em geral: a.1) pode ajudar na revisão e edição de textos, evitando erros de ortografia, sugerindo melhorias na redação, clareza, objetividade, organização e estruturação do texto, e até mesmo ajudando na elaboração de referências bibliográficas e citações corretas; a.2) pode também auxiliar na organização de informações; a.3) pode reduzir o tempo e os custos envolvidos na produção e publicação de artigos acadêmicos, permitindo que mais pesquisadores possam contribuir para o avanço do conhecimento nesta vasta área. b) Aparentes desvantagens do uso acadêmico da IA que se utiliza de processamento de linguagem natural, como ChatGPT, e da IA em geral: b.1) possibilidade de que o conteúdo produzido pela IA reflita o que tem se convencionado chamar de "alucinação", uma associação ou manipulação de outros dados existentes, apresentada de maneira aparentemente ordenada e convincente, mas que na realidade se verifica errônea, inválida ou injustificada do ponto de vista científico b.2) falta de compreensão contextual, pois, embora a IA possa gerar textos precisos e bem escritos, muitas vezes falha em compreender o contexto e nuances necessárias em trabalhos acadêmicos, sobretudo quando o respectivo objeto é cultural, como aqueles relacionados ao Direito; b.3) aumento do risco de plágio, em suas diversas variedades: ao usar a IA para gerar partes de seus trabalhos, o texto gerado pode ser reutilizado/re-sugerido, pois a IA pode não ter a capacidade de identificar e citar corretamente fontes de informação; b.4) o uso excessivo da IA pode criar uma dependência da tecnologia, o que pode limitar a capacidade dos acadêmicos de pensar criticamente e desenvolver habilidades de escrita por conta própria. Essas preocupações levaram os editores a estabelecer, além dos critérios acima explicitados, uma diretriz procedimental no processo de revisão: todos os textos passarão por ferramentas de análise de conteúdo, para detecção do uso de IA. Com o perdão pelo clichê, as transformações históricas da tecnologia sempre geraram intensos debates. O certo é que, também nas ciências sociais aplicadas, não se deve adotar uma postura ludista. A IA chegou, e isso é inexorável – o que não significa que esta decisão da CPR seja uma apologia a essas ferramentas, muito menos um ato definidor do bom e do mau uso acadêmico da IA. Mas é preciso imediatamente dar este passo para o aperfeiçoamento do compliance da produção científica em Direito Processual, o que para a CPR pareceu imprescindível, importante e inevitável, na linha das boas práticas acadêmicas e editoriais internacionais. [1] https://www.civilprocedurereview.com/revista, atualmente com 13 volumes (cada volume, que corresponde a um ano civil, possui três números). A CPR conta com artigos provenientes de autores de diversas nacionalidades (os textos podem ser publicados em português, inglês, alemão, espanhol, francês e italiano). A revista é o veículo oficial da ProcNet — Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo Contemporâneo, e do Programa de Pós-graduação da Faculdade Baiana de Direito. O lema da revista é "ab omnibus pro omnibus", "por todos, para todos", e atualmente está posicionada no estrato “A4” do Qualis da Capes (resultado provisório). [2] A propósito, https://www.nature.com/articles/d41586-023-00191-1, acesso em 01º de março de 2023. [3] A propósito: https://www.nature.com/articles/d41586-023-00191-1. [4] O artigo 7º da Lei de Direitos Autorais brasileira estabelece que são consideradas obras intelectuais sujeitas a proteção as "criações do espírito". O art. 11 da referida lei estabelece que "autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica". A linguagem da lei favorece a conclusão de que apenas seres humanos podem ser titulares de direitos autorais sobre criações, ao menos no sistema jurídico brasileiro, a cuja jurisdição se submete a CPR. [5] Sobre computer-generated works e computer-assisted works, conectando os dois conceitos ao tema do Copyright nos Estados Unidos da América, cf. DENICOLA, Robert. "Ex Machina: Copyright Protection for Computer Generated Works". Rutgers University Law Review. Newark, 2016, V. 69, N. 1 p. 251-287.
2023-03-03T12:21-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-03/opiniao-revista-juridica-veta-autoria-ia-textos
academia
Opinião
Hélio Sousa: Nuances da dicotomia mens legis/mens legislatoris
Ponto de suma importância a quem objetiva discorrer sobre a Hermenêutica Jurídica é entendermos as nuances decorrentes da dicotomia entre mens legislatoris e mens legis. Tal entendimento tem o condão de alterar, diametralmente, o entendimento do julgador, impactando diretamente no resultado dos julgados, motivo pelo qual assentada está a importância desse ponto para o fim que se propõe. Conforme exposição de Tércio Sampaio Ferraz Jr [1], estes dois grupos podem ser classificados como subjetivistas e objetivistas, respectivamente. Aqueles que defendem que o entendimento motriz da interpretação deve ser a mens legislatoris, assim o fazem com fulcro na ideia de que ao se conseguir identificar a vontade do legislador seria possível alcançar o sentido da lei. Tal construção tomou forma, principalmente, com a "Jurisprudência dos Conceitos", na Alemanha. Assim, a baliza interpretativa dos subjetivistas é a de que não se pode desdenhar o processo cognitivo-construtor das leis (principalmente as justificativas, discussões e premissas elaboradas nas respectivas Casas Legiferantes), sendo suas bases e fundamentos indispensáveis para o correto entendimento do sentido da lei. Os objetivistas, que ganharam forma com a "Jurisprudência dos Interesses", também na Alemanha, arrazoam, por outro lado, que a alcunha "vontade do legislador" não passa de ficção, visto que a pluralidade de congressistas impede a personificação de "um legislador", do qual a vontade deveria ser considerada. Ademais, sob o prisma formal, aduzem que o que se chama de "vontade do legislador" é mera competência legal, já que a forma da lei deve ser aquela prevista no próprio ordenamento jurídico [2]. Além dos argumentos da vontade e formal, há ainda os argumentos da confiança e da integração. Conforme o primeiro, o intérprete deve fomentar a confiança nas palavras do texto normativo, as quais devem ser inteligíveis per si. Já para o segundo, deve-se contemplar a contínua mutação das relações sociais, de modo a se validar a criação jurisprudencial do direito [3], cujo fundamento é a mens legis, instituto mais maleável e adaptável às mudanças preconizadas pela dinamicidade social. A reação dos subjetivistas é sem embargo. Para estes, recorrer à interpretação histórica e às discussões que construíram a lei é imprescindível, máxime pela impossibilidade de se ignorar o legislador originário. Outrossim, afirmam que o sistema sugerido pelos objetivistas, na verdade, criaria inusitado subjetivismo, alçando o intérprete não somente à estatura de mais "sábio" que o legislador, mas também mais "sábio" que a própria lei. Ademais, criar-se-ia perigoso desvirtuamento da segurança jurídica, visto que todos ficariam à mercê do intérprete [4]. Por outro lado, citado por Eros Grau, Carlos Maximiliano aduz que: "A vontade do legislador não será a da maioria dos que tomam parte na votação da norma positiva; porque bem poucos se informam, com antecedência, dos termos do projeto em debate; portanto não podem querer o que não conhecem. Quando muito, desejam o principal: por exemplo, abaixar ou elevar um imposto, cominar ou abolir uma pena. Às vezes, nem isso; no momento dos sufrágios, perguntam do que se trata, ou acompanham, indiferentes, os leaders, que por vez prestigiam apenas o voto de determinados membros da Comissão Permanente que emitiu parecer sobre o projeto. Logo, em última análise, a vontade do legislador é a da minoria; talvez de uma elite intelectual, dos componentes, que figuram nas assembleias políticas em menor número sempre" [5]. Maximiliano reduz a alcunha "vontade do legislador" como a vontade de cada pessoa física componente do Parlamento, o que, a meu ver, não se coaduna com a significância holística da expressão. Deve-se compreender, ao se falar em "vontade do legislador", como a expressão motriz social-democrática que impulsiona o Parlamento à execução de alterações legislativas. Diversas leis são alteradas a partir de determinado contexto social, a partir de um clamor ou anseio da sociedade; desta feita, não se pode simplesmente desconsiderar todos os fatores sociais-democráticos que impulsionaram o Parlamento a editar leis, como se um filho, ao ter seu cordão umbilical cortado quando em seu nascimento, deixasse de ser filho daquela que lhe deu à luz. A celeuma, como sói ocorrer, se dá como se estivéssemos diante de verdadeiro "cabo-de-guerra", onde em uma extremidade está o Poder Legislativo (dando eco à voz da vontade do legislador), e na outra o Poder Judiciário (defendendo a vontade da lei, afinal, maior poder e liberdade teria aquele que interpreta e decide). A discussão de tão importante método interpretativo se mostra anêmica e pobre se o cerne argumentativo foi a mantença de poder pelo Legislativo ou Judiciário. Ao partirmos do dínamo democrático, do qual todo poder emana do povo, a vontade deste povo, vivificada por seus representantes ou mesmo pelas demandas da sociedade junto a estes, não pode ser desprezada, ou mesmo mitigada, dando à lei vontade absoluta, a despeito dos fatores que influenciaram seu nascimento. Entendo que não há vinculação automática entre o intérprete e os motivos motores da edição da lei; todavia, não há, de igual modo, desprendimento absoluto daquele a estes. Desta feita, penso que se deve aferir se aqueles motivos fundantes ainda persistem no seio da Sociedade (aqueles que impulsionaram e fundamentaram a edição da lei); caso a resposta seja positiva, devem ser considerados; caso seja negativa, deve-se aplicar a lei em seu caráter dinâmico e equitativo. Eros Grau, ao citar Gadamer, apregoa: O jurista sempre se refere à lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo há de ser determinado em face do caso ao qual ela deve ser aplicada. Para alcançar o conhecimento exato desse conteúdo normativo é necessário recorrer ao conhecimento histórico do sentido originário; por isso, o intérprete do direito há de considerar a situação histórica conferida à lei pelo ato legislativo. Não pode ele, no entanto, sujeitar-se, por exemplo, aos debates travados no Parlamento em torno da intenção dos que elaboraram a lei. Pelo contrário, está obrigado a reconhecer que as circunstâncias sofreram alterações e, consequentemente, a determinar em novos termos a função normativa da lei [6]. Reitero, portanto, que o jurista, de fato, não está vinculado aos motivos motores da edição das leis à época em que foram editadas, naquilo em que tais motivos tenham sido superados ou não existam mais. Por outro lado, não se deve pura e simplesmente desconsiderar os fatores sociais que ensejaram a edição de tal norma, tratando-a, após sua edição, como um ser individual, desprendido de qualquer teleologia que lhe fundamente. Conquanto não deva vinculação automática, deve-se eliminar os abismos temporais (existentes entre o contexto da época e o atual), tomando mão da exegese, considerando na interpretação presente aqueles motivos de outrora ainda subsistentes no tempo atual. Assim, superando a dicotomia mens legislatoris/mens legis, que, na ótica do poder, se traduz pelo dualismo Poder Legislativo/Poder Judiciário, devemos atentar para a motriz geradora do poder, ou seja, o povo. Repito: o povo é o centro do poder ao se considerar os motivos fundantes de outrora e ainda existentes no presente como fatores a serem aplicados na interpretação da lei, bem como continua sendo o centro quando é a causa dos fatores que conferem dinamicidade ao manejo do direito, quando superadas as razões sociais-democráticas fundantes da lei. Penso que, destarte, o povo (detentor do poder) é prestigiado tanto no passado - povo do passado — (mens legislatoris), quanto no presente — povo do presente — (mens legis), como no futuro — povo do futuro —, visto que, neste último aspecto, se garante a centralidade do povo como motor teleológico de eventuais ajustes interpretativos realizados pelos intérpretes da lei. [1] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003. p. 266. [2] Ibid., p. 267. [3] Ibid., p. 267. [4] Ibid., p. 267-268. [5] MAXIMILIANO. p. 33-51 apud GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116. [6] Gadamer. p. 388-390 apud GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003., p. 110-111.
2023-03-03T10:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-03/helio-sousa-nuances-dicotomia-mens-legismens-legislatoris
academia
Tribunal do Júri
(Des)necessidade da revisão nonagesimal da preventiva de foragido
O artigo 316, parágrafo único, do CPP — incluído pela Lei nº 13.964/2019 — edificou um marco temporal para a revisão da prisão preventiva, determinando que o órgão emissor da decisão reanalise a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias, "mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal" [1]. A fixação de um prazo revisional está umbilicalmente ligada ao número de presos provisórios no país e às condições do nosso sistema penitenciário. A legislação foi igualmente inspirada por ações do CNJ, destacando-se a realização de mutirões carcerários — iniciando-se no ano de 2008 — e a edição de resoluções, determinando-se a revisão de prisões provisórias e definitivas (Resolução Conjunta CNJ e CNMP nº 1, de 29/9/2009) e o impulso dos processos envolvendo acusados presos (Resolução nº 66/99). Nesse contexto, o conjunto de dispositivos fomentou a criação de comandos nos códigos de normas das justiças estaduais, recomendando que magistrados de todo o país observem a obrigatoriedade de revisão das prisões preventivas. Vejamos, por exemplo, o que consta do Código de Normas do Foro Judicial da Corregedoria-Geral da Justiça do TJ-PR: "Art. 1030. O(A) Juiz(íza), decidindo pela prisão preventiva, determinará a expedição do respectivo mandado no Sistema Projudi, com lançamento no BNMP. § 1º. O(a) Juiz(íza) deverá revisar a necessidade da manutenção da prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias. § 2º. Compete à secretaria o controle do prazo estipulado no § 1º e o encaminhamento dos autos à conclusão em tempo hábil, antes do vencimento, para análise da manutenção ou não da prisão." Contudo, o claro comando legal [2] — que estipula uma obrigação, prazo e sanção — sofreu significativa reanálise a partir de decisões exaradas pelas cortes de sobreposição. Em 13/11/2020, o Plenário do STF decidiu que o transcurso do prazo previsto no dispositivo não acarreta automaticamente a revogação da prisão preventiva, devendo o magistrado competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos (SL nº 1.395, relator: ministro Luiz Fux, DJe de 13/11/2020). Nesse ponto, a mesma decisão foi reiterada pelo Plenário do STF, quando do julgamento das ADIs 6.581 e 6.582, relator: ministro Edson Fachin [3]. Ademais, o STF aclarou que a obrigatoriedade da reavaliação periódica da prisão se encerra com a cognição plena pelo tribunal de segundo grau de jurisdição, "não se aplicando às prisões cautelares decorrentes de sentença condenatória de segunda instância ainda não transitada em julgado". Transcrevemos: "CONSTITUCIONAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL. ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 13.964/2019. DEVER DO MAGISTRADO DE REVISAR A NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA A CADA NOVENTA DIAS. INOBSERVÂNCIA QUE NÃO ACARRETA A REVOGAÇÃO AUTOMÁTICA DA PRISÃO. PROVOCAÇÃO DO JUÍZO COMPETENTE PARA REAVALIAR A LEGALIDADE E A ATUALIDADE DE SEUS FUNDAMENTOS. OBRIGATORIEDADE DA REAVALIAÇÃO PERIÓDICA QUE SE APLICA ATÉ O ENCERRAMENTO DA COGNIÇÃO PLENA PELO TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. APLICABILIDADE NAS HIPÓTESES DE PRERROGATIVA DE FORO. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. PROCEDÊNCIA PARCIAL. (...). 3. A inobservância da reavaliação prevista no dispositivo impugnado, após decorrido o prazo legal de 90 (noventa) dias, não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos. Precedente. 4. O art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal aplica-se até o final dos processos de conhecimento, onde há o encerramento da cognição plena pelo Tribunal de segundo grau, não se aplicando às prisões cautelares decorrentes de sentença condenatória de segunda instância ainda não transitada em julgado. 5. O artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal aplica-se, igualmente, nos processos em que houver previsão de prerrogativa de foro. 6. Parcial procedência dos pedidos deduzidos nas Ações Diretas." (ADI 6.581, relator(a): EDSON FACHIN, relator(a) p/ acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 9/3/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-084 DIVULG 02-05-2022 PUBLIC 03-05-2022). A mesma orientação — quanto ao prazo nonagesimal — passou igualmente a ser seguida pelo STJ, por sua 5ª e 6ª Turmas. Ilustro: "(...). O prazo de 90 dias para reavaliação dos fundamentos da prisão (conforme disposto no art. 316, parágrafo único, do CPP) não é peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato não implica automático reconhecimento da ilegalidade da prisão, tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade. (...)" (AgRg no HC nº 722.167/SP, relator: ministro Olindo Menezes (desembargador convocado do TRF 1ª Região), 6ª Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 25/11/2022.) [4]. "PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, ROUBO, FURTO, ESTELIONATO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E LAVAGEM DE DINHEIRO. MERA REITERAÇÃO DE OUTRO WRIT. DESCABIMENTO. REVISÃO NONAGESIMAL DA CUSTÓDIA. ENTENDIMENTO DO STF NA ADI 6.581. EXCESSO DE PRAZO NÃO CONFIGURADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. (...). 2. Conforme a decisão do STF na ADI 6.581, a falta de revisão da prisão preventiva a cada 90 dias não enseja automaticamente a revogação da custódia ou o reconhecimento de qualquer nulidade, mas somente a interpelação do juízo responsável para que faça a reavaliação legalmente determinada. (...)" (AgRg no HC nº 756.968/MT, relator: ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 14/11/2022, DJe de 18/11/2022.) [5]. Do que restou até o presente momento demonstrado — ao menos à luz da jurisprudência uníssona dos nossos tribunais de sobreposição — é possível concluir: (1) que a inobservância do prazo revisional de 90 dias não importa na revogação automática da prisão preventiva; (2) que decorrido o prazo, o magistrado deve ser provocado a reavaliar a legalidade e a atualidade dos fundamentos que motivaram a decretação da prisão preventiva. Assim, partindo das premissas acima, seria possível conjecturar: se o prolator da decisão não é mais obrigado a reanalisar (ex officio) a prisão do preso preventivamente no prazo nonagesimal — sob pena de tornar a prisão ilegal —, permaneceria compelido a revisar as prisões dos indiciados/acusados foragidos? A resposta caminha num único sentido: não! Historicamente, identificamos que as razões justificadoras das revisões das prisões preventivas sempre estiveram atreladas aos acusados presos, e nunca aos soltos/foragidos. A Resolução Conjunta nº 1, de 29/09/2009, do CNJ e CNMP, determinava a revisão (mínima) anual da legalidade e da manutenção das prisões provisórias e definitivas, bem como, das medidas de segurança e internações de adolescentes em conflito com a lei: "Art. 1º As unidades do Poder Judiciário e do Ministério Público, com competência em matéria criminal, infracional e de execução penal, implantarão mecanismos que permitam, com periodicidade mínima anual, a revisão da legalidade da manutenção das prisões provisórias e definitivas, das medidas de segurança e das internações de adolescentes em conflito com a lei. Art. 2º. A revisão consistirá, quanto à prisão provisória, na reavaliação de sua duração e dos requisitos que a ensejaram; quanto à prisão definitiva, no exame quanto ao cabimento dos benefícios da Lei de Execução Penal e na identificação de eventuais penas extintas; e, quanto às medidas socioeducativas de internação, provisórias ou definitivas, na avaliação da necessidade da sua manutenção (art. 121, § 2º, da Lei 8069/90) e da possibilidade de progressão de regime." A Resolução nº 66/2009 do CNJ, por sua vez, determinava que o magistrado investigasse as razões da demora do trâmite processual ou investigativo caso se deparasse com um feito envolvendo um réu preso provisoriamente há mais de três meses e, posteriormente adotasse providências para o seu impulso, comunicando a Corregedoria Geral de Justiça ou à Presidência do Tribunal: "Art. 3º. Verificada a paralisação por mais de três meses dos inquéritos e processos, com indiciado ou réu preso, deverá a Secretaria ou o Cartório encaminhar os autos imediatamente à conclusão do juiz para que sejam examinados. Art. 5º. Após o exame dos inquéritos e processos, com indiciado ou réu preso, paralisados por mais de três meses, o juiz informará à Corregedoria Geral de Justiça e o Relator à Presidência do Tribunal, as providências que foram adotadas, por meio do relatório a que se refere o artigo 2º, justificando a demora na movimentação processual." Ressalta-se que o Anteprojeto de Lei do Novo Código de Processo Penal, originário da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal em 2009, já previa o reexame obrigatório da prisão preventiva no prazo de 90 dias. Porém, a referida obrigação revisional era contada "do início da execução da prisão ou da data do último reexame", ou seja, partia da lógica premissa que o reexame apenas deveria ser efetivado caso o acusado já estivesse preso! Vejamos: "Art. 550. Qualquer que seja o seu fundamental legal, a prisão preventiva que exceder a 90 (noventa) dias será obrigatoriamente reexaminada pelo juiz ou tribunal competente, para avaliar se persistem, ou não, os motivos determinantes da sua aplicação, podendo substituí-la, se for o caso, por outra medida cautelar. § 1º. O prazo previsto no caput deste artigo é contado no início da execução da prisão ou da data do último reexame. § 2º. Se, por qualquer motivo, o reexame não for realizado no prazo devido, a prisão será considerada ilegal" [6]. Quem conhece as demandas que envolvem o atuar numa vara criminal, com sua elevada gama de medidas urgentes e de relevância pública, sabe o quanto é custoso para a boa prestação jurisdicional destinar tempo significativo para reanalisar feitos que envolvem acusados/investigados foragidos, como se a situação de ausência não justificasse, por si só, a necessidade de manter-se a validade (e atualidade) da prisão decretada mas ainda não efetivada. Exemplificadamente, compulsando o acervo da 2ª Vara Privativa do Tribunal do Júri de Curitiba, constatamos a existência de aproximadamente 80 processos envolvendo acusados foragidos e com prisões preventivas decretadas. Nesse contexto, em apenas um ano, seria necessário proferir (ex officio) 320 decisões reanalisando os decretos prisionais em aberto, esforço que obstaria o estudo de outros casos de maior relevância envolvendo acusados presos. O esforço não é apenas do magistrado, mas igualmente de servidores que precisam, em tempo oportuno, revisitar todos os feitos paralisados — muitos deles na fase do artigo 366, do CPP — antes do encerramento do prazo nonagesimal para encaminhá-los à conclusão dos juízes. Não por outro motivo, já alertou o ministro Ribeiro Dantas: "(...). Não seria razoável ou proporcional obrigar todos os Juízos criminais do país a revisar, de ofício, a cada 90 dias, todas as prisões preventivas decretadas e não cumpridas, tendo em vista que, na prática, há réus que permanecem foragidos por anos" [7]. Com efeito, o estado de permanente fuga do acusado é suficiente para demonstrar, de maneira concreta, que a prisão preventiva — ainda em aberto — é atual e necessária (periculum libertatis) [8]. É importante frisar que nenhuma medida cautelar menos gravosa poderia fazer valer a garantia instrumental da aplicação da lei penal, eis que todas, sem exceção, implicariam na intimação de pessoa desaparecida cuja cientificação, por edital, configuraria um loop para a nova decretação da prisão preventiva diante do descumprimento da medida após o decurso do prazo editalício. Assim, resta claro que a "contemporaneidade da prisão preventiva não está necessariamente ligada à data da prática do crime, mas sim à subsistência da situação de risco que justifica a medida cautelar" [9]. Conforme ressaltou o ministro Alexandre de Moraes (ADI 6.581), um dos grandes desafios do Brasil na atualidade é o de "evoluir nas formas de combate à criminalidade organizada, na repressão da impunidade, na punição do crime violento e no enfrentamento da corrupção". Tal desiderato não está apenas ligado a uma legislação eficiente e adequada aos comandos constitucionais, mas, acima de tudo, na estruturação das varas criminais para que em curto espaço de tempo possam julgar os casos atrelados a esses tipos penais. Diante disso, não identificamos a menor utilidade prática na revisão de prisões cujos mandados ainda não foram cumpridos sem que exista a prévia provocação do juiz competente. Reiteremos: o tempo despendido por funcionários para identificar os casos e, do magistrado, para reanalisar cada uma das prisões, pode e deve ser utilizado para outra finalidade, em especial, o julgamento dos casos envolvendo réus presos. Com isso, "somente gravíssimo constrangimento, como o sofrido pela efetiva prisão, justifica o elevado custo dispendido pela máquina com a promoção desses numerosos reexames impostos pela lei" [10]. A reanálise periódica dos fundamentos e requisitos utilizados para a decretação da prisão preventiva já efetivada é compatível com o direito fundamental à liberdade, a dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal, a duração razoável do processo e de motivação das decisões judiciais, porém, a mesma imposição não deve ser levada a efeito para os casos onde o investigado/acusado está foragido, sem que exista, ao menos, a provocação do juízo. Uma interpretação literal que desconsidere as consequências práticas da determinação de revisar no prazo nonagesimal toda e qualquer decisão de prisão preventiva, quando o acusado ainda estiver solto, é alocar esforço desnecessário que em data contribui para a eficiência da justiça e ao atendimento ágil dos casos verdadeiramente urgentes. A interpretação deve voltar os seus olhos para o mundo real, afastando-se de um referencial meramente teórico. Diante do exposto, entendemos à luz da interpretação das nossas cortes superiores que: (1) a obrigação de revisar as decisões que decretaram a prisão preventiva de investigado/acusado ainda foragido, apenas deverá ocorrer quando o magistrado for instado a decidir; (2) o decurso do prazo nonagesimal não torna ilegal a decisão que decretou a prisão de um investigado/acusado quando ainda pendente de cumprimento o mandado de prisão. [1] CPP, Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. [2] "O legislador foi explícito ao cominar consequência para o extravasamento dos 90 dias sem a formalização de ato fundamentado renovando a custódia. Previu, na cláusula final do parágrafo único do art. 316, que, não havendo a renovação, a análise da situação do preso, a prisão surge ilegal. A tanto equivale, sem sobra de dúvida, a cláusula final: '[...] sob pena de tornar a prisão ilegal'". (Parte do voto proferido pelo min. Marco Aurélio no AG.Reg. no ROHC nº 199.854/RJ, rel. min. Dias Toffoli, sessão virtual de 7/5/21 a 14/5/21. [3] Sessão Virtual de 25/2/2022 a 8/3/2022, public. 09/3/2022. O relator para o acórdão foi o min. Alexandre de Moraes, uma vez que o relator originário restou parcialmente vencido no ponto que compreendida que a regra revisional deveria ter maior abrangência. [4] "(...). 4. A nova redação do art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, operada pela Lei n. 13.964/2019, determina a reavaliação periódica dos fundamentos que indicaram a necessidade da custódia cautelar a cada 90 dias. Contudo, esta Corte Superior tem entendido que, "não se trata de termo peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato não implica automático reconhecimento da ilegalidade da prisão, tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade" (AgRg no HC nº 580.323/RS, rel. ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 15/6/2020) (...). (HC nº 637.032/GO, relatora ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 30/9/2021.). [5] "(...). 5. A alteração promovida pela Lei n° 13.964/2019 ao art. 316 do Código Penal estabeleceu que o magistrado revisará, a cada 90 dias, a necessidade da manutenção da prisão, mediante decisão fundamentada, sob pena de tornar a prisão ilegal. Não se trata, entretanto, de termo peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato não implica automático reconhecimento da ilegalidade da prisão, tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade. (...)" (AgRg no RHC nº 171.133/PA, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 25/10/2022, DJe de 9/11/2022.). [6] Redação originária do Anteprojeto de Lei do Novo CPP — já aprovado no Senado Federal, autuado como PL nº 8045/2010, em trâmite da Câmara dos Deputados. [7] STJ, 5ª Turma, RHC nº 153.528/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 29/3/2022, DJe de 1/4/2022. Tratando do mesmo tema sob a ótica recursal, já apontou a min. Laurita Vaz (HC nº 589.544/SC): "Pretender o intérprete da Lei nova que essa obrigação — de revisar, de ofício, os fundamentos da prisão preventiva, no exíguo prazo de noventa dias, e em períodos sucessivos — seja estendida por toda a cadeia recursal, impondo aos tribunais (todos abarrotados de recursos e de habeas corpus) tarefa desarrazoada ou, quiçá, inexequível, sob pena de tornar a prisão preventiva 'ilegal', data máxima vênia, é o mesmo que permitir uma contracautela, de modo indiscriminado, impedindo o Poder Judiciário de zelar pelos interesses da persecução criminal e, em última análise, da sociedade". [8] Tratando da mesma matéria, Ribeiro Dantes advertiu que: "(...) se o acusado — que tem ciência da investigação ou processo e contra quem foi decretada a prisão preventiva — encontra-se foragido, já se vislumbram, antes mesmo de qualquer reexame da prisão, fundamentos para mantê-la – quais sejam, a necessidade de assegurar a aplicação da lei penal e a garantia da instrução criminal —, os quais, aliás, conservar-se-ão enquanto perdurar a condição de foragido do acusado" (...). (STJ, 5ª Turma, RHC nº 153.528/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 29/3/2022, DJe de 1/4/2022). [9] STF, 1ª Turma, HC 205164 AgR, rel. min. Roberto Barroso, j. em 14/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022 DIVULG 04-02-2022 PUBLIC 07-02-2022. [10] STJ, 5ª Turma, RHC nº 153.528/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 29/3/2022, DJe de 1/4/2022. Tratado do caso concreto em julgamento, Ribeiro Dantas contextualizou: "(...). caso o indiciado viesse a continuar foragido, por exemplo, pelo período de 15 (quinze) anos, o Juízo processante seria obrigado a reexaminá-la ex officio, quase 60 (sessenta) vezes. E mais: esse mesmo Juízo teria de fazê-lo em um sem número de processos, cujas prisões foram decretadas e não cumpridas".
2023-03-04T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-04/tribunal-juri-desnecessidade-revisao-nonagesimal-preventiva-foragido
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Diário de Classe
Cavalo de Troia: onde vamos parar com a inteligência artificial?
Era uma vez ... Valho-me dessa expressão que, via de regra, introduz os contos fantásticos, porque permite, ou melhor, parece-me autorizar o uso da imaginação e da nossa verdade, sempre parcial e subjetiva. É assim que a percebo e a manipulo. A presente escrita foi construída a partir de uma live, que foi ao ar [1] no dia 27 de fevereiro do corrente ano. Dela participaram o professor Lenio Streck e o escritor Victor Drummond. O título da live era "ChatGPT diante dos direitos autorais". Não era a primeira vez que via e ouvia o professor Lenio [2] expressar a preocupação com o uso da inteligência artificial [3], mas a live foi o gatilho para esta reflexão que agora passo a desenvolver. Ao ouvir os comentários, recordei o vírus, designado pela expressão Cavalo de Tróia, e, consequentemente, a história da Odisséia e Ilíada. Permito-me aqui retomá-la. A história inicia na Grécia Antiga. Período homérico (IX a.C. – VIII a.C.). Época de Helena, filha de Zeus e da rainha Leda. Helena era considerada a mulher mais bela da Grécia. Foi a protagonista da Guerra de Tróia. Conta-se que Páris, Príncipe de Tróia, apaixonou-se por Helena, que era casada com Menelau. Páris raptou Helena, o que provocou a ira de Menelau e, consequentemente, a Guerra de Tróia, que perdurou por dez longos anos. A estratégia utilizada por Menelau para recuperar sua esposa foi engenhosa. Como presente de paz, entregou um enorme cavalo oco de madeira e lá foram colocados seus homens que, à noite, sorrateiramente saíram de dentro do cavalo e atacaram o inimigo. Dessa maneira, os aqueus conseguiram entrar em Tróia, surpreender seu adversário, os troianos, e vencer a batalha. Agora, voltemos ao Era uma vez... Era uma vez uma sociedade, cheia de seres humanos e vivos (alguns, nem tanto, mas outros muito), mas também cheia de máquinas e tecnologia. Esses seres humanos e vivos diziam buscar e querer viver em uma sociedade justa, mas mais do que isso: buscavam facilitar a vida laboral, educacional, afetiva, emocional, sentimental, dentre alguns setores de suas vidas. Para isso, passaram a criar algoritmos, plataformas digitais e outras tantas alternativas para a comunicação e acesso on-line. Todavia, o uso inadequado da inteligência artificial tira do ser humano a capacidade de pensar, de criar, de se construir e reconstruir. Nesse espaço da internet, salvo exceções, a pesquisa se resume a procurar, recortar e colar informações. No entanto, é uma atividade mecânica, sem reflexão. Feito isso, dá-se o trabalho como pronto e, consequentemente, de acordo com o senso comum [4], resta tempo livre para usufruir. Pergunta-se: tempo livre para quê? Usufruir o quê? A sociedade tecnologizada está nos instigando à nesciência, e nós, os néscios [5], não estamos percebendo os efeitos negativos desse processo em nossa capacidade intelectiva. O discurso dominante estimula e faz-nos acreditar que uma plataforma que escreve textos e realiza trabalhos é algo maravilhoso! É evolução! É tecnologia! Aliado a esse argumento, existe um outro de aparência irrefutável, qual seja, o ser humano não vai se perder nesse processo, pois é ele quem faz o programa, elabora as cadeias e insere os algoritmos! Como assim? O ser humano já está se perdendo. Se perdendo dele mesmo ao acreditar e defender o uso indiscriminado de tais plataformas. Se a Guerra de Tróia teve sua origem no rapto de Helena, a crise da sociedade contemporânea, em que o uso exacerbado da tecnologia sequestra a possibilidade de desenvolvimento de determinadas capacidades cognitivas do ser humano e de sua subjetividade, tem, dentre suas causas, o acolhimento da acomodação ou da preguiça. O Cavalo de Troia está dentro de nossas casas na tela do computador! Streck, ao alertar sobre os perigos do uso do ChatGPT, assim se manifesta: "[...] um produto da mediocridade do mundo, o resultado do venire contra factum proprium inerente à humanidade pós-moderna: ela joga informações quaisquer na rede; empilha informações, dados, textos. O robô, produto da humanidade, pega tudo e, sobranceiro, responde às demandas. Pronto: a humanidade tira proveito de sua própria torpeza. Ou de sua própria mediocridade" [6]. Bolzan de Morais faz o link entre o processo tecnológico e a lógica mercadológica capitalista. Destaca que, hodiernamente, tanto as instituições político-jurídicas, quanto as relações sociais e subjetividades subjazem dentro da lógica mercadológica capitalista. Nas palavras do autor, "[...] se refunda com a viragem tecnológica promovida pela passagem do analógico para o digital, do capitalismo de produção para o financeiro e, agora, para aquele de plataforma, de dados, em tudo distinto, embora não se diferencie em termos de processo de acumulação financeira e gestão de pessoas e bens" [7]. A questão que se põe, como bem destaca Streck, reside no accountability hermenêutico [8], ou seja, quais são os critérios utilizados ou algoritmos que definem o que é certo ou errado? Sobre o tema, Nelson Saldanha pondera "[...] até que ponto confiar na máquina, o entregar-lhe a combinação das informações e o condicionamento das soluções, envolverá o perigo de o espírito humano abdicar de milenar tarefas como emitir normas, julgar e decidir?" [9] O ser humano deve se comprometer em compreender e interpretar os fatos da realidade. Armazenar, alimentar e criar algoritmos não é suficiente para dar conta da complexidade envolvida nas inter-relações humanas, pois a máquina não trabalha com subjetividades, e palavras têm significado, significado este também envolto em subjetividades e contextos diversos. Dito de outra forma, as palavras não são transparentes em seus significados, pois dependem das circunstâncias de enunciação que envolvem prioritariamente as subjetividades, em confronto ou em concerto, no jogo dialético. Gadamer diz que a dialética é "[...] a arte de conduzir uma conversa, e isso inclui a arte de conduzir essa conversa consigo mesmo e de perseguir o entendimento consigo mesmo. É a arte de pensar, que equivale à arte de indagar o significado do que se pensa e se diz" [10]. A compreensão [11] demanda o reconhecimento do outro. O linguista Benveniste assinala que é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta a realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito do "ego" [12]. Mas para que isso ocorra, é necessário a instauração de um TU. O "ego" que diz EU só o diz em função da existência do outro. Essa condição do diálogo, qual seja, a da existência do EU e do TU que se dá por contraste e tem o caráter de reversibilidade — em situação de enunciação, há a troca dessas posições —, é pré-requisito para que se estabeleça o regime de co-enunciação (enunciar juntos) e a devida (ou possível) (inter) compreensão entre os sujeitos com relação aos significados colocados em jogo. A máquina não consegue integrar o EU e/ou o TU, pois usa algoritmos e probabilidades [13]. A revolução tecnológica está acontecendo (ou já aconteceu), e o busílis está nas TICs (tecnologias da informação e da comunicação), ou seja, nos programas e máquinas que geram um conhecimento apartado das condições de ordem subjetiva. Quais as consequências? Isso o tempo dirá. Mas suponho que serão negativas, com implicações danosas para as capacidades cognitivas ligadas à linguagem, à organização do pensamento, à percepção do real e à crítica e julgamento dos fatos. Referências: BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 2005 [1958a]. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Eficientismo, novas tecnologias e o (fim do) consenso. Isso pode parecer (ser) um manifesto. In: NUNES, Dierle et all (orgs.). DIREITO PROCESSUAL e tecnologia: Os impactos da virada tecnológica no âmbito mundial. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. Programa Direito e Literatura. Disponível: https://m.youtube.com/watch?v=VrM-QtSh57Y. SALDANHA, Nelson. Apresentação. In: PIMENTEL, Alexandre Freire. O direito cibernético: um enfoque teórico e lógico-aplicativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. STEIN, Ernildo. A caminho do paradigma hermenêutico: ensaios e conferências. 2ª ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2017. STRECK, Lenio Luiz. O ChatGPT, a classe dos inúteis e o cão que empurrava as crianças no rio! Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/senso-incomum-ia-classe-inuteis-cao-empurrava-criancas-rioecnologia?. Acesso em: 28 fev. 2023. [1] Expressão antiga! É proposital! “Para bom entendedor meia palavra basta!” [2] Em 2017 – no programa Direito e Literatura, debateram sob o tema Plágio – os professores Lenio Streck, José Luis Bolzan de Morais, Victor Drummond e Draiton Gonzaga de Souza. Disponível: https://m.youtube.com/watch?v=VrM-QtSh57Y. [3] Cf. STRECK, Lenio Luiz. "O ChatGPT, a classe dos inúteis e o cão que empurrava as crianças no rio!". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/senso-incomum-ia-classe-inuteis-cao-empurrava-criancas-rioecnologia?. Acesso em: 28 fev. 2023. [4] A expressão "sendo comum teórico" foi cunhada por Luís Alberto Warat. [5] Vide texto do professor Lenio Luiz Streck. [6] STRECK, Lenio Luiz. "O ChatGPT, a classe dos inúteis e o cão que empurrava as crianças no rio!". https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/senso-incomum-ia-classe-inuteis-cao-empurrava-criancas-rioecnologia?. Disponível em: Acesso em: 28 fev. 2023. [7] BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Eficientismo, novas tecnologias e o (fim do) consenso. Isso pode parecer (ser) um manifesto. In: NUNES, Dierle et all (orgs.). DIREITO PROCESSUAL e tecnologia: Os impactos da virada tecnológica no âmbito mundial. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022. P. 293. [8] STRECK, 2023. [9] SALDANHA, Nelson. Apresentação. In: PIMENTEL, Alexandre Freire. O direito cibernético: um enfoque teórico e lógico-aplicativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. P. 250. [10] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. P. 573. [11] "[...] estaremos sempre envolvidos numa atividade de compreensão que nos é trazida pelas diversas formas de linguagem." STEIN, Ernildo. A caminho do paradigma hermenêutico: ensaios e conferências. 2ª ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2017. P.148. [12] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 2005 [1958a]. p. 286. [13] Parágrafo retirado da minha tese de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, defendida em 30.06.2022, sob a orientação do prof. dr. Lenio Luiz Streck.
2023-03-04T08:00-0300
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Embargos Culturais
"O Naufrágio das Civilizações", de Amin Malouf
"O mais importante, numa obra literária, não é a mensagem que o autor quis nos transmitir, mas os nutrientes intelectuais e afetivos que cada leitor pode extrair dela." Essa afirmação, para mim um postulado inegável, está em O Naufrágio das Civilizações, de Amin Malouf. O autor nasceu no Líbano e é radicado na França. Destaca-se como jornalista e romancista. Entre seus livros, As Cruzadas Vistas pelos Árabes; o título que já revela uma forma alternativa, diferente e inteligente de ver o mundo. À luz de uma interpretação árabe (ou levantina, como o autor prefere) não há espaço para interpretações simplistas de reconquista de Jerusalém, como sugere a obra clássica do poeta sorrentino Torquato Tasso (1544-1595). O Naufrágio das Civilizações encanta pelos nutrientes intelectuais (um estudo profundo sobre a tragédia das políticas identitárias) e pelos estímulos afetivos (o encontro com um mundo esfacelado, que de algum modo já não é mais o nosso mundo). É um livro triste. Há lamento, nostalgia, melancolia. O autor nos comprova que "as ondas identitárias envenenaram a atmosfera do planeta". É uma obra de quem escreve "ao anoitecer da vida com infinita tristeza". É o que vemos a nossa volta. No Oriente Médio os conflitos são intermináveis. É esse o ponto fundamental do livro, que enfrenta basicamente três assuntos: o esfacelamento da cultura árabe (por conta de guerras intermináveis), as expressões do pensamento conservador (e o abandono de agendas de fraternidade) e a concepção de uma vida controlada (o que o autor denomina de "deriva orwelliana"). O autoritarismo é o ponto comum que liga esses três temas. Vivemos um tempo paradoxal: "tudo que não é proibido é obrigatório". A sessão relativa ao esfacelamento da cultura árabe (e não muçulmana, bem entendido) é um testemunho pessoal do autor, que é libanês e viveu no Egito; hoje mora na França. Faz referências a cidades que um dia foram esplendorosas: Beirute, Aleppo, Alexandria, Cairo, Teerã, Riad. Conflitos entre cristãos, judeus, muçulmanos, e entre divisões internas, sunitas, xiitas, coptas, em todos os lugares, sempre com base na ilusão perversa da homogeneidade étnica e cultural. É o choro do paraíso perdido. Para Malouf, mesmo em ambientes democráticos (que não é o caso do Oriente Médio) difícil o exercício do papel de cidadão sem referências a etnia, religião e convicções pessoais. O identitarismo é um apelo permanente à guerra civil. O autor ilustra essa tensão com a criação da Índia, e concomitante criação do Paquistão, quando se dividiu a colônia inglesa entre hindus e muçulmanos. No Paquistão, no entanto, havia o conflito entre os bengalis e os panjabis. Os bengalis se separaram e adotaram o nome de Bangladesh. Um terrível ciclone tropical deixou 250 mil mortos. A fome tornou-se regra. Os mais antigos nos lembramos de George Harrison conduzindo um concerto humanitário em Nova Iorque. Eric Clapton estava totalmente drogado (o guitarrista conta o fato em sua autobiografia). Bob Dylan levou o Madison Square Garden ao delírio ao interpretar Blowing in the wind, canção que é o emblema musical de uma época. Os tempos eram outros. Malouf faz referência a Gamal Abdel Nasser, líder nacionalista egípcio, que falava abertamente na desnecessidade do uso do véu, afirmação que hoje seria inaceitável no mesmo ambiente. A guerra dos seis dias, em 1967, com a esmagadora presença de Israel na região, ampliando os territórios ocupados, teria hostilizado um orgulho que iria explodir novamente em 1973, com a crise do petróleo. Malouf é porta-voz de uma incurável angústia para coma deterioração do mundo árabe. Em O Naufrágio das Civilizações o autor enfatiza a importância de 1979. Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos pregavam novas normas e práticas para a boa gestão pública: a diminuição do governo na vida econômica, a limitação das despesas sociais, uma maior importância para os empresários e a redução da influência dos sindicatos. Para o autor, o texto-credo desse novo tempo era A Revolta de Atlas, de Ayn Rand, imigrante russa que vivia nos Estados Unidos. Nesse importante livro (um cartapácio de 1215 páginas na tradução da Editora Arqueiro), os grevistas são os operários. Os grevistas são os empresários, constrangidos pelo excesso de regulação. Por outro lado, se para Reagan o Estado era o problema, pergunta Malouf se a ausência do Estado não seria um problema ainda mais grave. Para Malouf a Revolução Iraniana também foi uma revolução conservadora, que nos remete a 1979. Malouf entrevistou o Aiatolá Khomeini, com quem falava em árabe clássico (que o líder iraniano entendia, mas que respondia em persa, com tradução para o entrevistador. A revolução no Irã era atípica, segundo o autor, conduzida por um clérigo conservador. Malouf acrescenta a tomada do poder por Deng Xiaoping na China em 1978, os anos finais da União Soviética e a queda muro de Berlim em 1989. A revolução tecnológica, segundo Malouf, pode tornar boa parte da humanidade formada por indivíduos que seriam vistos como supérfluos, incômodos, parasitários e potencialmente danosos. Assim, conclui, a "própria noção de humanidade, pacientemente construída ao longo de milênios, estaria, então, esvaziada de sentido". Uma derrota. Parafraseando o autor, a derrota, por vezes, pode ser uma oportunidade. Talvez nós não conseguimos percebê-la. A vitória, ainda nessa paráfrase, pode ser uma armadilha, que não conseguirmos evitar. A tradução do livro é do competentíssimo Arnaldo Bloch, que também traduziu Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli.
2023-03-05T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-05/embargos-culturais-naufragio-civilizacoes-amin-malouf
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Público & Pragmático
Composição de ecossistema regulatório para ecossistemas digitais
A vida em sociedade e suas atividades econômicas acontecem predominantemente, hoje, por meio de plataformas digitais. O convívio e a comunicação acontecem por diversas redes sociais e aplicativos de mensagens, a venda e o consumo acontecem em comércios eletrônicos e marketplaces, operações financeiras, consultas médicas, atividades acadêmicas, pedidos de comida ou de transporte, entretenimento e atividades físicas. Praticamente tudo que um ser humano faz hoje está ou pode estar integrado a alguma plataforma digital, e é necessário compreender esta versatilidade de relações e dinâmicas para se vislumbrar o tamanho do desafio de sua regulação. Lidar com a transformação tecnológica ocasionada por plataformas digitais exige muito mais que se reconhecer a destruição criativa (SCHUMPETER, 1950) dos ciclos de inovação, bem como a disrupção (CHRISTENSEN, 2016) e ruptura com práticas econômicas e regulatórias preexistentes, porque já não basta a mera revisão e atualização de premissas, mas se exige a atenção e o reconhecimento de que no ambiente digital, e em uma economia baseada no uso de dados, coexistem diversas relações e as consequências tendem a ser exponenciais. Plataformas digitais são a base das relações desenvolvidas na internet, normalmente definidas como um modelo de negócio inovador, uma nova tecnologia social, uma nova infraestrutura computacional ou a combinação destas três características (JACOBIDES e LIANOS, 2021, p.1201). O crescimento e a interação de plataformas acaba por evoluir ao que passou-se a chamar de ecossistemas digitais, um ambiente em que atuam múltiplos atores, se desenvolvem diversos tipos de relação, em uma estrutura que é referida como multilateral. Assim, dentro de um mesmo ecossistema digital, é possível desempenhar distintas posições, simultaneamente. O mesmo usuário "comum" pode comprar, vender, comunicar-se ativa ou passivamente, ou simplesmente navegar em um ambiente em que seus dados são observados e coletados para operações de tratamento. Usuários em posições mais engajadas podem usar dessas bases de dados para otimizar anúncios, direcionamentos de campanhas, integração com outras bases para ofertas de produtos. A multilateralidade de um ecossistema digital se destaca pelo fato de que a partir de um usuário e de seus dados é possível desenvolver diversas outras relações e produtos ou serviços. Neste sentido, sob qual ótica jurídica se deve regular um ecossistema digital que pode envolver, ao mesmo tempo, um fabricante de celular, um provedor de internet, uma rede social, um gestor de anúncios, um marketplace? Qual o nível de responsabilidade de cada ator em um emaranhado de dados e algoritmos sobrepostos que se complementam no que se conhece por big data, a partir da reunião exponencial de dados e informações? Três microssistemas jurídicos se destacam quando o assunto são os ecossistemas digitais, tutelando diferentes bens jurídicos: a defesa do consumidor, a proteção de dados pessoais e a defesa da concorrência (PEREIRA NETO e RENZETTI, 2020, p. 88). O primeiro se destaca pela posição de hipossuficiência do usuário/consumidor e necessidade de imposição de deveres de transparência às plataformas, diante da assimetria informacional inerente ao ambiente digital. O segundo pela posição de dados pessoais como principal insumo para o desenvolvimento dessas dinâmicas, agravado pelo reconhecimento tardio da proteção de dados como um direito fundamental e pela insuficiente tutela implementada. O terceiro, pela tendência de surgimento de gatekeepers em plataformas, os guardiões do acesso a bancos de dados, capazes de afetar a livre concorrência e o ingresso de novos atores, em uma dinâmica que foge aos tradicionais parâmetros de defesa econômica. A proteção dos dados pessoais, que somente passou a figurar como direito fundamental em fevereiro de 2022, com a Emenda Constitucional 115, desenvolveu-se por interpretação sistemática, decorrente da inserção da privacidade no âmbito da proteção da dignidade humana e das garantias instrumentais do Habeas Data (MENDES, 2014). Da mesma forma, no âmbito infraconstitucional, o tema por muito tempo dependeu da combinação dialógica do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), suprindo momentaneamente a lacuna de uma lei geral de proteção de dados (MENDES, 2015, p.472). O desenvolvimento da regulação da proteção de dados pessoais é essencial aos demais bens jurídicos mencionados acima, na medida em que impõe parâmetros à forma de relação das plataformas com os consumidores e entre si, na formação de suas bases de dados. A partir destas noções, viabiliza-se a compreensão de distorções de consumo como o self-preferencing em market places e de atos de concentração à margem dos parâmetros quantitativos tradicionais, com capacidade de composição de bases de dados herméticas, prejudiciais à concorrência. Ainda, a superação do paradigma da privacidade no sentido de intimidade foi fundamental para se endereçar questões referentes à proteção de dados para temas como a autodeterminação informativa e da confiabilidade da democracia (FRAZÃO, 2019, p.38), que extrapolam o recorte econômico deste exame. É evidente o entrelaçamento entre estes microssistemas, e isso se percebe desde o advento da LGPD, quando muitas das competências fixadas à Autoridade Nacional de Proteção de Dados, naquela época ainda não constituída, demonstravam grande sinergia com a defesa da concorrência promovida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que buscou incorporar tais funções (CADE, 2021, pp. 19-20). O mesmo se percebe quando ferramentas de proteção de dados se mostram a serviço da proteção do consumidor e da defesa da concorrência. É o que se observa quanto à portabilidade de dados pessoais entre plataformas, a exemplo do open banking no setor financeiro (GRAEF, et al., 2018,p.1363). Ainda que seu escopo seja a proteção do titular de dados contra tratamento irregulares, seus efeitos são percebidos no estímulo à competição e inovação no mercado. Um bom ponto de partida sobre a composição de um ecossistema regulatório é a Lei de Agências (Lei Nº 13.848/2019), que prevê formas de articulação entre as agências reguladoras nacionais entre si, com órgãos de defesa da concorrência, do consumidor e do meio ambiente. Da mesma forma, a própria ANPD tem colaborado com a estruturação desse ecossistema, por meio de acordos de cooperação técnica, como os firmados com a Senacon e com o Cade, entre outros. Diante disso, é digno de crítica o conteúdo do PL nº 2768/2022, que se apresenta como proposta de Marco Legal das Plataformas Digitais, alheio às especificidades da economia baseada no tratamento de dados ao considerar plataformas como detentoras de poder de controle de acesso essencial somente com base no volume de sua receita anual. Ainda, ao fixar competência da Agência Nacional de Telecomunicações, o projeto contraria a lógica de posicionar a ANPD como o eixo principal deste ecossistema regulatório, com aberturas para o diálogo entre reguladores dos sistemas mencionados e outros mais, como financeiro ou sanitário. Por fim, reforça-se a necessidade de alocação de recursos adequados à ANPD para o desempenho de suas atividades, e meios de desempenhá-las conjuntamente aos demais órgãos competentes. Assim, ao se defender a composição de um ecossistema regulatório para ecossistemas digitais, não se defende a incorporação de um microssistema por outro em nome de um único regulador, mas sim o desenvolvimento de ramos independentes do Direito, orientados à tutela de bens jurídicos próprios, com seus princípios e métodos de trabalho que lhe são peculiares. Todavia, assim como os ecossistemas digitais são multilaterais, integrados por uma ou mais bases de dados, também devem agir assim os sistemas regulatórios, capazes de integrar suas ações e extrair colaborações a partir das aptidões de cada, com propósitos bem estabelecidos, a fim de se evitar sobreposições e redundâncias.   Referências bibliográficas BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. CADE como Autoridade de Defesa da Concorrência e de Proteção de Dados. Brasília, agosto de 2020. CHRISTENSEN, Clayton M. The innovator’s dilemma: when new technologies cause great firms to fail. Massachusetts: Harvard Business Review Press, 2016. FRAZÃO, Ana (2019). Fundamentos da proteção dos dados pessoais – noções introdutórias para a compreensão da importância da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA. Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais. GRAEF, Inge; HUSOVEC, Martin; PURTOVA, Nadezhda (2018) Data portability and data control: Lessons for an emerging concept in EU law. In: German Law Journal, v. 19, n. 6, , pp. 1359-1398. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/german-law-journal/article/data-portability-and-data-control-lessons-for-an-emerging-concept-in-eu-law/5904FB88DDC1B9E6EC651A7F89058433 JACOBIDES, M. G., & LIANOS, I. (2021). Ecosystems and competition law in theory and practice. Industrial and Corporate Change, 30(5), 1199-1229 MENDES, Laura Schertel (2015). "A tutela da privacidade do consumidor na internet: uma análise à luz do Marco Civil da Internet e do Código de Defesa do Consumidor". In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito e internet III: Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014). Tomo I. São Paulo: Quartier Latin, 2015. PEREIRA NETO, C. M. D. S & RENZETTI, B. P. (2020). Big data entre três microssistemas jurídicos: consumidor, privacidade e concorrência. In Pereira Neto et al. Defesa da concorrência em plataformas digitais. FGV. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy. New York, NY: Harper Perennial Modern Thought, 1950.
2023-03-05T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-05/publico-pragmatico-composicao-ecossistema-regulatorio-ecossistemas-digitais
academia
Democracia digital
Liberdade de expressão nas redes será tema de seminário no Rio
Integrantes do Poder Judiciário, políticos, autoridades e jornalistas estarão reunidos na próxima segunda-feira (13/3), no Centro Cultural da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, no seminário "Liberdade de Expressão, Redes Sociais e Democracia". Promovido pelo Centro de Estudos do Judiciário da FGV Conhecimento, o evento discutirá a governança digital contemporânea sob a ótica do Estado democrático de Direito. Além disso, tratará de questões como proteção de dados; inteligência artificial e suas regulações; big techs; e as relações gerais entre tecnologia, comunicações e liberdade de expressão. Presencial, o seminário contará com a participação dos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal; Luis Felipe Salomão, Marco Aurélio Bellizze, Benedito Gonçalves e Antonio Saldanha Palheiro, do Superior Tribunal de Justiça; do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco; e do ministro da Justiça, Flávio Dino. Participarão também a juíza Caroline Tauk, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região; o procurador do estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm; o desembargador Elton Leme, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; o deputado federal Orlando Silva (PCdoB); e o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Augusto Passos Rodrigues.  O evento é promovido em parceria com a Rede Globo e tem o apoio do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). O Centro Cultural da FGV fica na Praia de Botafogo, 186, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Clique aqui para se inscrever. Confira a programação: Apresentação: Maju Coutinho 9h30 — Abertura: Luis Felipe Salomão; Carlos Ivan Simonsen Leal (presidente da Fundação Getulio Vargas); Antonio Cláudio Ferreira Netto (diretor jurídico corporativo da Globo); e Andrei Augusto Passos Rodrigues (diretor-geral da Polícia Federal). 10h15 — "Democracia digital": Gilmar Mendes. 10h45 — "O papel do Judiciário na democracia": Alexandre de Moraes. 11h30 — Painel 1: "Os três Poderes da República e a governança digital — uma visão contemporânea":  Moderador: Luis Felipe Salomão Palestrantes: Rodrigo Pacheco; Flávio Dino; e Patricia Campos Mello (editora-geral e colunista da Folha de S.Paulo). 13h — Almoço. 14h30 — "Painel 2: Governança digital — big techs, proteção de dados, inteligência artificial e regulação" Moderador: Marco Aurélio Bellizze. Palestrantes: Otávio Margonari Russo (diretor de combate aos crimes cibernéticos da Polícia Federal); Andreia Saad (diretora jurídica tributária, societária e regulatória da Globo); Gustavo Binenbojm; Caroline Tauk; e Marcelo Lacerda (diretor de políticas públicas e relações governamentais do Google Brasil). 16h — "Painel 3: Comunicação, tecnologia e liberdade de expressão" Moderador: Heraldo Pereira (jornalista da Globo e mestre em Direito pela Universidade de Brasília). Palestrantes: Antonio Claudio Ferreira Netto (diretor jurídico corporativo da Globo); Antonio Saldanha Palheiro; André Mendonça; Benedito Gonçalves; Monica Guise (gerente de políticas públicas para integridade da Meta no Brasil); e Orlando Silva 17h30 — Encerramento: Luis Felipe Salomão e Elton Leme.
2023-03-06T19:33-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-06/liberdade-expressao-redes-tema-seminario-rio
academia
Opinião
Mariana Tasca: Consequência nociva do desprezo à Lei Fundamental
Na história recente, a ascensão ao poder de líderes políticos extremistas, em países cujas culturas são bastante distintas, revela um fenômeno mundial preocupante: o enfraquecimento da democracia. Os motivos internos vividos pelas populações de cada país são variados e particulares, no entanto, a característica comum a eles é o de insatisfação generalizada, oriunda da aparente inércia estatal nas resoluções de problemas que afetam a população em seu cotidiano [1]. No Brasil, segundo aponta o cientista político Steven Levitsky, a sequência de desordens vivenciadas pelo país desde o ano de 2014 explica o esmorecimento com as instituições públicas, especialmente no que tange à crise econômica, escândalos de corrupção estatal e elevados níveis de violência e criminalidade [2]. A conjuntura é terreno fértil para a germinação de ideais fascistas. Umberto Eco, em seu livro O Fascismo Eterno, elucida que a ideologia provém da frustração individual ou social, encontrando nas classes médias seu melhor abrigo, já que se sentem "desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos" [3]. Isto explica os contemporâneos discursos agressivos e afrontosos ao Estado Democrático de Direito corriqueiramente endossados por parte da população brasileira. Mas diante desse contexto social e político, verificam-se (ou se reforçam) também consequências jurídicas que atingem a própria legitimidade da Constituição: trata-se dos fenômenos denominados degradação constitucional e erosão da consciência constitucional. Ambas as expressões, embora semelhantes, se retroalimentam num ciclo vicioso bastante nocivo à nossa democracia. A expressão erosão da consciência constitucional foi cunhada por Karl Loewenstein no ano de 1983 e importada ao ordenamento jurídico pátrio pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, quando do julgamento do MI nº 470 [4], em 1995. Segundo o autor, nas palavras do ex-ministro: "O desprestígio da Constituição — por inércia de órgãos meramente constituídos — representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, além de evidenciar o inaceitável desprezo das liberdades públicas pelos poderes do Estado. (...)", o fenômeno decorre "(...) do processo de desvalorização funcional da Constituição escrita'". É dizer, quando o poder público se abstém de cumprir os deveres que lhe são impostos pela Constituição, quer seja de forma total, quer seja de forma parcial (por não tutelar adequadamente o bem jurídico), acaba por desprestigiar as disposições fundamentais nela escritas. Dessa forma, estimula-se o desprezo à Lei Fundamental, comunicando, assim, que os compromissos nela estabelecidos são meras letras mortas [5]. O efeito nocivo de tal omissão é o sentimento de desamparo vivenciado pela população, que, naturalmente, acaba por sofrer atrofia da consciência constitucional. Esta, por sua vez, leva ao desenvolvimento do sentimento de indiferença à Carta Política. E tal indiferença está intrinsecamente ligada ao fenômeno da degradação constitucional. Segundo o jurista Mark Tushnet [6], a presença de quatro fatores, que se reforçam mutuamente, leva à degradação constitucional: 1) a polarização política; 2) a perda na crença do governo; 3) o aumento da desigualdade; 4) o desastre político. A união destes elementos gera, assim como o fenômeno anteriormente citado, a perda gradual e constante da força soberana da Constituição. Embora continuemos a viver em um país democrático, com eleições periódicas, voto universal, partidos políticos e tripartição de poderes, na essência, deteriora-se o espírito do regime constitucional democrático [6]. Num ciclo vicioso acachapante, a erosão da consciência constitucional acaba por gerar a degradação constitucional, a qual, por sua vez, sustenta ideologicamente a erosão da consciência constitucional. Vê-se, assim, a interminável batalha que a democracia enfrenta para evitar causar sua própria morte. O mais recente fato histórico a comprovar este estado das coisas foi o ataque à praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. A depredação dos prédios da República, destruição de artefatos históricos e furto da réplica da Constituição, símbolos representativos do mais longevo período democrático da história brasileira, revela o mais nocivo golpe mortal à constitucional democracia. Nesse contexto, é fundamental que rompamos as barreiras acadêmicas do debate, levando a discussão, e sobretudo a implementação dos compromissos constitucionais, à população leiga, maior sofredora dos efeitos deletérios de um (des)governo omisso quanto ao cumprimento dos deveres previstos na Constituição. O ponto positivo, talvez, oriundo de episódio tão lamentável, foi o jogar-se luz a uma discussão que há muito deveria ter se aprofundado e tomado contornos de concretude. É chegada a hora de reforçar a proteção à maior base da democracia, a Constituição. Afinal, não necessariamente a palavra crise deve significar a destruição do status quo, podendo, diversamente, assumir o significado de uma ruptura construtiva, em busca do resgate à essência constitucional e ao encontro do povo desamparado. [3] ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Editora Record. p. 50. [4] MI nº 470, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. em 15/2/1995, p. em 29/6/2001. [6] TUSHNET, Mark. Constitutional Hardball. John Marshall Law Review, v. 37, n. 2, pps. 523- 553, 2004. [7] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/espirito-da-constituicao-de-1988- esta-se-degradando-escreve-professor.shtml. Acesso em: 23/2/2023.
2023-03-06T19:09-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-06/mariana-tasca-consequencia-nociva-desprezo-lei-fundamental
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Opinião
Pedro Norton: Elogio do direito de ofender
*artigo publicado originalmente no jornal português Público A polêmica é conhecida. De resto, já foi comentada — e bem — pela Maria João Marques. E a história conta-se num ápice: os livros infantis do escritor Roald Dahl vão ser reescritos para que possam entrar, devidamente purificados, no panteão imaculado da literatura admissível. Doravante nenhuma criança verá o seu futuro destruído pela contemplação inopinada dos traumatizantes adjetivos "feio" ou "gordo" (Ettore Scola que se cuide). Não vou repetir os argumentos de Maria João acerca da infantilização e estupidificação de leitores. Não vou deter-me na discussão sobre a integridade das obras de arte. Não vou perder muito tempo com o exercício — terrivelmente tentador — da ridicularização destes pequenos Savonarollas de trazer por casa. Não vou sequer centrar-me no tema mais vasto dos ataques à liberdade de expressão de que esta fobia de ofender é uma perigosa antecâmara. Não porque o debate não seja atual e relevantíssimo. Há seguramente muito para dizer, sobre a metastização deste tipo de ideias censórias na academia (e a feminista Camille Paglia tem-no dito com conhecimento de causa e particular clareza: "A universidade deixou de ser um local de debate de ideias, tendo-se tornado um infantário onde a idade adulta parece ser adiada até à eternidade"). Assim como, na linha de Stuart Mill ou de Jefferson, há muito para dizer acerca da imprescindível ligação entre essa mesma liberdade de expressão, o consequente funcionamento de um "mercado de ideias" e a existência de democracias plenas, funcionais e substantivas. Mas, por ora, e por manifesta falta de espaço, prefiro deter-me numa discussão mais circunscrita. A tudo isto hei de regressar um dia. Prefiro insistir, dizia eu, mais em concreto, num ângulo argumentativo que já explorei e que tem sido um ângulo morto em muitas das discussões sobre o direito a ofender. Refiro-me ao insanável paradoxo que encerra qualquer cultura de silenciamento e de higienização da ofensa. Para o ilustrar, gosto de recorrer, imagine-se, a um velho "amigo" marxista. Num livrinho que vivamente recomendo (Direito a Ofender, a Liberdade de Expressão e o Politicamente Correto), o jornalista Mick Hume expõe o argumento de forma particularmente convincente (e peço desde já desculpa pela longa citação): "No clima intelectual moderno, por vezes parece que ofender os outros é o pior crime do mundo. A coisa é apresentada como uma tentativa progressista de proteger as pessoas de palavras que as magoam, mas tornou-se uma forma disfarçada de insistir que há demasiada liberdade de expressão. Pode parecer uma boa ideia viver num mundo acolhedor e maternal de insipidez inofensiva. O problema é que exigir o direito a não ser ofendido é negar a toda a gente a liberdade de ofender a ética e as opiniões aceites do tempo em que se vive. E, sem essa subversiva liberdade de questionar o inquestionável — o direito a ofender —, a sociedade talvez nunca tivesse sequer chegado ao ponto em que os direitos antirracistas e das lésbicas e dos gays, bissexuais e transgênero se tornaram aceitáveis no debate público." De fato, a luta das feministas pelo direito de voto nos Estados Unidos não teria culminado na 19ª emenda da Constituição em 1920 sem, pelo caminho, ofender a moral misógina vigente. A conquista dos direitos civis nos anos 1950 não teria sido possível sem atentar contra a moral supremacista branca que, nos estados americanos do sul, era, então, a lei de fato. O apartheid não teria entrado em colapso sem ofender a moral racista que foi a moral de Estado na África do Sul até 1994. E a luta pela legalização do casamento homossexual não teria sido possível sem confrontar o lado mais bafiento da moral católica ainda presente no Portugal do século 21. Ora, tal como no passado não teria sido boa ideia abdicar da "subversiva liberdade de questionar o inquestionável" ou capitular perante a inviolabilidade da moral vigente, não é obviamente salutar entregar hoje as chaves da moralidade insuscetível de ser ofendida a um qualquer grupo de exaltados pós-modernos com crescente poder no espaço público e que se julgam guardiães da nova virtude. Os lápis azuis** de ontem não podem travestir-se nos linchamentos nas redes de hoje. Ninguém no seu perfeito juízo exaltará com um mundo de ofensas gratuitas. Mas a verdade é que conceder o direito a ofender as morais vigentes a cada momento é provavelmente um preço ínfimo a pagar para garantir que continuamos a fazer o nosso lento e imperfeito caminho em direção a sociedades mais justas. **durante décadas nada seria publicado em Portugal sem que passasse primeiro pela censura. O conhecido "lápis azul" abateu-se sobre milhares de livros, imprensa e qualquer manifestação cultural
2023-03-07T16:23-0300
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academia
Opinião
Maria João Marques: Limpar livros de pecados ou elogio da estupidez
*artigo publicado originalmente no jornal português Público Atualmente, os leitores não podem ser confrontados com o que é ofensivo e fora das lentes atuais. Não devem aprender que o mundo nem sempre foi como é, que o quadro de valores das comunidades evolui. Somerset Maugham, um dos mais celebrados escritores britânicos do século 20, autor de Servidão Humana e No Fio da Navalha, publicou, em 1930, The Gentleman in the Parlour. Está traduzido por cá pela Tinta da china, num livro lindo de capa dura verde e preta, como Um Gentleman na Ásia. Lá dentro, Maugham conta-nos uma viagem entre Rangun (então parte da Índia britânica) e Hong Kong (essa possessão exigida aos chineses pelo governo de sua majestade — na altura, Victoria — depois da Primeira Guerra do Ópio, ela própria, de resto, outro exemplo de patifaria europeia). Somerset Maugham viveu uns bons tempos nas colônias europeias da Ásia e do Pacífico. Tinha o objetivo de poupar dinheiro, que a vida em Londres já então era cara. Aproveitou para escrever prolificamente sobre esses sítios. Li quase tudo de Maugham, quando era adolescente, dessas terras distantes, certamente numa manifestação precoce do meu orientalismo. (E uso "orientalismo" aqui como provocação propositada à revelia de todos os tons condenados por Edward Said. Usualmente escreveria interesse e apreço pela Ásia Oriental e do Sudeste, porque o que o meu "orientalismo" me trouxe foi mesmo a derrocada da minha visão eurocêntrica do mundo. Porém talvez seja hora de começarmos a resgatar a honra de certas palavras, sobretudo se são bonitas.) Provavelmente tais obras de Maugham estarão pejadas de pecados linguísticos. Não me lembro. Lá pelos anos 1990, estaria menos afinada a exigência moralista — a do mundo e a minha — com a literatura. Contudo, neste Um Gentleman na Ásia, relido há poucos anos, reparei lá para o fim numa bomba atómica para as mentes woke e sensíveis (e burras). Numa viagem de barco, sobre um judeu americano que Maugham considerava insuportável, escreveu "era daquele tipo de judeus que faziam com que o pogrom fosse compreensível". O tom da frase (e do livro) é espirituoso, porém desconfio que só não foi alvo das fatwas das hordas wokes que insistem em higienizar livros porque, reconheça-se, estas hordas leem pouco. Ou será que o facto de o judeu de Maugham ser americano, representante de uma empresa de meias (donde, capitalista), torna a alusão ao pogrom aceitável? Toda a gente sabe que há permissão woke para enxovalhar americanos e capitalistas. Da minha parte, reputo de delícia esta parte do livro. É um magnífico exemplo daquilo que era aceitável escrever em 1930 e se tornou impensável depois da 2ª Guerra Mundial e do Holocausto. Conhecendo-se os campos de concentração, os milhões de judeus gaseados e perseguidos, os guetos nos países ocupados pelos nazis, um crime que perdura até hoje (não só os imbróglios sobre a posse de obras de arte roubadas ou vendidas coercivamente por judeus em fuga como, por exemplo, a maior propensão para depressão dos filhos dos sobreviventes dos campos de concentração), fazer piadas com os pogroms (russos, por sinal) não tem, lá está, piada. A questão é esta. Se o comentário de Maugham dificilmente seria escrito depois de 1945, desde logo porque os leitores torceriam o nariz com a falta de empatia e de noção, tal não significa que tenha de ser apagado do livro de 1930. Tal como Rangun não deve ser transformado em Yangon (o novo nome da cidade). Nem se deve maçar os leitores introduzindo pelo meio das palavras de Maugham explicações sobre as malfeitorias europeias na China no século 19 (que ainda se fazem sentir na psique e na narrativa da política chinesa; e, por outro lado, tornaram Hong Kong uma cidade deslumbrante e única, que não seria sem o domínio britânico). Ou, pior, falseando o texto original, para não confrontar os demasiado sensíveis leitores com o ignominioso passado colonial. Isto tudo vem a propósito das recentes decisões de editoras limparem os livros de Roald Dahl e de Ian Fleming, o criador de 007, de certas palavras malditas. No primeiro caso, "gordo" passou a "enorme", retiraram-se as referências a "mães" e a "pais" — aparentemente ser mãe ou ser pai é um conceito datado e ofensivo para o moderníssimo século 21 — para o genérico "família" ou "parents" (em inglês), e "rapazes" e "raparigas" passaram a "crianças", que ter sexo também já não fica bem e temos todos de ser fluidos quer queiramos, quer não. No caso dos livros de 007, foi limpa linguagem racista sobre negros — permanecendo linguagem racista sobre outras etnias e nacionalidades, bem como expressões profundamente sexistas e até relativistas de violência sexual (esta limpeza seletiva, só por si, daria material para várias páginas). A higienização dos livros escritos há décadas pode ser vista de muitos ângulos. O atropelo à liberdade de expressão dos autores. O desrespeito por um autor que é mudar-lhe as obras sem autorização (já morreram). Eu escolho o ângulo da estupidez dos leitores que não sobrevivem (sem sofrerem vários achaques que lhes periguem a vida dos quatro neurônios funcionais) acaso leiam num livro que há uma personagem gorda, ou um homem minúsculo, ou que um branco fez considerações racistas sobre um negro, ou que há sexismo indecoroso à solta por aí, ou... Sou do tempo em que se lia livros para aprender, conhecer vidas diferentes, espreitar a natureza humana, saber de culturas de sítios distantes, atormentarmo-nos com injustiças e prisões (metafóricas) que, pessoalmente, desconhecemos. No fundo, para ver o outro. Tanto assim é que ler ficção é um dos melhores treinos para desenvolver a empatia e o pensamento crítico. Atualmente, presumo, deve ler-se livros para estupidificar. Os leitores não podem ser confrontados com o que é ofensivo e fora das lentes atuais. Não devem aprender que o mundo nem sempre foi como é agora, as circunstâncias políticas e sociais mudam, e o quadro de valores das comunidades evolui. Estão arredados do princípio fundamental da leitura: um texto é sempre construído, e só assim se percebe, dentro do seu contexto. Ao invés, promovem-se criaturas que nem na literatura de ficção aguentam realidades ofensivas (mas que boa preparação para a vida). Se há pessoas incapazes de ler os livros como foram escritos, melhor que não os leiam e deixem os livros intactos para quem gosta de os ler. O problema não é a linguagem datada de muitos livros. É a vontade, apresentada em nome do bem, de apagar o que não nos agrada. Se não gostam do conteúdo por ser racista, antissemita, machista, colonialista ou com pecados do catecismo woke, há solução fácil: não comprar e não ler. Todas as livrarias têm oferta de livros sobre auras e anjos e parecidos. Com sorte até estão em promoção.
2023-03-07T15:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/maria-joao-marques-limpar-livros-pecados-ou-elogio-estupidez
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Anuário da Justiça Federal
Produtividade do TRF-3 contrasta com situação de suas varas e JEFs
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Federal 2022 | 2023, lançado na quinta-feira, dia 2 de março. A publicação está disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para acessar) e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar). A crise sanitária que produziu grandes tragédias no mundo parece ter gerado oportunidades para o Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A corte aproveitou o esvaziamento de sua sede e a reorganizou por inteiro em busca de mais racionalidade, fundindo secretarias e otimizando os espaços físicos, antes ocupados por pilhas e pilhas de processos físicos. Com praticamente a totalidade de processos digitalizados dentro do sistema do Processo Judicial Eletrônico (PJe), desembargadores e servidores consolidaram o sistema híbrido de trabalho. E a mudança não fez mal: a produtividade aumentou nos últimos anos. Em 2019, o tribunal julgou um total de 180 mil processos, 25 mil a mais que a distribuição; em 2020, o ano do choque da epidemia, foram 50 mil acima da distribuição, com 200 mil julgados; em 2021, foram 80 mil julgados a mais, também na casa dos 200 mil julgados, mas com distribuição menor no ano. A retomada dos trabalhos na forma presencial seguiu resoluções da Presidência, que determinou a presença dos servidores no gabinete dois dias úteis da semana, com percentual de 40% da força de trabalho na unidade, o que foi observado e possibilitou a retomada das atividades de forma semelhante ao que era antes da epidemia. O uso da videoconferência resultou em alteração no Regimento Interno da corte. As sessões de julgamento agora podem ser híbridas, ou seja, desembargadores e advogados comparecem presencialmente, mas aqueles impossibilitados de se deslocar até o tribunal ou residentes em outras cidades podem participar da sessão remotamente. A nova direção assumiu em março de 2022. A desembargadora federal presidente do TRF-3, Marisa Santos, teve que encarar um sério problema no início da gestão. Em 30 de março, a corte sofreu um ataque hacker em sua rede interna, a poucos dias da emissão dos precatórios, cujo prazo se encerrava em 2 de abril. O problema só foi superado depois de recorrer ao Conselho Nacional de Justiça e à Polícia Federal. “Percebemos, então, que tínhamos de dar prioridade aos investimentos em segurança de TI”, comenta a presidente da corte. O tribunal vem passando por grande renovação no quadro de desembargadores. Diva Malerbi, Newton de Lucca, Lúcia Ursaia, Batista Gonçalves e Luiz Stefanini (então corregedor) deixaram o tribunal ao fazerem 75 anos. Cinco novos desembargadores chegaram ao tribunal, sendo quatro juízes de carreira (Victorio Giuzio, Ali Mazloum, Leila Paiva e Herbert de Bruyn), e um advogado pelo quinto constitucional (Marcelo Vieira). Duas das 43 vagas restam em aberto. O número de desembargadores foi ampliado de 43 para 55. Em um primeiro momento, serão preenchidas quatro vagas – três da carreira e uma do Ministério Público Federal. Os novos desembargadores irão para a 1ª e 4ª Seções, e assim, as 11 turmas do tribunal ficarão com quatro julgadores. Como a lei que determinou o aumento do número de desembargadores não autoriza o aumento de despesas, o tribunal terá de remanejar os servidores já contratados para atender os novos gabinetes: “Com a redistribuição de processos que faremos, cada gabinete vai perder um pouco do que tem para julgar e vai poder perder servidores para os novos gabinetes”, explica a presidente. Serão dois servidores a menos em cada gabinete, passando de 18 para 16. Como apontado por correição do Conselho da Justiça Federal no primeiro semestre de 2022, os julgamentos estendidos nas turmas que lidam com Processo Civil, sistemática disposta no artigo 942 do CPC, continuam morosos. Desde sua implantação, em 2016, as turmas não conseguem fazê-lo de forma imediata, como prevê o código, já que nos TRFs elas têm só quatro integrantes, e não cinco, como nos TJs. Isso faz com que seja preciso convocar desembargadores de outras turmas para sessões seguintes, que com frequência ocorrem meses depois do primeiro julgamento. As pautas são preparadas com meses de antecedência e os conflitos de agenda com os desembargadores convocados são constantes. “Por incompatibilidade de agenda, pelo número de processos, por uma série de coisas, só se consegue marcar para dali a cinco, seis meses. Tenho tentado fazer rápido, não passar de três meses, mas isso faz com que eu tenha que acionar toda hora o pessoal da 8ª Turma. É nossa obrigação? Lógico que é, mas é complicado. Porque você já tem os seus processos, e vai votar nos processos mais complicados da outra turma, que são aqueles que geraram divergência. É difícil. Por isso turmas com cinco integrantes resolvem o problema do Processo Civil”, comenta Carlos Delgado, da 7ª Turma. O CJF relatou que há turmas com grande acúmulo de processos parados no 942. Algumas já fazem sessões extraordinárias somente para dar vazão a esses casos. Como a lei da ampliação prevê oito vagas – e são onze turmas, o que permitiria que todas elas ficassem com cinco membros –, uma alternativa seria os três desembargadores que compõem a Direção da corte não perderem seus assentos na turma, e, em seus lugares, haver sempre três juízes convocados recebendo distribuição normalmente. Hoje, na prática, 40 desembargadores recebem distribuição nas turmas. O Pleno ainda definirá a solução mais adequada. Demandas Questões previdenciárias são de longe o tema mais julgado no tribunal, como se vê no quadro ao lado. Foram 74 mil casos em 2021, quase cinco vezes mais que o segundo assunto, tributos relacionados ao PIS e à Cofins. Dos dez temas que mais aparecem no quadro, quatro dizem respeito a benefícios previdenciários e assistenciais, três a tributos, um a discussões sobre sanções administrativas, um a anuidades de conselhos profissionais e um a contratos da Caixa Econômica Federal. Na 3ª Seção, houve baixa na distribuição em 2021, que refletiu na estatística do tribunal como um todo, mas aumentaram os casos de pedido de benefício por incapacidade durante a epidemia. A seção julga uma questão sensível sobre a possibilidade de devolução de benefícios pelo segurado quando, ao final, ele não tem a tutela antecipada confirmada. O Superior Tribunal de Justiça tem precedentes qualificados pela devolução, mas existe uma corrente de desembargadores que cita precedentes do Supremo Tribunal Federal favoráveis aos segurados. A 2ª Seção sentiu um aumento de mandados de segurança sobre negativa ou demora de atendimento nos postos do INSS, já que, durante a epidemia, houve muito atraso na apreciação dos pedidos por conta da paralisação das perícias médicas. Os casos acabam desaguando na seção, que julga a legalidade de atos administrativos. Na 4ª Seção, desembargadores relatam que sentiram o crescimento de casos envolvendo a divulgação e o armazenamento de pornografia infantil, fruto da intensificação de operações da Polícia Federal no combate a esse tipo de crime. No mais, os crimes de contrabando de cigarros falsificados e o tráfico internacional de drogas continuam uma constante. Primeira instância Se o TRF-3 comemora seus resultados e a melhoria de sua estrutura, o primeiro grau não tem esse privilégio. A carência de mão de obra é grande: faltam hoje, na 3ª Região, 109 juízes e 500 servidores. De 2019 a 2022, houve crescimento de 19,5 % do acervo, atualmente com 3,2 milhões de processos, com a ressalva de que 1,9 milhão desse total corresponde a processos sobrestados em primeiro grau. O primeiro grau, nos últimos quatro anos, não vem conseguindo julgar mais que a distribuição, ao contrário do segundo. Chama a atenção o aumento exponencial da distribuição de casos em 2021: de 535 mil no ano anterior para 805 mil, 90% disso nos Juizados Especiais. Isso tem explicação: os JEFs da 3ª Região vivenciam momento delicado, com aumento expressivo da taxa de congestionamento líquida a partir de 2019. Com ritos mais abreviados, fomento à conciliação, desnecessidade de representação de advogado antes da fase recursal e de pagamento de custas, taxas e despesas, eles atraíram a maior parcela das ações ingressadas na Justiça Federal. Também, o entendimento jurisprudencial de que a complexidade da causa ou a necessidade de produção de prova pericial não afastam a competência dos JEFs. No ranking de assuntos mais demandados no microssistema, de modo perene, encontram-se os processos relacionados a litígios de Direito Previdenciário e Assistencial (auxílio por incapacidade temporária, benefícios por incapacidade permanente, aposentadorias programadas, pensão por morte e benefícios assistenciais de prestação continuada). Além disso, circunstancialmente, calcados tão somente no critério objetivo do valor da causa, outros assuntos ensejaram considerável incremento da distribuição e do acervo processual, a exemplo dos relacionados aos índices de correção monetária do saldo das contas vinculadas ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e ao Auxílio Emergencial, instituído para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da covid-19. A quarentena imposta pela epidemia postergou a prática de atos processuais presenciais (tais como perícias e audiências), o que contribuiu para agravar a taxa de congestionamento dos JEFs da 3ª Região. Segundo a desembargadora Daldice Santana, coordenadora dos juizados na região, “a questão é muito mais complexa e está imbricada com outras causas que enfraquecem a capacidade operacional dos JEFs de dar vazão à crescente demanda em prazo razoável”. Dentre as causas mencionadas, ela destaca: o forte incremento no número de distribuição e do acervo em tramitação ocasionado pela mitigação da competência delegada introduzida pela Emenda Constitucional 103, de novembro de 2019, sem reforço da estrutura ou da força de trabalho; o circunstancial aumento do número de distribuição e do acervo em tramitação destinado a questionar a utilização da TR como índice de correção monetária dos depósitos das contas vinculadas do FGTS e a negativa administrativa de concessão do Auxílio Emergencial; a migração dos processos do SisJEF para o Sistema PJe, deflagrando naturais dificuldades de adaptação dos usuários à nova ferramenta; e a expressiva diminuição da força de trabalho das unidades judiciárias da 3ª Região, impulsionada pela Emenda Constitucional 95, de 15 de dezembro de 2016, que instituiu a chamada “regra de ouro” ou “teto de gastos”. O JEF de Araçatuba, por exemplo, sentiu o impacto da mitigação da competência delegada de tal forma que está com 23 mil processos. Daldice Santana e Marisa Santos estão atentas à situação. Inclusive, a presidente do TRF-3 visitou esses juizados em novembro e busca amenizar o “estrago”, embora se diga favorável à concentração dos casos na Justiça Federal. “A Justiça Federal tem que assumir a sua competência, sim.” Já na área das execuções fiscais, algo pode ser comemorado. A Fazenda Nacional está racionalizando o ajuizamento de ações e os impactos já estão sendo sentidos. Antes, tudo era ajuizado. “A Fazenda agora ajuíza as execuções fiscais depois de uma pesquisa daquilo que é viável cobrar. Com relação ao que está ajuizado, eles estão fazendo o que chamam de uma limpeza junto com o Judiciário e diminuindo esses acervos”, diz Marisa Santos. E, com relação aos diversos casos que estão sobrestados pelo artigo 40 da Lei de Execução Fiscal, a Fazenda está já verificando o que prescreveu e, aos poucos, pedindo a extinção desses processos. “Primeiro, a Procuradoria da Fazenda Nacional implementou o plano de qualificação da cobrança dos créditos tributários. Padronizou a forma de seleção dos créditos passíveis de recebimento em ações judiciais; sobrestou as demandas sabidamente inúteis ou com valores ínfimos (menores que R$ 20 mil) e focou nos médios (entre R$ 1 milhão e R$ 10 milhões) e grandes devedores (acima de R$ 10 milhões), os quais representam cerca de 90% da dívida ativa”, explica o juiz Denilson Branco, especializado na área. Segundo, ele diz, “no âmbito administrativo, utilizou-se métodos alternativos de cobrança, como o protesto extrajudicial da certidão da dívida ativa e restrições de crédito perante o Serasa, além de se aprimorar as informações dos devedores por intermédio de sofisticados programas de computadores, que cruzam as informações disponíveis de bens, direitos e sociedades, e definem uma probabilidade de sucesso da demanda judicial”. Outros fatores que ajudaram foi a instalação e o aprimoramento do uso do PJe, com ganho de escala no processamento dos feitos. E, ainda, as ferramentas eletrônicas de localização do devedor e de seus bens foram aprimoradas pelo Conselho Nacional de Justiça. Tais inovações proporcionaram a redução de processos novos perante o Poder Judiciário, além de acelerar o sobrestamento ou mesmo a extinção dos processos pela prescrição intercorrente (após seis anos no sobrestamento). “Ainda há muito por fazer para diminuir a morosidade processual, mas a melhora contínua dos sistemas processuais e das alternativas à ação judicial apontam a direção certa na gestão da demanda, sem a necessidade de aumento de despesas com novas varas, pessoal ou estrutura física”, complementa Denilson Branco. Segundo Marisa Santos, esses bons resultados já estão fazendo com que a 3ª Região aproveite as varas de execução fiscal e mude a sua competência. Ela afirma que é urgente haver mais varas de juizado. “Vamos instalar a terceira vara do Juizado Especial Federal de Campinas. A iniciativa é de dois juízes de uma Vara de Execução Fiscal de Campinas, que a  ofereceram para a transformar na terceira vara do Juizado Especial de Campinas. Oferecimento imediatamente aceito.” ANUÁRIO DA JUSTIÇA FEDERAL 2022 | 2023 ISSN: 2238107-4 Número de Páginas: 236 Editora: Consultor Jurídico Versão impressa: R$ 40, na Livraria ConJur Versão digital: gratuita, acesse pelo site anuario.conjur.com.br e pelo app Anuário da Justiça Anunciantes desta edição Advocacia Fernanda Hernandez Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia Basilio Advogados BFBM – Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados Bialski Advogados Associados Bottini & Tamasauskas Advogados Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Dannemann Siemsen Advogados De Rose Advogados Décio Freire Advogados Dias de Souza Advogados Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados D’Urso & Borges Advogados Associados Fidalgo Advogados Heleno Torres Advogados JBS S.A. Machado Meyer Advogados Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia Milaré Advogados Moraes Pitombo Advogados Mudrovitsch Advogados Original 123 Assessoria de Imprensa Pardo Advogados & Associados Pinheiro Neto Advogados Refit Sergio Bermudes Advogados Warde Advogados
2023-03-07T08:13-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/produtividade-trf-contrasta-situacao-varas-jefs
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Contas à Vista
Políticas para mulheres não têm prioridade no orçamento
Quem quiser testar o nível de relevância de uma determinada política pública deve buscar seu estágio de proteção jurídica e cobertura fiscal nas leis do ciclo orçamentário. Mais do que declarações de intenção belas e genéricas, é na efetiva execução das metas físicas e financeiras que se abre a possibilidade de alcance substantivo daquilo que foi prometido. Soa, pois, mero diversionismo comemorar com flores e mensagens róseas a luta por equidade de gênero que marca o esforço de conscientização embutido no 8 de março, quando nossas leis orçamentárias solenemente negam densidade à participação feminina nas despesas governamentais e quando a desigualdade entre homens e mulheres persiste acintosamente na arrecadação tributária. De um lado, cabe reconhecer alguns avanços discretos como o da ADI 5.422, em que o Supremo Tribunal Federal afastou a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família recebidos a título de alimentos ou de pensão alimentícia. De outro lado, é dramático, porém, o diagnóstico feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), segundo o qual o Brasil havia chegado em 2022 ao menor patamar, em quatro anos, das dotações para combater a violência contra a mulher, a despeito do crescimento dos casos de feminicídio nos últimos oito anos. Carolina Pereira Tokarski, Luana Pinheiro e Ranna Mirthes Sousa Correa, em artigo disponível aqui, apontam trajetória regressiva nas políticas para as mulheres desde 2015: "Para entendermos melhor a forma como esse desmonte tem se dado, é possível analisarmos os acontecimentos em dois períodos distintos. O primeiro deles se caracteriza por um ciclo de estagnação e de retração do orçamento liquidado e das políticas executadas pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), que se verificou entre 2015 e 2018. A esse ciclo chamamos de 'Estagnação da Política'. Mas é a partir de 2019 que se pode falar em um efetivo 'Desmonte das políticas para as mulheres no Brasil', movimento que marca o segundo período aqui analisado. Além da manutenção do rebaixamento hierárquico da pasta, que já teve status de ministério e hoje é apenas mais uma dentre as oito secretarias que integram o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), a SNPM retrocedeu a patamares orçamentários semelhantes aos anos de sua criação, no início dos anos 2000 e importantes políticas têm sido destruídas ou descontinuadas. [...] Diferentes estratégias que vinham sendo utilizadas para esta pactuação e transversalização foram desmontadas: a última Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi realizada no ano de 2016, o último Plano Nacional de Políticas para as Mulheres teve vigência até o ano de 2015 e o componente de gênero ou mulher deixou de ser transversalizado no âmbito do Plano Plurianual (PPA 2020-2023). [...] A lição que se tira da experiência dos últimos anos é que é sempre possível retroceder quando se trata de políticas para a igualdade de gênero. Não importa o quanto se tenha caminhado, o quanto as políticas reflitam demandas dos movimentos de mulheres e expressem conquistas de toda a sociedade, essa é uma agenda sujeita a chuvas e trovoadas." As idas e vindas no enfrentamento da disparidade de gênero não se resumem à agenda governamental. Os retrocessos se acumulam na sociedade em termos de violência doméstica e questionamento enviesado das hipóteses de aborto legal. Aliás, é sintomático que tamanha erosão se adense exatamente quando a sociedade passa a tomar consciência da sobrecarga de trabalho não remunerado e invisibilizado das mulheres. Embora contraditório, não causou grande celeuma o fato de terem sido reabertos os bares muito antes das escolas durante a pandemia da Covid-19. Quando se observam os afazeres domésticos e o cuidado de pessoas, as mulheres, em média, dedicam quase o dobro de tempo semanal (21,4 horas), em face do tempo dedicado pelos homens às mesmas tarefas (11 horas), segundo a Pnad Contínua 2019. A disparidade de gênero no mercado de trabalho se faz sentir de forma avassaladora na baixa presença feminina no topo das carreiras, independentemente de se tratar do serviço público, iniciativa privada e/ou ambiente acadêmico. Há uma seleção perversa que simplesmente exclui as mulheres do horizonte de promoção, reconhecimento e valorização profissional, em decorrência, entre outras dimensões, daquela mencionada sobrecarga de trabalho invisível. O próprio fato de haver proporcionalmente muito menos mulheres em mandatos eletivos e postos de direção do que homens, a despeito de sermos a maioria da população brasileira, revela a dimensão estrutural desse impasse. Aliás, a própria composição do Supremo Tribunal Federal revela a disparidade de gênero e racial que paradigmaticamente ilustra o núcleo da nossa desigualdade social, como bem denunciado por Fabiana Severi em entrevista à Folha. Recentemente Danilo Vital denunciou neste ConJur a existência de um teto invisível para a ascensão das mulheres nas carreiras jurídicas e, em especial, na magistratura: "'Isso demonstra o teto de vidro. Temos obstáculos, sim, mas são invisíveis porque não são expressos. Como não conseguimos chegar ao topo, batemos a cabeça no teto de vidro', disse Mariana Yoshida a uma plateia predominantemente feminina presente na sede do CNJ. [...] 'Existe, sim, uma cota para homens brancos nos tribunais brasileiros. Ela existe e é imutável', apontou a juíza federal Adriana Cruz, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Para ela, é preciso derrubar as estruturas institucionais que favorecem um cenário que dá ao homem o direito adquirido de ser mediano e, ainda assim, ocupar espaços e progredir. 'Seguir as regras como sempre existiram não vai levar a lugar nenhum. Precisamos reescrever as regras. Não tem jeito. Pode chamar de cota, do que quiser. Se não houver ação afirmativa, vamos continuar fazendo um milhão de seminários e trazendo diagnóstico de como não estamos nesses espaços', disse. Presidente da Comissão Anamatra Mulheres, da associação de classe da Justiça do Trabalho, Luciana Conforti narrou por que juízas perdem promoções por questões intrinsecamente ligadas ao gênero: maternidade, amamentação, violência nos fóruns, entre outras. "Tudo impacta, e assim ela não conseguirá progredir na carreira se o Judiciário não tiver esse olhar atento para suas questões internas." Todo esse caldo cultural e historicamente misógino se faz sentir nas leis orçamentárias, ainda que de forma indireta e implícita. A LDO 2023 (Lei 14.436, de 9 de agosto de 2022) previu parcas disposições sensíveis ao gênero, como as que se seguem: "Art. 129. As agências financeiras oficiais de fomento terão como diretriz geral a preservação e a geração do emprego e, respeitadas as suas especificidades, as seguintes prioridades para: I - a Caixa Econômica Federal, redução do deficit habitacional e melhoria das condições de vida das populações em situação de pobreza e de insegurança alimentar e nutricional, especialmente quando beneficiem idosos, pessoas com deficiência, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, mulheres chefes de família ou em situação de vulnerabilidade social, policiais federais, civis e militares, e militares das Forças Armadas que morem em áreas consideradas de risco ou faixa de fronteira prioritárias definidas no âmbito da PNDR, por meio de financiamentos e projetos habitacionais de interesse social, projetos de investimentos em saneamento básico e desenvolvimento da infraestrutura urbana e rural, inclusive mediante a prestação de serviços de assessoramento técnico, estruturação e desenvolvimento de projetos que propiciem a celebração de contratos de parcerias com os entes públicos para execução de empreendimentos de infraestrutura de interesse do País, e projetos de implementação de ações de políticas agroambientais; [...] § 5º. As agências financeiras oficiais de fomento deverão ainda: [...] III - considerar como prioritárias, para a concessão de empréstimos ou financiamentos, as empresas: a) que desenvolvam projetos de responsabilidade socioambiental ou de atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica; [...] Art. 158. A elaboração e a aprovação dos Projetos de Lei Orçamentária de 2023 e dos créditos adicionais, e a execução das respectivas leis, deverão ser realizadas de acordo com os princípios da publicidade e da clareza, além de promover a transparência da gestão fiscal e permitir o amplo acesso da sociedade a todas as informações relativas a cada uma dessas etapas. § 1º. Serão divulgados em sítios eletrônicos: I - pelo Poder Executivo federal: [...] r) até 31 de março de cada exercício, relatório anual referente ao exercício anterior relativo à participação da mulher nas despesas do orçamento; e [...] Art. 165. O Poder Executivo federal adotará medidas com vistas a: [...] III - elaborar metodologia de acompanhamento dos programas e das ações destinados às mulheres com vistas à apuração e à divulgação de relatório sobre a participação da mulher nas despesas do orçamento." Noutro giro, interessante notar que, no Plano Plurianual federal de 2020 a 2023 (Lei 13.971, de 27 de dezembro de 2019), houve a clara associação entre as políticas para as mulheres e a política educacional, na forma do seguinte §1º do seu artigo 22: "Art. 22. Os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional promoverão o alinhamento contínuo entre os instrumentos de planejamento sob sua responsabilidade, com vistas ao fortalecimento da governança pública. § 1º. Para as políticas públicas constantes dos programas de atendimento em educação e de amparo às mulheres, são instrumentos de referência, respectivamente, o Plano Nacional de Educação e o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. [...]" Ideal seria, à luz do citado dispositivo do PPA, que o PNE e o PNPM fossem integrados e monitorados em sua densidade emancipatória. A falta de expansão de vagas em creches e em horário integral na educação básica obrigatória, por exemplo, atesta o quanto são afrontadas concomitantemente ambas as agendas. Transversal e intersetorialmente, a sociedade brasileira precisa estar consciente do elevado estágio de inadimplemento das metas e estratégias do planejamento educacional, tanto para que o direito à educação das crianças e jovens seja plenamente assegurado, quanto para que as mulheres tenham condições adequadas de empregabilidade e possam objetivamente tentar ascender na carreira. Em breve será publicado o relatório anual (até 31 de março), tal como previsto no artigo 158, §1º, inciso I, alínea "r" e regido pela metodologia prevista pelo art. 165, III, ambos os dispositivos da LDO federal deste ano, sobre a "participação da mulher nas despesas do orçamento". Ideal seria que, nele, fosse empreendido — nos termos propugnados pelo artigo 22 do PPA 2020-2023 — o "alinhamento contínuo dos instrumentos de planejamento" em busca da construção conjunta e reforçada das "políticas de atendimento em educação e de amparo às mulheres". Afinal, tirar do papel as poucas e ainda insuficientes previsões normativo-alocativas que buscam enfrentar a disparidade de gênero, de forma estrutural e sistêmica, já seria um passo significativo para corrigir a falta de prioridade real a que temos assistido no ciclo orçamentário brasileiro.
2023-03-07T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/contas-vista-politicas-mulheres-nao-prioridade-orcamento
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Opinião
Antonio Carlos Aguiar: O ChatGPT e o Chapeuzinho Amarelo
Dei aula por quase 30 anos para cursos de graduação: ciências contábeis, administração e direito. Um modelo onde eu, professor, repassava algum conhecimento (muito pouco, comparado a todo o conteúdo disponível aos alunos, em especial nos dias de hoje) e, depois, aplicava-lhes uma prova, para saber se tinham, cada um a seu turno, absorvido de uma forma ou outra, aquele pequeno objeto que eu lhes havia repassado. Muita vez, de maneira absolutamente teórica, sem aplicação prática e efetiva à solução e/ou compreensão da razão do "existir" da matéria e enfrentamento num caso real. Em verdade, se tratava de uma espécie de bula, sem obrigatoriamente demonstrar, na prática, "como" se chegou naquilo ou o "porquê" do remédio, ou mesmo sobre a existência da doença, que gerava o tema ou temas tratados em sala de aula. Uma subjetividade (de conteúdo delimitado ao espaço e formato expostos) para futura utilização objetiva. Um paradoxo aceito e incentivado. Prova realizada; nota dada; aluno passando (ou não) de ano, dentro e de acordo com uma linear programação de uma consagrada esteira de linha de produção do aprendizado. Ponto final. Isso, ano após ano. Um ensino eminentemente passivo. Tal e qual explicitado e explicado pelo professor e pesquisador Claudio de Moura Castro: "o ensino passivo é ameno, agradável e leve. O professor ensina tudo, passo a passo. Não é surpresa que essa forma de ensino agrade a todos. Peça a qualquer aluno que descreva seu professor ideal e teremos a figura de um grande expositor" (jornal O Estado de S. Paulo de 5/2/2023). Contudo, esse passivo, ameno e agradável jeito de aprendermos e depois nos posicionarmos profissionalmente está em xeque. Apareceu esse tal de ChatGPT que, ao que tudo indica, será o exterminador do futuro (já agora no presente!) de todos nós, professores, advogados, jornalistas, pesquisadores... O robô efetivamente roubando empregos, profissões e paixões. A ficção tornando-se realidade. O ChatGPT é o nosso Lobo. Somos o Chapeuzinho Amarelo do famoso conto de Chico Buarque. Nos encontramos: "Amarela de medo. Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. Já não ria. Em festa, não aparecia. Não subia escada e nem descia. Não estava resfriada, mas tossia. Ouvia conto de fada e estremecia. Não brincava, nem de amarelinha". Sem dúvida alguma esse Lobo ChatGPT causa medo. Foi capaz de passar em testes de medicina nos Estados Unidos. Numa prova final de um MBA de Wharton. No Brasil, na primeira fase do exame da OAB. O que fazer? Por que isso acontece justo agora? Na nossa vez? Isso é sorte, azar ou simplesmente um "talvez"? Há um conto chinês que nos ajuda a pensar essa maré de sorte, azar ou "talvez". Diz mais ou mesmo assim: "Um pobre camponês despertava a inveja das pessoas mais ricas da região por possuir um extraordinário cavalo branco. Sempre que lhe ofereciam um grande valor pelo animal. Ele simplesmente agradecia e respondia que não queria e nem podia se desfazer dele. Tinha-lhe um apreço muito grande. Certo dia o cavalo fugiu. Seus vizinhos vieram até ele, dizendo o quanto aquela situação era-lhe ruim. Um verdadeiro azar tinha abatido sobre o camponês. Ao que ele, então, respondia-lhes: 'talvez'. No dia seguinte, o cavalo fujão reapareceu. E consigo trouxe outros sete cavalos lindos, maravilhosos e selvagens. Os vizinhos, novamente, batem à sua porta, só que agora, dizendo-lhe, nossa que sorte! Ao que ele, então, responde-lhes: 'talvez'. Noutro dia, seu filho tentando domar um dos cavalos selvagens, dele cai e quebra uma perna. Mais uma vez os vizinhos aparecem e exclamam: que azar. Ao que ele, então, responde-lhes: 'talvez'. Dia seguinte, oficiais do exército, que recrutavam jovens para se tornarem soldados para ir à guerra que se dava na região, aparecem na casa do camponês, mas, não levam o seu filho, justamente porque ele encontrava-se com a perna quebrada. Outra vez, vizinhos vão ao seu encontro dizendo agora: que sorte. Ao que ele, então, responde-lhes, uma vez mais: 'talvez'." Voltemos à Chapeuzinho Amarelo. Ao seu "talvez" e seu encontro com o Lobo. "Chapeuzinho Amarelo de tanto pensar no LOBO, de tanto sonhar com LOBO, de tanto esperar o LOBO, um dia topou com ele que era assim: carão de LOBO, olhão de LOBO, jeitão de LOBO e principalmente um bocão tão grande que era capaz de comer duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz e um chapéu de sobremesa. Mas o engraçado é que assim que encontrou o LOBO, a Chapeuzinho Amarelo foi perdendo o medo, o medo do medo do medo de um dia encontrar o LOBO. Foi ficando só com um pouco de medo daquele LOBO. Depois acabou o medo e ela ficou só com o LOBO” (itaudeminas.mg.gov.br)." Num mundo multiforme, onde o profissional, seja de que área for, tem de lidar com uma gama infinita de oportunidades, opções e soluções das mais variadas, de natureza complexa, com mudanças exponenciais diuturnas, não é possível ficarmos com medo do Lobo. Temos de, ao contrário, ser o que o humano é: inventivo (que é mais do que simplesmente criativo, situação que a Inteligência Artificial alcança com seus algoritmos). O profissional (do futuro que já chegou!) é, segundo termo utilizado por Walter Longo, um "nexialista", que tem como principais características, curiosidade: curiosidade de conhecer e aprender; proatividade: planejar e tomar ações com antecedência; persuasão: capacidade de convencer as pessoas com argumentos sobre sua perspectiva; comunicação: prender a atenção facilmente daqueles que o ouvem; multidisciplinariedade: tratar com naturalidade assuntos improváveis e encontrando soluções de problemas por meio da combinação de diferentes abordagens; visão holística: identificar o impacto que ela causa em cada área, tomando decisões coerentes com o todo; questionamentos: sempre busca os porquês das coisas, não se contenta com os padrões estabelecidos; busca de conhecimento: encontrar respostas para o que ainda não conhece. Contudo, nada disso é novo. Nenhuma dessas exigências não é humana. Para tanto, basta-nos ler o curriculum de um profissional antigo, feito há muito tempo. Seu nome: Leonardo da Vinci, pedia à época emprego a Ludovico, constando dele, muito resumidamente, o seguinte: 1) Projetei pontes extremamente leves e resistentes (também desenvolvi métodos para incendiar e destruir as pontes do inimigo); 2) Sei como, durante um cerco, tirar água de fossos e construir caminhos e maquinas para tais expedições; 3) Tenho métodos para destruir qualquer fortaleza; 4) Projetei canhões; 5) Quando a batalha se der no mar tenho vários tipos de máquinas eficientes para ataque e defesas; 6) Conheço maneiras de escavar sem fazer barulho, tuneis subterrâneos; 7) Construo indestrutíveis carruagens; 8) Onde os bombardeios não funcionam posso projetar catapultas, manganelas, estrepes e outros dispositivos eficazes; 9) Em paz posso perfeitamente aceitar o desafio de me equiparar a qualquer outro em arquitetura de edifícios. Além disso, sei esculpir em mármore, bronze e argila (Leonardo da Vinci, Walter Isaacson). Os desafios estão postos. O Lobo do ChatGPT não é um Lobo. É uma ferramenta para o ato de inventar do ser humano (não do "aprendizado" da máquina/algoritmo). Para o além do linear. Para o aprendizado ativo e não passivo. Para compreensão e trato do novo. Temos, pois e então, apenas duas opções. Chorar ou vender lenços. Bora colocar preço nos lenços!
2023-03-07T06:07-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/antonio-carlos-aguiar-chat-gpt-chapeuzinho-amarelo
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Opinião
Soares e Correia: O direito feminino de (não) vestir
Dentre as lutas e debates por igualdade entre gêneros travados no mês de março, em torno das celebrações do dia da mulher, há pouca atenção ao direito feminino de usar a roupa que quiser, especialmente nos espaços públicos. Tampouco se explora a violência existente na imposição de estereótipos de gênero, raça e classe quando se aborda os corpos das mulheres e as roupas e adereços que os acompanham. O direito personalíssimo de vestir, expressão da liberdade de ser e estar no mundo, decorre da privacidade e do exercício do direito à autoimagem. No entanto, nas relações cotidianas, nota-se uma maior atenção à aparência e ao modo de ser e vestir das mulheres do que ao seu talento, personalidade ou êxito profissional. Em 2022, numa reportagem sobre a aplicação, pelas magistradas e magistrados brasileiros, do Protocolo para Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, foi citado o caso julgado pela juíza Katarina Mousinho de Matos Brandão, da 4ª Vara do Trabalho de Brasília, no qual houve condenação por danos morais do empregador que obrigava a empregada a usar batom e cobrir as tatuagens durante a jornada de trabalho, sob pena de demissão. Não raro, são noticiadas situações de mulheres barradas em fóruns e tribunais pela inadequação da vestimenta. Há casos de proibição de usar saias curtas, de advogada grávida cujo vestido foi considerado curto por uma atendente do fórum e pelo policial militar ou de impedimento de entrar no fórum por usar "roupa não composta". O reverso da moeda, para falar de mulheres magistradas, tem um raro exemplo que merece ser lembrado: os colares e gravatas-borboleta estilizadas usadas como gola da toga, juntamente com seus óculos emoldurados por aros escuros, foram marcas inconfundíveis de Ruth Ginsburg, juíza da Suprema Corte Americana. Segundo reportagem do Universa: "o colar escolhido para adornar o figurino de Ruth era um prenúncio sobre seu posicionamento em determinada discussão, alçando a escolha estética a um mergulho de significados e apostas. Ela mesma dava apelido aos acessórios e gostava de usar o que chamava de 'colar da divergência', metálico, semelhante a uma armadura com espinhos, da marca Stella & Dot". Ainda no campo das práticas inspiradoras, pode-se citar o uso de calças pela ministra Carmen Lucia, do STF, em março de 2007. Até então, apenas saias eram usadas nas sessões de julgamento do Supremo, tanto pelas magistradas como também pelo corpo de mulheres servidoras do Judiciário, advogadas e outras frequentadoras do local de julgamento. Mas a vigilância sobre o modo de vestir da mulher não é violência praticada apenas no mundo jurídico. Um estudo sobre o comportamento de profissionais da saúde nas redes sociais, publicado em dezembro de 2019 no Journal of Vascular Surgery, respeitado periódico de medicina, considerou as mulheres da área médica que postavam fotos de biquíni em suas redes sociais "apresentavam um comportamento antiprofissional". Esse estudo provocou uma reação mundial em 2020, com o compartilhamento, por mulheres profissionais da saúde de todo mundo, de fotos de biquíni com a hashtag #MedBikini. Em 2015, a Representation Project lançou a campanha #askhermore (pergunte mais a ela), com um apelo para que os jornalistas perguntassem mais às atrizes de Hollywood sobre seus papéis e menos sobre seus vestidos e penteados. Nesse mesmo ano, a campanha #DistractinglySexy (#distraidamente sexy), com fotos de cientistas trabalhando com seus uniformes nada sensuais, viralizou nas redes sociais depois que Tim Hunt, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina, disse, numa conferência mundial, que mulheres eram um fator de "distração" no trabalho. O que parece uma pergunta fútil, sobre a marca da roupa que a atriz usa, ou um comentário infeliz, como o de que as mulheres distraem os homens nos escritórios ou laboratórios são um indicativo da necessidade de mudanças urgentes e profundas na postura coletiva em espaços públicos, como forma de se garantir a equidade de gênero, de proteger a integridade física e psíquica da mulher, bem como de lhe assegurar a liberdade de expressão e locomoção. Essas posturas, falas e expectativas sobre a desenvoltura feminina, desde o modo de vestir, podem se caracterizar, em algumas situações, como estágios gradativos de violência. Em 2019, em meio às manifestações no Chile que trouxeram profundas mudanças na democracia do país, viralizou a performance "un violador en tu camino", realizada por mulheres de olhos vendados, que entoavam que a culpa é de quem estupra. Essa coreografia foi encenada em diversas cidades brasileiras, com o refrão "E a culpa não era minha, nem de onde estava, nem de como me vestia. O estuprador era você". No ano anterior, 2018, na Bélgica, a exposição "A Culpa é Minha?" exibiu roupas usadas por vítimas na hora do estupro. A mostra teve bastante repercussão, porque ao apresentar trajes absolutamente triviais, refutou-se o óbvio: que não são as escolhas das mulheres sobre suas vestimentas que induzem a violência ou transformam alguém em assediador, importunador e estuprador. As matérias jornalísticas brasileiras sobre a exposição belga traziam dados de uma pesquisa do Datafolha de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que diziam que, para mais de um terço dos brasileiros, "mulheres que se dão ao respeito não são estupradas" e "mulher que usa roupas provocantes não pode reclamar se for estuprada". A atenção para os trajes das mulheres tem contornos jurídicos relevantes não apenas vinculados à sua vida e segurança, mas também ligados ao direito humano e fundamental ao exercício da liberdade de expressão. Por essa razão, o assunto precisa ser apreciado com maior ênfase, devendo ser considerado inclusive no desenho de políticas públicas, na reformulação normativa e no julgamento sob a perspectiva de gênero. Claudina Isabel Velásquez era uma jovem de 19 anos, estudante de Ciências Sociais, que veio a ser encontrada morta e com indícios de ter sido estuprada, poucas horas depois de a família ter recorrido à polícia, diante de indícios de que sua filha estaria em perigo, tendo o Estado determinado que se aguardassem as 24 horas protocolares para o registro do desaparecimento, antes das quais a vítima veio a ser encontrada morta. Claudina foi apontada no processo como "XX", mesmo depois de sua identidade ter sido obtida, o que já demonstra que se lhe negavam direitos personalíssimos post mortem, a começar pelo nome. Além disso, houve falhas na investigação do crime em razão de estereótipos de gênero, prejudicando, assim, a observância do devido processo legal pelo simples fato de ser a vítima uma mulher, cujas vestimentas, "gargantilha no pescoço, piercing no umbigo e sandálias", levariam à ilação de se tratar de uma "bandida" ou "uma qualquer". No julgamento do Caso Velásquez Paiz versus Guatemala pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconheceu-se a violação, pelo Estado da Guatemala, ao exercício do direito à vida e à integridade física da jovem, mas se determinou também que seria desnecessário emitir um pronunciamento a respeito das alegadas violações do direito à vida privada, à liberdade de expressão e ao direito de circulação. Em voto com divergência parcial, um dos juízes consignou que também deveria ser declarada a "violação à liberdade de expressão pela vestimenta, particularmente feminina, em situações como no presente caso, em que o uso de roupas se transforma em elemento de identificação da vítima a camada social especialmente vulnerável e seguida de estigmatização, reconhecendo a negligência do Estado em levar a fundo as investigações de um assassinato. O argumento do voto é que essa negligência e a violação ao devido processo legal também foram fundadas no fato de o cadáver da mulher ter sido encontrado em um 'bairro de classe média baixa'". A aparofobia se confundira com a negação ao direito à liberdade de se expressar por meio de adereços e vestes de uma jovem de dezenove anos que talvez, se morta num bairro nobre, fossem tolerados como fashionistas. O caso Claudina Velásquez aconteceu na Guatemala, mas estampou violência institucional a uma liberdade de expressão (re)conhecida pelas mulheres brasileiras em seu cotidiano, mas ainda pouco estudada ou combatida em nosso país: a de aparelhar as instituições públicas e privadas, com instrumentos, institutos, normas e outros meios — inclusive a omissão estatal —, que servem para frustrar a liberdade das mulheres em seu direito de não seguirem dress codes e de adotarem a "moda", os cabelos, os corpos, as indumentárias, os acessórios, as marcas corporais ou os gestos que quiserem. Nesse voto, é constatado que a negação da liberdade de expressão de Claudina, pelo seu modo de vestir, foi uma violação "perpetrada pela ação do Estado, que denota que não será garantida a segurança de mulher que simplesmente parece exteriorizar, por meio de suas vestimentas, uma determinada identidade sexual ou cultural, bem como seu pertencimento a determinadas coletividades femininas". É também destacado que a liberdade de expressão de vestir tem "conteúdo político relevante", já que "a escolha individual na vestimenta e adereços que modificam a aparência física serve para exteriorizar a adesão a determinado grupo ou cultura". A repressão cultural e religiosa por meio da exigência de vestimentas e acessórios veio à tona em 2022, em decorrência da onda de protestos após a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, que fora vista viva pela última vez quanto detida pela polícia da moralidade em Teerã, capital do Irã, por violar as regras do país, que exigem que as mulheres cubram os cabelos com um hijab, ou um lenço de cabeça. As mulheres iranianas superaram o pavor que lhes é imposto cotidianamente e desafiaram as regras sobre cobrir a cabeça. Imagens divulgadas mostram várias delas subindo em lixeiras e carros, enquanto agitavam os véus e lenços no ar, o queimavam e muitas cortavam o cabelo, gritando "zan, zendegi, azadi", ("mulher, vida, liberdade"). As redes sociais também estão repletas de reações de mulheres contra a violência imposta institucionalmente, incluindo personalidades conhecidas, como a atriz iraniana Fatemeh Motamed-Arya, que deu uma declaração emocionada, na qual afirma que a morte de Mahsa é a morte de uma filha: "eu sou a mãe de Mahsa, sou a mãe de todas as iranianas e não sou uma mulher numa terra de assassinos". A onda de protestos em favor das mulheres iranianas chegou a outros países. Em Istambul, na Turquia, milhares de pessoas foram para a ruas segurando cartazes com fotos de Mahsa. Na internet, também foi bastante simbólica a divulgação de vídeo com mais de cinquenta artistas, entre elas Juliette Binoche, Marion Cotillard, Isabelle Adjani e Isabelle Huppert, no qual, ao som da música Bella Ciao, Binoche usa o termo "por liberdade" como palavra de ordem para dar início ao corte de mechas de seu cabelo, imagem repetida por dezenas de celebridades e lideranças francesas. O uso do véu em espaços públicos é um debate recorrente na França, um Estado oficialmente laico. Na Europa, desde 2010, a Bélgica e a França promulgaram leis que proíbem o uso de véus islâmicos que escondem o rosto, punindo com multas o seu descumprimento. Apesar do combate dos grupos de direitos humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou essas leis válidas. A mesma proibição legal existe na Dinamarca (lei de 2018), Áustria (lei de 2017) e Alemanha (2017). Em 2021, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que empresas privadas podem proibir que os seus funcionários usem véu islâmico durante o horário de trabalho. Em sentido oposto, mas igualmente violador da liberdade de expressão feminina, o governo da Indonésia passou a exigir que meninas e mulheres usem o jilbab, vestuário muçulmano que cobre a cabeça, o pescoço e o peito. A exigência teve impacto psicológico e causou sofrimento às meninas, estudantes que passaram a sofrer bullying se não usassem o véu e até a serem expulsas da escola, quando não desistiram de frequentar as aulas; enquanto as mulheres, funcionárias públicas, perderam seus empregos ou pediram demissão para escapar das constantes exigências de conformidade. Essa situação foi denunciada pela Human Rights Watch no relatório "I Wanted to Run Away': Abusive Dress Codes for Women and Girls in Indonesia". O estabelecimento de códigos de vestimenta para oprimir as mulheres assume contornos mais perversos quando afeta aquelas já vulneráveis em razão da desigualdade social da realidade brasileira, marcada pela pobreza, restrição de acesso ao emprego, além dos fatores raciais e de gênero. Os trajes escolhidos pelas mulheres para irem ao trabalho, foi o mote do livro Mulher, roupa, trabalho, lançado em 2021, escrito por Mayra Cotta e Thais Farage, no qual as autoras debatem padrões e estruturas que, ao enquadrarem determinados estilos e roupas às profissionais das mais diversas áreas e classes sociais, limitam a liberdade feminina e desigualam os gêneros. A única vez que o Código Civil menciona a expressão "roupas" é quando trata dos codicilos: "escrito particular seu, datado e assinado" através do qual o indivíduo faz "disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar", assim como através do qual pode "legar móveis, roupas ou jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal" (artigo 1.882), mas é em vida que elas lhes tecem a trama das negociações e das ocasiões. Dentre tantos exemplos, pode-se lembrar da detenção, em 2022, da artista plástica Beatriz Coelho, porque ela fazia topless em uma praia. A ausência do sutiã do biquíni foi considerada ato obsceno pelo policial que a levou para a delegacia. Algemada nos pés, Beatriz Coelho contou que ao seu lado, na delegacia, "tinha um homem aguardando sem camisa". Tratada no campo da autonomia da vontade, da liberdade de expressão, sem qualquer tipo de discriminação, o vestir-se não precisa ser judicializado, mas nem por isso deixa de ser um ato de liberdade e afirmação política da mulher passíveis de oposição ao Estado. Mulheres livres arrancam mechas em praça pública; queimam calcinhas; rasgam espartilhos; expõem mamilos que dizem "agora não" ou estampas que conclamam: "vem ni mim que eu to facinha". Podem se vestir de forma recatada e serem doidivanas ou viverem dressed to kill, sem fazer mal a ninguém. Expõem assim quem são e, em se expondo, se desnudam, mesmo vestidas, em meio a uma sociedade ainda preconceituosa, de olhos ubíquos e compreensões tardias. Não pedem aplauso ou gracejo, senão respeito: por suas escolhas e pelo direito de ser e se apresentar nos espaços públicos como quiser.
2023-03-08T16:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-08/soares-correia-direito-feminino-nao-vestir
academia
Opinião
Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro: Tributo à Almerinda Farias Gama
Não é que a Constituição de 1891 terminantemente proibisse as mulheres de votar — não ao menos pela literalidade do caput do seu artigo 70, a determinar que "são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei". Tampouco era proibido terminantemente que fossem eleitas, pois, de maneira idêntica, o parágrafo segundo do artigo 70 mencionava que eram inelegíveis só os "cidadãos" não alistáveis. Ocorre que, a despeito de o plural poder muito bem abarcar cidadãos e cidadãs, a interpretação predominante à época era a de que cidadãos compreenderia tão somente os homens, o que consequentemente excluiria as mulheres do rol de alistáveis e elegíveis. A leitura convenientemente restritiva dos dispositivos constitucionais e legais era secundada pela concepção de que, na sociedade, à mulher cabia só o ambiente doméstico, devendo se ocupar das tarefas indispensáveis à reprodução e à manutenção da vida humana. Com isso, as mulheres eram impedidas de exercer adequadamente sua cidadania. O voto apenas seria conquistado — e não concedido — pelas mulheres em 1932 ao final de um longo percurso que pode ser dividido em duas fases[1]. A primeira estende-se das primeiras cobranças, veiculadas na imprensa feminista ao longo do século 19, por participação política, passando pelos debates na Assembleia Constituinte e pela fundação da primeira associação feminina que viria a cobrar o sufrágio efetivamente universal — a saber, o Partido Republicano Feminino, fundado por Leolinda de Figueiredo Daltro em 1910. Em 1920, a primeira fase chegou a seu fim com a criação da Liga para Emancipação Intelectual da Mulher por Bertha Lutz em 1920. Em 1922, no que a Liga se transformou na Frente Brasileira pelo Progresso Feminino, teve começo a segunda fase do movimento sufragista, que terminaria com o Código Eleitoral de 1932. A exemplo de Leolinda e Bertha, as mulheres que se engajaram no bom combate pelo voto feminino eram geralmente brancas, instruídas e pertencentes à classe média e à alta da sociedade brasileira. De acordo com Laila Maia Galvão, "a presença em ambientes educacionais e a possibilidade de uma renda por parte de suas famílias e pelo trabalho realizado nas escolas teria impulsionado a entrada no debate político predominado por homens"[2]. A íntima ligação das sufragistas com a educação, inclusive, fez com que a luta pelo voto feminino estivesse fortemente imbricada com a luta pelo acesso à educação. A circunstância de serem "bem-nascidas" não ofusca a trajetória das sufragistas que eram brancas, instruídas e pertencentes às classes elevadas. Contudo, é certo que há um brilho especial na história daquelas que não compartilharam dos mesmos privilégios — para Laila Maia Galvão, "muita das vezes essa distinção de origem social possibilitava um discurso feminino mais radical em relação à educação" [3]. É o caso de Almerinda Farias Gama, mulher negra, nordestina e trabalhadora. Ser mulher já é uma condição suficiente para ter sua memória esquecida. Ao longo da história, a presença das mulheres na esfera pública vem sendo obliterada como se sua participação fosse de menor importância. Não eram protagonistas per se, mas tão somente coadjuvantes: eram mães, esposas ou irmãs de um homem. Ao fim desta operação, resta a imagem de que o mundo foi concebido e construído por personagens masculinos. Almerinda tem sua memória apagada não só pelo fato de ser mulher, mas também por ser uma mulher negra — sujeita, portanto, a um duplo fardo. Assim confirma a documentação reunida no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Dos 230 arquivos no acervo, só 16 são de mulheres. E, destes 16 arquivos, só o de Almerinda é de uma mulher negra, o que inevitavelmente "nos convida a refletir sobre o silenciamento que se impõe às narrativas e vivências das mulheres negras"[4]. Infelizmente, até entre suas sucessoras, sua história é desconhecida: na Marcha das Mulheres Negras, que reuniu milhares em Brasília para protestar contra intolerância religiosa e racismo, o nome de Almerinda era desconhecido[5]. Almerinda nasceu em 16 de maio de 1889 em Maceió, em uma família que, ainda que não fosse propriamente rica, desfrutava de condições financeiras suficientes para que Almerinda estudasse em escola particular. O precoce falecimento de seu pai em 1907 fez com que Almerinda fosse para Belém morar com sua avó e sua tia. Por lá, continuou com os estudos, mas já em escola pública. Almerinda passou por toda a aprendizagem que, à época, era preparação para que as moças de classe média viessem a desempenhar bem o papel de esposa e de mãe. Ainda que letrada, esperava-se que a moça casada permanecesse dentro de casa. No máximo, se imprescindível à subsistência da família, trabalharia de dentro do lar. Desta maneira, suas atribuições domésticas não sairiam comprometidas. Faltou, todavia, combinar com Almerinda, que, desde tenra idade, alimentava um sentimento de indignação contra a diferença entre homens e mulheres[6]: Lembro-me de que, quando criança, brincava com um primo (...). Nós éramos crianças — talvez com 10, 11 anos — e dessa discussão amigável surgiu uma dúvida: eu dizia que no casamento o homem e a mulher tinham direitos iguais e igual autoridade, que na casa, no casal, o direito era igual. Ele dizia que era do homem. Eu, não me conformando com aquilo, achei que devia servir de árbitro a nossa avó, que era considerada uma mulher sábia e que de fato era (...) Ela com certo tato, com muito jeito, disse que deveria haver harmonia, mas a autoridade do casal era do homem. Isso me deixou convencida da injustiça dos fatos, mais revoltada com isso. Aos 20 anos, Almerinda ingressou na Escola Prática de Belém, quando conquistou seu primeiro emprego como secretária e passou a contribuir com crônicas para o jornal A Província. Logo após, graduou-se datilógrafa, um trabalho então considerado "feminino" e, aos 23 anos, casou-se. Contudo, continuou trabalhando, o que não era comum para seu tempo. Mas, com nem três anos de casamento, Almerinda perdeu seu filho e, pouco tempo depois, seu marido. Em triste coincidência, casou-se mais uma vez em 1935, e, mais uma vez, seu marido e seu filho terminaram por falecer num breve intervalo de tempo. Sozinha e decidida a manter-se independente, cogitando possibilidades outras que arranjar um novo marido, não lhe restou saída senão buscar um emprego que lhe rendesse um soldo melhor que o de secretária[7]. Nesta busca, deparou-se com a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Diante da proposta de receber menos como datilógrafa unicamente por ser mulher, Almerinda decidiu, em fevereiro de 1929, deixar Belém e ir para o Rio de Janeiro, onde veio a se empenhar na luta pela emancipação política das mulheres. Com poucos meses no Rio de Janeiro, percebendo que entre as falas de Almerinda e os discursos sufragistas existia uma fina sintonia em favor da igualdade de tratamento jurídico, de tratamento político e também de tratamento profissional, as colegas de pensão convidaram-na a frequentar as reuniões da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e não tardou para que Almerinda caísse nas graças de Bertha Lutz: "Ela [Bertha], sabendo da minha atitude, tomou-me como, quer dizer, normalmente, sem uma maneira oficiosa, ela foi me transformando num dos baluartes ou num dos esteios para ela"[8]. Bertha logo fez de Almerinda assessora de imprensa e relações públicas da FBPF, passando rapidamente a atribuir-lhe funções extras, a exemplo da realização de discursos, da representação em eventos e da participação em movimentos de outras naturezas. Entre tais movimentos sociais, estava o pioneiro Sindicato de Datilógrafos e Taquígrafos. Diante da possibilidade de representantes dos trabalhadores elegerem deputados para a Assembleia Constituinte que redigiria a Carta de 1934, a fundação do sindicato foi concebida por Bertha e Almerinda para que a Federação contasse com uma integrante sua na escolha de um dos 40 assentos classistas na Assembleia Constituinte[9]: Deslocar as lutas feministas para o âmbito do movimento sindical permitiria à federação criar um instrumento para ter um de seus nomes numa competição eleitoral e, consequentemente, em um espaço de representação política. Furar esse bloqueio e estar nos lugares de tomada de decisão, mais do que um ato simbólico, permitiria ao movimento de mulheres ampliar os atores no jogo político: além da eleição regular, também poderiam ter um nome do seu grupo entre os representantes classistas. Sendo ocupante de um cargo ocupado majoritariamente por mulheres e dispondo de contatos na área, Almerinda foi a responsável por mobilizar datilógrafas, taquígrafas e secretárias. Conta a própria Almerinda que o trabalho de mobilização não foi fácil, pois "eram pessoas avulsas que eu consegui com esforço para fazer o número" [10]. Foi por meio da criação de um sindicato que Almerinda, uma mulher engajada na luta pela emancipação das mulheres, pôde participar do processo eleitoral que escolheria os responsáveis pela redação da nova Constituição brasileira e, assim, pôde contribuir à expansão dos direitos das brasileiras. Mas sua participação, entretanto, não se limitou ao inédito exercício da capacidade eleitoral ativa na escolha dos representantes classistas. De última hora e por conta própria, Almerinda lançou-se candidata à suplente de deputado no intuito de levar adiante os programas defendidas pela Federação nas eleições: equiparação de direitos dos dois sexos, sem quaisquer restrições, a obrigação do governo de prestar assistência à infância, à velhice e à invalidez e a instrução gratuita em todos os níveis. Embora não tenha sido eleita, não nutriu o sentimento de derrota, porque "fiz-me candidata a deputa avulsamente, por mim mesma, sem me aliar a ninguém, embora com a certeza de derrota. Uma simples experiência"[11]. Tanto Almerinda não se abalou que, em 1934, logo depois, lançou-se candidata a deputada federal pelo Distrito Federal, resumindo assim sua plataforma: Lutando pela independência econômica na mulher, pela garantia legal do trabalhador e pelo ensino obrigatório e gratuito de todos os brasileiros em todos os graus, Almerinda Farias Gama se recomenda pelo seu passado e pelo seu presente aos que lhe vão sufragar o nome. Destaque a cédula anexa e lance-a na urna no próximo dia 14. Almerinda, embora tendo recebido votação significativa, não saiu sufragada pelas urnas, vindo a se retirar da vida político-partidária até morrer em 1999. Seu exemplo, contudo, estende-se para além da sua morte. Enfrentando as dificuldades que a vida lhe impôs desde cedo, Almerinda "marcou com sua tenacidade um lugar na história da construção da cidadania feminina, abrindo espaço para a mulher negra participar do cenário político nacional"[12]. E, neste processo, contribuiu com a emancipação da mulher, garantindo a participação feminina no processo de eleição dos deputados responsáveis pelo texto constitucional brasileiro de 1934. Mas o espaço da mulher negra na política brasileira, conquistado por Almerinda a duras penas, ainda está longe de ser justo. Mulheres negras ainda são sub representadas nos espaços de poder: Em 2022, as mulheres negras, que representam 28% da população brasileira, respondem por 7% das cadeiras nas Assembleias Estaduais, 5% na Câmara dos Deputados e 1% no Senado. São apenas 74 deputadas estaduais ou distritais, 29 deputadas federais e 01 senadora da República. Mudar o quadro de sub-representação política da mulher negra no Brasil é seguir adiante com a batalha de Almerinda Farias Gama, mantendo, assim, viva sua memória. __________________ Referências bibliográficas ALMERINDA, a luta continua. Direção: Patrícia Cibele da Silva Tenório. Brasil: CPDOC-FGV, 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=U0oc8sux7yI>. Acesso em 22 ago. 2022. ALMERINDA, uma mulher de 30. Direção: Joel Zito Araújo. Recife: SOS Corpo, 1991. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_9jfbUM_zGQ>. Acesso em 23 ago. 2022. BEM, Ari Soares do. A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre o Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX. Revista Educação Social, Campinas, v. 27, n. 97, set./dez. 2006. GALVÃO, Laila Maia. Os entrecruzamentos das lutas feministas pelo voto feminino e por educação na década de 1920. Revista Direito e Práxis, v. 07, n. 13, 2016. KARAWEJCZYK, Mônica. Suffragettes nos trópicos?! A primeira fase do movimento sufragista no Brasil. Locus: Revista de História, v. 20, n. 1, 2021. MONTEIRO, Alessandra Nóbrega; COSTA, Anna Beatriz Oliveira Menezes; ALVES, Carolina Gonçalves; MENDES, Juliana Maria. Arquivos Pessoais de Mulheres: a experiência da Escola de Ciências Sociais. In: IX Seminário de Saberes Arquivísticos. Anais digitais do IX Seminário de Saberes Arquivísticos. Coimbra, 2019. TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. A vida na ponta dos dedos: a trajetória de vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999): feminismo, sindicalismo e identidade política. Dissertação (mestrado em história) – UnB. Programa de Pós-Graduação em História, Brasília, 2020. TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. “Assim eu sei que viverei para a posteridade”: depoimentos orais de Almerinda Farias Gama, uma pioneira do feminismo brasileiro. Revista História Oral, v. 24, n. 1, jan./jun. 2021. [1] KARAWEJCZYK, Mônica. Suffragettes nos trópicos?! A primeira fase do movimento sufragista no Brasil. p. 331. [2] GALVÃO, Laila Maia. Os entrecruzamentos das lutas feministas pelo voto feminino e por educação na década de 1920. Revista Direito e Práxis, v. 07, n. 13, 2016. p. 180-185. [3] GALVÃO, Laila Maia. Os entrecruzamentos das lutas feministas pelo voto feminino e por educação na década de 1920. p. 185. [4] MONTEIRO, Alessandra Nóbrega; COSTA, Anna Beatriz Oliveira Menezes; ALVES, Carolina Gonçalves; MENDES, Juliana Maria. Arquivos Pessoais de Mulheres: a experiência da Escola de Ciências Sociais. In: IX Seminário de Saberes Arquivísticos. Anais digitais do IX Seminário de Saberes Arquivísticos. Coimbra, 2019. p. 81. [5] ALMERINDA, a luta continua. Direção: Patrícia da Silva Cibele Tenório. Rio de Janeiro: CPDOC-FGV, 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=U0oc8sux7yI>. Acesso em 22 ago. 2022. [6] ALMERINDA, uma mulher de 30. Direção: Joel Zito Araújo. Recife: SOS Corpo, 1991. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_9jfbUM_zGQ>. Acesso em 23 ago. 2022. [7] TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. A vida na ponta dos dedos: a trajetória de vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999): feminismo, sindicalismo e identidade política. Dissertação (mestrado em história) – UnB. Programa de Pós-Graduação em História, Brasília, 2020. p. 95-96. [8] GAMA, Almerinda Farias [85 anos]. [jun. 1984]. Entrevistadores: Angela Maria de Castro Gomes e Eduardo Stotz. Rio de Janeiro, RJ, 8 jun. 1984. Apud: TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. “Assim eu sei que viverei para a posteridade”: depoimentos orais de Almerinda Farias Gama, uma pioneira do feminismo brasileiro. Revista História Oral, v. 24, n. 1, jan./jun. 2021. p. 180. [9] TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. A vida na ponta dos dedos: a trajetória de vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999): feminismo, sindicalismo e identidade política. p. 43. [10] GAMA, Almerinda Farias [85 anos]. [jun. 1984]. Entrevistadores: Angela Maria de Castro Gomes e Eduardo Stotz. Rio de Janeiro, RJ, 8 jun. 1984. Apud: TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. “Assim eu sei que viverei para a posteridade”: depoimentos orais de Almerinda Farias Gama, uma pioneira do feminismo brasileiro. p. 182. [11] A Noite. Rio de Janeiro: 21/07/1933, p. 1. Apud: TENÓRIO, Patrícia Cibele Da Silva. A vida na ponta dos dedos: a trajetória de vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999): feminismo, sindicalismo e identidade política. p. 52. [12] SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Erico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil. Zahar: Rio de Janeiro, 2000. p. 156.
2023-03-08T11:25-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-08/maria-claudia-bucchianeri-pinheiro-contributo-almerinda-farias-gama
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Opinião
Lilian Maciel Santos: Os tempos devem ser outros
Há quase três anos, foi publicado um artigo de minha autoria intitulado One man one vote, aqui nesta ConJur, em que questionava a efetividade do princípio da igualdade entre homens e mulheres no Poder Judiciário, particularmente para acesso a cargos que demandam uma escolha entre os pares, como a promoção a desembargador e às funções da alta administração dos tribunais de justiça. Àquela ocasião, o texto destacava que não se pretendia privilégios em função do fato de ser mulher e, invocando John Rawls, propôs-se a reflexão sobre justiça distributiva, reciprocidade social e igualismo democrático, de modo que as instituições públicas sejam estruturadas a produzir maior benefício aos menos favorecidos a longo prazo devendo, para tanto, empregar mecanismos institucionais alternativos. Chega-se então, a mais um 8 de Março, comemorando-se o Dia Internacional das Mulheres e, portanto, sempre um momento de parar e  de pensar em que medida o Poder Judiciário está promovendo e construindo esses "arranjos institucionais alternativos" aos quais o filósofo norte americano fazia referência. Se pensarmos na aplicação do princípio da igualdade equitativa de oportunidades tem-se a proibição de qualquer discriminação no acesso aos cargos e funções. Assim, a contrario sensu, o princípio da diferença  admite a possibilidade de desigualdades desde que a sua aplicação melhore a posição dos menos favorecidos. No caso da desequiparação tornar a situação dos menos preferidos pior que em numa outra completamente igualitária, tais desigualdades devem ser consideradas como injustas. Então, o acerto institucional no cenário das mulheres ocupantes de cargos no Poder Judiciário, deve se voltar à promoção de uma desigualdade que favoreça magistradas e servidoras, justamente para alcançar uma efetiva igualdade. A instituição pública deve cumprir esse papel de "agente desequiparador", de modo que a isonomia seja real. Se existem os entraves historicamente construídos a partir de arquétipos de uma sociedade enviesada, em que tanto os homens inferiorizam as mulheres, assim como elas próprias umas as outras, o Poder Judiciário tem o dever de impor a presença feminina nos espaços que são dominados por uma maioria branca e masculina. O emprego dos termos "dever" e "imposição" foi proposital, pois esse ajuste institucional a ser concretizado pelo Poder Judiciário, traz a ideia capitaneada pelo administrativista Celso Antonio Bandeira de Mello que o Poder Público não ostenta um poder-dever, mas o dever-poder. Não é uma faculdade a implementação de uma política de isonomia material, mas uma obrigação do Poder Judiciário, inserir a magistrada e a servidora em papéis de relevância de poder, a retratar um verdadeiro ato político-social. Busca-se, com isso, uma mudança de paradigmas, uma conquista de áreas de poder, com a decorrente transformação econômica, social e política em favor desse segmento inserido na maior parte do tempo em funções que não guardam representatividade num campo de atuação que deveria ser democrático. O quadro hoje revela ainda uma forte sub-representatividade. Afinal, quem melhor pode representar as mulheres se não outras mulheres? E, se há poucas mulheres nos tribunais e nos respectivos cargos diretivos, não se pode dizer que exista uma representatividade profícua. O Poder Judiciário é uma parte do Estado democrático de Direito. Ele representa o próprio Estado democrático de Direito dentro de suas atribuições e competências e no seu microcosmo de atuação. Por isso, tem o papel político de corrigir o déficit democrático da mulher nos cargos de poder que implicam um papel de tomada de decisão. Objetiva-se que esse arranjo alternativo institucional transmude numa política de presença: a magistrada e a servidora devem que ser vistas pela sociedade nesses papéis de relevo. A pré-condição para a transformação social da mulher é dar a ela visibilidade. Somente desta forma teremos uma representatividade substantiva no Poder Judiciário. Não é concebível falar-se em inclusão na seara de poder sem que haja a representação feminina. Um homem não pode substituir legitimamente uma mulher quando está em questão a representação das mulheres  per se, tal qual adverte Anne Phillips. Uma representação adequada no Poder Judiciário, perpassa por uma participação justa e um redesenho eficaz e realista desse modelo vigente. A alternativa para atingir esse escopo é uma ação que dê essa visibilidade feminina. Do diálogo entre um juiz da Suprema Corte norte americana e a juíza Ruth Ginsberg extrai-se essa ideia: ao ser indagada pelo colega quantas mulheres deveriam estar naquela corte entre os nove membros, Ruth responde: "Nove!", no que o magistrado replica: "Não é um exagero?" e ela, na sua tréplica irretorquível, arremata: "Mas não houve um tempo que era sempre assim com os homens?" Houve sim, um tempo da maioria absoluta masculina, branca de juízes e servidores. Mas os tempos devem ser outros. Outros ventos devem inspirar nosso Estado democrático de Direito e soprar fortemente dentro do Poder Judiciário. Então, sugere-se um movimento da sociedade para que conclame que as duas vagas que se avizinham para nossa Excelsa Corte, o Supremo Tribunal Federal, a serem escolhidas pelo chefe do Poder Executivo, sejam direcionadas para uma dobradinha feminina, de modo a atingirmos uma futura composição de três ministras e oito ministros e, mais a longo prazo e, porque não, como idealizou Ruth Ginsberg, de uma maioria de mulheres. Propõe-se algo ainda mais democrático e representativo: que as duas mulheres sejam negras, como forma de combater e corrigir uma dupla e nefasta exclusão: a da condição de ser mulher e de ser negra, minimizando a discriminação de gênero e do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. Ao finalizarem os leitores o exame desse artigo - talvez meio perplexos com essa proposta — se lembrem da música Balada do Louco dos Mutantes que diz: "Dizem que sou louco por pensar assim", mas a resposta a essa afirmativa vem da própria letra da canção: "Sim sou muito louco, não vou me curar. Já não sou o único que encontrou a paz!". E a nossa paz, será a paz social em que todos vivam numa sociedade justa, solidaria e inclusiva. __________________________________ PHILLIPS, Anne. The Politics of Presence Oxford: Oxford University Press, 1995. Mello, Celso Antonio Bandeira . Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Ed. Malheiros, 2003. Rawls, John. Uma teoria da Justiça, São Paulo, ed. Martins Fontes, 2016.
2023-03-08T06:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-08/lilian-maciel-santos-tempos-outros
academia
Estúdio ConJur
Lançamento de obra sobre precedentes terá palestra de ministro do STJ
O livro Precedentes judiciais no processo penal brasileiro (Amanuense Livros), que será lançado em 28 de março em Brasília, traz 25 artigos de alunos de dois semestres da disciplina “Fundamentação das decisões e precedentes judiciais”, ministrada no curso de pós-graduação stricto sensu do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa de Brasília (IDP) pela professora Danyelle Galvão — que também coordenou a obra. O lançamento ocorrerá no IDP Sul (607 Sul), a partir das 19h, e contará com palestra do ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz. Haverá emissão de certificado com carga de uma hora. Na apresentação à obra, Danyelle Galvão afirma que os artigos são resultado de debates sobre a motivação das decisões judiciais. “A relevância da garantia é incontestável. Ela extrapola o caso concreto, já que permite o controle da atividade jurisdicional, a verificação das razões e motivos adotados, análise da legalidade da decisão, além de possibilitar a crítica, inclusive de terceiros. Em suma, a motivação é uma condição necessária de justiça da decisão”, diz a professora. Ela também ressalta as discussões sobre a adoção (ou não) de um sistema de precedentes no Brasil, que ganharam força a partir do Código de Processo Civil de 2015. “Apesar da ausência de disposições legais específicas para o âmbito criminal sobre o tema, a preocupação em concretizar realmente a segurança jurídica e a igualdade de tratamento de situações análogas ou idênticas também teve um destaque maior nos tribunais superiores”. Danyelle Galvão ainda destaca que os encontros na pós-graduação englobaram discussões sobre a possibilidade de aplicação do regramento processual civil para o âmbito penal, as congruências e divergências apresentadas pela doutrina, jurisprudência e legislação, incluindo os regimentos internos dos tribunais superiores. Além de Danyelle Galvão, o livro tem artigos de Guilherme Barcelos, Daniela Maciel Peçanha Santana Barbosa, Diogo Thomson de Andrade, Marcela Rodrigues de Siqueira Vicente, Pedro Henrique Ferreira Marques, Bruno Martins Torchia, Paulo Osório Gomes Rocha, Carlos Márcio Rissi Macedo, Francisco Livelton Lopes Marcelino, Bruno Giovani Lima Souza, Adilson Cunha Silva, Paulo Augusto Moreira Lima, Guelber Caetano Chaves, Danilo Mendes Sady, Simone Camargo, João Rafael Amorim Souza Pereira, Fernando Pereira de Azevedo, Catharina Estrella Ballut, Fábio José Nunes Souto, Raoni Cézar Diniz Gomes, Lygia Assis Cunha Ferreira, Adriana Kinoshita, Fernanda Pereira da Silva Machado e Felipe Rocha Deiab.
2023-03-09T19:58-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-09/lancamento-obra-precedentes-palestra-ministro-stj
academia
Opinião
Antonio Lavareda: 513 empreendedores individuais na Câmara
*artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo Edmund Burke, o pai do conservadorismo, jamais poderia imaginar que o seu conceito de "livre representação" encontraria o paroxismo nos trópicos brasileiros. No Discurso aos Eleitores de Bristol (1774), declarou aos que o sufragaram ao Parlamento britânico que o exercício do seu mandato estaria desvinculado deles, e somente obedeceria aos desígnios que ele próprio identificasse, não aceitando espelhar a vontade dos representados. Pesquisas mostram, quatriênio após quatriênio, o Congresso brasileiro como o pior avaliado entre os nossos três Poderes — o Senado com nota melhor que a Câmara —, mas são rarefeitas ou muito superficiais as discussões a respeito. Cita-se com frequência entre os problemas o excessivo fracionamento das bancadas, mas se tangencia sua extensão e origem. A fragmentação real, na verdade, é muitas vezes maior que a medida pela distribuição das representações partidárias, na qual o país é recordista. Isso porque cada parlamentar leva consigo a consciência de que obteve seu mandato em uma lógica fundamentalmente individualizada, pois a maioria absoluta das legendas inexiste na mente do eleitor. O ditame da Constituição de 1988 ao configurar nossa democracia consagrou o papel dos partidos, vedando a possibilidade de candidaturas avulsas, reservando-lhes no conjunto o monopólio da representação da sociedade. Entretanto, hoje eles são quase todos hidropônicos, como aqueles vegetais cujas raízes sem solo ficam mergulhadas em líquidos nutrientes. São, na prática, organizações legais-burocráticas, sem vínculos diretos com a população, que cartorialmente chancelam candidaturas, organizam bancadas e, a partir do tamanho destas, extraem parcelas do fundo partidário, do fundo eleitoral e as muito ambicionadas fatias de verbas do Executivo. Neste último caso, vez por outra a expectativa se frustra, e o apoio prometido sobe no telhado. Em que país do mundo um governo entrante anunciaria pela manhã que uma legenda ocuparia três pastas do seu ministério para, à tarde do mesmo dia, o líder parlamentar afirmar que ele e os colegas votariam de modo independente? E como é que se naturaliza algo assim? No momento em que boa parte do país se mobiliza para coibir ataques à institucionalidade democrática, é imperioso reconhecer que, além de defendê-la, será imprescindível fortalecê-la, pois é exatamente a fragilidade que oportuniza o proselitismo e a sanha dos seus inimigos. E isso convoca a participação de todos — políticos, sociedade civil e meios de comunicação — para revigorá-la. Há vários fatores que explicam as patologias do nosso sistema político, mas um deles tem um papel central nessa etiologia: o modelo de lista proporcional "desordenada" que o Brasil pratica de forma absolutamente singular nos seus detalhes, como mostraram Lavareda (1991), Giusti (1994), Nicolau (2017) e Costa Porto (2022), e que é nefasto por pelo menos cinco motivos. 1) Ele gera nos três níveis da federação contextos de seleção darwiniana. Disputas renhidas com um copioso número de concorrentes, o que, por si só, eleva às alturas o custo das mesmas. O triunfo é reservado em muitos casos aos campeões do "extrativismo", sejam eles de esquerda, centro ou direita. Por essa designação, entenda-se a capacidade de obter o máximo possível de recursos provenientes de emendas — no caso dos incumbentes, que beneficiarão prefeitos que os retribuirão com votos —, de doadores, do apoio de entidades, de organizações variadas, ou mesmo da fortuna familiar. Ao final da jornada, temos na Câmara Federal, rigorosamente, 513 empreendedores individuais. De pouco adianta a ação afirmativa. Mulheres tiveram direito a 30% do fundo eleitoral. Pouco afeitas à briga de cotoveladas dessa competição, só elegeram 18% das vagas. O extrativismo mencionado é, a princípio, legal, mas nem sempre, como a imprensa já cansou de registrar. Por conta disso, circulam rumores de campanhas orçadas ano passado em valores estratosféricos — mais de R$ 10 milhões, de R$ 20 milhões, e até mais de R$ 50 milhões. Algumas exitosas, outras não. O certo é que, embora haja também uma parcela expressiva de recursos públicos envolvidos, é impossível a Justiça Eleitoral fiscalizar a contento 28.274 contas. Não pode ser saudável um modelo que, pelo seu custo, induz à busca desenfreada de recursos, e que não resistiria a um exame com lupa da contabilidade dos concorrentes. Por quanto tempo a política continuará a bailar na beira desse abismo? 2) O sistema alveja no cerne a coesão partidária, ao transpor para o interior de cada legenda o grau máximo de competição. O principal adversário do candidato não é um antagonista de outra agremiação, mas o seu colega de partido que pode ocupar o lugar que lhe caberia em função do número de cadeiras que supostamente será alcançado pela sigla. A partir daí, o "vale tudo" se estabelece, e a linha da cintura é ignorada. A crônica política fornece exemplos à mão cheia de episódios de antropofagia entre correligionários. 3) Promove uma exacerbada personalização da representação. Apenas 15 dias após a votação do primeiro turno em 2022, pesquisa Ipespe/Abrapel apontou que 50% dos entrevistados não lembravam o nome do partido dos candidatos em quem tinham votado para a Câmara Federal e assembleias estaduais. A pesquisa não checou se os demais lembravam corretamente das siglas. Provavelmente parte significativa não cumpriria esse requisito. Outras pesquisas acadêmicas, como a do Eseb (Estudo Eleitoral Brasileiro), em outros anos registraram que, 45 dias após a eleição, só um terço dos entrevistados era capaz de citar o nome do candidato proporcional em quem havia votado. Imaginem as respostas que obteremos se repetidas as duas perguntas um ano ou dois anos após a eleição. Escolhas "desimportantes" geram rápido esquecimento. E a desconexão entre candidatos e partidos não é inócua. Sem essa "amarra" o parlamentar pode flutuar, trocando de aquário a cada "janela", ou contribuir para fundir agremiações ou o que lhe for conveniente, autonomizado pela invisibilidade da marca partidária. 4) O modelo deturpa papéis básicos dos partidos na democracia. O papel de agregação e articulação de interesses sociais é substituído pela justaposição das agendas de empreendedores individuais. Perde-se a função de âncoras políticas estabilizadoras do regime, porque sem conexão social não podem estruturar e orientar fatias da opinião pública, organizando a informação política relevante. E muito menos podem ajudar o cidadão a avaliar de forma sinóptica os candidatos ou questões em tela. A propaganda eleitoral dos cargos legislativos é quase sempre mero pastiche biográfico. Por isso, quando vista, não raro é recepcionada com risos e deboche. Vítima das listas desordenadas disponibilizadas pelos cartórios partidários, o eleitor paulista, por exemplo, no ano que passou teve que escolher, de última hora como quase todos fazemos, um nome para deputado federal entre 1.540 candidatos, e mais um entre os 2.059 que buscavam a deputação estadual. Há o mínimo de racionalidade nisso? Parte significativa dos eleitos necessitará depois buscar um símbolo, uma marca, que auxilie sua identificação nessa autêntica selva na próxima competição. O caminho mais rápido será patrocinarem ou se somarem a iniciativas populistas esdrúxulas, exequíveis ou não, que chamem atenção e lhes credenciem individualmente aos olhos dos eleitores desorientados. Essa pseudo solução individual só contribui para deslegitimar a instituição. Quem tiver dúvidas, examine a relação de projetos em tramitação. 5) E, por fim, e ainda mais delicado, a governabilidade fica à mercê da capacidade de "sedução" dos governos e dos presidentes das casas ao nível individual. Para as questões correntes os representantes ainda podem ser disciplinados pelos líderes partidários com a ajuda do regimento. No entanto, quando se tratam dos grandes temas, em especial dos que exigem PECs, a tal disciplina se esvai e tudo passa a depender de "incentivos laterais seletivos". Deles, todos lembramos a problemática tipologia utilizada na Nova República, as emendas do "orçamento secreto" sendo a versão mais recente sob investigação. Por óbvio, não há modelos de representação ideais, mas quando se cogitam mudanças a única bússola razoável é identificar qual regra, além de mais factível, ajudaria rapidamente a enfrentar a maior patologia do sistema — no nosso caso, a hiper personalização dos mandatos parlamentares, causa e consequência da inviabilização dos laços de representação dos partidos na sociedade. E, como decorrência, da opacidade de parte considerável do jogo político que se dá longe dos olhos da população. O caminho plausível é o da adoção do sistema proporcional de listas ordenadas, adotado em países culturalmente parecidos com o nosso, como Portugal, Espanha, Argentina e Uruguai. Ele não contradiz a Constituição, não requerendo PEC. Pode ser viabilizado por lei ordinária, simples, sem muitas firulas, deixando que ao longo do tempo os próprios partidos optem pelo modo de aprovação das respectivas listas, apenas assegurando aos atuais detentores de mandato uma posição destacada no ordenamento. Alguém dirá que essa proposta foi rejeitada em momentos anteriores, mas isso não serve como argumento dissuasório. Por acaso lá atrás havia clareza de que a democracia estava em perigo? De que era preciso reforçar, concretar, os pilares da representação? Com a mudança, em um ou no máximo dois ciclos eleitorais, teríamos um choque de partidarização, com as legendas enraizadas no tecido social, correntes de opinião finalmente bem assentadas e a óbvia consequência de diminuição do número de legendas, retirando-nos da triste liderança mundial de fragmentação parlamentar. Além dos benefícios gerais para o sistema político, o que inclui campanhas 80% mais baratas, para a maioria dos segmentos específicos não haveria qualquer prejuízo, ao contrário. A esquerda, que por circunstâncias históricas conta com alguma identificação partidária, poderia se rejuvenescer, entronizando novos quadros que individualmente não conseguem encarar a forte correnteza do modelo atual. A direita bolsonarista se beneficiaria pela capacidade de propelir ideologicamente listas ordenadas. Os evangélicos descarregariam seus votos e consolidariam listas que a hierarquia das igrejas apontasse. Os partidos históricos de centro — MDB, PSDB, Cidadania — teriam finalmente capacidade de utilizar o recall e a marca que ainda detêm para reconquistar bancadas que foram esvaziadas em disputas personalizadas. Quanto ao novo centro (PSD) e a direita liberal (União Brasil, Progressistas e outros) teriam a seu favor, inicialmente, a popularidade dos muitos governadores, senadores e prefeitos para turbinar as respectivas legendas. Na lógica desse modelo, além de os partidos se esforçarem para evitar o risco de "maçãs podres", todas as listas se veriam compelidas utilitariamente a apresentar programas e mensagens claras com os quais estariam naturalmente comprometidos seus integrantes. Assim, os eleitores saberiam, por exemplo, se a bancada na qual votarão apoiará ou se oporá aos candidatos a governo nas três esferas. Depois, ficaria muito mais fácil acompanhar minimamente o seu desempenho durante a legislatura. Essa transparência permitiria punir ou gratificar a legenda na próxima eleição. Seria bom para todos, ou quase todos. Os únicos prejudicados seriam os poucos políticos eventualmente dependentes da opacidade do sistema atual. E que, por isso, arrumam todo tipo de desculpas para se opor à ideia. Embora sabendo que, sem essa necessária partidarização da sociedade, a democracia brasileira seguirá politicamente invertebrada, mais suscetível que outras a vergar sob a demagogia e a violência dos seus inimigos.
2023-03-09T15:13-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-09/antonio-lavareda-513-empreendedores-individuais-camara
academia
Senso Incomum
A morte da minha sogra e a ficha de vacinação de Bolsonaro
Abstract: Por que as leis não devem ser lidas no seu contrário "Mas a lei serve para proteger maus cidadãos?", perguntou-me um professor europeu com quem tomei um café recentemente. Ele me dizia que estava surpreso com a interpretação à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil). Tudo ficou proibido. Nada mais pode ser divulgado. Ora, se democracia é transparência... então, por que cada vez mais escondemos coisas? "É pior", respondi. "A LGPD é usada para subverter a cidadania." Minha sogra estava morrendo (de fato, faleceu horas depois). Minha esposa ligou para o hospital. Queria saber do estado de saúde da... mãe dela. Deu até o número do plano de saúde. Resposta do hospital: com base na LGPD, não podemos dar nenhuma informação. E seguiram-se outras pérolas. Pronto. Minutos depois, Dona Lúcia faleceu. Sigo. Participei de uma chapa para concorrer à eleição para o conselho de clube. Minha chapa pediu a lista de e-mails ou contatos dos eleitores (sócios). Resposta: impossível. Quantos eleitores são, afinal? "Não podemos responder." Nenhuma informação pode ser dada. Fundamento: LGPD. Afinal, essa lei veio para proteger a quem e de quem? O Google tem todas nossas informações e dados. Porém, a nossa LGPD não dá nem informação da mãe moribunda. Agora, recentemente, a grande polêmica: a mistura do sigilo em documentos com a LGPD. Pode-se ou não retirar o sigilo de cem anos da ficha de vacinação do ex-presidente Bolsonaro? E o que isso teria a ver com a LGPD? Uma coisa nada tem a ver com a outra. Mas já está misturada. Sem chance de desmisturar. O caso dos "sigilos" do governo Bolsonaro: não fosse um dado de interesse público, o ex-presidente é suspeito de ter faltado com a verdade sobre o assunto. Consequências: a (des)confiança da população em plena pandemia. Sabem o que é isto — uma pandemia? Aí entra a LGPD para proteger dados. Quais dados? Deve proteger inclusive se o deputado ou governador ou autoridade foram às três da tarde em um motel? Isso pode ferir a privacidade do gajo? Logo vão dizer que a declaração de bens de candidatos antes da eleição fere a intimidade. Só falta isso. Afinal, essa lei protege a quem? A divulgação do cartão de vacinação de Bolsonaro constituiria uma violação à lei? Por quê? Bom, não sei o que o governo fará. O que estou dizendo aqui tem o condão de fazer uma crítica geral a algumas interpretações da LGPD. E fugir da vinculação "sigilos governamentais e proteção da LGPD". Melhor dizendo, aliás: o assunto é a ilegalidade legal(izada). O assunto é o que queremos do direito — e de como ele pode servir para tudo nas mãos de uma má dogmática. A coluna de hoje, pois, é uma convocação ao debate à comunidade jurídica — e é também uma espécie de habeas data preventivo da cidadania, digamos assim. Ao trabalho. Ao que vejo das notícias, o Ministério da Saúde recuou em posicionamento usado para vetar o acesso ao cartão de vacinação de Jair Bolsonaro. A Folha de S.Paulo revelou alegação da pasta, em resposta a pedido via Lei de Acesso à Informação feito pela reportagem, que a liberação da ficha de vacinação poderia violar a Lei Geral de Proteção de Dados, um argumento já rejeitado pela CGU (que bom!). Claro que pipocaram os argumentos do garantismo-bolsonarista — que paradoxo, pois não? — "puxando" a LGPD para dizer que não se poderia ter o acesso. Um parêntesis: a ausência de comprovação de vacinação — ou seja, a exposição do comprovante de vacinação — foi, durante a pandemia, reconhecido como motivo de demissão por justa causa, chancelado pro vários tribunais do Brasil. Isso é pouco? O trabalhador foi obrigado a comprovar a vacinação, e a LGPD não foi invocada. Bingo! Agora, cá entre nós, descobrimos que um agora-ex-chefe de Estado não pode ter seu "dado sensível" exposto? Eis que o debate é importante, portanto: para desmistificar interpretações equivocadas que surgem do próprio governo atual — que, ainda que haja o reposicionamento posterior, chegou a ventilar esse argumento (anti)jurídico para vetar acesso. Só por pensar assim já me preocupou. Uma lei como a LGPD é uma lei da cidadania, para e pelo cidadão. É para se proteger das autoridades e não para as proteger em assuntos digamos assim, delicados e sensíveis. Minha tese, aqui, é uma ideia liberal no melhor dos sentidos da palavra: uma proteção dos dados e da privacidade do indivíduo em face do Leviatã. Um antídoto contra a bota do Grande Irmão. Salutar. Necessário. Precisamos de um país onde os liberais sejam liberais, mesmo. Como sempre, porém... surgem problemas. Trata-se de "problemas de epistemologia jurídica". Também isso é estrutural, para usar a palavra da moda, se me permitem. Pergunta de um século: a Lei serve para que o (ex-)presidente da República — que, até segunda ordem, é para ser uma... República — dê a ela o sentido que quer e coloque sigilo de cem anos naquilo que quer? Qual é o paradoxo elementar? Uma lei cujo princípio é a cidadania não pode ser uma trambicagem com a cidadania. Eis o busílis. Reivindicar uma lei cidadã para atos antirrepublicanos é fazer como o juiz que, diante de uma proibição de cães na plataforma, proíbe o cão-guia e libera o urso. Dworkin já mostrou isso na sua discussão do já tão repetido, famoso, Riggs v. Palmer. O neto mata o avô para ficar com a herança porque não havia nenhum texto de lei que o deserdasse. O que foi sacralizado na decisão da Corte de Apelações? Que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. E isso não era um juízo moral à parte e ad hoc: era uma leitura da moralidade institucionalizada que é o direito. Institucionalidade. Esse é o ponto. Usar a lei para contrariar interesse público do cidadão é institucionalizar um literalismo suicida, que usa o direito contra o próprio direito. Veja-se: o fato de o ex-presidente ter se vacinado ou não é menos importante do que o segredo do seu cartão de vacina. Tenho o direito fundamental de saber se o presidente da República de um país de 220 milhões de habitantes negou ou não negou a ciência. Esse é o busílis. Esse é o problema do criterialismo[1] da dogmática jurídica — assunto que a própria dogmática jurídica evita (ou não domina) — que se empresta a esse tipo de interpretação. O criterialismo alça a dogmática a um patamar acima da lei. Um parêntesis: um dos modos de escamotear a lei é criar "critérios" como "fraco, regular ou forte". Tão artificial e discricionário quanto dizer “dou às palavras da lei o sentido que quero”. E quando vem acompanhada da communis opinio doctorum, então, quem vai duvidar? Arbitrariamente, criam os próprios critérios ab ovo para justificar qualquer coisa, exatamente porque não se tem um padrão principiológico que fique claro. A regra pela regra. Que pode assim atentar contra a natureza da própria regra. Exemplo interessante de criterialismo é o conceito de precedente no Brasil. Talvez o mais contundente.[2] E sigo. Vendo algumas invocações da LGPD, fico com a nítida impressão de que se institucionalizou o hermeneuticum venire contra factum proprium. Ora, não é a própria dogmática que tanto falou em coisas como "princípio da boa-fé"? E do princípio da transparência? E o da publicidade? Pois é. Estou invocando, aqui, de boa-fé, a boa-fé do cidadão contra a presumível má-fé do mais forte, o Estado (história já contada na Oresteia, de Ésquilo). Faço aqui um chamado aos garantistas. Que a legalidade seja uma legalidade constitucional, como deve ser e não uma legalidade ad hoc. O criterialismo serve para isso. Que a lei seja interpretada no espírito (no sentido hermenêutico) que tem a lei. Ora, quando peço que alguém ensine jogos a meus netinhos (o exemplo é Lon Fuller comentando Wittgenstein), não preciso colocar um letreiro luminoso na Dacha dizendo que "não se pode ensinar jogos inapropriados para crianças". A intersubjetividade constrange. Ou deveria constranger. Mas a dogmática frágil — no interior da qual precedentes são o que cada um diz que é e onde a lei tem os sentidos criteriais atribuídos ad hoc — consegue, a partir da lei, construir a sua própria ilegalidade. Post scriptum. Ainda posso trazer uma outra inquietação à mesa. Dizem que há "cautela" na divulgação dos dados para checar a veracidade. Não discordo disso! Por óbvio. Pergunto, todavia: também não é direito do cidadão, desde sempre, saber se Bolsonaro adulterou o cartão de vacinação? Ou, que, sem adulteração, tenha se vacinado enquanto dizia não ter se vacinado? Isso é pouco? O cidadão não tem apenas direito de acesso à informação: tem também o direito fundamental de saber por que esse acesso é restringido quando é. Precisamos de explicações e de meta explicações, se me permitem. Explicação da explicação. Porque não é possível isso. Não numa república. [1] Tenho a impressão — e posso estar equivocado — que levará anos até que parcela expressiva da dogmática jurídica brasileira descubra o seu próprio calcanhar de Aquiles. Até lá gastaremos muito tempo, papel e dinheiro instrumentalizando o Direito em teses e dissertações que apenas agravam o problema. [2] O criterialismo domina a dogmática. É, assim, um (ou o principal) problema do positivismo pós-hartiano. Porque o positivismo — e aqui está o busílis — ainda que não se saiba (ou se reconheça) positivismo, trata todos os conceitos jurídicos como se fossem criteriais, isto é, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica. Com todo o respeito acadêmico, permito-me dizer que, sem compreender esse fenômeno, o Direito andará em círculos. Inclusive a autodenominada crítica jurídica anda em círculos e, nos momentos de "teses limites", não se entende. Dworkin critica veementemente o semantic sting (o ferrão semântico). Desse modo é que a dogmática jurídica trata um fenômeno interpretativo: como se fosse criterial. Isso é convencionalismo hardcore, diria Dworkin. Respostas antes das perguntas.
2023-03-09T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-09/senso-incomum-morte-minha-sogra-ficha-vacinacao-bolsonaro
academia
Opinião
Vanessa Alvarez: i4T e o caso Gonzalez vs. Google nos EUA
Na semana retrasada, foi realizada na sede da Unesco em Paris a conferência "Internet for Trust" (i4T — A global dialogue to guide regulation worldwide [1]) — organizada pelo brasileiro Guilherme Canela, chefe da seção de liberdade de expressão e segurança de jornalistas na Unesco —, cujo tema principal foi o estabelecimento de princípios (guidelines globais) de regulação das plataformas digitais sob uma perspectiva multidisciplinar. No contexto histórico, o combate ao discurso de ódio se destacou após a 2ª Grande Guerra, e a Unesco foi criada em 1945 com a missão de "contribuir para a manutenção da paz e da segurança, fortalecendo, por meio da educação, da ciência e da cultura, a colaboração entre as nações, a fim de assegurar o respeito à justiça universal, ao direito, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para a todos" [2]. Em 1˚ de junho de 2011, a Organização dos Estados Americanos (OEA) publicou a Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e Internet. O documento dispõe que a liberdade de expressão se aplica à internet do mesmo modo que a todos os meios de comunicação. As restrições à liberdade de expressão na internet só são aceitáveis quando cumprem os padrões internacionais, que dispõem, entre outras coisas, que elas devem estar previstas pela lei, buscar uma finalidade legítima reconhecida pelo direito internacional e ser necessárias para alcançar essa finalidade (o teste "tripartite"). Em 5 de outubro de 2012 a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou o The Rabat Plan of Action [3] sobre a proibição da defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitui incitamento à discriminação, hostilidade ou violência com conclusões e recomendações de vários workshops de especialistas da OHCHR (realizados em Genebra, Viena, Nairóbi, Bangkok e Santiago), nos termos do artigo 4˚ da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, internalizada no Brasil pelo decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969. Nesse caminho de direcionamento global, a ONU possui como objetivo: (1) obter uma melhor compreensão dos padrões legislativos, práticas judiciais e políticas relativas ao conceito de incitamento ao ódio nacional, racial ou religioso, garantindo ao mesmo tempo o pleno respeito à liberdade de expressão, conforme delineado nos artigos 19 e 20 [4] do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR); (2) realizar uma uma avaliação abrangente do estado de implementação da proibição de incitamento em conformidade com a legislação internacional de direitos humanos e (3) identificar possíveis ações em todos os níveis. De acordo com a mutação no espaço e no tempo concernente à proteção das liberdades fundamentais na internet, em 2015 a Conferência Geral da Unesco endossou os princípios Doam4 [5] (Droits de l'homme, l'Ouverture, l'Accessibilité à tous et être alimenté par la participation Multipartite), que enfatizam a importância dos direitos humanos, abertura, acessibilidade e governança multissetorial para o desenvolvimento, crescimento e sustentabilidade. No mesmo sentido, o balanceamento entre as disposições previstas no artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) [6], concernente à liberdade de expressão, e no artigo 20, referente ao combate ao discurso de ódio, são importante vetores na aplicação do teste tripartite e na proporcionalidade da surveillance numérique [7]. i4T - A global dialogue to guide regulation worldwide A Conferência da Unesco realizada em Paris focou nas seguintes questões: o combate à desinformação, às fake news, ao discurso de ódio e às diversas teorias da conspiração que propagam a desconfiança nas instituições democráticas em um conflito latente e emergente entre o direito à liberdade de expressão e o respeito aos direitos humanos. Neste sentido, a finalidade da conferência foi justamente iniciar o debate a respeito da criação de guidelines globais a fim de realizar um desejável sopesamento entre a proteção da credibilidade das plataformas digitais e os direitos de primeira dimensão ou geração de seus usuários. A primeira versão do "i4T" (princípios de regulação das plataformas digitais) se concentra nos seguintes pilares: (1) exigência de transparência; (2) processo de gestão de conteúdo; (3) meio ambiente digital favorável aos usuários; (4) mecanismos de "signalement" dos usuários; (5) gestão de conteúdos nefastos que ameaçem a democracia e os direitos do homem; (6) acesso aos dados de gestão por parte de pesquisadores; (7) multilinguismo e acessibilidade digital; (8) procedimentos de avaliação de riscos; (9) integridade das eleições e (10) promoção da educação relativa às mídias e à informação. No âmbito do "i4T", participaram da Conferência da Unesco representantes dos Estados, setor privado, organização da sociedade civil, mundo acadêmico, além de outros experts. No contexto, foram publicados os cinco princípios a serem seguidos por parte das plataformas digitais: (1) a plataforma deve ser dotada de políticas e práticas de boa governança conforme os direitos humanos; (2) as plataformas devem ser transparentes; (3) as plataformas devem responsabilizar os utilizadores; (4) as plataformas devem prestar contas (accountability) e (5) deve existir um sistema de fiscalização independente. O Secretário Geral da ONU, António Gutierres, ressaltou que "um espaço digital seguro passa pela proteção da liberdade de expressão, mas isso não é suficiente. Os governos, as empresas e as plataformas de redes sociais possuem a responsabilidade de combater de forma preventiva o discurso de ódio, a intimidação e a desinformação, que minam os direitos humanos, a democracia e a ciência" [8]. Communications Decency Act de 1996 e o caso Gonzalez vs. Google Hodiernamente, por meio de Gonzalez vs. Google [9], reverbera nos Estados Unidos o atentado terrorista ocorrido em Paris em 2015 com a análise jurídica da seguinte questão: as plataformas digitais podem ser responsabilizadas pelos conteúdos que os algoritmos recomendam aos seus usuários, notadamente, em casos de difusão de discurso de ódio? A Suprema Corte dos Estados Unidos analisará a responsabilidade do Google na "recomendação" de vídeos com conteúdos extremistas através dos algoritmos no cooptação de usuários da plataforma. Dois tribunais inferiores decidiram a favor do Google, julgando que a plataforma estava protegida pela Seção 230 do Communications Decency Act de 1996. O precedente marca a primeira vez que a Suprema Corte estadunidense é instada a definir o escopo da Seção 230 e determinar se plataformas como YouTube, Facebook e Twitter estão protegidas quando seus algoritmos direcionam os usuários a determinadas informações. Em artigo publicado no New York Times a socióloga Zeynep Tüfekçi registrou que "dado seu um bilhão de usuários, o YouTube é talvez um dos mais poderosos instrumentos de radicalização do século 21" [10]. O estatuto — Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações [11] — protege as empresas de Internet de serem responsabilizadas pelo conteúdo postado por terceiros em suas plataformas, com o seguinte dispositivo: "no provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider". Adotada em 1996, a Seção 230 isenta as grandes plataformas de responsabilidade quando hospedam conteúdos produzidos por usuários da Internet e contrários à lei, a menos que este conteúdo lhes tenha sido denunciado como ilegal. O Artigo 230 é um compromisso jurídico e político que inspirou a legislação em vigor na maioria dos países ocidentais, incluindo a França. Freedom of speech não deve significar immunity or irresponsibility for the speech Os precedentes Brandenburg v. Ohio (1969), R.A.V. v. City of St. Paul, 505 U.S. 377 (1992), Texas v. Johnson, 491 U.S. 397 [12] (1989) e United States v. Eichman, 496 U.S. 310 (1990) e Virginia v. Black, 538 U.S. 343 (2003), registram que a Suprema Corte dos Estados Unidos concede maior força normativa à liberdade de expressão do que ao combate ao discurso de ódio, ainda que em casos extremos. Na jurisprudência estadunidense se verifica a permissão de discursos extremistas, "desde que não incite à violência" ("The constitutional guarantees of free speech and free press do not permit a state to forbid or proscribe advocacy of the use of force, or of law violation except where such advocacy is directed to inciting imminent lawless action and is likely to incite or produce such action" — Brandenburg v. Ohio — 1969). No entanto, a complexidade da questão se refere ao fato de que o The Communications Decency Act serviu como instrumento não apenas de liberdade de expressão, mas também de liberdade econômica, por praticamente consagrar a imunidade das plataformas digitais no âmbito da responsabilização civil e penal decorrente de atos derivados do compartilhamento de conteúdos pela inteligência artificial, os algoritmos. Inclusive, na Conferência da Unesco, Christopher Wylie, whistleblower da Cambridge Analytica, destacou "as plataformas não são imparciais e os algoritmos são os arquitetos dessa engenharia". Os denominados Gafam — Google (Alphabet), Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft — instrumentalizam o "soft power" estadunidense com fins culturais, econômicos e até mesmo de espionagem. Neste sentido, segundo a análise da jurisprudência da Suprema Corte estadunidense, lamentavelmente, será extremamente difícil que seja reconhecida a responsabilidade do YouTube na difusão dos vídeos segundo recomendações dos algoritmos. Em contrariedade ao cenário europeu — composto pelo Digital Services Act (DSA) e pelo Digital Markets Act (DMA) — a Seção 230 classifica as plataformas digitais como simples difusoras de conteúdo, responsabilizadas de forma excepcional. Neste contexto, o caso Gonzalez vs. Google mostrará se efetivamente o sistema jurídico estadunidense caminha no progresso do sopesamento e respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (teste tripartite), conforme um direcionamento universalista dos direitos humanos (e não relativista). Neste sentido, se espera que a Suprema Corte estadunidense adote uma interpretação conglobante da norma disposta na Section 230 (47 U.S.C. § 230) c/c os artigos 19 e 20 do PIDCP, pois se constata um notório distinguishing no presente caso: não se trata da realização de uma passeata ou de incendiar uma bandeira (precedentes de permissão pela Suprema Corte), mas do combate global ao discurso de ódio no contexto transfronteiriço de soft power das plataformas digitais. Assim, se espera, doravante, que as guidelines resultantes da iniciativa realizada pela Unesco no âmbito da Conferência de Paris (i4T [13]) não se tornem apenas uma "folha de papel" e que esbocem nos Estados Unidos a aplicação do teste tripartite segundo a hermenêutica dos artigos 19 e 20 do PIDCP — ICCPR, assinado em 1977 e ratificado em 1992 pelos EUA[14] —, além do respeito ao The Rabat Plan of Action. [1] Conteúdo disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000384031_fre?posInSet=5&queryId=N-EXPLORE-626ae605-0268-40e6-8e2e-b5944e3cb54a. Acesso em 26.02.2023. [2] Conteúdo disponível em: https://www.unesco.org/fr/legal-affairs/constitution. Acesso em 26.02.2023. [3] Conteúdo disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Rabat_draft_outcome.pdf. Acesso em 27.02.2023. [4] Article 20, paragraph 2 of the International Covenant on Civil and Political Rights states that "any advocacy of national, racial or religious hatred that constitutes incitement to discrimination, hostility or violence shall be prohibited by law". Throughout this document, such incitement will be referred to as "incitement to hatred" [5] Conteúdo disponível em: https://www.unesco.org/fr/internet-universality-indicators. Acesso em 27.02.2023. [6] Artigo 19 1. Ninguém deve ser molestado por suas opiniões. 2. Todo indivíduo tem direito à liberdade de expressão; este direito inclui a liberdade de buscar, receber e transmitir informações e idéias de todo tipo, independentemente de fronteiras, seja oralmente, por escrito ou impresso, na forma de arte, ou através de qualquer outra mídia de sua escolha. 3. O exercício das liberdades estabelecidas no parágrafo 2 deste artigo traz consigo deveres e responsabilidades especiais. Assim, pode estar sujeito a certas restrições, que serão, no entanto, expressamente estabelecidas por lei e que são necessárias. (a) Pelo respeito aos direitos ou reputações dos outros ; (b) Para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou da saúde pública ou moral. [7] Fiscalização digital. [8] Tradução livre. [9] Conteúdo disponível em: https://www.lemonde.fr/pixels/article/2023/02/21/moderation-des-contenus-comment-l-affaire-gonzalez-vs-google-pourrait-redefinir-la-responsabilite-des-plates-formes-numeriques_6162643_4408996.html. Acesso em 28.02.2023. [10] Conteúdo disponível em: https://www.nytimes.com/2018/03/10/opinion/sunday/youtube-politics-radical.html. Acesso em 20.02.2023. [11] Conteúdo disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCODE-2021-title47/pdf/USCODE-2021-title47-chap5-subchapII-partI-sec230.pdf. Acesso em 28.02.2023. [12] The majority of the Court, according to Justice William Brennan, agreed with Johnson and held that flag burning constitutes a form of "symbolic speech" that is protected by the First Amendment. The majority noted that freedom of speech protects actions that society may find very offensive, but society's outrage alone is not justification for suppressing free speech. [13] Conteúdo disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000384031_fre?posInSet=5&queryId=N-EXPLORE-626ae605-0268-40e6-8e2e-b5944e3cb54a. Acesso em 26.02.2023. [14] Conteúdo disponível em: https://indicators.ohchr.org/. Os Estados Unidos assinaram o PIDCP em 1977 e o ratificaram em 1992, deixando de assinar os protocolos respectivos. Acesso em 28.02.2023.
2023-03-09T07:07-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-09/vanessa-alvarez-i4t-gonzalez-vs-google-eua
academia
Opinião
Mário Araújo: 1ª linha de defesa do direito da infraestrutura
O direito à infraestrutura não se confunde com o direito da infraestrutura. Ao passo em que o primeiro possui um recorte com o Direito Constitucional, especificamente com a matriz de atuação da administração pública correlata aos direitos sociais, o segundo é intrínseco ao regime de regulação do Direito Administrativo. Embora essa distinção não aparente fazer sentido, em relação à pesquisa, é um questionamento pertinente para delimitar o recorte epistemológico sobre o assunto. A doutrina se divide em relação ao enquadramento conceitual da infraestrutura no sentido de que é atividade fim [1] ou atividade meio [2]. Sobre o tema, é preciso um juízo de ponderação pautado na interpretação teleológica da matéria: como o objeto da infraestrutura é a pavimentação para o oferecimento de direitos (atividade fim da administração pública), como é o caso da saúde e da educação com a construção de hospitais e escolas, por exemplo, e a possibilidade do direito de ir e vir com a construção de estradas, logo, a infraestrutura é atividade meio, porquanto possui um caráter instrumental. Em outras palavras: só há infraestrutura por causa da necessidade da oferta de direitos pelo Estado. Assim, o direito à infraestrutura, que é a obrigação institucional do Estado em oferecer serviços públicos, leva ao direito da infraestrutura, que é a regulação a respeito dos arranjos institucionais que precisam ser feitos pautada no princípio da juridicidade administrativa. A infraestrutura possui relação siamesa com serviços públicos, em que a ausência daquele tipo de logística ajuda a construir um conceito de precariedade e ineficiência da prestação de serviços e inclusive pode servir de argumento para a teoria da responsabilidade civil extracontratual do Estado. Em outras palavras: fazer com que essa engrenagem, que é a infraestrutura, funcione, possui como ferramenta de trabalho o marco regulatório correlato às contratações públicas, tão importante no que diz respeito ao processo de tomada de decisão do gestor público: a lei de licitações. Em relação à concretização disso tudo, é imprescindível o estabelecimento de cadeia de atos a respeito do planejamento, caso do documento de formalização de demanda, correlato ao plano anual de contratações e o estudo técnico preliminar: documento constitutivo da primeira etapa de uma contratação à luz do eminente novo regulamento de licitação. A nova lei de licitações traz ao ordenamento jurídico a figura do agente de contratação: personificação de um centro de competências responsável por conduzir o certame desde a fase de planejamento até os momentos anteriores à homologação, consoante prescrição do seu artigo 8º, Caput. A depender do tipo de contratação, é possível que o agente de contratação ceda espaço à uma decisão colegiada, representada pela comissão de contratação, cuja atuação é restrita ao seguinte cenário: licitação que envolve bens e serviços especiais (artigo 8º, §2º). Como a infraestrutura se caracteriza por uma solução estratégica que envolve engrenagens de engenharia, por exemplo, se percebe que o seu objeto possui características de tecnicidade e a prestação de serviços técnicos especializados e se afasta, portanto, de um regime comum de contratação. Inclusive a própria Lei 14.133/2021 reconhece isso e dispõe a respeito da diferença entre serviço comum de engenharia e serviço especial de engenharia. Ao passo em que o primeiro se caracteriza por objeto e ações "objetivamente padronizáveis em termos de desempenho e qualidade", o segundo envolve "alta heterogeneidade ou complexidade", nos termos do artigo 6º, inciso XXI, alíneas "a" e "b", daquele regramento. Em decorrência da sua amplitude, o legislador prestigiou preocupação individualizada às licitações de obras e serviços de engenharia e dedicou o art. 45 da nova lei de licitações a uma matriz de planejamento institucional que contempla assuntos singulares, a teor da gestão de resíduos sólidos e procedimento de licenciamento ambiental, por exemplo. Como se vê, o legislador foi sensível ao tema e registra, embora que implicitamente, que as competências dos agentes públicos envolvidos desde a fase interna até o monitoramento da execução contratual, devem contar com apoio especializado com conhecimento técnico capaz de proporcionar celeridade e segurança jurídica ao certame licitatório. Isso é realçado com as contratações cujo objeto possua conhecimento técnico especializado, caso da infraestrutura. Inclusive a eminente normatização mantém a ideia da atual, regida pela 8.666/1993, no sentido de que é possível a contratação de terceiros para auxiliarem os fiscais de contrato "para assisti-los e subsidiá-los com informações pertinentes a essa atribuição", nos termos do seu artigo 117, caput. Observa-se, pois, o reconhecimento normativo de que é preciso estruturar tecnicamente um certame licitatório complexo, como é o correlato aos serviços e obras de engenharia intrínsecos à infraestrutura, para assegurar tranquilidade ao ordenador de despesas na condução do seu processo de tomada de decisão. Essa preocupação com planejamento possui aderência com a matriz normativa a respeito do controle e sobre o controle das contratações públicas, a nova lei de licitações positiva uma peculiaridade: um sistema gradativo que deve ser estruturado pela administração pública. Previsto em seu artigo 169, aquela matriz de ponderação em relação à existência do gasto público possui três camadas, intituladas pelo legislador de linhas de defesa: primeira, segunda e terceira. Prescreve o artigo 169 da lei que "as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social" e para isso, colocando em prática a segregação de funções que traz em seu corpo de texto, diz que a primeira linha de defesa é integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade. Em outras palavras: a primeira linha de defesa é composta pelos agentes públicos que atuam no cotidiano da contratação pública, que engloba do planejamento intrínseco à fase interna à própria higidez da execução contratual, como é a rotina da liquidação de despesa. Possui como moldura de protagonismo o "chão da fábrica" das contratações públicas. Por sua vez, a segunda linha de defesa é composta, no âmbito do órgão ou entidade, por setores mais estratégicos e com atuação transversal entre o ambiente interna corporis da gestão pública. São as unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão entidade. Como ao órgão de consultoria jurídica é atribuída competência específica para exarar pareceres jurídicos no âmbito do final da fase preparatória para fins de realização de controle prévio das contratações (artigo 53), nada mais lógico de que estejam na esfera de competência da segunda camada da linha de defesa. De igual forma os setores de controle interno dos órgãos ou entidades. Ora, se aos mesmos, em conjunto com o assessoramento jurídico, incumbe promover política de governança em relação aos modelos de minutas de editais, termos de referência, contratos padronizados e outros documentos correlatos às contratações públicas, logo, devem fazer parte da segunda linha do controle: a supervisional. Ademais, em relação à terceira linha de defesa, a correcional, determina o artigo 169, inciso III da nova lei de licitações, que deve ser integrada pelo órgão central de controle interno e pelo tribunal de contas. A título de esclarecimento, a diferença entre órgão de controle interno e órgão central de controle interno diz respeito à esfera de atuação. Enquanto o órgão de controle interno é a unidade setorial de determinado Ministério ou Secretaria, o órgão central é a instância máxima de controle interno da gestão pública, o que a título de Poder Executivo federal, é a Controladoria Geral da União (CGU). Essas três linhas de atuação devem ser entendidas como campos de defesa em busca da probidade do gasto nas contratações públicas e embora cada fase possua atuação distinta, todas se complementam em relação à persecução da qualidade do gasto público. Embora o sistema de controle externo capitaneado pelo modelo Tribunal de Contas exerça influência concomitante em relação à supervisão do gasto público, nesse novo modelo que ora se descortina, nem sempre deve ser acionado diretamente. É que a intenção do legislador é colocar em funcionamento uma máquina de engrenagem que se complementa quando atua conjuntamente e nesse sentido é importante alertar que as três linhas de defesa possuem ação supletiva e sucessiva uma em relação à outra. Inclusive recentemente o Tribunal de Contas da União, nos termos do Acórdão 572/2022-Plenário, estabeleceu que "considerando o princípio da eficiência insculpido no art. 37 da Constituição Federal e as disposições previstas no art. 169 da Lei 14.133/2021, deve o interessado acionar inicialmente a primeira e a segunda linhas de defesa, no âmbito do próprio órgão/entidade, antes do ingresso à terceira linha de defesa, constituída pelo órgão central de controle interno e tribunais de contas, evitando, por exemplo, a apresentação de pedidos de esclarecimentos ou impugnação a edital lançado, ou mesmo de recurso administrativo concomitantemente com o ingresso de representações/denúncias junto a esta Corte de Contas, sob pena de poder acarretar esforços de apuração desnecessariamente, em desfavor do erário e do interesse público". Ao que se apresenta, aquela decisão do TCU é no sentido de criar um entendimento a respeito da obrigatoriedade em se acionar as linhas de defesa internas antes da terceira, que é a jurisdição do órgão central de controle interno da administração pública e o próprio tribunal de contas. Isso quer dizer, em outras palavras, que há uma iniciativa do TCU em relação à criação de um raciocínio que objetiva evitar a supressão de instâncias quando da impugnação a procedimentos correlatos aos certames licitatórios. Ao se pronunciar daquela maneira, o TCU reconhece a importância da primeira e segunda linha de defesa e as destaca como protagonistas, tanto na fase interna de um certame licitatório, como em quaisquer incidentes de controle, como é o caso de impugnação de edital e até mesmo recurso administrativo em face de eventuais irregularidades. Em relação à contratação de serviços e obras de engenharia, aquela decisão é relevante por causa da especificidade da matéria, que requer pronunciamento técnico e descritivo, o que demanda uma análise pontual tanto do agente de contratação e sua equipe de apoio, como, se for o caso, da comissão de contratação. Ao passo em que a equipe de apoio diz respeito a um auxílio eminentemente burocrático para o agente de contratação, a comissão de contratação é um colegiado que vai além e inclusive pode substituir, a depender do caso, a própria figura do agente de contratação. É o que se depreende do artigo 8º, §2º da nova Lei de Licitações, para quem "o agente de contratação poderá ser substituído por comissão de contratação formada por, no mínimo, 3 (três) membros, que responderão solidariamente por todos os atos praticados pela comissão, ressalvado o membro que expressar posição individual divergente fundamentada e registrada em ata lavrada na reunião em que houver sido tomada a decisão". A substituição do agente de contratação por uma comissão de contratação significa uma inovação nas contratações públicas que prestigia um posicionamento técnico da administração na primeira linha de defesa no sentido de estabelecer uma política de governança alinhada aos princípios da eficiência administrativa e da segurança jurídica. As linhas de defesa, vale registrar, são a proposição de uma estrutura de governança que amplia a importância de se pensar um conceito de probidade e moralidade nas contratações públicas, cuja desobediência pode inclusive ensejar inelegibilidade, conforme prevê o artigo 14, §9º da Constituição Federal. Outra atribuição trazida pela nova lei de licitações é o mapeamento a respeito da matriz de riscos, ferramenta de aperfeiçoamento de gestão prevista no artigo 6º, inciso XXVII. A matriz de riscos é uma "cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação". É uma política estratégica correlata à governança da execução contratual que se propõe a prever uma topografia correlata à álea do contrato e evitar gastos desnecessários que onerem o equilíbrio econômico financeiro da relação entre a administração pública e o particular. Evita, portanto, a fabricação de um desequilíbrio econômico que eventualmente onere os cofres públicos e nesse sentido a atuação da primeira linha de defesa é fundamental para o estabelecimento daquele parâmetro. Dessa maneira, nas contratações correlatas à infraestrutura, é perceptível a necessidade que a administração pública possui em estruturar preparação de pessoal devido à amplitude dos valores envolvidos e da especificidade do objeto da contratação, que requerem conhecimentos técnicos especializados. É como se fosse a positivação do princípio da precaução no direito administrativo, descrito por Juarez Freitas como "o dever de a Administração Pública motivadamente evitar, nos limites de suas atribuições e possibilidades orçamentárias, a produção de evento que supõe danoso, em face da fundada convicção (juízo de verossimilhança e de forte probabilidade) quanto ao risco de, se não interrompido tempestivamente o nexo de causalidade, ocorrer prejuízo injusto, indisputavelmente superior aos custos da eventual atividade interventiva" [3]. Assim, em decorrência da complexidade das contratações correlatas à infraestrutura, é possível afirmar que há um poder dever da administração em reforçar a primeira linha de defesa desde a fase interna, como a comissão de contratação, até a execução contratual, o que inclui a contratação de profissionais especializados para auxiliarem os fiscais de contrato. Dessa forma, na nova lei de licitações, probidade é planejamento que começa na primeira linha de defesa e a negligência em relação a isso pode levar a eventual responsabilização do gestor pela desobediência do princípio da eficiência administrativa.   Referências bibliográficas BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 572/2022-Plenário. Relatoria do Ministro Vital do Rego. CARVALHO, André Castro. Direito da Infraestrutura: Perspectiva pública. Editora Quartier Latin. São Paulo/SP: 2014 DAL POZZO, Augusto Neves. O Direito Administrativo da Infraestrutura. Editora Contracorrente. São Paulo/SP: 2020 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5ª edição. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2013 [1] DAL POZZO, Augusto Neves. O Direito Administrativo da Infraestrutura. Editora Contracorrente. São Paulo/SP: 2020. [2] CARVALHO, André Castro. Direito da Infraestrutura: Perspectiva pública. Editora Quartier Latin. São Paulo/SP: 2014. [3] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5ª edição. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2013, p. 124.
2023-03-10T18:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-10/mario-araujo-linha-defesa-direito-infraestrutura
academia
Diário de Classe
Apontamentos sobre o consequencialismo a partir da CHD
A teoria constitucional recente vem discutindo quais as perspectivas futuras do debate sobre a jurisdição constitucional, em que se verifica um embate entre uma postura judicial substancialista, que pode ser vista a partir de um constitucionalismo normativo, em oposição a uma postura consequencialista, que pode ser vista como constitucionalmente cética. No caso brasileiro, observa-se uma tendência consequencialista/cética nos tribunais e na doutrina (vide a problemática construção de um "sistema de precedentes", tão bem criticada por Lenio Streck) [1], mas afastada em honrosos casos concretos, como foi o do julgamento em favor da presunção de inocência nas ADCs 43, 44 e 54 pelo Supremo Tribunal Federal. Neste texto faremos uma defesa da postura substancialista e deontológica por parte dos tribunais, em que se qualifica no âmbito brasileiro a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) como exemplo de teoria adequada ao constitucionalismo normativo. Trata-se de teoria que se insere no debate "normativos versus céticos", com a necessária diferença de ser um normativismo preocupado em estar adequada a países de modernidade tardia [2]. Defendemos, assim, que a CHD, a partir do reposicionamento epistêmico construído com o Constitucionalismo Contemporâneo, constrói bases sólidas para refutar teses céticas em teoria constitucional. Justamente pela ponte necessária que deve ser feita entre constitucionalismo e teoria do direito — ponte epistêmica realizada por Streck ao destacar o Constitucionalismo Contemporâneo dos demais "neoconstitucionalismos" —, que se faz necessário observar nesta "zona de penumbra" questões filosóficas e de teoria do direito em debates constitucionais. Uma delas é que, no afã de superar o formalismo jurídico de cunho autoritário vivenciado em democracias frágeis e viciadas por legislações inconstitucionais, teorias ditas antipositivistas muitas vezes acabam por incorporar teses comuns aos céticos, como a de aceitar a discricionariedade judicial como algo "inevitável". Por isso é tão pertinente a observação de Streck quando este afirma que o neoconstitucionalismo supera apenas o "paleojuspositivismo" (Ferrajoli) e que a mera "'atualização' da subsunção para a ponderação", ao invés de resolver o problema da decisão judicial, aumenta ainda mais o protagonismo judicial, transformando as cortes — como afirma Ingeborg Maus — em "superegos da sociedade" [3]. Portanto, compreende-se que o fenômeno do "neoconstitucionalismo" no Brasil pós-1988 como uma versão aproximada do positivismo jurisprudencialista com fortes tendências realistas (ou seja, céticas), especialmente quando parte do judiciário mantém posição favorável ao método da ponderação de valores, defesa da carga valorativa dos princípios e da sua "livre-nomeação" (pamprincipiologismo), tudo para dar azo ao protagonismo judicial em favor de uma "concretização constitucional" ad hoc, calcada em critérios morais, políticos, econômicos, enfim, consequencialistas [4]. O processo formador do paradigma constitucional vivenciado no Brasil pós-1988, traduzido numa tensionamento entre ruptura e continuidade entre o establishment tradicionalista, predominante durante o período militar (e também anterior a ele) e a nova geração de constitucionalistas formados na tradição crítica do pós-1988, merece um olhar mais atento. A dificuldade de se estabelecer no Judiciário um marco entre o fim de um regime autoritário e o início de uma democracia gerou dificuldades na formação de um conceito compreensível de limites jurídicos, império e autonomia do direito. Tal dificuldade é sentida na até mesmo na doutrina e sua dificuldade em diferenciar perguntas como "o que é o positivismo jurídico?" e "o que significa cumprir a 'letra da lei'?") [5]. Dificuldades como essa demonstram o atraso da cultura jurídica e democrática brasileira e apequenam o debate jusfilosófico, superestimando a capacidade de teorias problemáticas, como é o caso do neoconstitucionalismo, de superarem a questão maior que se apresenta: a decisão judicial deve se pautar em critérios normativos ou céticos? Ao escolher a primeira opção, utilizando o argumento de estar "superando a letra fria lei" do formalismo em favor de uma melhor decisão, os "neoconstitucionalistas" ignoram toda uma tradição anglófona do positivismo jurídico e ainda fazem uma impossível equiparação do fenômeno com posturas substancialistas, entre elas o garantismo, o interpretativismo jurídico e a CHD, de Streck, antagônicas ao positivismo, por justamente rejeitarem qualquer forma de discricionariedade. Influenciada pelo antiformalismo consagrado pelos movimentos acadêmicos e políticos pós-1988, a experiência neoconstitucionalista foi determinante para fazer prevalecer na atividade judicial brasileira — especialmente dentro da jurisdição constitucional nas décadas de 2000 em diante — um caráter consequencialista e instrumentalizador do direito, em defesa de uma concretização constitucional subjetivista, em oposição ao caráter ortodoxo e substancialista, de defesa da autonomia do direito defendido por posturas adeptas ao garantismo jurídico, por exemplo, como é o caso da CHD. Com efeito, não seria exagero afirmar que o debate entre céticos e teóricos normativos nunca esteve tão em alta, talvez tendo ampliado e redimensionado a teoria constitucional para categorias ainda mais filosóficas, com cada vez mais autores interpretativistas estarem adequando suas teorias normativamente, enquanto o positivistas, por sua vez, se aproximam em certo grau a ala mais cética de oposição ao constitucionalismo, mais uma vez tomando a discricionariedade judicial nas cortes constitucionais como algo inevitável, cuja culpa seria do próprio constitucionalismo [6]. Deste último ponto, a partir da CHD, discordamos, pois entendemos que em um país de modernidade tardia — onde ainda não foi possível sequer criar um conceito de precedente ou definir uma governança pública das decisões judiciais —, o Constitucionalismo (Contemporâneo) pode não ser a única, mas é uma das ferramentas importantes no controle do poder político e econômico. Assim, a partir do Constitucionalismo Contemporâneo, deve-se constantemente relembrar os juízes de sua responsabilidade política e, dentro das regras do jogo e através do respeito às instituições, reivindicar a autonomia do direito. A instrumentalização da lei, à maneira consequencialista, em nome de qualquer propósito — por mais virtuoso que seja —, não garante accountabily ao processo decisório. Por outro lado, quando dá uma resposta correta (adequada à constituição) [7] a um caso, o juiz oferece ao jurisdicionado previsibilidade e coerência com o rule of law, regendo-se, assim, por aquilo que Dworkin denomina como "a virtude soberana" (sovereign virtue) — a integridade [8]. [1] Cf. STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/15. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2023. [2] Expressão cunhada por Streck em uma de suas obras principais, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. [3] Ver MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na "sociedade órfã". Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 58, p. 183-202, 2000. [4] Ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 89-93. [5] STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a "letra da lei" é uma atitude positivista? Revista NEJ - Eletrônica, Itajaí, v.15, n. 1, p. 158-173, jan./abr., 2010. [6] LOUGHLIN, Martin. Against Constitutionalism. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2022. [7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 686-692. [8] Ver DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue: the theory and practice of equality. Cambridge: Harvard University Press, 2002.
2023-03-11T08:00-0300
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Observatório Constitucional
Por uma interpretação feminista sobre as vidas das mulheres
O Secretário Geral da ONU alerta para os dados preocupantes a respeito dos direitos das mulheres ao redor do mundo: serão necessários mais 300 anos para se alcançar a igualdade de gênero no mundo. Os dados são alarmantes e escandalosos. Décadas de avanços em conquistas de direitos à igualdade e à liberdade das mulheres enfrentam retrocessos com os avanços autoritários no mundo. Avanços do neoconservadorismo e do autoritarismo andam junto com discurso de proteção à família contra a igualdade e liberdade das mulheres. Aliam-se também a movimentos antiaborto. Guerras também colocam mulheres e meninas em risco, na medida em que elas sofrem mais violência física e sexual na guerra, na fuga e nos campos de refugiados. No Brasil, a situação não é animadora, a começar pela representação política no Congresso Nacional. Temos apenas 91 deputadas, ao lado de 422 deputados homens (17,7%); no Senado, 11 senadoras mulheres e 70 senadores homens (15%). Na última legislatura o Brasil ocupava a 142º posição no ranking de participação política das mulheres entre 192 países, ficando na frente apenas do Haiti na América Latina. A igualdade de gênero nos Parlamentos só será adquirida daqui a 40 anos, em 2063, segundo a ONU. Mas os números brasileiros são vergonhosos, escandalosos, aliados a bancadas religiosas, que reproduzem a ideologia de dominação de séculos, colocando ainda no século XXI as mulheres no espaço privado e com a principal ocupação sobre a família. Os dados de violência doméstica e feminicídios também não trazem conforto, com uma mulher morta a cada seis horas em 2022. Reportagem do UOL da semana passada mostra que todas as formas de violência contra a mulher aumentaram em 2022, com mais de 50 mil mulheres sofrendo violência diariamente, apesar do silêncio de mais da metade das que sofrem violência. Por outro lado, somos o 4º país em casamento infantil no mundo, muitos destes casamentos são realizados para garantir a honra da família, quando as meninas engravidam e geralmente o casamento se dá com seus abusadores. Um problema grave que também envolveria a discussão sobre o aborto legal, já que o estupro de menores é presumido. Mas a onda neoconservadora aliada aos movimentos religiosos, impõem sempre o ônus do controle e dominação sobre os corpos das meninas. E o número de estupros de meninas é de cerca de 822 mil casos por ano, segundo estudo do Ipea, sendo que mais de 58% destes números são estupros de meninas menores de 13 anos. É preciso compreender este cenário de desigualdade mas também de violência sobre os corpos das mulheres e meninas e imaginar quais os espaços de luta legítimos numa democracia em que as mulheres não chegam a ter 20% das cadeiras do Congresso Nacional e que nos últimos anos tiveram Damares como ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, retrocedendo em políticas de defesa das mulheres, num autêntico feminismo abusivo. Neste cenário é preciso compreender a importância do Supremo Tribunal Federal em promover a igualdade e liberdade real das mulheres, asseguradas não apenas em diversos dispositivos da Constituição, mas também em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. O espaço contramajoritário passa a ser essencial num cenário de tanta desigualdade estrutural. Cortes normalmente são mais progressistas em matéria de proteção de direitos das mulheres, porque sua legitimidade se dá numa argumentação racional, e numa argumentação racional sem influências morais ou religiosas há maior chance de proteção das mulheres. Neste sentido, podemos celebrar muitas das decisões do Supremo Tribunal Federal, que de algum modo, protegeram direitos das mulheres: 1) ADI n° 3.510: Lei de biossegurança — pesquisas com células tronco embrionárias; 2) ADI n° 4.424: violência doméstica — ação penal pública incondicionada; 3) ADC n° 19: violência doméstica — constitucionalidade da Lei Maria da Penha; 4) ADPF n° 54: interrupção da gestação de feto anencefálico; 5) RE n° 658.312: intervalo antes da jornada extraordinária da mulher; 6) RE n° 778.889: licença-adotante; 7) ADI n° 5.617: financiamento eleitoral de candidaturas femininas; 8) RE n° 1.058.333: igualdade material, liberdade individual, direito à saúde, a maternidade e ao planejamento familiar; 9) ADI n° 5.93B: proteção constitucional à maternidade e trabalho insalubre; 10) ADPF n° 457: exclusão de material didático sobre gênero da rede municipal de ensino. 11) ADPF n° 467: exclusão da diversidade de gênero e da orientacão sexual da Política Municipal de Ensino; 12) ADPF n° 738: candidaturas de mulheres negras; 13) ADPF n° 779 MC: legitima defesa da honra e igualdade de gênero. Mas ainda será preciso avançar para discutir a ADPF 442 sobre a descriminalização do aborto e é preciso que o Supremo não se deixe cair por armadilhas sobre a tese a ser discutida. O aborto deve ser enfrentado a partir do direito à liberdade e à autonomia sobre o corpo, aplicando-se precedentes sobre teses já firmadas neste tema. Sobre a autonomia do corpo, pensando abstratamente, podemos utilizar o exemplo colocado por James Thomson: Una mañana , usted se despierta y se encuentra en el lecho, espalda contra espalda, con un violinista inconsciente, un famoso violinista en estado de coma. Se le ha encontrado una enfermedad renal fatal, y la Asociación de Amigos de la Música, habiendo examinado todos los registros médicos disponibles, ha averiguado que sólo usted tiene el grupo sanguíneo apropiado para ayudarle. En consecuencia, le han secuestrado y, la noche anterior, han acoplado el sistema circulatorio del violinista al suyo, de manera que los riñones de usted puedan utilizarse simultáneamente para extraer las toxinas de la sangre del violinista y de la suya. El director del hospital le dice entonces: — Mire usted, lamentamos que la Asociación de Amigos de la Música le haya hecho esto. De haberlo sabido, no lo habríamos permitido; sin embargo, lo ha hecho, y el violinista está ahora acoplado a usted. Para librarse de él, tendría que matarlo pero no se preocupe, es sólo cuestión de nueve meses. Para entonces, se habrá restablecido de su enfermedad y podrá, sin riesgo, ser separado de usted [1]. O trecho acima demonstra uma situação hipotética que pode parecer absurda e que nos faz questionar se o corpo do homem pode ser instrumental para a vida de outro ou se deve ser um fim em si mesmo. Certamente, não aceitaríamos tal solução de termos nosso corpo como instrumento à vida de outro. Entretanto, quando tratamos do tema do aborto, a discussão não se coloca com a mesma racionalidade. Argumentos religiosos e morais prevalecem e defendem que o corpo da mulher deve ser instrumental à vida de outro ser humano, que seu corpo e sua vida não são um fim em si mesmo. Argumentos religiosos ainda trazem uma ideia de que o sofrimento é algo divino e que, portanto, sofrer pode dar a mulheres espaço no paraíso. Mulheres devem ser instrumentais para formação da família e para o objetivo da procriação e maternidade. Tais argumentos ainda parecem mais presentes num momento em que o neoconservadorismo aparece com toda força no Brasil, buscando a dominação masculina no casamento e num movimento antifeminista, já que para este grupo, o feminismo "teria colocado as mulheres contra a reprodução, seu dever e chamado natural" [2]. Esta é a arena política neoconservadora no Brasil, não há espaço para direitos de igualdade e liberdade das mulheres, que dirá direitos sexuais e reprodutivos. Mulheres representam apenas 17,7% das cadeiras no Congresso Nacional e temos ainda uma Bancada Evangélica e uma Frente Parlamentar Evangélica, que se articulam contra temas de igualdade de gênero, aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e outros. Neste contexto, o Judiciário e as Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais ao redor do mundo, têm funcionado como um locus democrático de afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como decorrência da proteção de seus direitos à igualdade e à liberdade. Neste sentido, pretende-se apresentar algumas possibilidades de interpretação constitucional feminista, bem como, uma interpretação constitucional que busque reparar a desproporcionalidade da lei que criminaliza o aborto e restringe a liberdade da mulher sobre seu corpo, sua vida e seu futuro A interpretação feminista é um projeto que pretende repensar o direito constitucional e explorar sua relação com o feminismo examinando, desafiando e redefinindo a própria ideia do constitucionalismo a partir de uma perspectiva feminista [3]. Os estereótipos e abordagens discriminatórias deixaram marcas no direito constitucional e nas tradições legais. O feminismo pode desempenhar um papel na neutralização dessas influências e a interpretação feminista pode ser uma ferramenta muito eficaz a serviço da mudança jurisprudencial gradual, além disso, oferece uma nova perspectiva interpretativa do conhecimento humano, incluindo a esfera do Direito. Alguns exemplos clássicos da influência de estereótipos e discriminação na interpretação vêm de casos em que documentos aparentemente neutros foram interpretados de forma excludente às mulheres por causa de vieses culturais [4]. É necessário que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a interrupção voluntária da gravidez, compreenda que é possível combater não só as formas públicas de injustiça, suspostamente neutras. Neste sentido, uma possibilidade seria o método interpretativo proposto pela professora Katharine Bartlett [5], "the woman question", para verificar e expor o impacto das normas jurídicas sobre as mulheres, que busca identificar as implicações de gênero nas normas e práticas jurídicas que podem parecer neutras ou objetivas. E pode ser utilizado no caso do aborto. Para ela, esta possibilidade pode trazer alternativas interpretativas que promovem uma alocação mais justa e equânime dos resultados sociais. "The woman question" busca verificar os impactos das normas sobre as mulheres apresentando as seguintes questões: "have women been left out of consideration? If so, in what way, how might that omission be corrected? What difference would it make to do so?" [6]. O método busca de alguma maneira explorar se há proporcionalidade e, portanto, igualdade no tratamento e na elaboração de uma lei e seus impactos na vida da mulher. Se a lei só tem impactos de restrição sobre a vida, a liberdade e o corpo da mulher, não é possível pensar em neutralidade ou imparcialidade. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, perguntar "the woman question" é perguntar e examinar como a criminalização do aborto traz standards normativos em desvantagem para mulheres. A pergunta assume que as leis, especialmente aquelas elaboradas no início e meados do século passado não só podem não ser neutras, mas também impactar de forma desvantajosa para as mulheres e serem "machistas" num sentido específico. A proposta da pergunta "the woman question" quando dos julgamentos, pode ajudar a expor esta disparidade e desproporcionalidade no impacto da norma punitiva sobre a vida e sobre o corpo das mulheres, sugerindo a correção do direito pela declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte. É preciso enfrentar se o tema afeta só mulheres, se afeta apenas mulheres grávidas, se este impacto prejudica as mulheres. Se há impacto maior sobre mulheres pobres e sobre mulheres negras. Para além disso, é necessário perguntar se o Estado atua de forma proporcional para evitar a interrupção da gravidez com incentivos econômicos e sociais para as mulheres. O Estado mantém políticas de assistência social específica para mães de baixa renda? O Estado mantém políticas de estabilidade no emprego para mulheres gestantes? E para mulheres gestantes que vivem em subempregos no mercado informal de trabalho, de que modo o Estado protege? Às mulheres executivas é garantido promoções na carreira? Há uma preocupação de gênero em promover mulheres mães nas corporações? Optar pela continuidade da gestação e maternidade impacta no desenvolvimento das mulheres? Impacta negativamente em seu desenvolvimento profissional? Mulheres pesquisadoras têm incentivos e equiparação justa para equiparar a maternidade? Quais as políticas de inclusão e equiparação são feitas pelos governos? Homens que optam por não levar a gravidez adiante sofrem algum tipo de punição? São estas as questões que devemos fazer para devidamente enfrentar o tema do aborto. Fazer a pergunta "the woman question" pode ser um método inicial para os debates sobre interpretação constitucional a respeito do aborto e nos resultados desproporcionais que sua criminalização causa às mulheres. As perguntas acima podem demonstrar com maior transparência se há de fato uma preocupação na proteção da vida do feto para o momento posterior ao seu nascimento e se há políticas para acolhimento das mulheres que desejam levar sua gravidez adiante. Se a lei impacta apenas sobre as mulheres e é a única política desproporcional existente para restringir suas liberdades e tratá-la de maneira desproporcional, então deve a corte apontar a sua inconstitucionalidade porque não atende parâmetros de igualdade material preconizados na Constituição Federal. Neste mês de março, há mais temas a refletir do que a celebrar, e o espaço de interpretação feminista deve ser um espaço de luta, a interpretação não é neutra, é disputa e aqui só defendemos a interpretação que possa garantir igualdade e igual liberdade às mulheres. [1] Thomson, James. Defensa del aborto. In: DWORKIN, Ronald. La Filosofía del Derecho. México: FCE, 2014, p.245-246. [2] Lacerda, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019, p. 40. [3] BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism: Global Perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012. p. 1. [4] BARAK-EREZ, Daphne. Her-menutics: feminism and interpretation. In: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism: Global Perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012. p.85. [5] BARTLETT, Katherine. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, vol. 103, 1990, n.4, p. 837. [6] Ibidem.
2023-03-11T08:00-0300
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Embargos Culturais
De que Populismo Estamos Falando, de Barros e Lago
O tema do populismo voltou ao proscênio (ou talvez nunca tenha ido para a coxia). Lembro-me, nesse pormenor, de um político hoje esquecido, Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque (1906-1987), o Homem da Capa Preta. Chapéu escuro, com a inconfundível capa preta, sob a qual, ao que consta, carregava uma metralhadora (a lurdinha), Tenório simboliza (até hoje) um estereótipo do político populista. Sua vida foi romanceada e levada ao cinema, em inesquecível filme dirigido por Sérgio Rezende, com participação também inesquecível de José Wilker, então no auge de sua carreira. Tenório disputou o governo do Rio de Janeiro contra Carlos Lacerda, em 1960, uma disputa marcada por dois exemplos de políticos chamativos. Lacerda também tinha seus truques. Além do filme (Marieta Severo está lá também), recomendo a leitura do livro da filha de Tenório, Sandra Tenório Cavalcanti, Tenório, Meu Pai, um depoimento fascinante, hoje raro, publicado pela Global. Criador das milícias, segundo alguns, justiceiro implacável, segundo outros, Tenório é um exemplo das contradições e dilemas que marcam uma tentativa de compreensão do populismo. De que Populismo Estamos Falando, de Thomás de Barros e Miguel Lago, foi editado pela Companhia das Letras. Os autores são cientistas políticos renomados. Ao longo desse pequeno-grande livro, exploram os vários sentidos da palavra "populismo". Em seguida, tratam da história do populismo no Brasil. Concluem identificando as forças que marcam o populismo. Nos dias de hoje há uma multiplicidade de políticos que podemos associar a perfis populistas: Trump, Boris Johnson, Nigel Farage, Hugo Chávez, Evo Morales, Vladimir Putin, Mélenchon, tanto à direita, quanto à esquerda, apenas para nominarmos estrangeiros, que os autores identificam na sessão inicial do livro. Os autores lembram emblemática passagem de Trump, que perguntado como fazia para navegar nas tempestades nos Estados Unidos teria respondido que ele, Trump, "era a própria tempestade". Essa afirmação, resgatada pelos autores, dá o tom do assunto do livro. Para os autores, melhor seria falarmos em "populismos” ao invés de "populismo", dada a variedade de circunstâncias, trajetórias e contextos políticos e históricos. A partir de Ernesto Laclau (conhecido cientista político argentino que faleceu em 2014), enfatizam a teatralidade do populista e identificam três pontos centrais definidores do populismo: um discurso que opõe o povo às elites, os "de baixo" contra "os de cima", uma perspectiva estética transgressiva, irreverente e marcadamente popular, qualificando-se um força que detém efetiva capacidade de mudar as instituições. Exemplificam a oposição entre povo e elites com passagem da carta testamento de Getúlio Vargas, intuição que me parece justifica a leitura do livro. Ilustram o populismo no Brasil com várias referências a Adhemar de Barros (1901-1969), prosaico governador de São Paulo. Como complemento, nesse caso, sugiro a leitura de Amilton Lovato, Adhemar, Fé em Deus e Pé na Tábua, editado pelo Geração. Adhemar foi nomeado interventor em São Paulo por Getúlio, que queria alguém que não lhe representasse nenhum perigo. Conta-se que teve que repetir o nome de Adhemar para Francisco Campos, que redigiria o decreto, e que nunca teria ouvido falar em Adhemar. Adhemar fizera oposição a Getúlio, a quem mais tarde apoiou. Lê-se nesse muito bem pesquisado livro de Lovato que Adhemar e Jânio rivalizavam-se, inclusive nas excentricidades. Os mais antigos (muito mais antigos e velhos do que eu) lembram-se do jingle: "Hip, hip, hurra, vamos todos saudar Adhemar, que o nosso país vai governar". Adhemar foi importantíssimo no apoio de São Paulo contra Goulart (outro populista) em 1964. Mais tarde, rompeu com os militares, que não convocaram as eleições gerais com as quais contava para ascender à Presidência da República. Adhemar foi cassado. Segundo Lovato, Adhemar era um "prato cheio para os caricaturistas". Era o tempo das caricaturas, hoje substituídas pelos memes. Em De que Populismo Estamos Falando, os autores exploram também temas como o "populismo econômico" que Roberto Campos imputava à Constituição de 1988, a construção da expressão populismo (em Assis Chateaubriand e Hélio Jaguaribe), o fracassado governo de Jânio Quadros, o "populismo cambial" imputado a Fernando Henrique Cardoso, os populistas da UDN, Brizola e Fernando Collor, entre tantos outros. Os autores referem-se a Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (cientista política belga, que publicou livro importantíssimo sobre Carl Schmitt), para quem "o populismo não é bom nem ruim — é uma lógica política que constrói identidades coletivas". O leitor pode conferir a qualidade do trabalho dos autores ouvindo ao podcast O Assunto, com Renata Lo Prete, datado de 17 de outubro de 2022, que entrevista Thomás de Barros.
2023-03-12T08:00-0300
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Opinião
André Nicolitt: O Supremo no julgamento do HC 208.240
A viatura foi chegando devagar E de repente, de repente resolveu me parar Um dos caras saiu de lá de dentro Já dizendo, aí compadre, você perdeu Se eu tiver que procurar você 'tá fudido Acho melhor você ir deixando esse flagrante comigo (...) De geração em geração Todos no bairro já conhecem essa lição Era só mais uma dura Resquício da ditadura Mostrando a mentalidade de quem se sente Autoridade neste tribunal de rua (Marcelo Yuka, O Rappa, 1999) Não são poucos os casos que viralizam nas redes sociais e na imprensa tradicional envolvendo a abordagem policial a pessoas negras no Brasil. Em 3 de setembro de 2020, o violoncelista negro Luiz Justino tomou uma "dura" da polícia em Niterói e acabou sendo preso injustamente. Em 29 de junho de 2021, o ciclista negro Filipe Ferreira Oliveira tomou uma "dura" quando fazia manobras em um parque na Cidade Ocidental (GO), tendo sido submetido à mira de arma de fogo e humilhado. Na cidade de Guarapari (ES), em 25 de novembro de 2021, uma senhora preta foi abordada e submetida a chutes, socos e tapa. Já em Itabira (MG), em 5 de novembro de 2021, dois PMs, com violência, abordaram uma mulher negra com o bebê no colo, tendo sido derrubada e imobilizada com o joelho do policial em seu pescoço. Em 17 de novembro de 2021, o influenciador e produtor cultural negro Júlio Dantas foi detido e conduzido à delegacia no Centro do Rio de Janeiro. Como se vê, nas capitais e no interior, por todo o Brasil, colecionam-se cenas dantescas, protagonizadas por policiais militares e, às vezes, até seguranças privados, de um lado e pessoas negras de outro, submetidas a toda sorte de crueldade, violência, traumas e humilhações. Essas abordagens levadas ao extremo produzem até a morte, como no caso de George Floyd, afro-americano assassinado em 25 de maio de 2020 por um policial de Minneapolis. No Brasil, na véspera do Dia da Consciência Negra (em 19 de novembro de 2021), João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi morto no Supermercado Carrefour em Porto Alegre (RS). Tudo começou com uma abordagem de seguranças privados. Por que as abordagens policiais não possuem um regramento legal consistente? Porque é um instrumento policial estatal dirigido a pessoas negras! Em 1999 o músico Marcelo Yuka, do grupo O Rappa, já denunciava: "De geração em geração / todos do bairro já conhecem essa lição (...) / era só mais uma dura / resquício de ditadura / mostrando a mentalidade / de quem se sente autoridade / nesse tribunal de rua". Vinte e quatro anos depois, o Supremo Tribunal Federal, através do Habeas Corpus 208.240, vai decidir se as "duras policiais" realizadas com base na cor da pele são válidas. O tema é levado ao STF porque Francisco Cicero foi abordado pela polícia, pois o agente policial "avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto o meio fio da via pública e um veículo estava parado". A resolução desse caso é simples. Um jovem loiro, parado perto de um veículo branco, na rua Dias Ferreira no Leblon, seria parado? A toda evidência não. Como diz Emicida, existe pele alva e pele alvo. A cor da pele, lamentavelmente, é determinante nas abordagens policiais. Esse imbricamento do tema com a questão racial não é algo exclusivo e atual do Brasil. O problema da filtragem racial na prática da stop and frisk não passou ao largo das cortes americanas, como se vê no final da década de 1960, quando se julgou o caso Terry v. Ohio, 392 U.S. 14-15 (1968). Na ocasião, a National Association for the Advancement of Colored People (Naacp) habilitou-se como amicus curiae e argumentou que a admissão da prática de detenções e buscas sem causa provável teria duros reflexos para a população negra do país, que já era vítima de abordagens abusivas. A corte concordou com a premissa fática apresentada pelo Naacp, no sentido de que as polícias frequentemente discriminam as minorias raciais, em especial os negros [1]. No Brasil, pesquisas empíricas mostram que as abordagens a pessoas a pé, na rua e no transporte público, têm por alvo preferencial a juventude negra (pretos e pardos) [2]. Qualquer desejo relativo a uma sociedade igualitária, justa e plural passa necessariamente por trazer para o campo da legalidade as abordagens policiais, limitando o arbítrio estatal. O poder de polícia não é um cheque em branco imune a qualquer controle. O caso de Francisco ainda é singelo, já que ele estava com ínfima quantidade de drogas (1,53g), mas ainda assim, na primeira instância, "ganhou" sete anos e 11 meses de prisão, o que foi reformado pelo Superior Tribunal de Justiça para dois anos e 11 meses. Contudo, um dos ministros do STJ apresentou dois argumentos para absolver totalmente Francisco. 1º) a ínfima quantidade de droga remete à insignificância jurídica; 2º) uma abordagem a partir do racismo invalida toda a prova daí derivada. A dificuldade de enfrentar o racismo no Brasil se deve em muito porque não se quer enxergá-lo, não raro se nega sua existência e usa-se todo tipo de refúgio argumentativo para dizer que atitudes racistas não são racistas. Cada um vê o que quer. Agora, ao julgar esse tema, o STF não irá apenas decidir se as provas produzidas a partir de uma abordagem policial racista são validas ou não, ele estará dando um recado sobre qual o tipo de polícia o Estado brasileiro terá: uma polícia racista ou um modelo de polícia cidadã. Ao fim e ao cabo, o STF demonstrará se está alinhado ou não com os novos anseios de uma sociedade antirracista e plural. O resultado do julgamento poderá ser um estímulo e agigantamento de prática policial inaceitável ou um importante aviso aos órgãos de segurança de que "vidas negras importam". [1] WANDERLEY, Gisela Aguiar. LIBERDADE E SUSPEIÇÃO NO ESTADO DE DIREITO: O PODER POLICIAL DE ABORDAR E REVISTAR E O CONTROLE JUDICIAL DE VALIDADE DA BUSCA PESSOAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2017. [2] RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação racial na cidade do Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania. Ano 03, nº8, Dez 2004.
2023-03-12T06:03-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-12/andre-nicolitt-supremo-julgamento-hc-208240-sp
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Opinião
Corrêa, Delgado e Balazeiro: Um evento estrutural
Encerrou-se na sexta feira do último dia 3, um dos eventos mais memoráveis na história recente das relações entre constitucionalismo e direito laboral. Reportamo-nos ao congresso internacional "Direito Constitucionais e Relações do Trabalho: Caminhos das Cortes Superiores para a efetividade da Justiça Social", de organização conjunta do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior do Trabalho e da Escola Nacional da Magistratura Trabalhista, realizado nos dias 2 e 3 de março e contando com a presença dos presidentes e ministros das Cortes e de palestrantes nacionais e internacionais de renome, do quilate da ministra Rosa Maria Virolés Pinol, do Tribunal Supremo da Espanha. Para além do peso de ocorrer nas instalações da Corte Constitucional que foram recentemente vilipendiadas pela barbárie, mas que não sucumbiram no indelével patrimônio da credibilidade da instituição que presentam — um Tribunal que é escudo e farol do Estado democrático de Direito —, os riquíssimos debates que presenciamos apontam para o inegável caminho do profundo respeito e necessários diálogo e aproximação que cada vez mais devem nortear as relações entre Supremo Tribunal Federal e Poder Judiciário Laboral. É inegável que instituições de cúpula e os ramos do Poder Judiciário, todos dotados de independência mas ciosos da hierarquia judiciária e da necessária observância da palavra final do sistema proferida pela Corte Máxima, tem eventuais visões diferentes sobre temas de tanta riqueza como a constitucionalização do Direito do Trabalho. Mas também é também inquestionável que o caminho da aproximação institucional e do diálogo se apresentam como pontes perenes para a melhor prestação jurisdicional que todos desejam. Em momento em que a Corte Suprema tem a presidência de magistrada egressa a Justiça do Trabalho e que personifica a serenidade de uma liderança inconteste, sua Excelência a ministra Rosa Weber, também coordenando mesas e conduzindo debates, o evento trouxe a riqueza de proporcionar à plateia ouvir a troca de ideias de ministros do STF e palestrantes de grande representação no mundo jurídico. O pressuposto de valorização do primado do trabalho e, mais, do trabalho digno, foi ponto comum de discussões sobre o papel da Constituição para se alcançar esse objetivo. Alguns momentos podem e devem ser guardados na memória de todos por se constituírem em lições que precisam ser repassadas a gerações futuras. Apenas a título de exemplo, até porque o encontro foi integralmente registrado por câmaras e eternizado por transmissão da TV Justiça, ao encerar mesa sobre o combate à discriminação, a ministra Rosa Weber teve a precisa felicidade de registrar que o próprio Direito do Trabalho sempre é historicamente alvo de toda sorte de preconceitos, como um ramo menor da ciência jurídica quando em verdade seus dispositivos e princípios se apresentam como centrais para a vida e dignidade do nosso país. Acrescentamos: em um país onde em pleno ano de 2023, mais de 200 trabalhadores são resgatados da escravidão, o direito laboral e seus dedicados estudiosos tem que ser prestigiados para que trabalho e a decência não sejam meros vocábulos de retórica. Valorizar o trabalho digno é optar por um projeto de nação justo e igualitário. Que venham novos encontros.
2023-03-13T18:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-13/correa-delgadoe-balazeiro-evento-estrutural
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Opinião
Luiz Viana Queiroz: Ruy, o político (parte 1)
Ruy Barbosa era dotado de uma personalidade multifacetada, que brilhou em muitas áreas e deixou marcas profundas na história brasileira. É natural, portanto, que falemos separadamente sobre cada uma de suas atuações, mesmo sabendo que elas são integradas e compõem, juntas, a trajetória singular que nos encanta e nos inspira até hoje. No seminário Ruy Barbosa, do Império à República, uma vida dedicada à Nação,  promovido pelo TJ-BA (Tribunal de Justiça da Bahia), em dez diferentes mesas, falou-se, entre outros, do Ruy o advogado, o político, o jornalista, o internacionalista, o filólogo, o pedagogo, etc. Considero prudente observar que entre 1849 — data do nascimento — e 1923 — data da morte de Ruy Barbosa, não eram nítidos os limites entre essas diversas atividades. Só mais a frente no século 20 é que a divisão social do trabalho intelectual, sobretudo nas universidades, classificou o saber em departamentos estanques: o direito, o jornalismo, a diplomacia, a gramática, a literatura, etc. Divisões que buscaram certa cientificidade objetiva para diferenciar, por exemplo, o cientista do direito do prático: advogado, juiz, promotor. Essa racionalidade cientificista ainda não imperava na época de Ruy. Não é fácil distinguir quando um discurso, um texto, uma ação de Ruy Barbosa seria do político, já sendo do jornalista, ou seria do diplomata, já sendo do jurista, ou, ainda, seria do filólogo, mas já sendo do parlamentar, portanto, do político, mas, igualmente, do jurista. Nem mesmo na advocacia, cuja determinação dos limites se dá nas manifestações de consultoria ou assessoria jurídicas e na postulação em juízo — , nem mesmo aí é possível partir, separar, destrinchar o Ruy advogado, do Ruy político, do Ruy jornalista. Quando, em 1886, Ruy sem mandato, pois perdera a eleição para deputado da Bahia, é designado pelo partido liberal para falar na sessão cívica em homenagem a José Bonifácio, falecido inesperadamente? O orador, mesmo sem mandato, manda uma clara advertência para a monarquia: "Primeiro a abolição, nada sem a abolição, tudo pela abolição". Sucesso estrondoso. Luiz Viana Filho explica que "a frase ficou". "A imprensa liberal a reproduziu, e os estudantes a repetiram comovidos, cada qual imaginando-se um futuro Lincoln." Mesmo sem mandato, o advogado continuava o político. Quando, anos mais tarde, em 1892 e 1893, impetra Habeas Corpus ao Supremo Tribunal Federal em favor dos presos e perseguidos por Floriano Peixoto, e afirma da tribuna que o julgamento daquela causa seria o julgamento do próprio Supremo, quem fala é o advogado ou o político? João Mangabeira diz que ali começou seu curso de direito constitucional. Afinal, não fora dele o texto da Constituição Republicana de 1891, incluindo como direito fundamental no § 22, do artigo 72?  Agora era bater às portas do Supremo, invocando a regra constitucional. Mas o tribunal não estava preparado, nem para a Constituição de 1891, nem para Ruy Barbosa. HC foi negado por 6 votos contra apenas 1 voto favorável, do ministro Piza e Almeida. Negada a ordem, Ruy corre para a imprensa, em plena Sexta-Feira Santa e, ante o triste espetáculo, publica o artigo O Justo e a Justiça Política. Nele pontificou: "Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escapará ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde." Quem fala? O advogado, o político ou o jornalista? Destaco, portanto, neste início de viagem, que, se é benfazeja a classificação para o estudo das diversas faces de Ruy, ao final, no porto seguro do resultado deste seminário, o maior desafio é conseguir fazer a síntese dessa genial figura. O maior baiano de todos os tempos, já foi dito, o maior brasileiro de todos os tempos. E quando decidimos olhar para o político Ruy Barbosa vemos surgir um personagem que influiu decisivamente em algumas das mais importantes escolhas feitas pela nação brasileira e que, além disso, continua servindo de exemplo para as escolhas que devemos fazer no presente. Em primeiro lugar, Ruy Barbosa nos mostra a importância da política. Mostra que não existe caminho seguro e promissor para um povo que, ao menosprezar a política, se deixa conduzir pela discórdia, pela desconfiança, pelo conflito sem mediação que conduz inevitavelmente à radicalização e à violência. Um povo que despreza a política é um povo imaturo, presa fácil da cobiça internacional e do autoritarismo. Um povo que, cedo ou tarde, perderá aquilo que é a base sobre a qual assenta a própria essência do ser humano: a liberdade. É importante frisarmos isso, porque a atuação política de Ruy  teve como norte inquestionável a liberdade. Disse ele, ainda na refrega com Floriano, ser o objetivo supremo de sua carreira: "O amor da liberdade, servido pela independência e pela desambição." Quando combateu a escravidão, Ruy Barbosa passou das ideias à ação convicto de que, sem a liberdade de todos os cidadãos, o Brasil estaria definitivamente marcado por uma fratura incontornável em sua estrutura social. A liberdade de poucos nunca seria verdadeira e legítima enquanto uma parte dos cidadãos estivesse submetido a uma servidão moralmente inaceitável. Quando lutou a luta vitoriosa do republicanismo, Ruy acreditou que a República seria o sistema de governo que conduziria ao progresso das nações e que o Brasil deveria almejar participar dessa aposta que, vemos hoje, foi feita e foi ganha pelos povos que respiram, mais que em qualquer lugar, o aroma revitalizante da liberdade. O que, hoje, nos parece uma verdade inquestionável teve em sua origem, no Brasil, a participação decisiva do Ruy que se transformou num dos maiores defensores dos princípios e valores que embasam a ordem constitucional dos países amantes da liberdade. Ruy foi político dentro e fora do parlamento. Perdeu três eleições para deputado e quatro para presidente da república. Mas as derrotas, sobretudo a campanha civilista de 1910 e a de 1919 ficaram para sempre na história política de nosso país. Mesmo na derrota Ruy era inigualável. Foi eleito deputado provincial da Assembleia da Bahia, em 1877, com 26 anos, e, logo no ano seguinte, em 1878, deputado geral para a Assembleia na Corte, reeleito em 1882. Torna-se ministro da Fazenda em 1889 a 1891, e senador da Bahia, entre 1890 a 1892, 1892 a 1897, 1897 a 1906, 1906 a 1915 e 1915 a 1921. Alguns traços marcaram toda essa atividade política. 1 – Ruy era um reformista. "Na realidade a grande marca, o traço inseparável da ação de Ruy ao longo de toda a existência, é a tendência, e mais do que isso, a paixão no sentido de reformar". A abolição, a eleição direta, a federação, a reforma da Constituição, o ensino. Reformas e mais reformas. 2 – Ruy era um idealista — trabalhou quase dez anos no Diário da Bahia sem remuneração. Não incluído do Ministério Dantas em 1884, continuou a apoiar o governo e a ser o mesmo deputado que valia por 20. Recursou ser ministro do Gabinete de Ouro Preto, em 1889, porque não trazia a federação como bandeira do novo governo. Assumiu a candidatura a presidente em 1909, já a sabendo perdida, porque era dos sacrifícios. Na introdução do livro o Papa e o Concílio, na defesa da liberdade religiosa e do abolicionismo que lhe custa a vaga no parlamento, em 1884, tudo são ideais. 3 – Ruy era um homem de luta e coragem – Os Habeas Corpus de 1892-1893 contra o Poder lhe custou o exílio. Na campanha civilista, em 1909, país afora, mesmo a sabendo perdida, bateu-se contra o militarismo. Em 1910 no Senado contra o Satélite, lhe ameaçaram a vida. Em 1914 proferiu no senado 42 discursos, além de dezenas de pareceres. "Na realidade, à vista do que produziu e não encontra paralelo no mundo inteiro, tem-se a impressão de que Ruy multiplicava o tempo", diz Luiz Viana Filho, para, logo em seguida dar voz ao biografado: "No meio dessas lutas o meu norte foi a justiça. Nunca vi oprimidos os meus adversários, que me não inclinasse para eles...Em 1892, em 1895, em 1898, em 1905, em todas as crises do regime republicano, tenho estado sempre ao lado dos meus adversários toda vez que contra os seus direitos se procura atentar com as armas arbitrárias do poder.". Depois da campanha a Presidência da República em 1919, volta-se para a campanha de Paulo Fontes a governador da Bahia, em 1920. Luiz Viana Filho assim o descreve: "Aos setenta anos, visivelmente combalido, ele iria, no fim da vida, compor uma das mais belas páginas na gloriosa existência do incorrigível Quixote, sempre a pelejar ideais inatingidos. A Bahia, pelo que tinha de mais representativo da sua cultura e das suas tradições, vibrou ante aquele exemplo edificante. Lembra Napoleão ao retornar da ilha de Elba. A campanha que Ruy realiza, transportando-se de cidade a cidade, e entre uma e outra escrevendo lapidares conferências que proferiu, é algo de grandioso Feira de Santana, Cachoeira, Nazaré, Alagoinhas, Serrinha, Bonfim. Cada um desses nomes associa-se a algumas páginas que o tempo não apaga, e imortalizam o Verbo que as percorreu." 4 – Ruy era fiel e permanente defensor de seus princípios e foi um trabalhador incansável. "Se nele havia excessos, eram os da fidelidade a ideias, o de sua capacidade de desprezar o poder e de afrontar riscos, muitas vezes sem outro interesse na causa defendida que não fosse a preservação da ordem jurídica e a proteção das liberdades públicas e individuais", adverte João Mangabeira. Essas pinceladas sobre Ruy, nem de longe, esboçam o perfil do político. Síntese magistral, encetou seu discípulo querido, João Mangabeira, no vigésimo aniversário de morte, em 1943, através de palestra de 2h30min, proferida na casa de Ruy Barbosa, posteriormente publicada em 9 domingos no Diário Carioca e convertida em livro, com nada menos que 471 páginas. Acertou na mosca o grande Mangabeira com a tese "Ruy: o estadista da República". Ouçamos o Mangabeira: "Busquei demonstrar que Ruy é o estadista da República. Porque a construiu, dando-lhe as instituições jurídico-políticas e assegurando-lhe a estabilidade, por sua gestão financeira ao primeiro ano de sua vida. Porque somente ele, no governo ou na oposição, teve sempre o mesmo brilho, o mesmo vigor, a mesma operosidade, o mesmo idealismo, a mesma intensidade de ação. Somente ele teve atuação política desde os pródromos da república até 1923." E, ainda: "Ao que, neste livro, sobretudo visei foi que revisse, numa hora própria, o estadista atuando, o doutrinador ensinando, o apostolo pregando." Assim, meu caro desembargador Lidivaldo, Ruy o político, está quase todo ali, naquela obra imorredoura de João Mangabeira. Mas como tudo que diz respeito àquele em quem !deus acendeu um vulcão na cabeça", incompleto porque falta a fase anterior à República. Em recentíssimo artigo publicado no jornal Correio da Bahia, intitulado "Ruy Barbosa para apressados", o escritor Saulo Dourado, autor do romance histórico "O Borbulhar do Gênio", sobre a relação de juventude entre Ruy Barbosa e Castro Alves, sustenta que: "a velhice é mesmo seu tino, sua virtude"... "É como se ele jamais tivesse passado pela puberdade e já surgisse feito. Há uma razão: o jurista viveu quatro décadas sem se tornar ou mesmo saber que se tornaria o Rui Barbosa que a História conhece." A pressa é mesmo coisa perversa que raramente combina com a exatidão. Se é verdade que o apogeu de Ruy se dá, após a República, sobretudo com as infindáveis demonstrações da inigualável grandeza moral e intelectual, não está exato afirmar que antes dos 40 anos Ruy não se tornara ou nem mesmo saberia que se tornaria o Ruy Barbosa que a história conheceria. Não sou daqueles que classificam a vida dos pensadores em jovens e velhos. Daí ter escrito Gyorgy Lukacs "O jovem Hegel" e Celso Frederico "O jovem Marx". Prefiro os que buscam a síntese sem fugir do complexo. Pretender que Ruy só se tornou Ruy após os 40 anos é mais ou menos como acreditar no estalo de Vieira. Os fatos demonstram o contrário. Continua na parte 2
2023-03-13T17:10-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-13/luiz-viana-queiroz-ruy-politico-parte
academia
Direito Civil Atual
A proposta de reforma do Direito de Família alemão (parte 1)
Na sequência das eleições parlamentares de 2021, social-democratas (SPD), "verdes" (Bündnis 90/Die Grünen) e liberais (FDP) formaram a coalizão que levou Olaf Scholz ao cargo de Primeiro Ministro, distribuiu ministérios e assentou diversos nortes para o novo governo. No acordo que concentra formalmente os principais alinhamentos entre as forças políticas que compõem a chamada Koalition, base que forma o governo alemão a cada eleição parlamentar, as sinalizações de reforma do direito de família foram bastante notáveis e têm dado o que falar. O texto, intitulado Mehr Fortschritt wagen: Bündnis für Freiheit, Gerechtigkeit und Nachhaltigkeit (algo como "Ousar mais progresso: aliança pela liberdade, justiça e sustentabilidade"), aborda temas como guarda, assistência e sustento dos filhos, disposições sobre parentalidade mesmo antes da concepção, presunção de maternidade quanto a filhos havidos em casamento entre duas mulheres, mitigação do casamento como critério de prevalência para adoção, direito processual de família, direito da infância, alimentos etc. Para além dos últimos episódios relativos à união entre pessoas do mesmo sexo, a última grande reforma do direito de família alemão resultou de um compromisso do Parlamento, ainda em 1976, levando a termo substanciais mudanças em diversos temas relativos ao casamento e à família, tais como a superação da posição subjugada da mulher, no casamento, como dona de casa (Hausfrauenehe), em prol de um princípio de igualdade na relação (Partnerschaftliche Prinzip); a substituição, na separação, do princípio da culpa pelo princípio da ruptura; a criação de uma jurisdição especializada em matéria de família; nome de família etc [1]. Como os principais pilares do direito civil ocidental assentam-se na convergência romano-germânica, é inevitável que o debate em torno do direito de família alemão se faça sentir por aqui. Sendo assim, quais pontos da reforma merecem destaque, tendo em vista a relevância dos temas para o direito brasileiro? Nessas breves linhas, destacamos o item mais controverso da proposta da coalizão para "modernizar o direito de família" (ideia-chave do acordo de coalizão): a comunhão de responsabilidade. Na primeira parte da coluna, traremos uma visão geral sobre a proposta, já com alguma contextualização com o direito brasileiro, seguindo-se, em uma segunda parte, aos contrapontos da oposição alemã e considerações críticas sobre a ideia e sua viabilidade ou não no Brasil. A coalizão propõe a criação de um instituto jurídico intitulado Verantwortungsgemeinschaft, alçando-o à proteção do direito de família ao lado do casamento (Ehe), instituto-paradigma, e de outros institutos secundários, tais como a parceria de vida registrada (Eingetragene Lebenspartnerschaft) e a comunhão de vida não matrimonial (Nichteheliche Lebensgemeinschaft), apenas aparentemente semelhantes ao que aqui chamamos, respectivamente, de união estável e de concubinato, mas com substanciais diferenças em termos de reconhecimento e tutela jurídica típica do direito de família e do direito das sucessões. Aliás, como prova do caráter paradigmático do casamento na Alemanha, a lei que disciplinou a referida parceria de vida registrada (Lebenspartnerschaftsgesetz), de 2001, autorizou tão somente pessoas do mesmo sexo a formalizarem tais relações mediante registro, conferindo-lhes direitos típicos de família e sucessões. No entanto, a sucessão legislativa sobre o tema acabou criando um interessante cenário de direito intertemporal. É que, com a edição da lei que alterou a seção 1353 do Código Civil alemão — Burgerliches Gesetzbuch (BGB) — para prever o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2017, consignou-se que as parcerias de vida somente poderiam ser registradas até 30 de setembro de 2017. A partir de então, restou a via do casamento, seja direto, seja por conversão das parcerias de vida registradas enquanto a lei as permitiu. Assim, todos os caminhos voltaram a desaguar no casamento, sem distinção, agora, de gênero dos nubentes. No Brasil, a redação mais inclusiva da Constituição Federal de 1988 acabou dando margem para um indevido e gradual abandono do caráter paradigmático do casamento. Mesmo assim, apesar dessa tendência de equiparação da união estável ao casamento, mantemo-nos filiados à leitura do art. 226 da Constituição como um norte para um direito de família inclusivo e abrangente, porém orientado ao paradigma do casamento. Nesse sentido, Eduardo de Oliveira Leite registra que, "em momento algum o constituinte de 1988 pretendeu igualar as duas realidades jurídicas". Destacando o teor do §3º do art. 226, conclui que a determinação a que a lei facilite a conversão da união estável em casamento é uma prova de que "o parâmetro perseguido pelo constituinte, apesar do reconhecimento de novas formas de conjugalidade, continua sendo o casamento" [2]. De volta à comunhão de responsabilidade, segundo o ministro da Justiça alemão, Marco Buschmann (FDP), a comunhão de responsabilidade consiste na possibilidade de pessoas que não têm entre si uma relação amorosa assumirem responsabilidade uma pela outra de maneira juridicamente segura. Para Buschmann, tal modelo pode ser uma solução, por exemplo, para pessoas idosas que percam seus companheiros e decidam compartilhar moradia e demais responsabilidades ou para pessoas que compartilhem a criação de um menor [3]. A ideia não surge com a coalizão, sendo uma pauta um pouco mais antiga de mandatários do partido FDP, que chegaram a apresentar no Parlamento, em 2020, um material sobre o tema, consignando que, pela comunhão de responsabilidade, duas ou mais pessoas maiores, que não sejam casadas, que não vivam em comunhão ou parceria de vida e não sejam parentes, poderiam, por livre escolha e sem dificuldades burocráticas, estabelecer entre si uma relação pessoal próxima, não necessariamente com coabitação, mediante registro específico em cartório a partir do qual o vínculo passaria a produzir efeitos em relação a terceiros. A relação jurídica se extinguiria automaticamente pela morte de uma das pessoas ou pela manifestação de uma delas, após um "período de transição". Tudo à guisa de fortalecimento da autodeterminação nos planos de vida, segundo consta do documento parlamentar apresentado pelo FDP [4], na mesma linha defendida pelo ministro Buschmann, que chega a classificar o pretenso instituto como um "parentesco eletivo" (Wahlverwandtschaft). No entanto, como já era de se esperar, a ideia tem encontrado relevante resistência, seja do ponto de vista jurídico, seja sociopolítico e cultural, contando com duras críticas da oposição, a exemplo do registro feito pela Deputada Dorothee Bär (CDU/CSU), que consignou que "a coalizão confunde modernidade com arbitrariedade" [5]. Na segunda parte deste texto, traremos informações sobre o cenário da discussão na Alemanha e considerações críticas a respeito da proposta e sua contextualização com o cenário jurídico brasileiro.   *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] Vor 45 Jahren: Bundestag reformiert das Ehe- und Familienrecht. Disponível em: https://www.bundestag.de/dokumente/textarchiv/2021/kw13-kalenderblatt-832104. Acesso em 13 mar. 2023. [2] LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. v. XXI. 5 ed. p. 58. São Paulo: Forense, 2009. [3] Modell für Lebensgemeinschaften: Buschmann will "Verantwortungsgemeinschaft". Disponível em: https://www.zdf.de/nachrichten/politik/buschmann-justizministerium-modell-lebensgemeinschaften-100.html. Acesso em: 9. mar. 2023. [4] Deutscher Bundestag. Drucksache 1/16454, 13.01.2020. 19. Wahlperiode. Disponível em: https://dserver.bundestag.de/btd/19/164/1916454.pdf. Acesso em: 9. mar. 2023. [5] Geplante Verantwor­tungs­gemeinschaft stößt auf Kritik. Disponível em: https://www.bundestag.de/dokumente/textarchiv/2022/kw02-de-familie-874494. Acesso em: 13 mar. 2023.
2023-03-13T14:21-0300
https://www.conjur.com.br/2023-mar-13/proposta-reforma-direito-familia-alemao-parte