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academia
Senso Incomum
Tony Garcia, ChatGPT e o triunfo do homem comum (do direito)
Atenção: falarei do Homem Comum (homem, aqui, significa pessoa). Portanto, não preciso dizer que onde está escrito Homem Comum, leia-se espécie humana. E não preciso falar de Mulher Comum. Assim também é quando falo em analfabeto. Isto é, leia-se, também, analfabeta. E assim por diante. Ao trabalho. Quem é o homem comum?[1] O atual analfabeto funcional é o estágio fundamental para o homem comum de outra espécie: o homem comum do direito (HCD de agora em diante). Um passo para a psicopatia epistemológica (ver aqui e ver aqui) Hoje vivemos o ápice de uma forma social individualista. O que não é fácil, pois cada um tem que inventar uma vida e uma identidade para si (podemos chamar a isso de "perfil nas redes"!). O HCD e o HCC (homem comum comum) já não aceitam a hierarquia de idade e agora são anticiência, anti-qualquer-coisa. Pois no Direito, o lidador, o operador, identifica-se com o comum. Por isso é um lidador comum. Não lê nada que não seja comum. E de preferência curtinho. E que esteja nas redes. Contenta-se com o menos. Aderiu ao ChatGPT. Dá cursos sobre como "lacrar com ChatGPT". Paga para fazer "lives". Espalha "memes". Quer "ensinar" direito com inteligência artificial (incrível isso, não?), sem que, para isso, tenha qualquer inteligência não-artificial. Ele atua em vários campos. Tem espírito vingativo. É raivoso. Não suspende seus pré-juízos. Se não gosta do réu ou da parte, decide assim mesmo. Não se dá por suspeito. E ainda mete 20% de honorários. Contra quem tem raiva. E sai contando que é isento. O HCD é "isento". Com muitas aspas. O HCD e de outras áreas é o canário do conto de Machado. Ele fala e diz que o mundo é...um brechó...onde ele, o canário, é o dono de tudo. Machado genial. Profeta. Ele catalogou o HCD. O HCC e o HCD também estão presentes no conto Teoria do Medalhão (ler aqui). Ele tem as redes sociais para buscar seus iguais. Assim, faz triunfar a anticiência. Mesmo que para isso use a ciência...! Busca o simples. O senso comum. Esses novos personagens copiam, imitam, colam. Bricolagem epistêmica. Abrem o Google e, pronto, o livro novo está a caminho. E agora tem o vigarista do ChatGPT que põe o mundo à disposição, sem citar a fonte. Bom, o HCD também não cita a fonte. Então, por que o ChatGPT o faria? Isso explica o sucesso desse "novo mundo do direito", o admirável mundo novo do HCD; algo como Seja F— em Direito, Direito Tuitado, Mastigado e, agora, o novo: Direito Desenhado, ao que vi por aí. Mas não é só. Não esqueçamos que existem os livros que comentam o óbvio, algo como "agressão atual... é a que está acontecendo". E vai por aí. O HCD sofre de alienopatia. O HCD não sabe o que isso significa... Viva o simples. O HCD sai da toca. O triunfo vem com a autoajuda no Direito. O HCD vem com manual de instrução. Basta plugar na tomada. Você pode, berra o professor coach. Por vezes, o HCD mostra certa erudição. Passa um glacê. Tira frases prontas do Google. Como citar Pontes de Miranda em discurso de formatura. O HCD confunde garantismo com textualismo. Ou garantismo com marxismo. Pior: os lidadores comuns do direito, filiados à Comunidade dos HCD, já são maioria. Eles venceram. São vencedores. Eles são f— em Direito (sim, isso existe). E depois nos queixamos. O homem comum, o lidador comum, vende petições pré-elaboradas. Parafraseia decisões de prisões preventivas. O HCD é negacionista. Ele nega até mesmo a existência do HCD. O HCD não aceita nada para além de um empirismo mequetrefe. E o HCD não sabe o que é empirismo mequetrefe. O Homem Comum já venceu. E as palavras já morreram. Foram substituídas por emojis. O HCD — nos seus diversos níveis (porque existem na comunidade dos homens comuns do direito várias classes: A, B, C...). O HCD odeia epistemologia. O HCD não sabe o que é epistemologia. O mundo é um brechó. Um brechó com ChatGPT e robôs, esses que derrubam nossos recursos, verdadeiros snipers epistêmicos, formando grupos de extermínio recursal. Parafraseando Mário Corso, o HCD não quer saber de sabichões de livros, de cientistas do direito e de suas falas complexas, ele prefere os seus coetâneos que estão no YouTube ensinando o certo de que lhe convém. O HCD gosta do direito sem as partes chatas. Eis aí a solução. O que sempre atrapalhou o direito até hoje foram as partes chatas e difíceis. Eu me sinto um chato. Viva a chatice! A chatice epistemológica! Vem aí o NHCD (Novo Homem Comum do Direito). Que se mimetiza. Com ChatGPT e quejandices da inteligência artificial. Agora 4.0. Tiktokeado. Minha receita: sejamos chatos! Murrinhas. A falta das leituras das partes difíceis e chatas do Direito deu nisso que está aí. Na estagiariocracia. Na assessocracia. Sabem o que é chato para o Homem Comum do Direito? Garantias processuais-constitucionais. Para o HCD, são filigranas...! São como vacinas para negacionistas. O negacionismo epistemológico é como o negacionismo médico. No meio de tudo isso, criam-se personagens como Tony Garcia. Claro: o Direito brasileiro está no patamar em que está porque houve um imenso esforço. Muito trabalho. É só passar os olhos nos diálogos da Operação Spoofing. E ver o que a turma do fundão da classe é capaz de fazer. E assistir, de novo, a entrevista do Tony Garcia: o produto final, esculpido em carrara, da (CCD) Civilização Comum do Direito. Knok knok knok: quem é? É o homem comum. Veio para ficar. E infernizar a sua vida. Com ele vêm os seus coetâneos: o homem comum do direito, da medicina, da política etc. Preencha você mesmo. Como disse Tonto para Zorro, ao ver os indígenas se aproximando: "eles são muitos".   [1] O psicanalista Mario Corso uma vez mais me inspira — sou seu fã — ao escrever sobre A Era do Homem Comum no jornal Zero Hora.
2023-06-22T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-22/senso-incomum-toni-garcia-chatgpt-triunfo-homem-comum-direito
academia
Opinião
Nelson Jobim: Gilmar Mendes na Praça dos Três Poderes
* continuação da parte 1 ** trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" Advocacia-Geral da União Em abril de 1997 assumi no STF, indicado pelo presidente FHC. Antes de sair do Ministério da Justiça conversei com Clóvis Carvalho, ministro-chefe da Casa Civil, sobre o aproveitamento de Gilmar Mendes. Naquele momento estava vaga a Assessoria Jurídica da Casa Civil, pois seu titular havia se afastado. Clóvis aceitou sugestão e lá se foi Gilmar para a Casa Civil. Após cerca de um ano, já no STF, em conversa com o presidente FHC, disse-lhe que deveria providenciar alguma alteração na Advocacia-Geral da União (AGU). A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) tinha atuação efetiva nas questões tributárias perante o STF. A AGU tinha conduta mais burocrática, não combativa. Sentia-se, inclusive, um certo ruído entre a AGU e a PGFN. Disse ao presidente que o nome de Gilmar seria ótimo. O presidente referiu que não era hora para mexer com a AGU. Mas ficou com a mensagem. Em 23/11/2000, o ministro da Defesa, ex-senador Élcio Alvares, ex-líder no governo no Senado, afastou-se do ministério. No dia seguinte, o advogado-geral da União, Geraldo Quintão, é nomeado ministro da Defesa. O presidente da República, em 31/01, nomeou Gilmar como advogado-Geral da União. É conhecida a agilidade que Gilmar deu à AGU. Deu estruturação à AGU, que se transformou em um grande defensor da União. Armou diversas polêmicas com tribunais, Ministério Público e advogados. Certa feita, em sessão plenária no STF, Gilmar fazia aguda e forte sustentação oral. O ministro Ilmar Galvão, ao lado de quem eu sentava, murmurou: "Jobim, olha só a ventania!" Disse-lhe: "que ventania? Estão todas as aberturas fechadas!" Ele retrucou: "Não é isso. São os 'dólares' dos honorários advocatícios de êxito que estão voando para fora!" Supremo Tribunal Federal Em conversas informais com o presidente FHC, disse a ele que Gilmar deveria ser indicado para o STF. Naquela época, não havia "campanha" para indicação à vaga no STF, como há hoje. Adotava-se a regra à qual o ministro Paulo Brossard se referia: "O cargo de ministro do STF não se reivindica e não se recusa." FHC disse-me que não poderia abrir mão do Gilmar, mas que, na última vaga a abrir no STF durante seu mandato, faria a indicação. FHC indicou Gilmar. Outra polêmica. A OAB se opôs à indicação. O professor Dalmo Dallari escreveu que Gilmar, no STF, atacaria os direitos humanos consagrados na Constituição, e a própria estabilidade desta! O mesmo professor da polêmica sobre o decreto de demarcação de terras indígenas. Na sabatina na Comissão de Constituição e Justiça, o senador Eduardo Suplicy obteve o adiamento da sessão. Houve duro debate na Comissão e no Plenário. Tudo acabou com a aprovação da indicação, por maioria. Não vou examinar as decisões de Gilmar. Creio que nesta obra outros o farão. Conheci, convivi e conheço a competência e erudição de Gilmar. Mas, não só sua competência. Gilmar teve polêmicas duras com membros do Tribunal. Lembro das escaramuças de Gilmar com Joaquim Barbosa e Luiz Roberto Barroso. Além daquelas com a OAB e alguns advogados. Vou me referir a essa característica mais adiante. Emenda Constitucional nº 45, de 2004 — Reforma do Judiciário O deputado Hélio Bicudo (PT-SP) apresentou, em 26/03/1992, a PEC 92, de reforma do Poder Judiciário. A PEC teve alguma movimentação, com paralisações na Câmara dos Deputados. Foram nomeados relatores, na Comissão Especial, sucessivamente, os deputados Jairo Carneiro (PFL-BA), 1995, Aloysio Nunes Ferreira (PMDB-SP), 1999, e a deputada Zulaiê Cobra (PMDB-SP), 1999. A discussão e votação, no Plenário da Câmara dos Deputados, começou em 19/11/1999 e encerrou-se em 07/06/2000. A proposta inicial do deputado Hélio Bicudo serviu unicamente para a tramitação do tema. O relatório e substitutivo da deputada Zulaiê Cobra tiveram redação completamente diferente da proposta inicial. Durante a tramitação, Gilmar e eu trabalhamos junto à relatora para incluir modificações similares ao texto dos pareceres da Revisão Constitucional de 1993. A relatora, em seu substitutivo, incluiu as nossas sugestões e acolheu outras emendas de deputados. A matéria teve longa discussão em primeiro e segundo turno de votação. As questões mais controversas foram a criação da súmula vinculante e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A súmula vinculante teve enorme oposição da OAB e de associações de juízes. A criação do CNJ teve forte repúdio pela magistratura, por meio de suas associações, como a Associação do Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e Associação Nacional da Magistratura do Trabalho (Anamatra). O então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), em discurso de 30/01/1997, afirmou: "Os juízes integrantes da magistratura da União (juízes federais, juízes do Distrito Federal, juízes do trabalho e juízes militares) [...] conscientes de sua missão constitucional e de seu relevante papel social, têm procurado os membros do Poder Legislativo para uma conversa sadia, com o fim de trocar informações sobre o mecanismo específico do Poder Judiciário." [1] E continuou o deputado: "O momento é grave e preocupante. O Judiciário, guardião das liberdades, nunca se sentiu tão ameaçado e acuado no exercício de sua independência funcional. [...] precisamos ter atenção com os reclamos da magistratura da União na reforma do Judiciário com a questionada instituição da súmula vinculante e do falado controle externo." [2] Na sessão de 07/06/2000, a Câmara dos Deputados aprovou a redação final, que foi enviada para o Senado Federal, que protocolou em 30/06/2000. No Senado, tramitou como PEC nº 29, de 2000. Em 08/2000, foi nomeado o primeiro relator, o senador Bernardo Cabral (PMDB-AM). Em 06/2003, foi designado novo relator, o senador José Jorge (PFL-PE). Gilmar e eu repetimos o que fizemos na Câmara dos Deputados. Tivemos diversos contatos e reuniões com o senador José Jorge antes da elaboração de seu relatório e substitutivo. Conversamos com diversos senadores discutindo o tema, em especial com os líderes partidários. No governo Lula havia muitas divergências sobre a súmula vinculante e o Conselho Nacional de Justiça. Surgiu um problema regimental quando da confecção do relatório na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Não convinha fazer alterações no texto originário, pois tudo começaria de novo — o texto do Senado teria que ser apreciado novamente pela Câmara. É o que chamávamos de tramitação "ping-pong" — o texto do Senado voltava para a Câmara como projeto do Senado, o qual, alterado, voltaria para o Senado. Por outro lado, era impensável impedir que os senadores alterassem o texto da Câmara. Esse era o impasse. Qualquer alteração que estivesse no substitutivo do Senado importava no retorno à Câmara de toda a matéria. Sugerimos, Gilmar e eu, ao relator a elaboração de dois textos. Um contendo a redação da Câmara, que se destinaria à promulgação. Outro, com as modificações introduzidas pelo Senado, que deveria retornar à Câmara. O relator concordou com a solução. Como a fórmula era inédita, ela dependia da concordância do presidente do Senado, José Sarney, do presidente da Comissão, senador Edson Lobão (PFL-MA) e do secretário da Mesa do Senado, Raimundo Carreiro, especialista em regimento, que orientava os presidentes e os líderes partidários. O relator elaborou o Parecer 451, aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que concluía com a Emenda nº 240, com um texto para promulgação e outro texto para retornar à Câmara. Em 07/05/2004, foi feita a leitura do parecer no Plenário para o início da discussão, com oferecimento de destaques e votação. A adoção da súmula vinculante provocou debates. Quando da votação, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) destacou para votar em separado o texto sobre a súmula vinculante e sustentou pela sua rejeição, baseado nas posições do então ministro da Justiça e ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Márcio Thomaz Bastos: "Ouvimos [...] o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, na Comissão de Constituição e Justiça. Avalio que os argumentos assinalados pelo Ministro Márcio Thomaz Bastos devem ser levados em consideração. Pelo menos, foi a convicção que formei. Primeiramente, para que os juízes de primeira instância possam decidir conforme sua convicção, seu saber jurídico, sua consciência, seu conhecimento acumulado. Em segundo lugar, para que também não se dê ao Supremo Tribunal Federal um poder excessivo, a tal ponto de o Supremo Tribunal Federal se tornar um Poder Legislativo." [3] No mesmo sentido a senadora Heloisa Helena (PSOL-AL): "Esse é um instrumento de controle ideológico, de estratificação do processo criador do Direito, independentemente de todo o debate sobre Pacto Federativo, princípio da legalidade, eliminação das prerrogativas do Legislativo, porque a última palavra em relação à interpretação da lei não se dará aqui no Congresso Nacional. [...] a concretização da interpretação dar-se-á pelos iluminados das cúpulas dos tribunais." [4] A tramitação também foi longa. Em todo o momento, as lideranças e os senadores manifestavam a necessidade de o primeiro texto do relator não voltar à Câmara dos Deputados (lá estavam a Súmula Vinculante e o Conselho Nacional de Justiça). Em 17/11/2004, em só uma sessão, votou-se toda a matéria em 1º e 2º turno. Em 08/12/2004, a Emenda nº 240, com texto igual ao da Câmara, foi promulgada em sessão conjunta do Congresso Nacional, como Emenda Constitucional 45. O outro texto retornou à Câmara, e lá não teve andamento. Foram notáveis as colaborações do presidente do Senado Federal, do Presidente da Comissão, do Relator e do Secretário da Mesa. A promulgação se deu em sessão solene do Congresso Nacional em 09/12/2004, onde tive oportunidade de afirmar: "Esta Emenda Constitucional foi o produto daquilo que só o Congresso Nacional sabe fazer: a construção de maiorias e convergências em cima da divergência. É exatamente no conflito dialético que os deputados e senadores, que as deputadas e senadoras sabem [que é] no debate que se constrói a Nação, porque é aqui [...] o lugar de vitórias e derrotas. Portanto, tivemos grandes vitórias e tivemos grandes derrotas. [...] Vamos afastar de nós aquela frase dita, tresdita e repetida: essa reforma não foi a reforma dos meus sonhos. Isso é a história. A história sabe que a produção de textos legislativos, de estruturas institucionais, de desenhos para o povo e para a Nação, decorre exatamente do processo democrático, da disputa, do conflito, que tenha [...] claramente, ao fim e ao cabo, a emergência da síntese, com a destruição da tese e da antítese. [...] o tema de reforma do Poder Judiciário não estava na agenda nacional. Era um tema que interessava restritamente às corporações — aos magistrados, aos juízes e aos advogados. Há que se afirmar claramente que, em 1987 [...] lá se encontravam somente os personagens e atores do processo judicial. O grande debate que se tratava naquele momento era um só: o espaço de cada um desses atores dentro deste pedaço do Estado. [...] a eminente e aguerrida deputada Zulaiê Cobra demonstrou que no ano de 2000 [...] o Poder Judiciário não é mais um tema restrito às categorias; é um tema desta Nação; é um tema no qual está posto claramente que esse não é lugar para exercício de poder, mas, sim, lugar para servir ao povo e ao País. Tivemos “n” conversas, “n” debates, vitórias e derrotas. [...], creio que agora é olhar para o futuro. Não há que se pensar que a construção do País se fará com a mera retaliação do passado e a lembrança exclusiva do passado. Precisamos [...] junto com a Câmara dos Deputados e com o Senado Federal, junto com o Poder Executivo, [...] participar da necessidade absoluta deste País fazer um grande acordo de contas com o seu futuro. [...] As críticas que se fazem a esta Casa são críticas à Nação, pois é assim que se produz a vontade da maioria. Ninguém tem dono, o dono é o País, e o País está aqui representado por V. Exªs." E Gilmar esteve nesse processo em todos os momentos. Considerações Finais Discorri, como reportagem, sobre algumas questões relevantes, em que participei ou acompanhei a participação de Gilmar. Vou mencionar, agora, as minhas observações sobre o próprio Gilmar. Gilmar, com conhecimento, erudição, precisão na redação e solidez, é extremamente eficaz na proposição de soluções. Há que se ponderar o encaminhamento das soluções propostas. Naquela época, Gilmar, no encaminhamento e no debate, batia duro e não tinha recuo (como faz ainda hoje). Ele acreditava que a consistência e racionalidade das soluções bastavam para que fossem aceitas. Dizia eu a ele: "propõe uma solução, vamos discutir e chegar a uma redação final; depois, o encaminhamento é comigo". Ele acreditava que a racionalidade acadêmica de uma proposta, em política e em legislação, fosse a maior das variáveis para a formação de consenso. Não é a única. Concorrem interesses (incorretos ou legítimos), ideologias, vieses, idiossincrasias, etc. Tenta-se administrar os dissensos que possam terminar com uma fórmula de consenso, que adiante pode dar início a um novo dissenso, e assim sucessivamente. Há algumas técnicas para a produção de consensos no procedimento legislativo. Consistem em acordos dilatórios. Vamos a exemplo de um acordo procedimental. Primeiro, no caso da Emenda 45, os temas aprovados pela Câmara dos Deputados, relevantes para a Reforma do Judiciário, embora controversos, compuseram um substitutivo próprio, que aprovado, seria promulgado. Os demais temas da PEC da Câmara dos Deputados, com menor relevância para a reforma ou com clara objeção do Senado, integraram outro substitutivo. Nesse substitutivo pode-se aceitar uma série de emendas novas e a rejeição de textos vindos da Câmara dos Deputados. Tudo como meio de negociação para a manutenção do texto que iria à promulgação Assegurou-se, assim, a participação efetiva dos senadores. Outros exemplos estão na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Os dissensos não solucionados no mérito eram empurrados para adiante: "na forma da lei" ou "na forma de lei complementar". A escolha entre um e outro tipo de lei dependia da relevância política da matéria para as partes. Os dissensos de expressão maior eram remetidos para a lei complementar e os demais para lei ordinária. É curioso que alguns juristas procuram identificar, em abstrato, a "essência" da lei complementar! Todos têm uma ideia sobre essa "essência". Não a encontram porque não há essência alguma. Opta-se que a matéria seja tratada por lei complementar levando em conta a relevância política da controvérsia atual. Para a aprovação de uma lei complementar exige-se maioria absoluta de votos (número imediatamente superior à metade dos integrantes do órgão). Desta forma, impede-se que maioria relativa eventual (número de votos imediatamente superior à metade dos presentes na sessão) tome a decisão em detrimento da minoria. Assegura-se uma participação efetiva da minoria, pois o seu voto pode ser decisivo para a aprovação por maioria absoluta. Outra forma é se obter o consenso com a redação de um texto ambíguo o suficiente para satisfazer as divergências e aprovar a matéria. Não fica rigorosamente explícita a solução da questão, abrindo-se algumas opções. Há instrumentos linguísticos para tal, em especial os advérbios de modo — por exemplo, "preferencialmente", do inciso XV do artigo 7º da CF.[5]    É outra técnica de dilação. É mais problemática, pois transfere ao intérprete da lei a competência de escolher uma das fórmulas que a ambiguidade do texto autoriza. O Poder Judiciário passa a ter um poder "legislativo supletivo". Por fim, há os acordos especificamente regimentais: data para discussão e votação, forma de encaminhamento, etc. Isso tudo é possível onde não houver polarização radical. Gilmar, ainda, tem uma característica que lhe impõe uma conduta. Ele opera muito no conflito, duro e recorrente. Cresce no conflito. Lembre-se das divergências de Gilmar nas discussões no STF. Vai longe no esgarçamento da linguagem. Mas tudo isso são características que ajudam na solução. Nas discussões é importante ter alguém que se expresse com radicalidade. Viabiliza a solução intermediária. Um participante prudente pode ter sucesso com uma outra proposta. Gilmar teve participação efetiva nos casos narrados. Ele não foge de participar em soluções para questões de relevo nacional. Tem iniciativa para tudo. Nem sempre concordávamos, mas o “Sr. Tempo” aplainou eventuais arestas.   *** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado na próxima semana em Lisboa, e em agosto no Brasil [1] Diário da Câmara dos Deputados, 30/01/1997, p. 03112 e segs. [2] Diário da Câmara dos Deputados, 14/12/999, suplemento, p. 00589. [3] Diário do Senado Federal, 16/11/2004, p. 36733. [4] Idem nota 4. [5] Art. 7º [...] XV — Repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos.
2023-06-23T09:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-23/nelson-jobim-gilmar-mendes-praca-tres-poderes
academia
Repensando as Drogas
"Punição e Estrutura Social": dois ensinamentos de criminologia
Punição e Estrutura Social, escrito por Georg Rusche e Otto Kirchheimer na década de 1930, é obra clássica da criminologia. A partir da década de 1970 foi retomado como paradigmático e é referência básica desse campo do conhecimento. Esses autores analisaram práticas criminais da Europa desde o século 14. Concluem com fórmula quase matemática. Nos períodos de escassez populacional, como após a peste negra e guerras, a mão de obra se valoriza, assim como a vida do trabalhador. Há menos crimes e punições são mais brandas. Já em épocas de "excesso populacional", com amplas parcelas ociosas, a mão de obra e a vida dos trabalhadores se desvaloriza. Há profusão de insatisfação e crimes, com o incremento correlato do rigor punitivo. (RUSCHE, 2019) A partir de certo ponto, sustentam não haver evidências do reforço à severidade das penas reduzir criminalidade. Esse resultado decorre da redução da pobreza e da desigualdade. Essa análise vai na contra mão do discurso usual, de que maior severidade é responsável pela redução da criminalidade. O Brasil é país extremamente desigual. O 1% mais rico concentra metade da renda nacional e a metade pobre, somente 1% da renda. Na França absolutista do século 17, os 2% do topo concentravam de 20 a 30% da renda total do país. (ANDERSON. Linhagens, 2016, f. 108). Com esse quadro, se as conclusões de Rusche e Kirchheimer estiverem corretas, as práticas criminais atuais do Brasil não podem ser muito diferentes das francesas absolutistas. Outro conceito muito interessante apresentado por Rusche e Kirchheimer é o da less eligibility, sobre condições prisionais. Segundo eles, há regra implícita de que o sistema prisional e de punição deve infligir mais sofrimento do que a condição vivida pelo trabalhador livre. Nas palavras de Gizlene Neder: "O princípio da less eligibily baseia-se no pressuposto de que as condições de vida no cárcere e as oferecidas pelas instituições assistenciais devem ser inferiores às das categorias mais baixas dos trabalhadores livres, de modo a constranger ao trabalho e salvaguardar os efeitos dissuasivos da pena." (RUSCHE, f. 14) É realmente impossível construir sistema punitivo se a punição é menos pior e preferível à condição usual, sem punição. Segundo essa regra, haveria um limite, um "teto", para melhorias ao sistema prisional. "Teto" este especialmente baixo naquelas sociedades em que os trabalhadores são submetidos a condições precárias. Visto o problema prisional sob essa perspectiva, é possível fazer análise um pouco diferente da proferida pelo STF no jugalmento da ADPF 347. Nessa decisão, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema prisional brasileiro está em um estado inconstitucional de coisas. Seria mais apropriado, aplicado o princípio da less eligibility, afirmar que parcela extensa da população brasileira está submetida a estado inconstitucional de coisas. São negados seus direitos fundamentais e sociais. Não tem acesso adequado à saúde, transporte, educação, moradia, lazer e trabalho. O sistema prisional refletiria essa realidade. Enquanto não alterado o quadro de negação a direitos fundamentais e sociais, o "teto" das melhorias do sistema prisional permanecerá baixo e os condenados precisarão continuar sendo submetidos a condições inconstitucionais. Apesar de muito interessantes, estes não são conhecimentos difundidos. O estudo de Direito Penal usualmente é apenas sobre a parte dogmática, sobre o manejo dos institutos do Código Penal. A dogmática é muito importante, mas o conhecimento do penalista é incompleto sem o estudo de criminologia, sociologia e outras ciências afins. Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista ensinam: "Um direito penal como discurso, que aspire a alguma eficácia, em qualquer sentido que seja, não pode esquivar-se a um alto grau de integração com as ciências sociais" (ZAFFARONI, D Penal... f. 174). A falta de eficácia de nosso sistema penal é bom indicativo da necessidade de atentar muito mais à interdisciplinaridade. Esse chamado à interdisciplinaridade precisa ser ouvido, especialmente no ponto mais problemático do campo criminal, a política de drogas. _____________ Referências Bibliográficas ANDERSON. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Unesp, 2016. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999. RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2019. ZAFFARONI, Raul Eugênio. BATISTA, Nilo (e outros). Direito Penal Brasileiro v. I.
2023-06-23T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-23/repensando-drogas-dois-ensinamentos-criminologia
academia
Opinião
Carlos Roberto Loiola: Fazer direito não é fazer justiça
É comum encontrar equívocos e uma certa confusão acerca dos conceitos de direito e justiça. Muitos dizem que Justiça é dar a cada um o que é seu. Já vi muitos doutores e até ministros das mais altas cortes do país dizendo e escrevendo isso. Esta frase, aliás, abunda em acórdãos do STF (Supremo Tribunal Fedral) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça), mormente naqueles em que mais resultam sentimentos generalizados de abjeta injustiça, e muito mais ainda nos votos de ministros que nunca exerceram a magistratura de piso. Justiça é coisa bem diferente do que o simples fazer direito. Fazer oito ou mais audiências todos os dias, lidar de perto com todas as fraquezas, desgraças e mazelas humanas anos a fio, tudo isso imprime uma visão muito mais ampla ao magistrado do que seja justiça do que àquele que aplica a regra de direito sem ter tido tal experiência. Talvez por isso o magistrado de piso, imparcial, independente, apartidário e probo cause tanta polêmica numa nação acostumada a ser gado, conduzida por seus pastores. Nunca comunguei desse conceito curto e cego acerca do que seja justiça. Direito é dar a cada um o que é seu. Justiça não é dar a cada um o que é seu. Justiça é muito mais. Se justiça fosse dar a cada um o que é seu, então, ao desgraçado, o magistrado só poderia dar desgraça; ao infeliz, a infelicidade; ao miserável, a miséria, porque é isso que essa gente tem. Mas não é assim na Casa da Justiça. Quem dá a cada um o que é seu faz direito. Ministros que nunca foram magistrados de piso fazem direito e quem faz direito pode ou não fazer justiça. Cada caso é cada caso e muitas vezes a diferença só aparece numa audiência, num depoimento da vítima ou daqueles diretamente penalizados pelo injusto, numa visita ao presídio ou em casa de acolhimento de crianças, numa inspeção judicial na residência de um inválido, dentre tantas situações em que os olhos revelam a verdade  com muito mais eloquência que um simples escrito contido numa página de processo ou num livro de doutrina ou jurisprudência.   Justiça é muito mais que o simples fazer direito. Justiça é colo de mãe, na mais perfeita definição que já ouvi dela, e isso foi de uma criancinha de três anos, pura e ingênua, dentro de minha própria casa. É justo: mãe não dá a cada um dos filhos o que é seu. Mãe se dá por inteiro a todos eles. É algo sublime e repleto de espiritualidade. É assim que é a justiça e isso é coisa bem diferente que fazer direito. Há muito direito nos livros de doutrina e jurisprudência, nos processos, nos pedidos, nas contestações, nas sentenças, nos recursos e até em julgados das mais altas cortes. Mas justiça, nem sempre. Fazer direito não é fazer justiça. Fazer direito longe do sentimento de justiça é mediocridade pura, pois que não raro a regra do direito esconde uma farsa, um engodo, uma maracutaia do operador da lei. O direito também pode ser uma ferramenta dos hipócritas, dos estelionatários, dos farsistas, engodistas e vendilhões, que só os que têm olhos na Justiça podem enxergar. Por isso, fazer Justiça é muito mais que o simples fazer direito e tem um toque de divino. É superior a tudo. Quando um tribunal, v. g., anula um processo permitindo que bandidos,  traficantes, assassinos, corruptos etc, se livrem das amarras da justiça, se fundando em positivismos e garantismos, tão somente numa regra processual distante do sentimento de justiça que dela se espera, pode até estar a fazer direito, cada caso tem lá suas peculiaridades, mas, não raro faz emergir um profundo sentimento comum de repugnância. Pilatos certamente aplicou a regra de direito positivo vigente, quando de seu mais conhecido julgamento, mas certamente não fez Justiça. O sentimento da ausência de Justiça estava no colo da mãe que chorou naquele dia. Roma com sua regra de direito positivo tão aclamada ruiu em seguida ao julgamento. O sentimento de Justiça do colo de mãe sustenta todo o mundo cristão há mais de 2.000 anos. Os que se sentam nos tribunais sem nunca terem sido juízes de piso, nunca estiveram numa audiência, numa casa de acolhimento de crianças, num presídio, conhecem o direito de livros de doutrina e jurisprudência, esses  podem até saber muito bem a regra do direito, mas muitos deles estão tão distantes da Justiça quanto a regra pode estar do princípio, como a religião está da espiritualidade. Mesmo na Constituição existem normas colidentes com seus princípios mais caros. Normas de Direito que jamais podem ser tidas como normas de Justiça. Basta ver o escandaloso beija-mão que se noticia cada vez que se abre uma vaga nas mais altas cortes do país. Que justiça esperar, além de um direito torto, travestido, daquele que se submete a esse ritual, no mínimo antidemocrático, de submissão, de subordinação, mediocridade e de deslealdade, embora emergente de uma Constituição que se pretende democrática? E no Brasil as leis são pródigas em esconder grandes injustiças, toscas manobras farsistas, a começar por aquelas que negam o que seja democracia, a base de nosso Estado e estão inseridas no próprio texto constitucional. De todos os que conhecemos, a democracia é o regime que mais se aproxima da justiça, pelo sentimento de universalidade, igualdade, liberdade, fraternidade e independência que desperta; o sentimento do bem comum, em que os líderes não são deuses nem possuem poderes sobrenaturais, nem estão isentos de cumprirem com suas obrigações, como todos os demais. Contudo, ignorando o que seja democracia,  aqueles que desejam exercer o poder nas mais altas cortes do país, não raro,  se entregam ao famigerado beija-mão e coisas do gênero. Tornam-se presas e servos de regimes feudais, ditaduras, reinos despóticos e falsas  democracias escondidas numa regra secundária. Trata-se de  um vício de raiz que nada mais é do que a negação da democracia. Tudo o que produzem estará pervertido, desde o nascedouro, tal como o fruto da árvore contaminada. O direito, tal como qualquer religião, pode ser cultuado e aplicado sem maiores dificuldades até pelos medíocres. Tobias Barreto já nos alertava disso há bastante tempo: "Quando Deus formou o mundo/ Pra castigo de infiéis/ Ao Egito deu gafanhotos/ Ao Brasil deu bacharéis". As faculdades até ensinam regras de direito, algumas muito bem. Mas são nas audiências, nas visitas às casas de acolhimento de crianças, nas inspeções nos presídios, nas residências dos jurisdicionados que não têm sequer condições de ir até o fórum, no mais das vezes, que o magistrado aprende o verdadeiro sentimento de Justiça. Por isso os que nunca fizeram uma só audiência, nunca frequentaram tais casas têm muita dificuldade em absorver tal verdade; de fazer gustiça. Ficam só produzindo mais e mais direito. Entulhando tudo com regras de direito. Há até especialistas em ficar importando delas dos mais distantes rincões do planeta, para justificar o que sua alma não contém. O sentimento de hustiça, entretanto é uma espiritualidade que se adquire e que eleva a alma e que apenas alguns conseguem alcançar. E os que conseguem nem sempre são compreendidos,  a tal ponto que podemos parafrasear o padre Pierre Teilhard de Cardin, que sofreu por não ser compreendido nem mesmo pela igreja da qual participava, apenas substituindo suas palavras religião por direito, espiritualidade por justiça: "O Direito não é apenas um, são centenas. A Justiça  é apenas uma. O Direito é para os que dormem. A Justiça  é para os que estão despertos. O Direito é para aqueles que necessitam que alguém lhes diga o que fazer e querem ser guiados. A Justiça  é para os que prestam atenção à sua voz interior. O Direto tem um conjunto de regras dogmáticas. A Justiça  te convida a raciocinar sobre tudo, a questionar tudo. O Direito ameaça e amedronta. A Justiça  lhe dá paz interior. O Direito fala de pecado e de culpa. A Justiça  lhe diz: 'aprenda com o erro'... O Direito reprime tudo, te faz falso. A Justiça  transcende tudo, te faz verdadeiro! O Direito não é Deus. A Justiça é tudo e, portanto é Deus. O Direito inventa. A Justiça descobre. O Direito não indaga nem questiona. A Justiça questiona tudo. O Direito é humano, é uma organização com regras. A Justiça é divina, sem regras. O Direito é causa de divisões. A Justiça é causa de união. O Direito te busca para que acredite. A Justiça você tem que buscá-la. O Direito segue os preceitos de um livro sagrado. A Justiça busca o sagrado em todos os livros. O Direito se alimenta do medo. A Justiça se alimenta na confiança e na fé. O Direito faz viver no pensamento. A Justiça faz viver na consciência… O Direito se ocupa com fazer. A Justiça se ocupa com ser. O Direito alimenta o ego. A Justiça nos faz transcender. O Direito nos faz renunciar ao mundo. A Justiça nos faz viver em Deus, não renunciar a Ele. O Direito é adoração. A Justiça é meditação. O Direito sonha com a glória e com o paraíso. A Justiça nos faz viver a glória e o paraíso aqui e agora. O Direito vive no passado e no futuro. A Justiça vive no presente. O Direito enclausura nossa memória. A Justiça liberta nossa consciência." É possível fazer direito mesmo sendo antidemocrático, venal, submisso, abjeto ou imoral, como tantas e tantas leis e procedimentos deste país são feitos e aplicados. É possível fazer direito apenas importando regras, criando novas hermenêuticas, garantindo o que o positivismo cego impõe, se auto proclamando senhor das jurisprudências, colando decisões, terceirizando funções inderrogáveis a seus assessores e estagiários, produzindo dez mil votos por ano, a até se submetendo ao beija-mão. Justiça jamais.
2023-06-23T07:12-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-23/carlos-roberto-loiola-direito-nao-justica
academia
Opinião
Maíra Mesquita: Modelo multiportas e solução consensual
A origem da expressão "modelo multiportas de resolução de conflitos" remonta ao ano de 1976, quando Frank Sander, professor emérito da Faculdade de Direito de Harvard, apresentou em uma conferência (Pound Conference) a palestra denominada "Variedades de processamento de conflitos".  Em tal ocasião, o professor expôs a ideia de um "centro abrangente de justiça", em que se buscaria, para cada tipo de conflito, o meio mais adequado de solução [1]. A ideia inicial consistia em um local de triagem para onde as pessoas levam seus conflitos, recebem orientações por diversos profissionais, e optam pelo melhor método de resolução do problema específico, seja por meio de decisão adjudicada ou consensual. Em poucas palavras, o Tribunal Multiportas "é um mecanismo para encaminhar os conflitos ao fórum mais apropriado para sua resolução" [2]. No Brasil, o fomento à autocomposição, sabe-se, não foi inaugurado pelo CPC/2015. Antes, já havia um movimento de valorização dos chamados meios alternativos (rectius: adequados) de composição de litígios [3]. A grande "virada" é, justamente, a superação da premissa de que a heterocomposição judicial é a melhor e principal forma de resolver conflitos — e tudo fora desse modelo são métodos de menor importância e eficácia. No modelo multiportas, não há, portanto, hierarquia entre a resolução consensual ou impositiva, devendo se buscar o meio mais aderente ao caso a ser resolvido. A efetiva participação das partes na resolução dos conflitos remete também à democratização do processo, sob os influxos do Estado Constitucional [4]. Por consistir a participação em elemento essencial do conceito de democracia, as pessoas deixam a posição de meras destinatárias das decisões estatais para desempenharem também o papel de agentes participativos na solução do conflito [5]. Assim, no sistema processual brasileiro, interligam-se os conceitos de sistema multiportas, princípio da cooperação e contraditório substancial (artigos 3º, 6º, 9º e 10 do CPC), pois todos pressupõem uma maior participação das partes na resolução do litígio, com fomento ao diálogo paritário entre todos os sujeitos processuais [6]. No modelo multiportas, os métodos de resolução de conflitos caminham lado a lado, razão pela qual não há oposição entre a justiça contenciosa versus a coexistencial. Pelo contrário, deve-se verificar qual delas amolda-se para a mais completa solução do problema. Reconhece-se o direito à solução do conflito, concepção muito mais ampla do que a ideia de bater as portas do Poder Judiciário e observar as garantias processuais. Nas palavras de Kazuo Watanabe [7]: Pode-se afirmar assim, sem exagero, que os meios consensuais de solução de conflitos fazem parte do amplo e substancial conceito de acesso à justiça, como critérios mais apropriados do que a sentença, em certas situações, pela possibilidade de adequação da solução à peculiaridade do conflito, à sua natureza diferenciada, às condições e necessidades especiais das partes envolvidas. De fato, nas relações duradouras em que surja um conflito, a "justiça coexistencial" busca "remendar" aquela situação de ruptura ou tensão, com vistas a preservar a relação e a convivência pacífica. A justiça contenciosa, nesses casos, não conseguiria atingir esse objetivo, pois busca resolver o erro e, por isso, olha para trás; a justiça coexistencial olha para o futuro a fim de manter a convivência [8]. Emblemáticos são os conflitos que envolvem, por exemplo, questões de família, vizinhança, empresário e o fornecedor. Trata-se de relações que existiam antes do conflito e, principalmente, que se pretende preservar para o futuro. Para tanto, a busca por uma solução consensual se mostra de grande importância; a decisão adjudicada, por sua vez, pode trazer consequências ainda mais danosas a tais relações. Além da ideia de preservação de uma relação para o futuro, a resolução consensual traz consigo também a possibilidade de maior aceitação do resultado que foi construído pelas próprias partes — com ou sem fomento de um terceiro (mediador ou conciliador). Não por outra razão, inclusive, já se reconhecem as vantagens e a economia dos meios consensuais com a Fazenda Pública [9].  Para alcançar-se a solução consensual, ganha relevo o reforço da paridade e do diálogo processual efetivo. Não se pode negar, portanto, a necessidade de reformular-se o papel do processo e dos próprios sujeitos processuais — eles devem estar preparados para litigar, mas também para negociar e encontrar uma solução consensual. Por outro lado, além dos desafios intrínsecos ao procedimento, existe o grande desafio cultural [10]: a população em geral, bem como alguns operadores do Direito, comumente associam a conciliação e mediação uma justiça de segundo escalão. Considerar os meios consensuais "justiça de segunda linha" decorre de um pensamento arraigado de que o Estado-juiz tem sempre melhores condições de resolver os conflitos, dentro da ótica do protagonismo judicial. Além disso, enxerga-se como fundamento para a adoção da autocomposição uma via para diminuir o congestionamento do Poder Judiciário. É certo que a ampliação da utilização dos meios consensuais trará, inexoravelmente, uma diminuição do tempo de tramitação dos processos e, até mesmo, a desjudicialização de alguns conflitos — os artigos 167, 168 e 169, §2 do CPC/2015, inclusive, remetem expressamente a câmaras privadas de conciliação. Justificar a adoção dos métodos consensuais para desafogar o Poder Judiciário, entretanto, retroalimenta a ideia de que o acordo é justiça de segunda linha, pois ele serviria para melhorar o funcionamento do Judiciário. Esta pode ser uma consequência da autocomposição, não o seu fundamento. Enfrenta-se, portanto, o grande desafio da passagem da "cultura do consenso" para a "cultura do conflito" [11], ou ainda, da “cultura da sentença” para a "cultura da pacificação" [12]. É preciso "virar a chave" do pensamento de todos os atores envolvidos na resolução do conflito e prepara-los para tal realidade. Além da mudança de mentalidade, mostra-se essencial a qualificação técnica para esclarecer dúvidas, verificar a adequação ao caso concreto, prestar assistência jurídica de qualidade e fomentar o diálogo na construção consensual da decisão a ser tomada. É preciso, em suma, empoderar os sujeitos processuais para que possam conciliar. [1] CRESPO, Mariana Hernandez; SANDER, Frank. Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em: 15.07.2020, p. 28. [2] Idem, ibidem, p. 63-64. [3] A título exemplificativo, em um passado recente podem-se citar a previsão nos artigos 2º, 21 e 22 da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.009/95); o Prêmio "Conciliar é Legal", promovido pelo Comitê Gestor da Conciliação, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reconhece boas práticas da Justiça voltadas à pacificação dos conflitos; e a Resolução n º 125/2010 do CNJ, que instituiu a Política Nacional de Resolução Adequada de Conflitos. [4] "O Estado Constitucional é um Estado com qualidades. É um Estado Constitucional Democrático de Direito. Há, nele, duas grandes qualidades: Estado de Direito e Estado Democrático. O Estado de Direito caracteriza-se pela submissão do Estado ao ordenamento jurídico com a finalidade de garantir segurança a seus cidadãos. Por sua vez, a principal característica do Estado Democrático, sem embargo do pluralismo político, está na prévia participação de todos". CUNHA, Leonardo Carneiro da. O processo civil no Estado Constitucional e os fundamentos do projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 209, jul. 2012, p. 351-352. [5] Ada Pellegrini Grinover  apontou  como "fundamentos da justiça conciliativa: o fundamento social, qual seja, a verdadeira pacificação social, que não se consegue por intermédio do processo jurisdicional, que se limita a solucionar a parcela do conflito levado aos autos, sem se preocupar com o conflito sociológico que está em sua base; o fundamento político, pela participação dos cidadãos que solucionam diretamente suas próprias controvérsias, contando com a colaboração de outro cidadão (o conciliador e o mediador) no papel de facilitador dessa mesma solução; e o fundamento funcional, objetivando diminuir a crise da justiça, pela instituição de instrumentos (ditos alternativos) capazes de desafogá-la". GRINOVER, Ada Pellegrini. Mediação paraprocessual. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 95. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em 15.07.2020. [6] Sobre a interligação entre Estado Constitucional, democracia e princípio da cooperação, conferir texto no Conjur desta autora: https://www.conjur.com.br/2022-ago-15/maira-mesquita-estado-constitucional-principio-cooperacao. Acesso em 20 jun. 2023. [7] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e os meios consensuais de solução de conflitos. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012 , p. 88-89. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em 15.07.2020. [8] CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de reforma do processo civil nas sociedades contemporâneas.  Trad. Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, v. 65, jan.-mar. 1992, p. 132-133. [9] A título exemplificativo, consultar: NUNES, Thais Borzino Cordeiro. A aplicação dos meios consensuais de solução de conflito em ações envolvendo a fazenda pública no âmbito da justiça administrativa. Revista CEJ. v. 22, n. 74, p. 46–55, jan./abr., 2018; PEIXOTO, Ravi. A Fazenda Pública e a audiência de conciliação no novo CPC. Consultor Jurídico. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-07/ravi-peixoto-fazenda-audiencia-conciliacao-cpc Acesso em 11 jun. 2023; SILVA NETO, Francisco de Barros e. A conciliação em causas repetitivas e a garantia de tratamento isonômico na aplicação de normas. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 240, fev.-2015. [10] Sobre as dificuldades a serem enfrentadas para a implementação do Sistema Multiportas, conferir: LESSA, João. O novo CPC adotou o sistema multiportas!!! E agora? Revista de Processo, São Paulo, v. 244, jun. 2015, p. 434. Também sobre a necessidade de os advogados terem mais conhecimento sobre as opções de solução de conflito, e as medidas adotadas nos Estados Unidos para tanto, conferir entrevista com o professor Frank Sander: CRESPO, Mariana Hernandez; SANDER, Frank. Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 34-35. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em: 15.07.2020. [11] GRINOVER, Ada Pellegrini. Mediação paraprocessual. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 96. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em 15.07.2020. [12] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e os meios consensuais de solução de conflitos. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 90-91. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em: 15.07.2020.
2023-06-24T15:20-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-24/maira-mesquita-modelo-multiportas-solucao-consensual
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Diário de Classe
A "lenda urbana" de que o positivismo jurídico "legitimou" o nazismo
Ser crítico do positivismo jurídico, ou "pós-positivista", por certo não autoriza ninguém a dizer "qualquer coisa sobre qualquer coisa". Como qualquer outra construção teórica racional, o exercício crítico ou desconstrutivo precisa prestar contas à coerência, aos fatos, à história e à bibliografia. Neste breve texto, queremos contribuir para o desmonte de um mito reincidente e persistente, qual seja: o de que o positivismo jurídico teria fornecido suporte teórico para o nazismo e, desta forma, "legitimado" juridicamente as atrocidades desumanas perpetradas pelos nazistas [1]. Esta verdadeira "lenda urbana" da Teoria do Direito, como iremos demonstrar, decorre de dois elementos: primeiro, de um completo desconhecimento dos debates jurídicos que estavam em vigor na primeira metade do século 20; segundo, de uma confusão superficial entre o papel do positivismo jurídico em momentos históricos distintos. Inicialmente, é preciso observar que o mito do "positivismo jurídico que passa pano para nazistas" já surge comprometido por um problema de imprecisão conceitual. Como se sabe, não existe um único positivismo jurídico, tampouco uma corrente unitária de pensamento que atende por este nome ao longo de diferentes épocas[2]. Nos países que seguem a tradição da civil law, a referência máxima do positivismo jurídico no século 20 vem a ser o jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973), autor da clássica obra Teoria Pura do Direito (1934, com uma segunda edição expandida lançada em 1960). Por sua vez, no mundo anglo-saxão, herdeiro da tradição da common law, o positivismo jurídico tem em H.L.A Hart (1907-1992) o seu nome mais emblemático do século 20 — ao passo que Kelsen é um autor essencialmente ignorado na teoria jurídica de países como Reino Unido e Estados Unidos. Portanto, se estamos falando de positivismo jurídico no contexto da Europa continental durante o período de ascensão e queda do nacional-socialismo alemão, faz pouco ou nenhum sentido focarmos nossa atenção no trabalho dos positivistas exegéticos de épocas anteriores — ou nas obras de autores que construíram a tradição juspositivista dominante da teoria jurídica própria da common law (notadamente: Jeremy Bentham[3], John Austin e H.L.A. Hart). Isso porque, para a análise das relações entre positivismo jurídico e nazismo, nenhum outro autor assume maior centralidade e importância do que Hans Kelsen. E o quê o mestre austríaco tem a dizer sobre democracia e tolerância? Podemos ter uma boa ideia disso pelas palavras do próprio Kelsen: Uma vez que democracia, de acordo com sua natureza mais profunda, significa liberdade, e liberdade significa tolerância, nenhuma outra forma de governo é mais favorável à ciência que a democracia. [...] De fato, não sei e não posso fizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância. [4] À toda evidência, estas palavras não são o que seria razoável esperar de um jurista sob suspeita de "legitimar o nazismo". O elogio da democracia, presente ao longo de toda a rica obra de Kelsen, mostra-se completamente incompatível com quaisquer postulados teóricos do fascismo italiano e de seu derivado ideológico alemão. Todavia, Kelsen não se limitou meramente a celebrar a importância e o valor da democracia, na contramão das doutrinas fascistas então em ascensão. Ele foi além e se tornou, em sua época, um dos maiores adversários intelectuais do principal nome por trás da legitimação político-jurídica do Terceiro Reich: Carl Schmitt (1888-1985), o mais proeminente jurista do Partido Nazista [5]. Além disso, a monumental construção teórica de Kelsen para uma teoria positivista do Direito jamais foi, de forma alguma, um empreendimento reacionário e/ou insensível às injustiças e ao potencial opressivo das estruturas estatais. Pelo contrário: Kelsen via o seu esforço intelectual contra o jusnaturalismo como "uma luta progressista e libertadora, movida justamente pelo ânimo de deslegitimar discursos de poder potencialmente autoritários, baseados na religião ou em outros elementos metafísicos"[6]. Ou seja, o que o autor combatia era justamente o caráter conservador de discursos que, com base em concepções metafísicas de caráter religioso ou de "direito natural", buscavam legitimar a ordem social e as estruturas políticas e econômicas vigentes[7] — ainda que injustas, arbitrárias ou autoritárias. Mas, se as coisas são deste modo, de onde surge o senso comum que associa "positivismo jurídico" com "legitimação do nazismo"? Possivelmente, tal equívoco decorre da má-compreensão sobre uma crítica pós-positivista que de fato procede que se tornou academicamente consolidada, qual seja: de que o positivismo jurídico, no contexto do novo constitucionalismo europeu pós-Segunda Guerra, passou a ser uma teoria insuficiente para lidar com as novas complexidades deste novo momento histórico do constitucionalismo ocidental (que Streck denomina de Constitucionalismo Contemporâneo [8]) — o que inclui, por exemplo, concepções mais sofisticadas sobre as relações de co-originariedade entre Direito e moral e sobre as relações e distinções entre princípios jurídicos, normas e regras —, bem como com as novas roupagens de um discurso universalista de proteção e defesa de direitos humanos. É justo, sim, dizer que o positivismo jurídico (tanto em sua versão kelseniana quanto hartiana) possui deficiências teóricas[9] que o tornaram incapaz de sustentar, a partir da segunda metade do século 20, o mesmo elevado grau de prestígio teórico e acadêmico do qual desfrutou em outras épocas. O chamado "pós-positivismo", construído com base em mais de meio século de críticas consistentes ao positivismo jurídico, por certo não surgiu do nada ou sem motivo para tanto. Mas apontar as lacunas e deficiências teóricas do positivismo jurídico não nos autoriza a adulterar a realidade dos fatos: no momento do embate com as concepções políticas e jurídicas do fascismo e do nazismo, o positivismo jurídico sempre esteve do lado certo da história — e todo e qualquer crítico do juspositivismo tem o dever intelectual de reconhecer a importância e o valor deste legado de defesa da ciência jurídica e da democracia. [1] Um pequeno exemplo ilustrativo da persistência deste mito: recentemente, um site de cursos preparatórios (voltados para o Exame da OAB e para concursos em geral) publicou em suas redes sociais materiais que relacionavam o positivismo jurídico ao nazismo. Após questionados, os moderadores da página não apenas mantiveram o equivocado material no ar como, inclusive, optaram por bloquear os perfis das pessoas que os alertavam sobre a gritante impropriedade do que estava sendo dito ali. [2] Para uma compreensão adequada a respeito das múltiplas e diferentes encarnações do positivismo jurídico, ver: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 263-342. [3] No entanto, cabe fazer a ressalva de que os esforços intelectuais de Kelsen contra o jusnaturalismo metafísico e/ou religioso já encontrava antecedentes em pioneiros do juspositivismo britânico, como Jeremy Bentham (1748-1832), que travou importantes debates com jusnaturalistas de caráter religioso de sua época (como Blackstone, que sustentava que uma lei deveria estar sempre de acordo com os princípios do deus judaico-cristão e da religião de forma geral). Para Bentham, os pressupostos jusnaturalistas de Blackstone eram motivo de escárnio e não passavam de tolices retóricas. Além disso, como bem observa Bustamante, podemos identificar na obra de Bentham uma distinção entre expository jurisprudence (aquela preocupada, com base no utilitarismo, em apontar como o Direito deve ser) e censorial jurisprudence (a teoria jurídica dedicada tão somente a descrever o Direito, de forma pretensamente objetiva e "neutra") - distinção esta que se mostraria muito influente nas posteriores construções teóricas de Kelsen. Ver: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A breve história do positivismo descritivo: O que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, SC, ano n. 1, janeiro/abril, 2015. [4] KELSEN, Hans. O que é a justiça? Tradução: Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 25. [5] Para Schmitt (2007), em obra publicada originalmente em 1929 sob o título Das Reichgerichts als Hüter der Verfassung - e republicada em 1931, em uma versão ampliada, sob o título de "O Guardião da Constituição" (Der Hüter der Verfassung) -, a Guarda da Constituição era uma função de natureza política, e não jurídica. Portanto, somente o presidente do Reich poderia desempenhar essa função, e, com a rápida ascensão do Partido Nazista, em pouco tempo o presidente do Reich passaria a ser ninguém menos que Adolf Hitler. Ainda no ano de 1931, Kelsen publicou uma reposta com o título "Quem deve ser o guardião da Constituição?". Em tal obra, refutou o argumento de Schmitt, explicando que, se por "natureza política" Schmitt entendia a solução de controvérsias de grande repercussão social, isso não a diferenciava da "natureza jurídica", na medida em que o Direito, assim como a política, sempre teve a função de solucionar questões sociais controversas de grande repercussão. Ademais, o autor defendeu a importância de tal função ser desempenhada, em uma democracia moderna, por um Tribunal Constitucional constituído por magistrados (profissionais da área jurídica tecnicamente qualificados), o que garantiria maior imparcialidade nas decisões, especialmente quando se tratasse de minorias ou de questões relacionadas a opositores do governo, sendo a sua inspiração para a redação da Constituição Austríaca de 1920. Entretanto, a teoria que triunfou na época foi a de Schmitt (1936), devido à ascensão do Terceiro Reich. A teoria de Kelsen (1987) só veio a triunfar no pós-guerra, com o restabelecimento da democracia. [6] ABEL, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo: os fundamentos do Direito democrático na era do pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 44. [7] “[...] as doutrinas jusnaturalistas, tais como foram efetivamente apresentadas pelos seus representantes mais destacados, serviram principalmente para justificar as ordens jurídicas existentes e as suas instituições políticas e econômicas essenciais como harmônicas com o direito natural e tiveram, portanto, um caráter inteiramente conservador. [...] Na verdade, na teologia do cristianismo primitivo, que era a religião de uma classe inferior, isto é, não possuidora, tinha pouco cabimento uma doutrina do direito natural que via uma ordem justa (reta) na natureza enquanto realidade empírica. [...] À medida, porém, que o cristianismo se torna a religião de uma classe elevada, de uma classe possuidora, à medida que ele se torna mesmo uma religião do Estado e o clero cristão se transforma numa casta privilegiada, modifica-se esta atitude de repúdio da teologia em face da natureza enquanto realidade empírica do homem e da sociedade humana”. KELSEN, Hans. O problema da justiça. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 106-110. [8] “O Constitucionalismo Contemporâneo é um fenômeno que surge no segundo pós-guerra. [...] representa um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da teoria do estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático de Direito, e no plano da Teoria do Direito, no interior da qual se dá a reformulação da teoria das fontes; da teoria da norma; da teoria da interpretação e da teoria da decisão [...]. No âmbito do Constitucionalismo Contemporâneo, todas essas conquistas devem ser pensadas, num primeiro momento, como continuadoras do processo histórico por meio do qual se desenvolve o constitucionalismo”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 57. [9] Para uma análise mais detalhada sobre estas insuficiências teóricas, ver: ABEL, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo: os fundamentos do Direito democrático na era do pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 38-66.
2023-06-24T11:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-24/diario-classe-porque-positivismo-juridico-nao-legitimou-nazismo
academia
Opinião
Lenio Streck: A fusão de horizontes entre Academia e Judiciário
*prefácio do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" Quando penso sobre como melhor esboçar estas linhas, detidas sobre uma obra do ministro Gilmar Mendes, com o perdão do clichê, penso também sobre como esta é uma oportunidade para falar sobre a prática do direito sob sua melhor luz. Falo aqui de um jurista que personifica a fusão de horizontes entre um magistrado e um acadêmico. Assim, um filme vem à mente — e reforça o conceito hermenêutico de fusão de horizontes (Horizontverschmelzung) — porque estive com o ministro dividindo as trincheiras e combatendo o bom combate em favor de uma jurisdição constitucional democrática e da concretização integral dos direitos fundamentais. Da teoria à prática, com uma prática fundada na teoria e uma teoria com olhos à prática. Fazendo um revival: o ministro Gilmar esteve à frente de inúmeros processos democratizantes na administração da justiça, seja como membro do Ministério Público, no executivo, à frente da subchefia para assuntos jurídicos da Casa Civil e, posteriormente, ministro da Advocacia-Geral da União e, por fim, como ministro do Supremo Tribunal Federal, onde hoje já é o decano da corte, tendo presidido o tribunal no biênio de 2008 a 2010. As virtudes e realizações de Gilmar Mendes como ator jurídico e sua judicatura se mostram notórias. Por exemplo, os “mutirões” carcerários. O projeto foi essencial para a administração penitenciária nos presídios federais, garantindo uma necessária, constitucional e humanizada diminuição na massa carcerária brasileira. Também há uma boa intuição por parte de Gilmar-ministro: em 2010, então presidente do STF, denunciou aquilo que depois veríamos com a opperação "lava jato": o perigo da instalação de um estado-policial. Mas neste prefácio pretendo jogar luz a esse aspecto importante da carreira do ministro Gilmar: a de acadêmico, um acadêmico preocupado durante toda a sua carreira com a importância da doutrina. Que fez jus ao termo empregado a ele, o de doutrinador. Não apenas um acadêmico que se tornou ministro, mas um ministro que jamais deixou de ser acadêmico. Como dever ser, com atenção a um papel distintivamente normativo que deve ter a doutrina. Não são muitos os juristas que conseguem, com desenvoltura em ambas as práticas, fazer essa fusão de horizontes entre a judicatura e a produção acadêmica de relevo. Destaca-se, sobremaneira, a tradução para o português, à época inédita no Brasil, da obra de Konrad Hesse, A Força Normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung).[1] A obra de Hesse, publicada originalmente em 1959, é um cânone importantíssimo para o constitucionalismo, e sua inclusão no rol de obras estudadas nas cátedras constitucionais brasileiras se deve muito à tradução do ministro Gilmar. Não à toa, a partir da década de 1990 (a tradução foi publicada em 1991), vai se criando uma cultura constitucional pós-88, que buscará enfatizar "o novo" representado pela Constituição. Nesse sentido, a contribuição de Gilmar Mendes ficará reconhecida na história não apenas pela sua carreira prestigiosa, mas também por sua doutrina e produção legiferante (lembremos que o ministro assessorou e participou da elaboração de inúmeros projetos de lei relevantes ao país, entre eles a elaboração de estudos e anteprojeto que originou a Lei que regulamentou o procedimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, a Lei 9.882/99. Essa fusão de horizontes entre o ministro Gilmar Mendes e o professor Gilmar Mendes pode ser observada desde a obtenção dos títulos de mestre e doutor pela prestigiosa Universidade de Münster, na Alemanha. Em sua atuação como scholar, não seria possível esquecer também de sua contribuição com a academia fundando o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), hoje albergando mestrado e doutorado em direito, além de outras áreas do conhecimento. Não poderia deixar de registrar, também, a publicação de sua doutrina já clássica, Curso de Direito Constitucional, ao lado de seu parceiro de magistério de longa data, o Subprocurador Geral da República Paulo Gustavo Gonet, e do Comentários à Constituição do Brasil, que tive a honra de colaborar na coordenação juntamente ao ministro e os eminentes Ingo Sarlet, J. J. Gomes Canotilho e Leo Leoncy. O Comentários à Constituição do Brasil nos rendeu prêmio Jabuti. Uma teoria com olhar à prática, uma prática fundada na teoria. Sem uma distinção estanque entre as duas esferas, colocadas em auxílio mútuo e como condição de possibilidade hermenêutica uma da outra. Todas essas realizações são mencionadas para reafirmar que é possível — e a obra do ministro Gilmar demonstra isso —, mas não fácil, conciliar a boa doutrina com a magistratura arguta e altiva, diria até de militância, em favor do Estado constitucional democrático e da concretização dos direitos fundamentais. O ministro Gilmar — errando ou acertando — não se curva à eríneas contemporâneas (numa alusão à trilogia Oresteia, na peça Eumênidas), a voz das ruas. Seu critério é o Direito. Mas para ilustrar tudo isso, peço licença para registrar um aspecto primordial que aponto em meu próprio desenvolvimento teórico, a autonomia do Direito, assunto sobre o qual por vezes Gilmar e eu divergimos. Bem acompanhado de juristas como o ministro Gilmar, compreender que o Direito carrega algum grau de autossuficiência de sentido é o que venho denominando autonomia do Direito. A título de exemplo, lembremos quando o Supremo, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, declarou a parcialidade do ex-juiz Moro no Habeas Corpus (HC) 164.493. Mesmo considerando todas as pressões políticas, "morais" e econômicas, Gilmar julgou o ex-juiz parcial. A autonomia do Direito é, nesse sentido, para mim, compreendida como a sua dimensão de subsistência autônoma em face à política, à economia e à moral. Autonomia essa que não deve e não pode ser entendida como autonomia em relação às fontes de produção. Autonomia não quer dizer autônoma separação do Direito da moral (lato sensu, entendidos como discursos morais também os políticos e os econômicos). Metaforicamente — e para ser mais simples — a autonomia do Direito representa a blindagem ou resistência contra os seus predadores “naturais”, exógenos e endógenos. Com efeito, a moral, a política e a economia, embora sejam fundadores cooriginários ao Direito, institucionalmente passam a buscar espaços na ossatura jurídica estatal.[2] Nesse contexto, outras metáforas podem ser muito úteis para que assentemos algumas ideias. Vejamos duas que jogam luz ao que estou dizendo e ao que estou a dizer. Odisseia e a jornada de Ulisses Há uma metáfora — que circula há anos — interessante para explicar o valor da Constituição. Ulisses, voltando de Ítaca, pede para seus marinheiros que o amarrem ao mastro do navio. Conta-nos Homero que Ulisses foi advertido de que aquelas águas eram habitadas por sereias cujo suave canto era capaz de conduzir seus ouvintes à morte e eis porque os ordena que, sob hipótese alguma, obedeçam a qualquer gesto seu no sentido de que o soltem. Só devem obedecer à primeira ordem: "amarrem-me ao mastro". A sobrevivência de Ulisses reside no cumprimento da primeira ordem. Porque Ulisses sabe que, caso contrário, morrerá. E por quê? Porque ele não resistirá ao canto das sereias. As maiorias são como as sereias. Tem um canto sedutor. Quem não se proteger, pode sucumbir. Mas Ulisses se salvou porque ficou amarrado às correntes e essas correntes foram a segurança de Ulisses. Tal como a Constituição — que é como as correntes — sustenta as leis. Numa palavra final sobre esta metáfora e como diz Jon Elster (quem criou a metáfora "constitucionalismo-correntes de Ulisses"): "O problema não é explicar por que tantas constituições fracassam em impor obediência a seus criadores e nunca passam de meros pedaços de papel escrito. A questão está em compreender de que maneira muitas constituições conseguem adquirir essa misteriosa capacidade de serem obedecidas." [3] É neste ponto que podem se classificar no Brasil (e no mundo) os juristas: os ulissistas e os que se deixam seduzir pela voz das ruas. Oresteia e julgamento de Orestes Os gregos inventaram a Democracia. E, acreditem, também inventaram a autonomia do Direito. O primeiro tribunal está na trilogia de Ésquilo, Oresteia, nas Eumênidas, peça representada pela primeira vez em 458 a.C. Agamenon, no retorno da guerra de Tróia, é assassinado na banheira de sua casa por sua mulher, Clitemnestra, e seu amante, Egisto. Orestes, o filho desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus Apolo, é induzido à vingança. Até então, essa era a Lei. Era a tradição. Orestes deveria matar sua mãe (Clitemnestra) e seu amante, Egisto. E ele mata os dois. Mas aí vem a culpa. É assaltado pela anoia, a loucura que acomete quem mata sua própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a fúria das Eríneas, que eram divindades das profundezas ctônicas (eram três: Aleto, Tisífone e Megera). As Eríneas são as deusas da fúria, da raiva, da vingança. Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento, que é aceito pela deusa da Justiça, Palas Atena. Constitui-se, assim, o primeiro tribunal, cuja função era parar com as mortes de vingança. Antes, não havia tribunais. A vingança era "de ofício". As Eríneas berram na acusação. É o corifeu, o Coro que acusa. Não quer saber de nada, a não ser da condenação. E da entrega de Orestes à vingança. Apolo foi o defensor. Orestes reconheceu a autoria, mas invoca a determinação de Apolo. E este faz uma defesa candente de Orestes. Os votos dos jurados, depositados em uma urna, dão o resultado de 6 a 5. Palas Atena então acrescenta o seu voto, empatando o julgamento. E, assim, diante do empate, decreta o primeiro in dubio pro reo da história. A mitologia correndo na frente. A literatura chegando antes do direito. Rompe-se um ciclo. Acabam as vinganças e eis aqui uma antevisão da modernidade. Ao fim ao cabo: possível dizer que o Direito, nesse julgamento, venceu a moral. Eis aqui a metáfora para explicar a resistência do STF contra a voz das ruas e colocando o processo como "condição de possibilidade". Um bom exemplo é o voto do ministro Gilmar no caso da parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro. E da maioria do Tribunal no caso da presunção da inocência, quando os meios de comunicação se comportavam como as Eríneas da peça. Da atualidade da mitologia e algumas coisas mais Enfim, concluindo essa breve reflexão sobre a mitologia, assinalo que tanto as considerações de Elster quanto as minhas apontam para uma mesma direção: o Direito não pode(ria) ser predado, pois dele é que se faz a interdição entre a civilização e a barbárie. Interdição essa que o ministro Gilmar demarcou em mais de uma oportunidade e por todas elas saliento o HC 164.493. Numa palavra final sobre as convergências de Gilmar, Ulisses e, por que não também Palas Atena? afirmo sem qualquer exagero que o ministro também fundiu horizontes para com a dimensão simbólica da mitologia grega. Decidir por princípio e não por política. Eis aqui algumas lições de Ulisses, de Atena e com certeza também do ministro Gilmar, como se pode verificar na decisão acerca da exclusão do Bolsa Família do teto de gastos — sob o argumento, correto, de que responsabilidade fiscal não pode ser desindexada da responsabilidade social, tese, aliás, esgrimida de há muito por Gilmar. E por falar em canto das sereias, Gilmar Mendes resistiu e fez exemplo ao julgar um importante problema social que se tornou um problema jurídico, RE 888.815/RS, o caso do homeschooling. A Suprema Corte quase se chocou em direção às pedras, tentada por um dos cantos da sereia mais ouvidos em mares brasileiros, o do ativismo judicial. Dentre outros fundamentos, o voto que inaugurou a discussão, sinalizando pela constitucionalidade do homeschooling, valeu-se de uma série de argumentos morais, políticos e econômicos, buscando uma eficiência ad hoc que atacam diretamente a autonomia do Direito. Além disso, o respectivo voto inaugural fixou termos, em caso de inexistência de regulamentação legal desta modalidade, em que o ensino domiciliar seria regulamentado até a pronúncia do Congresso sobre o tema, num clássico caso de ativismo judicial. Além de ignorar o texto constitucional que trata a educação como um dever de Estado, o voto impôs critérios a serem adotados antes mesmo que o Congresso adotasse lei específica, numa espécie de edição de medida provisória, numa clara "saída" para o judiciário legislar. A partir do voto inaugural, deparamo-nos com dois problemas: um problema social e um problema jurídico. O problema de cunho social é claramente percebido pela insatisfação popular que traz à tona essa reivindicação por parte dos pais brasileiros, fazendo-os optar por educar seus filhos em casa por inúmeras razões. Já o problema jurídico, materializa-se na figura do ativismo judicial, que poderia (poderia, porque neste caso felizmente não foi o que ocorreu) afetar o império da lei e assim solapar o direito positivo, construindo uma jurisprudência contra legem, ao sabor dos caprichos solipsistas de um ou mais magistrados. Ou há dúvidas de que as sugestões constantes no voto relator não teriam força de lei até que o Congresso se manifestasse? Todos sabemos que medidas assim têm esse cariz normativo. Toda a matéria envolvida no julgamento do RE 888.815/RS recebeu dos ministros da nossa Suprema Corte atenção ímpar, e foi, a partir do voto do ministro Gilmar, que a embarcação tomou rumo contrário aos rochedos. O voto de Gilmar, no dia em que a educação no Brasil foi julgada, refletiu o que é uma fundamentação coerente e íntegra, em sua mais alta acepção. A fundamentação assumiu a complexidade que o tema exigiu, a fim de evitar uma visão reducionista do fenômeno educacional brasileiro. Nesse sentido, o voto demonstrou a amplitude do texto constitucional e todos os fins a serem buscados na seara educacional, como o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo individual para o exercício da cidadania, e a qualificação para o trabalho, ultrapassando as barreiras de um Estado meramente avaliador de desempenho, como proposto pela decisão do relator. Gilmar também reconheceu, em seu voto, o modelo bidirecional de educação estatuído, evidenciando sua dupla face, a de consagrar a obrigatoriedade do ensino formal e de promover seu acesso como um direito público subjetivo. Também foram considerados em seu voto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9.394/96), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as Emendas Constitucionais 53/2006 e 59/2009, que instituíram, respectivamente, significativas mudanças no sistema educacional brasileiro pela valorização de profissionais da educação e ampliação dos instrumentos de financiamento da área com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb); e implementou gradativa extinção do percentual de desvinculação das receitas da União com a educação, ampliou a obrigatoriedade e a universalização do ensino, e impôs o estabelecimento de metas relacionadas ao PIB. Esse resgate dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, além de todo o contexto que envolve a discussão, consagram a coerência e integridade na fundamentação do voto, em atendimento direto do disposto pelo artigo 926 do CPC. Numa jurisdição constitucional, decisões íntegras e coerentes, são, em última análise, garantias da efetivação da igualdade em um jogo limpo (fairness), princípio basilar de uma democracia. Mais uma vez, Gilmar se fez resistência com seu voto, a partir de uma interpretação precisa e fundada numa tradição constitucional autêntica, ao alavancar a Corte e protagonizar o que chamei de um "supremo acerto", uma resposta adequada à constituição. O voto do ministro Gilmar Mendes no RE nº 888.815/RS demonstrou como é possível que os problemas sociais sejam resolvidos no judiciário sem que se lance mão de um dos problemas jurídicos mais relevantes da atualidade, o ativismo judicial. Portanto, não é apenas de bons votos em habeas corpus — e Gilmar é o integrante com mais HCs concedidos — que se analisa um ministro da Suprema Corte. Mas sem mais o que dizer, concluo este breve prefácio fazendo um convite para que o leitor compreenda por si mesmo qual foi o caminho percorrido pelo ministro Gilmar e quais foram os descaminhos que foram evitados em sua trajetória. Tudo que se segue é um esboço dessa história que sequer final ainda tem. Em um país como o Brasil em que a "teoria" dominante é o velho realismo jurídico (pela qual o direito é o que o judiciário diz que é), fazer doutrina é um ato de resistência. Por vezes ministros fazem citações doutrinárias apenas como ornamento ou viés de confirmação. Isso enfraquece a doutrina, circunstância que, somada ao realismo, coloca o protagonismo do judiciário em um patamar nunca antes visto. Por vezes, as Cortes Superiores esquecem que o judiciário julga o passado e que é o legislativo que deve tratar do futuro. Nesse sentido, minha discordância com o ministro Gilmar, por sua concordância com aquilo que vem sendo denominado de "sistema de precedentes", pelo qual os Tribunais fazem teses abstratas visando a tratar do futuro, quando é sabido que, no restante do mundo, precedentes não são feitos com esse propósito. Mencionei aqui discordâncias. Claro. Integrantes de uma Suprema Corte acertam e erram. O ministro Gilmar Mendes acerta e erra. Mas há aqui um primeiro ponto a se destacar. Gilmar não tem compromisso com o erro. O próprio Supremo Tribunal Federal, dando-se conta daquilo que Gadamer chamou de wirkungsgeschichtliches Bewußtsein (a consciência acerca da força que os efeitos da história têm sobre nós), soube descompromissar-se com erros do passado. E o ministro Gilmar Mendes foi e é um case de sucesso nessa visão da história: como Palas Atena, tem sabido até mesmo — simbolicamente — empatar julgamentos, para que a democracia seja vencedora, em um autêntico in dubio pro democracia. Mas há ainda um segundo ponto de destaque, que ilumina a razão pela qual trouxe desacordos à mesa. Trouxe-os porque, Dworkin mostra bem isso, desacordos teóricos são parte fundamental, são sine qua non, da teoria do direito. A teoria e a prática são interpretativas, porque o Direito é um fenômeno interpretativo. E são raros os teóricos do Direito atentos a suas dimensões. É precisamente porque Gilmar Mendes é um ministro que é acadêmico que é teórico, e que leva cada uma dessas funções a sério — porque leva o Direito a sério —, que os desacordos teóricos de boa-fé são possíveis e inteligíveis. E são eles que não só enriquecem como mesmo possibilitam que o Direito seja colocado sob sua melhor luz. Daí por que, ainda que tenhamos desacordos (e quais teóricos originais não os têm entre si?), esses desacordos são desacordos entre pessoas que compartilham de premissas comuns: a defesa da democracia e da integridade do Direito. São desacordos que só existem em termos racionais de debate porque acreditamos na racionalidade do chão linguístico do fenômeno jurídico. Em tempos como os nossos, um teórico-intérprete-juiz com essas premissas já é uma vitória democrática. A presença de Gilmar Mendes, no Supremo e na docência, é uma vitória da democracia e dos democratas. Por tudo isso, não é apenas o caso de que o saldo do ministro Gilmar é positivo; a trajetória do acadêmico, do professor Gilmar Mendes é ilustrativa, é caso paradigmático das potencialidades do Direito enquanto critério institucional. O ministro é um acadêmico é um professor é um democrata. É um jurista que sabe levar o Direito a sério. Que possui fair play epistêmico. Que aceita críticas. E as faz. Não há acordo mais pleno, mais genuíno, mais fundamental do que esse.   ** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado na próxima semana em Lisboa, e em agosto no Brasil [1] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. [2] Aos mais interessados, recomendo a leitura do respectivo verbete do meu Dicionário de Hermenêutica. [3] Cf: (i) ELSTER, Jon, Ulysses and the Sirens: Studies in Rationality and Irrationality. New York: Cambridge University Press, 1988; e (ii) ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.
2023-06-24T06:06-0300
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Embargos Culturais
A obra Liberdade de Expressão, do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal tem exercido também importante papel editorial e pedagógico. Essa afirmação é facilmente constatada em visita à página web da Corte. Uma seção de publicações temáticas mostra-se substancialmente útil para o pesquisador, acadêmico ou profissional. Refiro-me a publicação veiculada agora em junho de 2023: "Liberdade de Expressão". Esse trabalho certamente é um divisor de águas no modo de se explicar o direito no Brasil. É também um manual esclarecedor, ao mesmo tempo profundo nas informações (conteúdo) e amistoso na apresentação (forma). Mensagem e meio se complementam, o que raro na literatura jurídica. A publicação está anos-luz à frente do que se produz e se disponibiliza no mercado editorial jurídico brasileiro contemporâneo. Vem com o complemento "Supremo contemporâneo", o que de imediato suscita várias digressões. Dentre elas, o diálogo direto entre o Tribunal e a sociedade. Como se lê na ficha catalográfica, a obra "reúne os julgados considerados mais relevantes para os estudiosos do Direito e para a sociedade brasileira, proferidos nos anos de 2007 a 2022". O tema: liberdade de expressão. De fato, comprova-se o que se lê na nota introdutória da obra. Há um rompimento radical com "padrões antigos de apresentação de conteúdo, trazendo informações selecionadas e sistematizadas, inclusive visualmente, a partir da análise de precedentes qualificados proferidos pelo tribunal". A disposição do conteúdo é muito didática. Inicia-se com um excerto do julgado paradigma, com identificação da ação e do (a) ministro (a) relator (a). Os organizadores tomaram o cuidado de não identificar diretamente a parte envolvida, o que reforça o caráter objetivo da composição de conflitos em uma Corte Constitucional. Segue um resumo do caso. Um quadro fixa com clareza as dimensões do problema, de uma forma gráfica, como se fosse um mapa mental. Um placar indica os votos, no mérito, com vencedores e vencidos, o que explicita objetivamente como os (as) magistrados (as) votaram. A sessão seguinte, "entenda o caso", explica com simplicidade (mas com densidade) o problema discutido e a solução alcançada. Geralmente, trata-se de um texto com adaptação de notícia publicada no portal do STF, com indicativo da fonte originária. Uma próxima aba, "Fundamentos", recolhe os excertos mais significantes da decisão. É o momento mais denso da narrativa. O problema é visto sob todos os ângulos e perspectivas do conflito constitucional. Há em seguida a indicação da doutrina citada, a par de informações adicionais, relativas ao inteiro teor do acórdão, a podcast do STF que trate do assunto, a vídeos do julgamento e à fixação da tese, a par dos amici curiae, quando existentes. Do ponto de vista de uma exposição pedagógica o modelo deve ser exemplo de todos quantos queiramos explorar com objetividade quaisquer assuntos jurídicos. Temos que melhorar nossos livros. A escolha dos assuntos é impecável. Inicia-se com o tema dos limites da liberdade de expressão, que foi exposto à luz das prerrogativas de parlamentares. A liberdade de culto é o tema seguinte, estudado à luz das restrições que decorreram do enfrentamento da crise da Covid-19. Explora-se o direito ao esquecimento. No passo seguinte, o espinhoso problema da recusa dos pais à vacinação compulsória de filho menor por motivo de convicção filosófica. Há também o relato da decisão do STF no caso de críticas realizadas por meio de sátira a elementos religiosos inerentes ao cristianismo. Explica-se a posição do Tribunal em relação ao crime de desacata. Há referência ao atualíssimo tema das fake news. A obra também cuida da liberdade de expressão dos agentes políticos, da liberdade de expressão no ambiente universitário, da identidade de gênero, do direito de acesso à informação, da tolerância e respeito à diversidade, da livre organização de entidades estudantis, da propaganda eleitoral por telemarketing, do marco regulatório da televisão por assinatura, do ensino religioso confessional, da imunidade tributária cultural, entre tantos outros. A obra se encerra com o tema da liberdade de reunião e de manifestação pública. São temas superlativamente polêmicos, que revelam as clivagens ideológicas que marcam nosso tempo. Os interessados na tentativa de compreensão de nossas angústias podem alargar a compreensão da jurisprudência com a leitura de outros textos, da ciência política, da história, da antropologia cultural e da sociologia, a exemplo de autores contemporâneos como Angela Alonso, Conrado Corsalette, Moisés Naím, Anne Applebaum, Giuliano da Empoli, Sérgio Abranches, Christian Lynch, Paulo Henrique Cassimiro,  Carlos Sávio Gomes Teixeira, Leonardo Avritzer, Cristina Serra, Fernando Limongi, Camila Rocha, Idelber Avelar, Cas Mude, David Runciman, Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, Marina Basso Lacerca, Gustavo Maultasch, Antonio Risério, e tantos outros, que tenho tentado resenhar aqui nessa coluna de embargos culturais. Essa publicação do STF, além de pedagógica, é um retrato dinâmico das tensões de nosso tempo. Nesse sentido, trata-se de valioso manual de história contemporânea e de ciência politica aplicada. O leitor atento pode perceber que os problemas colocados à mesa talvez sejam mais importantes do que as soluções fixadas pela Corte. Será? Parece-me (e agora estou plagiando um famoso político dos anos 50, que começou na esquerda e terminou na direita, inimigo de Brasília) que, como na sátira de George Orwell, estamos falando em liberdade como liberdade para matar a liberdade. Nesse ponto, importam mais as soluções, porque inegável o papel da Corte. Clique aqui para acessar "Liberdade de Expressão — 1ª Edição"
2023-06-25T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-25/embargos-culturais-obra-liberdade-expressao-supremo-tribunal-federal
academia
Opinião
George R. B. Galindo: Juiz constitucional e relações internacionais
*trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" Ainda que gradativamente o STF (Supremo Tribunal Federal) esteja a tratar de um número maior de casos relativos a direito internacional, tal quantidade permanece substancialmente menor se comparada, por exemplo, à atividade, nesse campo, da Suprema Corte dos Estados Unidos ou do Reino Unido. Ainda que não o único, um dos principais desafios em casos envolvendo tal temática diz respeito às repercussões da decisão de um tribunal constitucional interno para o cumprimento, por parte de um Estado, de normas jurídicas internacionais e mesmo para as suas relações bilaterais e multilaterais.[1] O voto do ministro Gilmar Mendes no ARE 954.858 (rel. min. Edson Fachin, Pleno, DJ de 24.09.2021), que restou vencido, nos fornece uma boa ideia sobre a percepção de um juiz constitucional acerca das repercussões da decisão de um tribunal constitucional interno para o ambiente internacional. O caso envolvia a questão de saber se um Estado — a Alemanha — gozava de imunidade de jurisdição, no Brasil, por violações de direitos humanos. Em específico, a ação originária visava a garantir reparação por morte a descendentes de vítima do torpedeamento, no mar territorial brasileiro, do barco pesqueiro Changri-lá, por submarino daquele Estado, em 1943, durante a II Guerra Mundial. Em sede de recurso ordinário constitucional, o STJ entendeu configurar-se imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro em virtude de se tratar de ato de guerra. Infelizmente, a posição majoritária no caso somente pode ser extraída do voto do relator, o mininstro Fachin; os demais não fizeram juntar votos. Do lado minoritário, apresentaram votos escritos os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes. A tese fixada no julgamento, após o julgamento parcialmente procedente de embargos de declaração opostos pelo MPF, foi a seguinte: "Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos, dentro do território nacional, não gozam de imunidade de jurisdição". A alteração se referiu apenas ao âmbito espacial —  "território nacional" — das violações de direitos humanos. Neste pequeno escrito, concentrar-me-ei no julgamento original do ARE 954.858, mais especificamente no voto do ministro Gilmar Mendes. Antes disso, no entanto, é essencial conferir as linhas mestras do voto do ministro Fachin. O voto do ministro Edson Fachin O voto condutor parte da premissa de que, após a CF/1988, a jurisprudência do STF teria abarcado a distinção entre atos de império e atos de gestão, cabendo falar-se em imunidade de jurisdição apenas em relação aos primeiros. Em sua visão, tal entendimento seria corroborado pelo direito (internacional) costumeiro, mas com uma exceção. A partir da transcrição que faz do voto do ministro Luis Felipe Salomão no RO nº 60, julgado pelo STJ, o chamado Direito da Haia como expressão dos princípios gerais de direito internacional humanitário e de normas de direitos humanos (não especificadas) seriam limites à imunidade de jurisdição do Estado até mesmo por atos de império. Para além do trecho transcrito, são citados, também como limites, o art. 6 (B) do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, 1945 (violações das leis e costumes de guerra como crimes de guerra), e o art. 6 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966 (direito à vida). Adiante, o voto também lembra o art. 32 do Protocolo Adicional I das Convenções de Genebra, 1977 (direito dos familiares de conhecerem a sorte de seus membros em caso de conflitos armados internacionais). O voto cita diversos casos e leis nacionais que, em sua perspectiva, corroborariam uma limitação da imunidade por atos de império. Também menciona o caso das Imunidades Jurisdicionais (Alemanha vs. Itália, Grécia intervindo), julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), em que foi reconhecido que a Itália deveria respeitar a imunidade de jurisdição alemã, em virtude de alegadas violações ocorridas durante a II Guerra Mundial. Dele discorda, no entanto, sustentando que não possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. Por outro lado, sua adesão é expressa ao voto dissidente, naquele caso, do Juiz Cançado Trindade — embora este tenha sustentado, de maneira mais estrita, que inexiste a imunidade de jurisdição para atos de império quando as violações de direitos humanos (e de direito humanitário) são especificamente dotadas do elemento gravidade. O voto do ministro Fachin, em conclusão, afasta a imunidade de jurisdição da Alemanha, no caso, mesmo em se tratado de ato de império, em virtude do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (artigo 4º, II, da CF/1988). O voto do ministro Gilmar Em seu voto-vogal, o ministro Gilmar Mendes também parte da consagração, do ponto de vista tanto constitucional como internacional, da distinção entre atos de império e atos de gestão para fins de imunidade de jurisdição, restando absoluta a imunidade de execução. Quanto a esse último tipo de imunidade, já se percebe uma preocupação com as repercussões de uma eventual relativização da imunidade de execução, em virtude de a determinação de uma medida constritiva contra bens de um Estado estrangeiro ser "no mínimo, um incidente internacional delicado". Diferentemente do ministro Fachin, o voto do ministro Gilmar Mendes menciona várias legislações nacionais e, em especial, a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus bens e a Convenção Europeia sobre Imunidade do Estado para confirmar a existência de uma norma costumeira sobre imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro por atos de império. Ou seja, parte de elementos semelhantes de prática internacional estatal, mas chega a uma conclusão oposta àquela do voto vencedor. O voto também se diferencia por entender que apenas uma minoria de Estados busca excepcionar atos de império à imunidade de jurisdição. E é preciso ao identificar que, ainda nesses casos, os atos de império não são todas e quaisquer violação de direitos humanos, mas violação de "direitos humanos absolutos, assim tidos como aqueles que decorrem do direito à vida e à integridade física da população civil como advindos do jus cogens". Ou seja, o desafio à imunidade de jurisdição, em alguns direitos internos, se referiria às graves violações a direitos humanos — aquelas que podem ser subsumidas a normas jus cogens. E complementa que tal posição minoritária não seria reveladora de uma prática geral apta a formar norma internacional consuetudinária, além de contrária a diversos tratados de que o Brasil é parte. Seu entendimento, portanto, se alinha com o posicionamento majoritário da CIJ. Também essa consideração é relevante para entender a preocupação do min. Gilmar Mendes — e do juiz nacional, em geral — em cumprir normas internacionais. Na medida em que a posição majoritária no caso julgado perante a CIJ é calcada no direito internacional costumeiro tal como existente, uma decisão contrária poderia, portanto, configurar um ato ilícito internacional e a consequente responsabilização internacional do Estado. É por essa razão que, na parte final de seu voto, adverte: "Nunca é demais lembrar que o descumprimento de qualquer tratado ou norma consuetudinária, em tese, ocasionaria um conflito internacional entre Estados soberanos" E ainda: "Além disso, caso proceda ao descumprimento de qualquer norma consuetudinária, a República Federativa do Brasil, através do seu Chefe de Estado, deve assumir, no plano internacional, inúmeras consequências, não existindo qualquer atribuição do Poder Judiciário nesse sentido". A posição que assume, portanto, é a de que ao juiz nacional é dado identificar a norma internacional consuetudinária e aplicá-la. A conclusão chega mesmo a visualizar não somente a possibilidade de ocorrência de um ato ilícito internacional, mas consequências do ponto de vista político entre os Estados: "Com todas as vênias aos pensamentos contrários, penso que devemos manter a integridade da nossa jurisprudência, a qual tem mantido a imunidade absoluta em se tratando de atos de império, tal como no caso em análise, além de refletir a exegese majoritária da comunidade internacional, sob pena de criarmos um incidente diplomático internacional". Esse é um impacto que não é externo ao fenômeno jurídico, mas o constitui, na medida em que afeta a própria competência de um tribunal para analisar questões de direito internacional. Conclusões Já se disse que, em matéria de imunidades, tribunais internacionais cumprem a função de arremessar a "primeira pedra". Esta, por sua vez, é capaz de gerar um “efeito em cascata” que produz (ou visa a produzir) mudanças no direito internacional.[2] O grande desafio, no entanto, é fazer com que tal primeira pedra não esteja em flagrante descompasso com normas internacionais estabelecidas. Afinal, o compromisso do juiz nacional não é somente com o Estado de direito na esfera interna, mas também na esfera internacional. É por essa razão que o voto do min. Gilmar Mendes acima referido deve ser levado bastante a sério em qualquer análise sobre as repercussões de decisões nacionais do juiz constitucional na esfera internacional. ** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado nesta semana em Lisboa, e em agosto no Brasil [1] Para um panorama geral sobre o assunto, ver NOLLKAEMPER, André et al (Eds.) International Law in Domestic Courts: A Casebook. New York: OUP, 2018. [2] VAN ALEBEEK, R. Domestic Courts as Agents of Development of International Immunity Rules. Leiden Journal of International Law. Vol. 26. Nº 3, 2013, p. 577-578.
2023-06-25T06:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-25/george-galindo-juiz-constitucional-relacoes-internacionais
academia
Fórum Jurídico de Lisboa
Código Florestal é avançado e deve ser seguido, diz diretor da JBS
O Código Florestal brasileiro é uma legislação avançada, inclusive mais sofisticada do que a de países desenvolvidos, e suas normas devem ser respeitadas. Essa posição é de Adriano Ribeiro, diretor jurídico da JBS e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ele participou do XI Fórum Jurídico de Lisboa, que está sendo promovido na capital portuguesa entre esta segunda-feira (26/6) e a próxima quarta (28/6).  A norma brasileira, que rege questões como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e as delimitações das áreas que podem ser desmatadas em determinados biomas do país, foi utilizada por Ribeiro para reforçar a soberania nacional em questões produtivas relacionadas ao agronegócio — e tecer críticas às políticas econômicas da União Europeia que restringiram a importação de produtos oriundos de terras em que se registram atividades ilegais.  Ele criticou o que chamou de "formato impositivo e restritivo" da nova regulamentação da UE, que bloqueou a entrada de produtos com origens em terras com registro de grilagem ou desmatamento ilegal, por exemplo. Ribeiro também disse que a legislação deve ser "inclusiva, e não excludente".  "Os caminhos para garantir a preservação da biodiversidade devem ser inclusivos, não excludentes. Sem bloqueios que só inviabilizam o sustento de famílias e aumentam as resistências dos produtores rurais. Devemos criar soluções para todos, mostrando pedagogicamente que as melhores práticas vão gerar mais benefícios mútuos." Para o diretor da JBS, é necessário que a legislação europeia estipule contrapartidas aos produtores sustentáveis e delimite melhor os exportadores que tenham denúncias de operação ilegal. "É fundamental dispor de instrumentos financeiros, baseados no pagamento por serviços ambientais. Medidas compensatórias para os produtores que adotam práticas sustentáveis, de forma a viabilizar a transição verde sem aumentar o custo para o consumidor, nem agravar o quadro de insegurança alimentar." Ribeiro participou da quarta mesa desta segunda-feira, com o tema "Mudanças climáticas e desastres naturais", junto a Elton Leme, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Alexandre Silveira (PSD), ex-deputado federal e atual ministro de Minas e Energia do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT); Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro da Infraestrutura e atual governador de São Paulo; e Otavio Luiz Rodrigues Jr., representante da Câmara dos Deputados no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).  O evento Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal "Governança e Constitucionalismo Digital". O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)  Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos. Confira aqui a programação completa
2023-06-26T20:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-26/codigo-florestal-avancado-seguido-diretor-jbs
academia
Opinião
Manoel Gonçalves Ferreira Filho: Um depoimento para a história
*trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" Acompanho a carreira do ministro Gilmar há cerca de 30 anos. O conheci como um jovem jurista que se doutorara na Alemanha e, regressando ao Brasil, veio a participar, na Faculdade do Largo de São Francisco, dos Encontros de Direito Constitucional promovidos pelo Instituto "Pimenta Bueno" que eu presidia. Nestes, reuniam-se muitos dos principais constitucionalistas brasileiros — como Raul Machado Horta, Cezar Saldanha, Caio Tácito, José Alfredo de Oliveira Baracho, Paulo Brossard, Carlos Velloso — e alguns juristas estrangeiros — Louis Favoreu, Jorge Miranda, Carlos Blanco de Morais, José Manuel Cardoso da Costa, Massimo Luciani, Giuseppe de Vergottini, José Joaquim Gomes Canotilho, por exemplo. Nesses encontros se debatiam e se trocavam ideias sobre os principais temas do direito constitucional, num intercâmbio que enriquecia a todos os juristas e também aos numerosos estudantes que assistiam às discussões e com elas muito aprendiam. A prova é que vários dos que estiveram presentes em tais reuniões são ilustres professores da matéria e nas principais Faculdades brasileiras. É o caso de Anna Cândida da Cunha Ferraz, Fernanda Dias Menezes de Almeida, Mônica Herman Salém Caggiano, Fernando Dias Menezes de Almeida, Alexandre de Moraes, José Levi Mello do Amaral Junior, Roger Stiefelmann Leal, Carlos Bastide Horbach. Os últimos cinco, aliás, hoje ensinam na Faculdade de Direito da USP. Atendiam esses encontros, ademais, a uma necessidade, pois, se faziam na época da elaboração da Constituição brasileira ainda hoje em vigor, com a discussão de alternativas propostas e, em seguida à sua promulgação, à exigência de interpretação de suas inovações. Foi nesses encontros que, desde logo, se destacou Gilmar Ferreira Mendes, cujos amplos conhecimentos logo se tornaram evidentes, como também sua inspiração germânica (nenhuma palestra sua deixava de ter uma citação em alemão...). Um de seus temas prediletos era o controle de constitucionalidade. E neste campo desde logo ele trouxe de imediato uma contribuição importante, que depois vingou. Com efeito, ainda prevalecia então, e incontestada, a doutrina clássica norte-americana, exposta pelo Chief Justice Marshall, no julgamento do célebre caso Marbury v. Madison. E nela se destacava especialmente ser o ato inconstitucional nulo e írrito. Esta lição se incorporara profundamente no pensamento jurídico brasileiro, graças às lições do grande Ruy Barbosa. Foi este, sem dúvida, quem introduziu o instituto na Constituição de 1891 e na doutrina a sua interpretação. Se outras razões não houvesse para louvá-lo, isto já bastaria para consagrá-lo, não só como jurista, mas também como um dos maiores de todos os tempos. Com efeito, sem o controle a Constituição não prevalece sobre os atos legislativos e administrativos e assim não é barreira contra o arbítrio. E o grande Ruy o apontou, demonstrou e fez valer esse papel de limitação do Poder, pelo que todos os brasileiros lhe devem ser gratos. Entretanto, a lição clássica, já no século 20, foi reestudada por Hans Kelsen. Esse, na sua obra profundamente técnica, apontou que a nulidade do ato inconstitucional não expressava senão simplificadamente a sua natureza. De fato, um ato mesmo inconstitucional podia produzir alguns efeitos que não podiam ser desconhecidos (e a jurisprudência já disso se apercebera que, para não o reconhecer como írrito, usava de discretos expedientes). A nulidade absoluta do ato inconstitucional somente poderia ser o grau final de uma anulação, sempre operada sob a capa de uma "declaração" quando, na verdade, possuía juridicamente outro caráter, um caráter constitutivo negativo. Essas e outras lições de Kelsen eram conhecidas no Brasil ao menos desde a metade do século passado. Mas, no que tange à natureza do ato inconstitucional, eram guardadas como um segredo, tal o peso da opinião do grande Ruy. Ora, isto não deteve o jovem jurista que claramente assumiu a tese kelseniana. E foi o inspirador, depois de anos de pregação, da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que adota no seu cerne tal tese e com isto enseja a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o que seria logicamente impossível se o ato inconstitucional fosse írrito. Essencialmente, por essa luta e seu êxito, que afirmei ser Gilmar Mendes comparável a Ruy Barbosa, na construção, ou melhor, da reconstrução do direito constitucional brasileiro. Sim, porque a tutela das normas constitucionais é o ápice da supremacia da Constituição. Mas há outras razões para a comparação. Não se limita ao ponto mencionado a sua contribuição para o direito constitucional brasileiro. Um deles está na sua contribuição para que a Constituição, além de Lei suprema, concretizasse o modelo almejado para a Nação – e não apenas para o Estado brasileiro. Ela, de fato, não se preocupa apenas a impedir o arbítrio, o que já não é pouco, mas também configura a ordem social e econômica a ser estabelecida para a comunidade. E para que este estado de coisas se efetive e não permaneça como que morto numa folha de papel, muito têm contribuído as lições doutrinárias e os votos de Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal. Não apenas no tocante à esfera hoje reconhecida no tocante ao mandado de injunção, mas de modo mais concreto por exemplo no seu voto a respeito da Lei nº 10.835/2004, que instituiu a renda básica de cidadania. Neste, revela-se claramente a sua atenção para com o social. Sem dúvida, a construção da Nação conforme a Constituição suscita graves problemas como o risco da judicialização da política. Essa, porém, foi propiciada pela Constituição, ao fixar programas e metas que não devem ficar sem efeito concreto. Isto bem sabe Gilmar Mendes que não confunde o jurídico com político. A todos esses méritos, soma-se outro, próprio de um homem de Estado que ele também o é. Ou seja, a questão da governança em face da notória crise do sistema de governo brasileiro. Olhando para o futuro, participou ativamente das discussões sobre a substituição desse regime por um semipresidencialismo, debate que chegou até o Congresso Nacional. Muito mais haveria a dizer a respeito da obra do ministro Gilmar Mendes, mas é cedo para escrever a sua biografia. Longe está do ponto final o seu trabalho. ** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado nesta semana em Lisboa, e em agosto no Brasil
2023-06-26T06:08-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-26/manoel-goncalves-ferreira-filho-depoimento-historia
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Fórum Jurídico de Lisboa
Coêlho defende cumprimento do dever de revelação na arbitragem
Presidente da Comissão Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil, o advogado Marcus Vinícius Furtado Coêlho defendeu nesta terça-feira (27/6), no XI Fórum Jurídico de Lisboa, o cumprimento rigoroso do dever de revelação em arbitragens, sob pena de anulação do procedimento e, em última instância, a redução do uso do instituto por partes e empresas. Ele participou da mesa "Meios alternativos de resolução de conflitos". Segundo Coêlho, qualquer magistrado do país está sujeito à fiscalização das corregedorias dos Tribunais de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, além do direito das partes de recorrer. No entanto, no caso das arbitragens, que têm função jurisdicional, os árbitros não estão submetidos aos mesmos órgãos de controle e, justamente por isso, o controle ético da atividade se torna ainda mais importante. "As partes só possuem a possibilidade do controle ético se houver o cumprimento do dever de revelação, revelando todos os aspectos e circunstâncias, independentemente do tempo, que possa fazer com que as partes possam exercer o direito de impugnar ou não a indicação do árbitro de forma transparente e ampla. Com a ausência do dever de revelação, não há outra hipótese que não anular arbitragem", afirmou Coêlho, que já presidiu o Conselho Federal da OAB. "Se esse mínimo controle, que é o único que existe hoje na legislação brasileira, não for cumprido adequadamente, então nós iremos estimular o fenômeno que hoje já se revela nas pesquisas. O Ipespe, a FGV e a ConJur fizeram recentemente uma pesquisa com as empresas brasileiras e os dados não são animadores: a ampla maioria não quer mais utilizar arbitragem. Há um decréscimo na adesão." A mensagem que deve ser passada, disse o advogado, "é de que as arbitragens são imparciais, elas são meritórias, são decididas, portanto, sem qualquer vínculo". Coêlho também afirmou que não considera adequado o "casamento" entre as funções de árbitro e advogado.  "Temos um encontro marcado com isso: porque na arbitragem X, o advogado A funciona perante o advogado B. Na arbitragem Y, a inversão, o advogado B funciona perante o A. Não me parece razoável que concomitantemente ocorra isso. Você não vai convencer ninguém que se adequar." "Com o dever de revelação sendo cumprido de forma ampla, e com a Justiça verificando adequadamente o cumprimento desse dever, me parece que a arbitragem não necessitaria de regulamentação. Mas se essa regulamentação não vier, se a própria arbitragem ou se a própria Justiça não der a resposta, me parece que outras medidas terão de ser tomadas, sob pena de aumentar o índice de partes e empresas que não mais vão preferir esse instrumento tão importante." O evento Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal "Governança e Constitucionalismo Digital". O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)  Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos. Confira aqui a programação completa
2023-06-27T21:12-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-27/coelho-defende-cumprimento-dever-revelacao-arbitragem
academia
Fórum Jurídico de Lisboa
É preciso combater a judicialização dos conflitos, diz Almeida Neto
De acordo com o advogado Manoel Carlos de Almeida Neto, doutor e pós-doutor em Direito pela USP e vice-presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil, a Constituição brasileira carrega em seu artigo 5º o esforço do Estado para que meios conciliatórios facilitem o trâmite processual e, consequentemente, a resolução dos litígios.  Esse foi um dos pontos abordados nesta terça-feira (27/6) por Almeida Neto durante o XI Fórum Jurídico de Lisboa. Ele falou no painel intitulado "Meios alternativos de resoluções de conflitos". "É preciso dar efetividade aos comandos constitucionais e combater a cultura da judicialização dos conflitos de interesses, do popular 'vou te processar' que banaliza a jurisdição, pois esse sentimento representa um retrocesso civilizatório que não tem abrigo na Constituição do Brasil", disse o advogado. Ele afirmou ainda que "o contributo maior da conciliação é a pacificação social, com o consequente fortalecimento do Estado democrático de Direito e a preservação das instituições democráticas". A conciliação, disse o advogado, deve ser fomentada "por programas efetivos de incentivo à autocomposição de litígios forenses, e, sobretudo, dos conflitos de interesses ainda não judicializados, que ocorrem em escala crescente e vertiginosa na sociedade brasileira". A conclusão de sua fala ressaltou a necessidade de efetivar as previsões da Constituição para, assim, reduzir a judicialização: "Com efeito, o preâmbulo da Constituição Cidadã deixa claro que a Justiça é um valor supremo e a vontade soberana do povo brasileiro é o compromisso do Estado, em sua ordem interna, com a pacificação social, objetivo que também efetivado por meio da conciliação, fomentadas por programas efetivos de incentivo à autocomposição de litígios forenses, e, sobretudo, dos conflitos de interesses ainda não judicializados, que ocorrem em escala crescente e vertiginosa na sociedade brasileira.   O direito constitucional de acesso à justiça e o monopólio estatal da jurisdição, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição segundo o qual 'a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito', deve ser reinterpretado para dar máxima efetividade ao preâmbulo da Carta Magna, para além da nossa cultura de litigiosidade, de estímulo aos processos instaurados no âmbito do Poder Judiciário, pois a Justiça é valor supremo da sociedade brasileira, comprometida, na ordem interna, com a solução pacífica de controvérsias.   Ademais, o art. 5º, inciso LXXVIII garante que 'a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação', e isso deve incluir, sem dúvida nenhuma, o esforço do Estado para que, preferencialmente, os meios conciliatórios de resolução de conflitos garantam a celeridade processual e término do litígio.   É preciso dar efetividade aos comandos constitucionais e combater a cultura da judicialização dos conflitos de interesses, do popular 'vou te processar' que banaliza a jurisdição, pois esse sentimento representa um retrocesso civilizatório que não tem abrigo na Constituição do Brasil. O contributo maior da conciliação é a pacificação social, com o consequente fortalecimento do Estado Democrático de Direito e a preservação das Instituições democráticas." Almeida Neto participou do debate ao lado de Juliana Loss, diretora da Câmara de Arbitragem da Fundação Getulio Vargas; Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da Comissão Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil; Nuno Villa-Lobos, presidente do Centro de Arbitragem Administrativa; Carlos França, presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás; Antonio José Campos Moreira, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro; Ronnie Preuss Duarte, vice-presidente do Conselho de Gestão do Grupo de Líderes Empresariais de Pernambuco; Luís Inácio Adams, ex-advogado-geral da União; e Alexandre Freire, membro do Conselho Diretor da Agência Nacional de Telecomunicações. O evento Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal "Governança e Constitucionalismo Digital". O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)  Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos. Clique aqui para ler a fala de Almeida Neto Confira aqui a programação completa do evento
2023-06-27T20:59-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-27/preciso-combater-judicializacao-conflitos-almeida-neto
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FÓRUM JURÍDICO DE LISBOA
Não há justiça sem direito de defesa, diz ex-presidente do IBCCrim
Sem o efetivo direito de defesa no âmbito do Direito, não há possibilidade de Justiça democrática. A fala é da advogada Marina Coelho, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e doutora em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, durante debate no XI Fórum Jurídico de Lisboa, que teve início nesta segunda e terminará na próxima quarta-feira (28/6). "Não é só eficiência. Procedimento, para ter legitimidade democrática, precisa se consolidar como resultado de um processo dialógico, em que acusação e defesa efetivamente expõem seus argumentos e, destes, aporta-se um resultado para a equalização do conflito social", disse ela durante o painel "Impacto do mundo digital no Direito Penal".  "Não há Justiça democrática sem efetividade do direito de defesa. Fortalecer o direito de defesa é fortalecer a justiça. Repensar a defesa a partir do digital é uma responsabilidade de todos nós." Para a especialista, a grande questão do avanço do mundo digital sobre o aspectos jurídicos é a necessidade de uma fundamentação clara, além da estipulação de critérios normativos mais concretos. "Somos ainda claudicantes entre as perspectivas ontológicas, de essência do ser, e o normativismo contemporâneo. Definir este fundamento trará avanços. Um funcionalismo bem compreendido pode aportar soluções equilibradas e, acima de tudo, no Brasil, pode nos dar a oportunidade de corrigir a rota da justiça penal, que tanto aprofunda as desigualdades e as mazelas da sociedade brasileira." Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal "Governança e Constitucionalismo Digital". O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV). Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos. Confira aqui a programação completa
2023-06-27T12:20-0300
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Fábrica de Leis
Validade legisprudencial, erro legístico e o juiz de garantias
Os leitores que vêm acompanhado as últimas participações desta colunista nesta Fábrica de Leis já devem ter percebido que meu principal propósito tem sido o de — a partir da indicação de algumas posturas acadêmicas equivocadas – esclarecer o âmbito de aplicação e os limites dos estudos sobre o processo legislativo no Brasil. Isso porque acredito que um exame sobre as pesquisas que vêm sendo produzidas na área — que aponte, especialmente, as distorções e transplantes inadequados que se encontram por aí – pode resultar em um diagnóstico mais efetivo sobre as patologias tanto da academia quanto das práticas legislativas brasileiras. Nesse sentido, por exemplo, na coluna passada, alertei que um dos autores que vêm sendo citados em estudos sobre a justificação da legislação — Rainer Forst, especialmente seu livro The Right to Justification: Elements of a Constructivist Theory of Justice — teve suas ideias "deformadas", pois seus escritos jamais pretenderam fundamentar uma obrigação "jurídica" (mas tão somente de cunho "moral") de que sejam dadas razões adequadas para as normas. Mas, com expliquei, não vem sendo esse o sentido da sua utilização como marco teórico nas obras que o citam por aqui. A coluna de hoje acrescenta mais uma dessas más compreensões para a lista: a incorporação da Legisprudence — um campo de estudos que lida com a racionalidade e a justificação das leis desde uma perspectiva crítico-normativa — como se a satisfação de suas condições fosse necessária para a validade formal da norma. Por mais que o discurso legisprudencial seja uma peça-chave dentro dos estudos de teoria do direito, é preciso muito cuidado na hora de transplantar as condições que possibilitam um controle de racionalidade da justificação das leis (perspectiva da legisprudência) para um controle judicial de sua constitucionalidade. Existe um problema metodológico de grande calado e ainda não superado na teoria. O raciocínio legisprudencial é um projeto teórico complexo e ainda está em desenvolvimento. Trata-se de uma teoria normativa (não descritiva). A aspiração de uma legislação racional é o seu móvel e legítimo propósito. Mas as considerações desse campo se dirigem à atividade dos legisladores — de modo a auxiliá-los na tarefa de fundamentar as escolhas legislativas, ainda durante a sua criação —, não para subsidiar um controle judicial a ser exercido ex post por juízes. É bem verdade que as próprias expressões usadas por um dos principais autores desse campo — Luc J. Wintgens se refere ao conceito de validade legisprudencial [1] — não ajudam nessa empreitada e podem causar alguma confusão para juristas mais desavisados. Diferentemente da validade jurídica — que funciona sob a lógica "tudo ou nada", pois ou uma norma é válida ou não o é à luz da Constituição —, sob a perspectiva legisprudencial, o conceito de validade assume outras tintas com degradês entre preto e branco, torna-se uma questão de grau. Nesses moldes, a validade formal seria uma condição necessária, mas não suficiente para a validade legisprudencial e o processo de justificação legislativa seria uma das condições que permitem acessar tal validade. De acordo com a proposta de Luc J. Wintgens, a motivação de uma proposição legislativa deveria atender os princípios legisprudenciais da alternatividade, densidade normativa, coerência e temporariedade. Para isso, muito resumidamente, a justificação precisaria satisfazer ao seguinte: 1) Explicar o valor, objetivo ou finalidade da proposta legislativa em questão; 2) Assinalar que a interação social, no âmbito particular a que se refere a proposta legislativa em questão, fracassou na perspectiva desse valor, objetivo ou finalidade, esclarecendo exatamente em que consiste esse fracasso; 3) Apresentar a(s) razão(ões) pela(s) qual(is), no âmbito particular a que se refere a proposta legislativa em questão, a limitação da liberdade individual por meio da intervenção legislativa — isto é, na forma de uma norma imposta de forma soberana — é preferível, ou no mínimo menos lesiva, que a interação social deficitária; 4) Mostrar que o conteúdo dado à proposta legislativa em questão é necessário para proteger o valor, alcançar o objetivo ou finalidade da intervenção legislativa, ou seja, indicar que as alternativas menos restritivas à liberdade individual seriam suficientes; 5) Se a proposta legislativa em questão está associada a uma sanção, mostrar também que a sanção escolhida é necessária para realizar o valor ou alcançar o objetivo ou finalidade da intervenção legislativa, é dizer, apontar que as alternativas não sancionatórias ou uma sanção menor seriam insuficientes. Luc J. Wintgens desenvolve ainda mais as condições de justificação necessárias para a validade legisprudencial, especialmente quanto à justificação adicional às normas que estabelecem sanções. Mas o que já se expôs até agora é suficiente para demonstrar o argumento aqui defendido: tais parâmetros definitivamente não oferecem segurança a um controle judicial e a validade legisprudencial não corresponde à validade jurídico-formal. A pretensão de condicionar a constitucionalidade da legislação à sua justificação ou submeter a argumentação legislativa a um escrutínio sobre a "qualidade" ou "acerto" dos argumentos são caminhos equivocados e implicam más compreensões sobre a legisprudência enquanto campo voltado para as razões das leis. O mesmo pode ser afirmado em relação à Legística. Embora esse último ramo também compartilhe algumas das preocupações legisprudenciais, não pretende uma explicação mais teórica sobre os atributos da racionalidade do processo de elaboração legislativa, nem pretende construir uma teoria geral das razões para a justificação das leis. Seu âmbito é mais "prático". Sendo um dos domínios da teoria da legislação, o principal foco da legística está no desenvolvimento e compilação das regras gerais sobre a feitura das leis, as suas divisões, a sua sistemática e a sua linguagem (desde uma perspectiva formal), bem como da concepção de ferramentas analíticas capazes de auxiliar o passo a passo do processo de tomada de decisão legislativa e aperfeiçoar sua substância (legística material). Bem entendido esse campo, mais uma vez, tem-se que a não observância das pautas legísticas não se presta a "macular de inconstitucionalidade" o produto final, isto é, a lei. A legística não faz parte da Constituição. Suas "regras" sequer jurídicas são (no máximo, são soft law). Consubstanciam "boas práticas". São recomendações aos legisladores. Têm caráter meramente auxiliar. Mesmo a "legalização" das diretrizes legísticas não resolve de todo o problema fundamental sobre a imperatividade. Tanto é que a LC nº 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o artigo 59, parágrafo único, da Constituição, é clara ao instituir em seu artigo 18 que "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento". É um indicativo claro que o direito positivo brasileiro não considera a qualidade legística como aspecto de validade formal das leis. Além disso, como comentado acima, persiste uma considerável dificuldade metodológica (e uma verdadeira deturpação) na utilização da legisprudência e da legística para examinar a validade das normas, já que essas disciplinas não foram pensadas para servir de parâmetro de controle judicial. Pois bem. Nada obstante toda essa explicação que se acaba de dar, o próprio STF, na semana passada, incorreu no tipo de distorção aqui denunciada. Por ocasião do julgamento das ADIs nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, que têm por objeto as regras que instituem o juiz de garantias, durante a leitura de seu voto, o ministro Luiz Fux afirmou que os dispositivos impugnados padecem do que chamou de "erros legísticos" para justificar seu entendimento de um vício de inconstitucionalidade formal. Para quem quiser conferir, o trecho está a partir do momento 1:16:04 do vídeo da sessão do último dia 22 de junho. Após reclamar que a lei teria sido votada de maneira muito açodada, o ministro afirmou que o modelo de juiz de garantias adotado pela Lei nº 13.964/2019 teria desobedecido o devido processo legislativo constitucional substantivo. (Mais uma vez, precisamente como criticado aqui, não foi apontado um artigo específico da Constituição que tivesse sido violado.) O vício de inconstitucionalidade "formal" chamado pelo ministro de erro legístico decorreria de que a previsão atacada teria sido incluída de maneira súbita e sem prévia discussão, implementando alteração fundamental no projeto, discrepante de sua concepção originária. As modificações teriam sido inseridas "de surpresa" quando já estavam concluídos os debates sobre o Pacote Anticrime. (Mais um parêntese: o próprio ministro reconhece que a previsão foi incluída no substitutivo apresentado pelo relator em plenário e devidamente votado pelos parlamentares.) O ministro reclama que não houve qualquer consideração de legística e que os dispositivos impugnados padecem de graves e notórios erros legísticos, inobservando o "dever de cuidado" e definição legal da matéria, além de "incoerências, incongruências, incompatibilidades e desproporcionalidades" presentes na lei. Tais erros foram apontados como "inadmissíveis e inescusáveis em matéria de tamanha importância". Ao ler seu voto, o ministro usou as exatas palavras destacadas e ainda discordou da “importância” que os legisladores deram ao juiz de garantias, em detrimento de outras matérias. Na ilustração de um dos erros legísticos em concreto, apontou o artigo 3º-C do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019. O ministro afirmou que o dispositivo teria violado o "dever de clareza e rigor textual das leis", instaurando dúvida relevante sobre o momento em que cessa a competência do novo juiz de garantias. Eis o teor do referido dispositivo: "A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código”. Ocorre que a referência ao art. 399 seria equivocada, pois essa última norma trata do início da instrução processual, depois de já recebida a denúncia. (Último parêntese: hipoteticamente, uma remissão mal feita pode, sim, ser responsável pela inconstitucionalidade de uma lei. Por exemplo, se implica a alteração de uma determinação normativa da Constituição sobre a matéria. Mas uma remissão com mero erro material, que pode ser contornado perfeitamente pelos métodos de interpretação, não deveria assumir a relevância de inconstitucionalidade.) Na segunda parte da sessão, o ministro ainda trouxe argumentos como a violação do princípio da proporcionalidade, a consideração das reflexões oriundas da economia comportamental, entre outros que já não serão comentados com maior detalhe agora por razões de tempo e espaço. O que importa é chamar a atenção para mais esse vício na abordagem dos problemas do processo legislativo: a crença de que as regras legísticas são os únicos valores (ou os critérios mais importantes) na definição das escolhas legislativas. Não se discorda que clareza, simplicidade, facilidade de compreensão pelos destinatários são elementos importantes para a legislação. Mas não se pode negar que outros fatores podem acabar influenciando o processo decisório dos legisladores, especialmente jogos políticos. Existe a vagueza estratégica. Não se vai desenvolver o tema na coluna de hoje, mas não seria equivocado reconhecer um certo "analfabetismo legislativo" na insistência em considerar qualquer imperfeição na redação legislativa como desprezo, descaso e descuido da boa técnica legislativa e afronta à Constituição. Esse equívoco, somado ao anterior já apontado (confusão entre validade jurídico-formal e validade legisprudencial), representam uma distorção dos campos teóricos da legisprudência e da legística. Esses entendimentos tende a caminhar em paralelo à postura da "expertocracia" de alguns segmentos academia que desmerecem decisões legislativas que não foram pautadas em "critérios estritamente científicos", que ainda insistem na obsoleta diferença entre decisões "técnicas" e "políticas" e pretendem "agencificar" os parlamentos, convertendo-os em agências reguladoras. Os atributos da legislação racional são complexos, devem levar conta diversos fatores legísticos e legisprudenciais, são graduais (não binários), e por vezes meramente tentativos, porque podem sofrer com as variações das circunstâncias de fato. Por isso, não faz sentido falar em "erro" ou "acerto" de decisões legislativas dentro do espaço constitucionalmente permitido de conformidade do legislador. Em resumo, toda essa agenda de estudos é importante e interessantíssima, mas não deve ser usada para avaliar (ou confundida com) a constitucionalidade da legislação. [1] WINTGENS, Luc J. Legisprudence. Practical Reason in Legislation. Aldershot: Ashgate publishing, 2012, p. 305.
2023-06-27T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-27/fabrica-leis-validade-legisprudencial-erro-legistico-juiz-garantias
academia
Opinião
Maria Jovita Wolney Valente: Gilmar Mendes na AGU
*trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" No início da década de 1990, representando o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), participei de reunião no Ministério da Agricultura para discutir a regulamentação do artigo 243 da Constituição, que tratava da expropriação (sem indenização) de glebas onde fossem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Um dos participantes dessa reunião, representando a Presidência da República, era Gilmar Ferreira Mendes. Ali nos conhecemos. Voltamos a nos encontrar por duas vezes para tratar de outro relevantíssimo assunto, que afligia o governo desde a vigência da Constituição de 1988 — a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária — que sofrera profundas alterações. Na segunda reunião sobre esse tema eu já era consultora da República, sob a chefia do digno Célio Silva, à época consultor-geral da República, com a admirável parceria de Thereza Helena Souza de Miranda Lima (consultora da República) e de Ruy de Barros Monteiros (secretário-geral da CGR). Essa parceria possibilitou o aviamento e aprovação das leis da reforma agrária. Nessas poucas oportunidades estabeleceu-se forte interação que mais tarde nos reuniria, sem planejamento prévio, em torno da construção da Advocacia-Geral da União (AGU). No último trimestre de 1992 adveio o impedimento do presidente Fernando Collor de Melo, e a consequente assunção da Presidência da República pelo vice-presidente Itamar Franco. Com isso, Gilmar Mendes deixou a Consultoria Jurídica da Presidência da República. Dois anos depois Fernando Henrique Cardoso assumia a Presidência da República e, em 1996, Gilmar Mendes voltava à assessoria jurídica da Presidência, agora como subchefe para Assuntos Jurídicos. Por esse tempo já funcionava a Advocacia-Geral da União, sob o comando de Geraldo Magela da Cruz Quintão. A partir daí a convivência com Gilmar Mendes foi ficando cada vez mais frequente e construtiva. No início do ano 2000, aconteceu que o advogado-geral da União, Geraldo Quintão, assumiu o Ministério da Defesa, deixando vago o cargo de chefe da AGU. Ali ficara mais de seis anos e meio e não era previsível o fim do seu mandato antes do termino do Governo. Mas o Presidente Fernando Henrique Cardoso viu em Geraldo Quintão o perfil que o Ministério da Defesa necessitava para resolver problemas momentâneos daquela pasta. Ligeiras especulações sobre quem seria o novo advogado-geral foram rapidamente afastadas pelo anúncio da escolha para o cargo do subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. Aos 31 de janeiro do ano 2000 era nomeado advogado-geral da União o procurador da República Gilmar Ferreira Mendes. A criação, implantação e o equipamento da advocacia-geral da União se desdobram em vários capítulos, ou períodos. Aqui será focalizado o período correspondente à gestão de Gilmar Mendes — 31 de janeiro de 2000 a 19 de junho de 2002 — pouco mais de dois anos e quatro meses. Antes da existência da AGU, Gilmar Mendes, como subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República, exercia certa coordenação das consultorias jurídicas dos Ministérios e dos órgãos jurídicos das autarquias e fundações. Além disso, como titular do cargo de procurador da República, tivera atuação privilegiada perante o Supremo Tribunal Federal no exercício da representação judicial da União, ao lado de Sepúlveda Pertence (procurador-geral da República) e de Anadyr Mendonça (subprocuradora-geral da República). As experiências acumuladas da área consultiva do Poder Executivo na Presidência da República e da representação judicial da União perante o STF seriam bastante para credenciar Gilmar Mendes ao exercício do cargo de advogado-geral da União. Mas sua bagagem era maior. Trazia o prestígio construído pelo destacado aluno da UnB (Universidade de Brasília), o doutorado conquistado na Alemanha, o magistério que até hoje exerce, a admiração e a confiança do presidente da República e de todo o seu ministério, dos membros do Judiciário e do Parlamento brasileiro. Trazia o prestígio do doutrinador, com obras jurídicas publicadas. Trazia o nome feito do jurista constitucionalista. Trazia a ousadia e a vontade de fazer acontecer. Na AGU encontrou a equipe deixada por Geraldo Quintão — o advogado-geral que fez a AGU funcionar com a pequena equipe de que dispunha — e a ela acrescentou alguns assessores. As dificuldades mais prementes da implantação da AGU estavam superadas. À disposição do novo advogado-geral havia o acréscimo de mais de mil advogados aprovados nos concursos realizados para as três carreiras da AGU: advogado da União, assistente jurídico e procurador da Fazenda Nacional. A chegada dos novos advogados possibilitou muitas realizações. Começou ali um novo período para a AGU. Gilmar Mendes foi o primeiro advogado-geral da União a fazer sustentações orais perante o STF nos casos de maior relevância, considerados os valores econômicos e sociais envolvidos e o efeito multiplicador dos temas. A sua gestão na AGU possibilitou muitas realizações, entre as quais se destacam: A passagem de Gilmar Mendes deixou na AGU a marca do sucesso, do bom sucesso. Para mim, foi benfazeja a parceria estabelecida com o Ministro Gilmar Mendes. Rara sintonia de ideias e propósitos nos favoreceu e possibilitou realizações edificantes, úteis e necessárias à sociedade.   ** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado nesta semana em Lisboa, e em agosto no Brasil
2023-06-27T06:08-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-27/maria-jovita-wolney-valente-gilmar-mendes-agu
academia
Raio-x da desinformação
Legislativo e políticos dominam decisões do STF sobre fake news
O Poder Legislativo e políticos, de forma individual, habitam o polo passivo de 67% das decisões e acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito de processos sobre fake news. A informação consta em um estudo feito pelo Centro de Pesquisas Judiciais (CPJ) da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em parceria com a Unesco, e que foi divulgado no XI Fórum Jurídico de Lisboa, que terá seu encerramento nesta quarta-feira (28/6).  O estudo analisou decisões tomadas entre 1º de janeiro de 2019 e 30 de outubro de 2022 e procurou traçar o parâmetro que os tribunais utilizam para caracterizar fake news e desinformação.  De acordo com a pesquisa — denominada "O que é desinformação no Judiciário brasileiro? Uma análise da jurisprudência dos tribunais superiores sobre as fake news" —, foram 87 decisões e acórdãos assinados por ministros da corte suprema do país, sendo que 34 tiveram como objeto o Poder Legislativo e, em outros 25, o polo passivo foi preenchido por políticos. Em seguida, há o Poder Judiciário, com 18 ocorrências, seguido de pessoas físicas (duas), partidos políticos (uma) e empresas (uma). "Com relação às categorias de partes no polo passivo, a categoria que mais figura nas demandas é o Poder Legislativo, com 34 decisões, sendo que em todas elas há a quebra de sigilo e em 29 delas figura o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal — CPI da Pandemia", diz a pesquisa. Ainda segundo o relatório da AMB, um grande número de decisões está atrelado às CPIs da Pandemia e das Fake News, o que sugere um aumento de disseminação de notícias falsas durante os períodos pandêmico e eleitoral. O número de processos nesse sentido, diz o estudo, cresceu 300% nas eleições de 2022 em relação ao pleito anterior, em 2020. "Esse resultado denota que as fake news alcançaram enorme impacto no meio político, sobretudo durante a fase do isolamento social decorrente da Covid-19, em que a guerra de versões sobre o que estava acontecendo tomou conta da imprensa e da internet", afirmou em nota o presidente da AMB, Frederico Mendes Júnior.  Já no Tribunal Superior Eleitoral foram contabilizados 179 decisões e acórdãos — a maior parte em representações e direitos de resposta —, com partidos políticos ocupando o polo passivo em 78 situações e políticos, individualmente, em 50 outros casos. Juntas, as categorias representam 71% dos polos passivos dessas ações Bolsonaro e Moraes Segundo o estudo, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) participa como "parte" ou "envolvido" em 45% das decisões e acórdãos do TSE em ações relativas a fake news e desinformação analisados pelos pesquisadores.  "A análise desses dados nos ajuda a definir o campo de atuação do Poder Judiciário como protagonista para resolução dos conflitos que envolveram a temática dessa pesquisa, procurando analisar inicialmente um corpus marcado, sobretudo, da temática desinformação versus Jair Messias Bolsonaro, em especial, enquanto presidente da República" diz o relatório.  Já o ministro Alexandre de Moraes, do STF e presidente do TSE, foi o que mais proferiu decisões contra as fake news. Alexandre, que é relator do chamado Inquérito das Fake News, foi responsável por 16 das 77 decisões monocráticas do STF contra desinformação entre 1º de janeiro de 2019 e 30 de outubro de 2022.  Em segundo lugar, a ministra Cármen Lúcia é autora de 14 decisões monocráticas e um acórdão. O ministro Dias Toffoli, por sua vez, aparece na terceira posição, com dez decisões monocráticas, acompanhado de perto por Rosa Weber, atual presidente do Supremo, com sete decisões monocráticas e um acórdão sobre o tema.  Big techs Conforme o levantamento, as corporações de mídias sociais, que habitam o centro do debate sobre responsabilização na internet, como Facebook, Twitter, YouTube, Tiktok, Kwai e Google, estão arroladas em 18 ações contra fake news no TSE. O motivo é que elas são encarregadas de identificar os administradores de determinados perfis para promover a desindexação ou remoção de conteúdos. No entanto, os pesquisadores ressalvam que, apesar de constarem no polo passivo dos litígios, de acordo com entendimento do TSE, existe a possibilidade de exclusão das companhias na hipótese de não comprovação dos indícios ou do conhecimento prévio da publicação do material pelo provedor. Com informações da assessoria de comunicação da AMB. Clique aqui para ver a pesquisa completa
2023-06-28T14:48-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-28/legislativo-politicos-dominam-decisoes-stf-fake-news
academia
Fórum Jurídico de Lisboa
Turismo é fundamental para construção de modelo de país, diz Freixo
O turismo não é só uma questão econômica para o Brasil, mas também uma forma de moldar sua imagem e construir um novo modelo de país. A fala é de Marcelo Freixo (PT), ex-deputado federal e atual presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), em discurso proferido durante o XI Fórum Jurídico de Lisboa.  Segundo ele, a atual gestão da Embratur está com equipe técnica qualificada, com experiência no mercado do turismo, foco em inovação e inteligência de dados, gestão focada em resultados. O petista ainda anunciou a assinatura de cooperação com Portugal —"referência na promoção internacional do país" — para troca de experiências. Em participação na décima quinta mesa do evento, intitulada "Turismo, infraestrutura, governança e perspectivas", Freixo também falou sobre a parceria com o Nest, polo de inovação da promoção do turismo de Portugal, e com o Google, que vai auxiliar na capacitação de 30 mil agências de viagens brasileiras por meio de intercâmbio de dados.  De acordo com o ex-deputado, o turismo tem um grande potencial no país. Hoje, o setor representa 7,8% do PIB, emprega formalmente 7 milhões de pessoas. Em seis meses de gestão, diz Freixo, foram consumidos mais de R$ 10 bilhões pelos turistas no Brasil.  Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal "Governança e Constitucionalismo Digital". O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV). Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos. Confira aqui a programação completa
2023-06-28T14:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-28/turismo-fundamental-construcao-modelo-pais-freixo
academia
Opinião
Sena e Domingues: Cotas para transexuais, inclusão e exclusão
As políticas de cotas vêm sendo amplamente adotadas como estratégias para promover a igualdade de oportunidades e combater a discriminação e as desigualdades históricas. No Brasil, além das cotas raciais e para pessoas com deficiência, surge o debate a respeito da implementação de cotas para pessoas transexuais, reconhecendo as particularidades e os desafios enfrentados por esse grupo na sociedade. A identidade de gênero é legítima, na medida em que é englobada pela dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme disposto no artigo 1º, III da Constituição de 1988. A partir dessa premissa, entende-se que o Brasil tem avançado na proteção de direitos das pessoas trans por meio da adoção de políticas públicas e de interpretações conferidas à Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275. Na ocasião do julgamento, o STF deu interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos, admitindo-se a alteração do prenome e do sexo diretamente no registro civil, independentemente da submissão do indivíduo à cirurgia de transgenitalização ou a procedimentos hormonais ou patologizantes. Como resultado do referido julgamento, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editou o Provimento nº 73/2018, determinando que toda pessoa maior de 18 anos poderia se apresentar no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN) para alteração do prenome e do sexo de acordo com sua autodeterminação. Deve-se pontuar que a Lei nº 7.716/1989, que prevê crimes de preconceito, é aplicada de forma analógica à repressão de atos de LGBTFobia por ocasião do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e no Mandado de Injunção (MI) nº 4.733, tendo sido estabelecido que a aplicação se dará até que o Congresso Nacional edite uma lei federal, com a finalidade de se ter a criminalização das referidas condutas. No entanto, ainda persistem desigualdades estruturais, por exemplo, que acabam a dificultar o acesso desses sujeitos ao ensino superior e ao mercado de trabalho. Nesse contexto, a discussão sobre cotas para transexuais ganha relevância como uma medida de inclusão e reparação histórica. A implementação de cotas para transexuais busca criar oportunidades de acesso ao ensino superior para um grupo que enfrenta múltiplas formas de discriminação. A inclusão de transexuais nas cotas é um reconhecimento de que a identidade de gênero pode ser um fator de desigualdade e de barreiras para a ascensão social. Essa política visa ampliar a diversidade e a representatividade dentro das instituições de ensino superior, contribuindo para a construção de um ambiente mais inclusivo e respeitoso. Além disso, as cotas para transexuais estimulam o debate e a conscientização sobre as questões de gênero, promovendo a reflexão sobre os direitos das pessoas trans e a necessidade de combater o preconceito e a exclusão social. Apesar dos benefícios potenciais das cotas para transexuais, é importante considerar também os pontos de exclusão que podem surgir nessa política. A definição dos critérios de elegibilidade para as cotas precisa ser cuidadosamente elaborada, a fim de evitar a reprodução de estereótipos e a marginalização de outras identidades de gênero. Igualmente, a própria implementação das cotas para transexuais pode enfrentar resistências e desafios. A falta de conscientização e preparo por parte das instituições de ensino superior pode resultar em obstáculos à efetiva inclusão dos estudantes trans. É necessário investir em políticas de acolhimento e suporte específicos para garantir a permanência e o sucesso desses estudantes nas universidades. As cotas para transexuais representam um avanço na busca pela igualdade de oportunidades no Brasil, reconhecendo as desigualdades e a necessidade de inclusão desse grupo marginalizado. A legislação brasileira tem fornecido bases sólidas para a proteção dos direitos das pessoas trans, mas é preciso avançar na implementação efetiva dessas políticas. A inclusão de transexuais nas cotas requer uma abordagem sensível e inclusiva, que leve em consideração as diversas vivências de gênero. É fundamental promover a conscientização e o diálogo para superar preconceitos e estigmas, construindo uma sociedade mais justa e igualitária. Dessa forma, as cotas para transexuais representam uma ferramenta importante na promoção da inclusão social e no combate à discriminação de gênero, contribuindo para a construção de um país mais justo e igualitário para todos os cidadãos. Contudo, da implementação dessas políticas de cotas, deve preceder o devido planejamento e estruturação, com o intuito de ser o mais efetiva possível, além da aferição da efetividade do sistema ao longo do tempo, a fim de se verificar a possibilidade de melhoria e o reforço de sua robustez e validade. As políticas de cotas têm sido amplamente adotadas em diferentes países como estratégias para promover a igualdade de oportunidades e combater as desigualdades históricas e a discriminação. No Brasil, além das cotas raciais e para pessoas com deficiência, há um debate em curso acerca da implementação de cotas para transexuais, reconhecendo as particularidades e os desafios enfrentados por esse grupo na sociedade. Embora a legislação brasileira não mencione explicitamente as cotas para transexuais, existem documentos legais que podem fundamentar essa política de ação afirmativa. A Lei nº 12.711/2012, popularmente conhecida como "Lei das Cotas", estabelece a reserva de vagas em instituições federais de ensino superior para estudantes provenientes de escolas públicas, negros, pardos e indígenas. Embora essa lei não faça menção explícita às cotas para transexuais, ela serve como referência para a implementação de políticas de inclusão e diversidade nas instituições de ensino. O Decreto nº 7.824/2012, por sua vez, regulamenta a Lei nº 12.711/2012 e estabelece diretrizes para a reserva de vagas nas universidades federais. Embora esse decreto não aborde especificamente as cotas para transexuais, estabelece critérios e procedimentos para a implementação das políticas de cotas em geral, fornecendo uma base para a formulação de políticas específicas voltadas para transexuais. A Resolução nº 12/2017 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) recomenda a inclusão de pessoas trans nos sistemas de cotas, com o objetivo de promover a equidade e a diversidade de gênero nas instituições de ensino superior. Adicionalmente, a Recomendação nº 41/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) — que regulamenta a atuação do Ministério Público para a correta aplicação de cotas em vestibulares e concursos públicos — destaca a importância de medidas voltadas para garantir o acesso, a permanência e o êxito de estudantes transexuais e travestis nas instituições de ensino, incluindo ações afirmativas como as cotas. Essa recomendação também ressalta a necessidade de criação de programas de acolhimento e apoio específicos, visando assegurar um ambiente inclusivo e propício ao desenvolvimento acadêmico desses estudantes. Ao considerar esses elementos da legislação brasileira, observa-se elementos que possibilitam inferir que, embora as cotas para transexuais não estejam especificamente previstas em lei, existem bases legais que podem subsidiar e fortalecer a implementação dessa política de inclusão. A interseccionalidade entre as diferentes políticas de cotas e os direitos das pessoas trans reforça a necessidade de uma abordagem abrangente e sensível às particularidades da identidade de gênero na busca por uma sociedade mais igualitária e justa.
2023-06-28T07:11-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-28/sena-domingues-cotas-transexuais-inclusao-exclusao
academia
Ditadura nunca mais
Celso de Mello elogia PUC-SP por reação a homenagem a Erasmo Dias
O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello elogiou a nota emitida nesta quinta-feira (29/6) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) repudiando a promulgação de lei paulista que prevê a inclusão do nome do ex-deputado Erasmo Dias — expoente da ditadura militar brasileira — em trecho de uma rodovia em Paraguaçu Paulista, no interior do estado.  Dias comandou a invasão à universidade em setembro de 1977, quando a instituição abrigou o 3º Encontro Nacional de Estudantes, em um dos capítulos da reconstrução da União Nacional dos Estudantes em meio à ditadura.  O então coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança de São Paulo à época, ordenou a prisão de mais de 500 alunos após uma "triagem" feita em milhares de pessoas que acompanhavam a reunião. À época, a PUC-SP havia alçado pela primeira vez uma mulher à posição de reitora, a pioneira no mundo em uma instituição católica. A professora e assitente social Nadir Gouvêa Kfouri ficou conhecida não só por sua atuação à frente da universidade, mas por ter proferido a seguinte frase a Erasmo Dias no dia da invasão: "Não dou mão a assassinos". "Justa, legítima e excelente a vigorosa reação da PUC-SP, de seus corpos docentes, discentes e administrativos, bem assim de todos os que subscreveram a nota de repúdio", afirmou Celso de Mello.  O ministro aposentado tem histórico pessoal com Dias: durante o período da repressão militar, ele foi alocado na 4ª Promotoria de Osasco e enfrentou o secretário quando trabalhava junto à Vara da Corregedoria da Polícia e dos Presídios da cidade da Grande São Paulo. Naquela época, conforme relatado pela revista eletrônica Consultor Jurídico, Erasmo Dias disse à imprensa: "Há um promotor em Osasco, um tal Celso de Mello, agindo subversivamente, colocando a população contra a polícia". Leia a seguir a íntegra da manifestação de Celso de Mello: "JUSTA, LEGÍTIMA E EXCELENTE A VIGOROSA REAÇÃO DA PUC/SP, DE SEUS CORPOS DOCENTES, DISCENTES E ADMINISTRATIVOS, BEM ASSIM DE TODOS OS QUE SUBSCREVERAM A NOTA DE REPÚDIO, COMO O CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO (ARCADAS), POIS SE MOSTRA INDIGNA A HOMENAGEM QUE SE QUER PRESTAR A UM APOLOGISTA DA DITADURA MILITAR QUE, EM 1964, INTERROMPEU, ARBITRARIAMENTE, O PROCESSO DEMOCRÁTICO EM NOSSO PAÍS!!! A LEITURA DA INCLUSA MATÉRIA QUE A CONJUR PUBLICOU HÁ ALGUNS ANOS BEM EVIDENCIA O COMBATE QUE ENTÃO TRAVEI , COMO PROMOTOR DE JUSTIÇA, NA COMARCA DE OSASCO/SP, CONTRA REFERIDO SECRETÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA!!!" Leia a seguir a íntegra da nota de repúdio da PUC-SP: "A ditadura brasileira iniciada em 1964, e que durou até 1985, mergulhou o país em longo período de arbítrio e de retrocessos econômicos, políticos, sociais e culturais. Reacionarismo e violência foram suas práticas e seu legado. Até hoje o país não acertou as contas com esse passado execrável, ao contrário, o Brasil ainda convive com efeitos nefastos da ditadura no interior da estrutura do Estado e de suas instituições, e na mentalidade de parte de sua população. O reaquecimento da extrema direita brasileira, apoiado também na memória, em condutas e valores antidemocráticos e anticivilizatórios da ditadura, abriu espaços para celebrar torturadores e outros criminosos do regime militar, para fazer escárnio dos mortos e desaparecidos políticos, para relativizar e, às vezes, golpear a democracia brasileira, que foi duramente conquistada e ainda é carente de muitos aperfeiçoamentos. A PUC-SP foi vítima direta da violência de Estado na ditadura, de sua truculência e ilegitimidade. O coronel Erasmo Dias comandou a violação em 22 de setembro de 1977. A cada ano lembramos a data para repudiar o arbítrio e o obscurantismo, um gesto cidadão e de formação de nossos estudantes para que a memória nos ajude a evitar que acontecimentos como aquele se repitam: ditadura nunca mais! O projeto de lei em homenagem a Erasmo Dias, promulgado em 28/06/2023 pelo governador de São Paulo, Sr. Tarcísio de Freitas, além de mais um efeito da herança ditatorial, é um acinte e um desrespeito, não apenas à PUC-SP, principalmente à democracia e à cidadania brasileiras".
2023-06-29T19:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-29/celso-mello-elogia-puc-sp-reacao-homenagem-erasmo-dias
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Interesse Público
Plano Nacional de Educação e PPA: proximidade necessária
Em artigo publicado nesta ConJur há pouco tempo, a incansável professora Élida Graziane relembrou o reflexo obrigatório do descumprimento das metas do atual Plano Nacional de Educação (PNE) nos debates do próximo PNE, que deverá ser elaborado para vigorar no decênio seguinte. Trata-se de mais um importante texto por maio do qual a articulista reitera a importância do planejamento e do conhecimento das leis orçamentárias como forma de controlar despesas discricionárias diante da existência de prioridades já definidas na Constituição. Como escreveu, "falta, porém, às instâncias competentes de controle e à sociedade promoverem a evidenciação da inversão de prioridades e impor o ônus agravado de motivação, para fins de correção das distorções alocativas que comprometem a política pública de educação na federação brasileira" [1]. O texto que passo a escrever trilhará caminho semelhante, concordando com as lúcidas razões da professora Élida e também tentando contribuir para o fortalecimento da ideia central defendida, sob enfoque complementar. Há tanta coisa acontecendo aqui dentro e lá fora que os leitores e leitoras porventura podem estar imaginando que está faltando criatividade a este articulista. Ainda que essa conclusão não possa ser afastada de pronto, a referência a um fato e a uma evidência talvez justifiquem a insistência no tema: fato — o PNE não está sendo cumprido, sendo que a maioria das metas tem progredido em ritmo insuficiente para o seu cumprimento no prazo estabelecido[2]; evidência (na verdade, composição de evidências) — a educação é fundamental para o desenvolvimento social e econômico de um país, sendo que no Brasil os problemas relativos ao aprendizado tem sido demonstrados em testes internacionais de proficiência [3]. Desta forma, "escolaridade está associada com a produtividade e explica boa parte da diferença da renda dos trabalhadores. A qualidade da educação está positivamente associada com maiores taxas de crescimento econômico. Um aumento de um desvio-padrão nas notas em testes padronizados internacionais está relacionado a um aumento na taxa de crescimento do PIB per capita entre 1 e 2,2 pontos percentuais ao ano" [4]. É comum o sentimento de que haveria um déficit de planejamento na gestão pública brasileira, talvez pela multiplicidade de ações e soluções imediatistas para problemas estruturais que presenciamos. José Celso Cardoso Júnior anota a existência de uma primazia do planejamento frente à gestão, ao longo praticamente de quase todo o século 20, em razão da necessidade de correr contra o tempo (com relação às nações então consideradas desenvolvidas) na busca do desenvolvimento. Essa primazia teria se invertido apenas durante a década de 1990, no contexto de liberalismo econômico, controle de gastos e diminuição da execução direta de atividades pelo Estado. A partir de então, planejar teria se limitado a compatibilizar ações a serem realizadas com os limites orçamentários: "Em lugar, portanto, de so­fisticar e aperfeiçoar as instituições de planejamento — isto é, instâncias, organizações, instrumentos e procedimentos —, faz-se justamente o contrário, em um movimento que busca reduzir tal função — como se isso fosse possível — a algo meramente técnico-operacional, destituído de sentido estratégico ou mesmo discricionário. A função planejamento passa a ser uma entre tantas outras funções da administração e da gestão estatal, algo como cuidar da folha de pagamento dos funcionários ou informatizar as repartições públicas" [5]. É preciso relembrar que a Constituição de 1988 estabelece diversos instrumentos de planejamento além do plano plurianual (PPA), que estabelece as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (artigo 165, §1º). Instrumentos de planejamento setorial, como o PNE, possuem horizonte temporal distinto e se caracterizam como instrumentos políticos estratégicos que devem ser orientadas para a consecução dos fins principais do Estado. Na educação, felizmente — para os cidadãos e para o desenvolvimento da Nação — existem não somente prioridades alocativas definidas como também direitos já assegurados. Em outras palavras, "à luz da interpretação sistemática, o PPA encontra limites nos fundamentos e objetivos da República e, enquanto instrumento ordenador do planejamento federal, deve contribuir para viabilizar os direitos individuais e coletivos, particularmente os sociais. É a partir daqui que deve nascer qualquer reflexão sobre o PPA, e não dos seus requisitos formais. O que não significa que os requisitos formais devam ser abandonados, até porque não é necessário. Defende-se, tão somente, que as leituras relativas ao PPA dialoguem com a essência da Constituição Federal. E a vontade do constituinte, reitere-se, é de que haja um plano capaz de contribuir para viabilizar os direitos e garantias fundamentais" [6]. Há uma relação de instrumentalidade entre o PPA e o PNE, que possui assento constitucional no artigo 214: o PPA deve, obrigatoriamente, orientar as leis orçamentárias – no que se refere à alocação de recursos e sua priorização — para permitir a realização dos objetivos, metas e estratégias da educação nacional. Houvesse dúvida a respeito desta obrigatoriedade — e, em consequência, da possibilidade jurídica de exigir o seu cumprimento — estaria ela afastada diante da previsão do art.10 da Lei nº 13.005/14: "Art. 10. O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução". O Plano Nacional de Educação, desta forma, não contém exortações, conselhos, pedidos ou súplicas: trata-se de lei, em sentido formal e material, com expressa previsão constitucional e que condiciona todo o processo jurídico orçamentário [7]. Tentando ser simples, direto e didático: a Constituição estabelece um direito fundamental à educação de qualidade, estabelecendo diretrizes, requisitos e fontes de financiamento -> esse direito fundamental é realizado por meio de uma série de políticas públicas que necessitam de ações e também de recursos financeiros, ambos precedidos de detido planejamento -> o plano plurianual deve estar em conexão com os demais instrumentos de planejamento – como o PNE - para oferecer condições de efetivamente alcançar as metas estabelecidas. Certificar se a administração pública vem assegurando a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias do PNE e dos Planos Educacionais subnacionais (dos estados e municípios) é dever das instituições de controle. Por essa razão, as entidades do sistema Tribunais de Contas [8] elaboraram recomendações com parâmetros mínimos de verificação a serem observados nas ações de fiscalização para aferir a compatibilização entre as peças orçamentárias dos entes federados e os seus planos de educação, incluindo a realização de audiências públicas e promoção da transparência, acompanhamento e controle social. A fiscalização da execução orçamentária e financeira mereceu atenção especial (artigo 14): os Tribunais de Contas são orientados a fiscalizar se os recursos da educação foram imediatamente repassados ao órgão responsável pela educação (artigo 69, §§ 5º e 6º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação), se o Executivo estabeleceu a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso, se houve limitação de empenho (com obediência aos critérios legais) e, finalmente, acompanhar as dotações orçamentárias que não foram executadas ou que apresentaram baixa execução. O tempo urge: até o final deste semestre deve ser enviado o projeto de lei do novo Plano Nacional de Educação, relativo a 2025/2035; o Plano Plurianual da União para o período de 2024-2027 está em fase de discussão e elaboração, devendo ser encaminhado ao Congresso até o dia 31 de agosto [9]. É hora de encarar definitivamente planejamento e gestão como etapas de um mesmo processo complexo e de pensar em como atingir as metas que foram traçadas e desconsideradas — trata-se de uma exigência do nosso presente e de um compromisso com nosso futuro. [1] https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/contas-vista-descumprimento-atual-pne-comprometer-proximo-plano#_ftn1 [2] https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/00_BalancoPNE_Cartelas2022_ok_1.pdf. A tabela que resume o estágio do descumprimento das metas foi replicada no artigo da profa. Élida Graziane. O TCU, por seu turno, em ação de acompanhamento do PNE, constatou que "as ações colaborativas desenvolvidas pelos entes federados na área educacional são incipientes, com baixo nível de governança do Ministério da Educação na condução de políticas públicas educacionais em prol do atingimento das metas do PNE 2014-2024 [...]O baixo nível de governança do MEC, com reflexos no alcance das metas do PNE 2014-2024, é atribuído a fragilidades nos planejamentos estratégicos das secretarias finalísticas do ministério, à incipiência da gestão de riscos na implementação das metas e estratégias do plano e à ausência de monitoramento contínuo e de avaliações periódicas da execução do PNE. Essa falta de planejamento estratégico acarreta prejuízo à eficiência e à efetividade das ações adotadas, desalinhamento entre as metas estabelecidas para as secretarias finalísticas do MEC e para o PNE 2014-2024, além de dispersão das ações adotadas pelas diversas unidades do ministério." https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-acompanha-plano-nacional-de-educacao-2014-2024.htm [3] Thomas Kang e Isabela Menetrier analisam detidamente estimativas de despesa em educação e apontam um indicador de viés elitista nas políticas educacionais no Brasil entre 1933 e 2010. https://ibre.fgv.br/sites/ibre.fgv.br/files/arquivos/u65/kang_e_menetrier_2023_-_despesas_em_educacao_wp.pdf [4] https://fgvclear.org/website/wp-content/uploads/sintese-de-evidencias-educacao-e-crescimento-economico.pdf [5] CARDOSO JR., José Celso. Planejamento governamental e gestão pública no Brasil: elementos para ressignificar o debate e capacitar o Estado. Texto para discussão n. 1584. Brasília: IPEA, 2011. [6] DOS SANTOS, Eugênio Andrade Vilela. O confronto entre o planejamento governamental e o PPA. In: CARDOSO JR., José Celso. A reinvenção do planejamento governamental no Brasil. Brasília: IPEA, 2011, p. 307-336. [7] Élida, mais uma vez, ensina com acerto: “Por tais razões é que, na nova redação dada ao caput do art. 214 da CR/1988, pela EC nº 59, o foco foi o de revitalizar a força normativa do Plano Nacional de Educação (PNE), atribuindo-lhe periodicidade definida (decenal) e exigindo-lhe a fixação de diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação. Tudo isso para que o Plano não caísse na estrita dimensão de uma exigência meramente formal, como incorria no risco de cair com a redação originária do caput do art. 214 que vigeu até a promulgação da citada emenda, em novembro de 2009”. PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos direitos à saúde e à educação: uma perspectiva constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p.70. [8] A Nota Recomendatória nº 03/2023 foi editada pelo Instituto Rui Barbosa - IRB, Associação dos Membros dos Tribunais de Contas – Atricon; Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas – CNPTC e Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios - Abracom. Disponível em: https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/06/Nota-Recomendatoria-IRB-ATRICON-CNPTC-ABRACOM-n%C2%B0-032023.pdf [9] Também os PPAs dos Estados devem ser elaborados e encaminhados ao Legislativo neste ano.
2023-06-29T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-29/interesse-publico-plano-nacional-educacao-ppa-proximidade-necessaria
academia
Senso Incomum
Cabe reclamação da não aplicação de Reclamação pelo STJ?
Segundo a didática matéria de Danilo Vital na ConJur (aqui), o Superior Tribunal de Justiça vive um dilema em relação ao uso do instituto da Reclamação prevista na Constituição. Vejamos. Reclamação cabe toda vez que a autoridade de decisão do tribunal for violada. Segundo a ConJur, o dilema residiria na possibilidade de admissão do uso da Reclamação contra o descumprimento das teses vinculantes que o STJ fixa, por meio dos julgamentos de recursos repetitivos. O entendimento atual, estabelecido pela Corte Especial, é de que isso não é possível, seja para discutir a aplicação errada ou mesmo a não aplicação das teses. Esse entendimento do STJ foi firmado no julgamento da Rcl nº 36.476/SP (em 2020) e se sustenta na distinção entre incidente de resolução de demandas repetitivas (previsto nos artigos 976-987 do CPC) — no qual é incontroverso (artigo 985, §1º) que cabe reclamação em caso de posterior inobservância — e entre julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos (previsto nos artigos 1.036-1.041). Até este ponto o argumento sustentado no acórdão da Rcl nº 36.476/SP realmente se sustenta. Veja-se que não há hipótese legal expressa (de cabimento de Reclamação) nem nos artigos 1.036 a 1.041, nem tampouco no artigo 988, IV do CPC — que prevê tal possibilidade apenas nos casos de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (arts.976-987) ou de incidente de assunção de competência. Pela exegese do artigo 928 do CPC, o incidente de resolução de demandas repetitivas é uma entre duas espécies de julgamento de casos repetitivos, sendo que a outra é a decisão proferida em recursos especiais e extraordinário repetitivos. Desta forma, a inclusão legislativa — no artigo 988, IV — de apenas uma das espécies de julgamento de casos repetitivos (qual seja, o incidente de resolução de demandas repetitivas) acompanhada da manifesta omissão da outra espécie (ou seja, da decisão proferida em sede de recursos especiais e extraordinário repetitivos) parece dar força ao entendimento consubstanciado na decisão do STJ no julgamento da Rcl nº 36.476/SP, no sentido de que "a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas Cortes de superposição". Todavia, o problema reside no fato de que essa linha de raciocínio resvala em uma leitura exclusivamente infraconstitucional, construindo um argumento com base em minimalismos terminológicos do CPC, ao mesmo tempo em que ignora sumariamente o comando constitucional do artigo 105, I, alínea "f" da Constituição Federal — que dispõe de forma inequívoca que "Compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente [...] a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões". Ora, como então seria possível falar que o CPC/2015 representaria uma "opção" legislativa de "política judiciária" para "desafogar os trabalhos" no STJ e no STF? Ainda que o entendimento do STJ na Rcl nº 36.476/SP representasse a melhor interpretação sistêmica da norma processual (o que não é o caso), ainda assim estaríamos diante de um "pequeno" problema: está-se diante de uma violação da Constituição. Mas vou mais longe. A tese da desidratação do instituto da Reclamação não esqueceu apenas de dialogar com o texto da Constituição: esqueceu também de consultar o Supremo Tribunal, que possui entendimento completamente distinto sobre a suposta "opção de política judiciária" visando "desafogar" STJ e STF. Há também outro ponto. Mesmo em uma exegese unicamente infraconstitucional, o argumento do STJ não se sustenta. Isto porque, no plano da unidade da Constituição, temos de voltar sempre ao caso Marbury v. Madison, que iluminou o controle de constitucionalidade: se a Constituição diz X e o tribunal diz menos X ou mais X, o tribunal está fazendo interpretação contrária à Constituição. E se uma lei diz menos que a Constituição, então há que se fazer uma interpretação conforme, para trazer a regra inferior ao nível da regra fundamental. Ou seja: o CPC não pode ter a força de alterar a Constituição. Nos EUA, tudo começou com um dispositivo da Lei de Organização Judiciária, que fez constar algo que não estava na Lei Maior. Inaugurou-se, então, em 1803, o judicial review. Desta forma, ainda que se analise a atual jurisprudência (é ela mesma um precedente qualificado?) do STJ sobre a Reclamação com base tão somente em uma leitura sistêmica do CPC, não há dúvidas de que a finalidade da Reclamação (toda norma tem um telos) é fundamento para se entender que o desrespeito aos precedentes estabelecidos pelo STJ podem ser "vigiados" (e "punidos") quando aplicados fora dos parâmetros. O telos da Reclamação é esse. Em relação a isso, verifica-se também um descompasso do STJ em relação ao histórico de seus próprios procedimentos, o que se pode ver na Resolução nº 3/2016. Disso cabe questionar: se os Tribunais de Justiça têm a atribuição de "garantir a observância de precedentes" do STJ, no âmbito de decisões de turmas recursais estaduais, então por que o próprio STJ não teria o dever de exercer este mesmo papel, no âmbito de decisões oriundas dos Tribunais Regionais? Fica difícil compreender a dinâmica: ao mesmo tempo em que entende que, no âmbito das turmas recursais (Res. nº 3/2016) a uniformização dos precedentes está sujeita à fiscalização e controle por meio de Reclamação (a ser processada e julgada pelos tribunais de justiça), o STJ entende, por outro lado, que não há necessidade de nenhum controle similar no âmbito das decisões proferidas pelos próprios tribunais estaduais! Numa palavra final: Parece inadequado que o tribunal que fixa uma tese ou uma súmula não queira vigiar o sistema. Não parece haver razão jurídica para que a Reclamação não seja aceita — a não ser o de política judiciária, que, todavia, não é um argumento constitucional. Talvez, para além do já posto, reste um outro problema que acaba criando um problema "sistêmico". Explico. Como mostrou a ConJur, o STF tem vivido uma explosão desse incidente processual. Isso ocorre justamente porque, ao contrário do STJ, o Supremo permite seu uso para controlar a aplicação das teses que fixa. Em uma corte constitucional, isso é muito importante. Acrescento: isso é importante não somente em uma corte constitucional; também em um tribunal que deve controlar a interpretação e aplicação das leis infraconstitucional isso é igualmente importante. Por isso, cabe a pergunta: se o STF, que é o guardião da CF, cumpre-a atendendo a Reclamações, por qual razão o STJ descumpriria a CF? Já não seria a não aceitação de Reclamações pelo STJ, per se, um descumprimento da Constituição, passível de recurso à Suprema Corte? Por isso o título desta coluna: você pode reclamar da não aceitação de Reclamação? Indo mais longe: o direito constitucional à Reclamação em relação a um não cumprimento de um provimento vinculante (chamemos de precedente "qualificado" — vinculante) não é, em si mesmo, um direito fundamental de acesso à justiça e ao cumprimento do devido processo legal? Pode-se afirmar que tais preceitos fundamentais estão sendo violados. Também o direito fundamental a um tratamento isonômico — uma vez que, em matéria constitucional, no STF há esse direito ao manejo da Reclamação. Há um mais completo direito de acesso à justiça em matéria constitucional do que em matéria infraconstitucional? De todo modo, a questão é ainda mais complexa, que demanda uma profunda reflexão de teoria do direito, uma vez que a dogmática jurídica tem se mostrado insuficiente, refém do velho criterialismo, como venho denunciando. Se não há dúvida sobre se tese ou súmula são provimentos vinculantes (sendo chamados, assim, lato senso, de "precedentes"), a questão que fica é: o que são os demais provimentos e decisões do tribunal? A própria decisão do STJ que diz que não acatará Reclamações é, ela mesma, um precedente nos moldes do que se convencionou chamar de precedente "qualificado"? Precisamos falar sobre precedentes e de reclamações de Reclamações.
2023-06-29T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-29/senso-incomum-cabe-reclamacao-nao-aplicacao-reclamacao-stj
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Opinião
Opinião: Propostas da Câmara para a reforma tributária
*Relatório da Comissão de Reforma Tributária do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) para a diretoria Cuida-se de tecer aqui considerações sobre o substitutivo apresentado ao Plenário da Câmara dos Deputado pelo relator da PEC 45/2019, deputado federal Aguinaldo Ribeiro. Como se verá, o texto suscita questões constitucionais delicadas e o modelo de tributação nele contido reclama ajustes. Além disso, a conveniência e a regimentalidade da sua possível votação em Plenário, poucos dias após a apresentação oficial, são no mínimo discutíveis. 1. Objetivos e limites de uma reforma tributária Para que haja "sistema tributário", as normas e estruturas de tributação devem estar organizadas sob a forma de um todo harmônico, capaz de funcionar adequadamente [1]. Ao longo dos anos o sistema tributário brasileiro adquiriu traços de irracionalidade e distanciou-se de sua lógica original, devido a vários fatores, como produção normativa excessiva (complexidade, insegurança jurídica, onerosidade) [2], atuação fiscalista das autoridades e problemas ligados à litigiosidade daí decorrente (morosidade, oscilação jurisprudencial etc.) [3-4]. Essa deterioração poderia justificar uma reforma, com o objetivo de corrigir o que está em mau estado e modernizar aquilo que possa ser modernizado. Ocorre que eventual alteração nesse sentido tem de ser realizada dentro dos limites impostos pelo próprio perfil institucional do país, com especial atenção à forma federativa de Estado, pois, num sistema rígido (artigo 60, §4º), reformar consiste em "adotar preceitos sem bulir com princípios", sob pena de descaracterizá-lo a ponto de se chegar a uma "Constituição diferente" [5-6-7-8- 9-10]. É no contexto dessas balizas que o Substitutivo recém apresentado à PEC 45 suscita considerações, pois, sob o pretexto de contornar a centralização da tributação do consumo na União e os problemas de inadequação da alíquota única que estavam a impedir sua aprovação, adotou-se algo que parece um IVA dual e com três faixas de alíquotas, mas, na prática, não funcionará com autêntica dualidade, tampouco oferecerá a flexibilidade que as circunstâncias materiais exigem. Isso, sem mencionar o açodamento com que se pretende votar o texto em Plenário, apenas duas semanas após a sua apresentação, o que inviabilizaria a análise e discussão do mesmo com o cuidado necessário. 2. Características do modelo de tributação do consumo previsto no Substitutivo A proposta do relator (deputado federal Aguinaldo Ribeiro) contempla a adoção de um sistema aparentemente dual, bipartido em uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) a cargo da União e um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de "competência comum" aos estados e municípios. Há, ainda, um Imposto Seletivo (IS), sobre "bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente", relacionados em lei ordinária, além de alterações pontuais em matéria de IPTU, IPVA e ITCMD. O IBS e a CBS incidiriam sobre bens e serviços, seriam arrecadados no destino (local de consumo), teriam estruturas praticamente idênticas (fatos geradores, bases de cálculo, sujeitos passivos, faixas de tributação e regime de compensação etc.) e seriam "harmonizados" por meio da ":cooperação" entre a União (contribuição) e o Conselho Federativo do imposto (artigo 156-B, §3º). Ambos teriam alíquotas padrão, reduzida e zero, estas apenas para itens especificados na própria CF/88. Para os serviços de educação e saúde, dispositivos médicos e remédios, transporte público coletivo, produtos rurais in natura e respectivos insumos, itens da cesta básica e atividades artísticas e culturais, a lei complementar poderia aplicar-lhes a metade da alíquota padrão. Já a isenção ficaria adstrita a medicamentos e serviços de transporte coletivo, bem como, no que concerne à CBS, às instituições do Prouni e às empresas do programa de retomada do setor de eventos (Perse). O tema será tratado detidamente mais adiante. O texto prevê, ainda, a manutenção da Zona Franca de Manaus e do Simples, além de regimes específicos para os setores financeiro e imobiliário, aqueles cujas características demandem tributação monofásica (combustíveis, lubrificantes etc.) e compras governamentais. O pequeno produtor rural pessoa física poderá optar por não ser contribuinte desses tributos, caso em que se autoriza a lei complementar a conceder crédito presumido aos adquirentes dos produtos rurais in natura comprados dessas pessoas. Há, por fim, a previsão de dois fundos constitucionais, um para compensar o esvaziamento dos atuais incentivos de ICMS convalidados pela LC 160/17 e outro para financiar as ações dos entes descentralizados no fomento ao desenvolvimento local, ambos financiados pela União. Como se verá a seguir, se aprovado, o substitutivo, que não se fez acompanhar pela divulgação de estudos e projeções econômicas suficientes para os setores afetados, tende a comprometer a autonomia financeira dos estados e municípios, o que, na prática, macula a Federação e, portanto, afeta um dos pilares de nosso sistema constitucional. Ademais, inclina-se a prejudicar o agronegócio (responsável, em 2022, por 24,8% do PIB nacional, cf. Cepea/USP, 2023), os prestadores de serviços e os próprios contribuintes (que, ao contrário do que o governo federal apregoa, suportarão um sensível aumento da já insuportável carga tributária). 3. Vícios do modelo de tributação previsto no substitutivo 3.1. Redução dos poderes de estados e municípios na tributação do consumo e de sua autonomia O sistema proposto não apresenta a descentralização necessária para que seja realmente dual. Afinal, o IBS relativo aos estados e municípios seria instituído por meio lei complementar (que se insere no processo legislativo da União) em linha com a mesma estrutura escolhida para a CBS, o que inclui a disciplina de fatos geradores, bases de cálculo, determinação de alíquotas, regimes especiais e favorecidos de tributação e sujeição passiva. Esses temas, em relação ao ICMS e ao ISS, são tratados por leis estaduais, dentro da moldura de leis complementares de normas gerais (CF, artigo 146). Uma vez criado o imposto, ele seria administrado por intermédio de um Conselho Federativo igualmente instituído e regido por lei complementar, cujo conteúdo deverá estar em conformidade com as regras aplicáveis à CBS de competência da União. O órgão teria competência para editar normas infralegais, uniformizar interpretações em caráter vinculante, arrecadar, compensar e partilhar o IBS, bem como dirimir questões suscitadas no contencioso administrativo, com independência. Atualmente, tudo isso pode ser feito diretamente por cada estado e por cada município em relação aos atuais ICMS e ISS, poder que também deixaria de existir caso aprovado o sistema proposto. A única previsão sobre o funcionamento do Conselho é no sentido de que haverá paridade entre o conjunto dos estados e o conjunto dos municípios. No entanto, nem o critério de distribuição dos votos (populacional, econômico ou outro), nem a espécie de maioria necessária para aprovação das deliberações (simples, qualificada ou absoluta) está previsto constitucionalmente, devendo, igualmente, ser detalhados em lei complementar. Na prática, tudo indica que o conselho funcionará como uma sociedade, ou seja, todas as questões sensíveis dependerão de acordo entre os estados e os 5.570 municípios, não havendo garantias de que eles venham a efetivamente ter voz nesse órgão. Assim, decisões que todos esses entes podem na atualidade tomar individualmente passarão a depender de acordo entre si, sendo certo que, nas divergências que surgirão, as minorias deverão curvar-se às maiorias. Para transmitir a sensação de que alguma decisão poderá ser tomada livremente pelos estados e municípios, o substitutivo prevê que eles poderão determinar a alíquota de IBS aplicável aos itens destinados aos respectivos territórios. Sucede, todavia, que esse poder é discutível, pois só poderá ser exercido após o Senado definir a alíquota de referência para cada esfera federativa e também porque de improvável aplicação prática, como será detalhado adiante. Noutras palavras, em comparação com o que hoje vigora em matéria de ICMS e ISS, não há como duvidar de que os estados e os municípios perderão o poder de legislar sobre tributos que lhes são verdadeiramente próprios, e terão de se contentar com um imposto em condomínio, em relação ao qual ficarão a depender de acordo no contexto de uma assembleia geral com mais de 5.597 acionistas, sujeitando-se à maioria, em caso de divergência. Isso, além de ter de seguir o disposto em lei complementar, como antes se referiu. Disso decorre que há perda de poder, o que implica redução da autonomia dos entes subnacionais. Do exposto decorre que, exclusivamente quanto a este ponto, o modelo previsto no substitutivo não é tão distinto do IVA único e federal previsto na redação original da PEC 45, pois ele se apresenta com falsa dualidade, pretendendo justificar uma autonomia que é meramente formal. Aliás, em se tratando de grandes federações, sempre se respeita a autonomia das ordens parciais de governo, seja por adesão a um sistema harmonizado (como no Canadá), seja pela prevalência de sua vontade na gestão do tributo em comum (2/3 dos votos para estados, contra 1/3 para a União, na gestão do IVA indiano). Mesmo quando a tributação do consumo é federalizada, existem modos para assegurar autonomia autêntica aos entes parciais. Exemplo disso é a Austrália, onde o IVA é da União, mas a quase totalidade dos seus recursos é distribuída aos estados. Da mesma forma, na Alemanha, além de as ordens parciais de governo serem titulares de quase a metade da arrecadação do IVA, os estados participam diretamente do processo legislativo atinente ao tributo, pelo fato de que o Senado é composto por representantes dos estados livremente escolhidos e demitidos a qualquer tempo por estes. Ademais, a autonomia envolve a capacidade do ente de se autodeterminar quanto a questões fundamentais sem influências subjugantes. Assim, a discussão não abrange apenas saber "o que" será recebido pelo ente federado, mas "como" ele irá ter o direito de receber e "como" e "em que medida" irá poder, de maneira contínua, exercer o seu poder. Noutros termos, autonomia não é "resultado financeiro", mas "processo de exercício de poder político". De acordo com o substitutivo, contudo, cada ente federado deverá se submeter a deliberações circunstanciais e ad hoc tomadas por um órgão composto de quase 6.000 membros, sem que sejam definidos os critérios que irão nortear referida deliberação. Seria como um proprietário de um imóvel de condomínio horizontal se submeter a uma assembleia de 6.000 condôminos, não, porém, para definir o que fazer com as áreas comuns, mas para definir o que fazer com a sua própria propriedade (quantos quartos e banheiros deve ter, como deverá usá-la, etc.), sem que haja proporcionalidade de representação quanto ao número de lotes de que cada um é proprietário ou a sua extensão, e sem que haja qualquer diferença com relação aos lotes estarem ou não edificados e terem esta ou aquela função ou uso. Como dizer que esse sistema garante a capacidade de os entes federados se autodeterminarem com base em regras gerais e abstratas quanto a questões fundamentais e sem influências subjugantes? Nesse contexto, o Substitutivo retira poder dos Estados para dispor sobre tributos próprios e para cuidar sozinhos de recursos suficientes para a execução de seus objetivos. Isso esbarra na proibição a emendas constitucionais que pretendam "modificar qualquer elemento conceitual da Federação". Entre estes, releva apontar sobretudo os que respeitam às competências privativas outorgadas aos entes subnacionais [11-12]. Note-se que, como bem apontou a ministra Ellen Gracie, não há necessidade de supressão das competências desses entes para que incida a referida proibição. Basta, para tanto, que haja redução ou amesquinhamento das mesmas, especialmente em matéria tributária, por serem "pilares da autonomia dos entes políticos" [13-14-15-16-17-18-19-20]. 3.2. Falso poder dos entes descentralizados para fixar suas alíquotas do IBS A confirmar o esvaziamento quase total dos poderes de estados e municípios em matéria de tributos sobre o consumo, o substitutivo prevê que todas as questões administrativas atinentes ao IBS serão decididas no bojo do Conselho Federativo. Fora deste órgão, a única competência que eles poderiam exercer unilateralmente seria a escolha da alíquota padrão aplicável às operações destinadas a seus territórios, para alcançar a todos os itens que não se enquadrassem nas hipóteses taxativas de alíquota reduzida ou isenção. Contudo, essa é uma falsa liberdade, pois o ente só poderia alterar suas alíquotas para todos os bens e serviços, sendo-lhe vedado aplicar alíquota reduzida ou zero para algum produto, o que torna marginal o espectro de situações em que aumentos e diminuições serão possíveis. Afinal, por ter de subir ou descer alíquotas para todas as operações ao mesmo tempo, ou o ente irá desestimular o consumo interno ou acabará por produzir impactos intoleráveis na arrecadação (reduções). Em relação àqueles itens que são insumos de outras cadeias produtivas, o IBS seria neutro para os entes de passagem (operações inicial e intermediárias), já que, na prática, cada ente receberá somente os valores correspondentes ao IBS sobre itens efetivamente consumidos em seus territórios. Daí a constatação de que, para estes, não haveria sequer o interesse do ente federativo em alterar alíquotas. Já no que respeita aos itens prontos para consumo, aumentos substantivos poderão interferir na demanda local, sobretudo para as hipóteses em que o destino venha a ser definido como o local da entrega (regiões fronteiriças, municípios contíguos etc.), enquanto diminuições relevantes tendem a gerar quedas de arrecadação de difícil absorção. Daí ser mínima a margem para modular alíquotas. Por essas razões, a autonomia para dispor sobre alíquotas seria bastante reduzida, senão nula, diante da impraticabilidade de efetivo manuseio do imposto para o fim de adequar a arrecadação dos entes às necessidades e vontades políticas próprias. Como apontado pelo ministro Gilmar Mendes, "as competências constitucionais esvaziam-se sem as condições materiais para o seu exercício" [21]. É exatamente o que ocorreria se implementado o Substitutivo neste particular [22].   **Continua amanhã na parte 2 [1] ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. Revista dos Tribunais, 1968, p. 68 e ss. [2] Banco Mundial. Doing Business – medindo a regulamentação do ambiente de negócios (2020). In: https://portugues.doingbusiness.org. [3] Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) & ErnstYoung International. Desafios do contencioso tributário brasileiro(nov/2019). In: https://www.etco.org.br. [4] SOUZA, Hamilton Dias de & Szelbracikowski, Daniel Corrêa. Teoria das Cortes Superiores em matéria tributária é o que garante a segurança jurídica. In: Estudos em Homenagem a Gilberto Ulhôa Canto. ABDF, 2020. [5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 117-150. [6] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 439-446. [7] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006. [8] STF, RE 587.008/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 02/02/2011. [9] STF, ADI 2024/DF. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 22/06/2007. [10] SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.36ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2013. PP. 68-70. [11] SILVA, José Afonso da. Op. cit. ibid. [12] DIAS DE SOUZA, Hamilton & FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e a Federação. In: Pesquisas Tributárias (nova série) n. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais / Centro de Extensão Universitária, 2002, pp. 58-106. [13] MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. PP. 143-144. [14] SALDANHA, Nelson; REIS, Palhares Moreira; HORTA, Raul Machado. Formas simétrica e assimétrica do federalismo no estado moderno. In: Estudos jurídicos, políticos e sociais em homenagem a Glaucio Veiga. Curitiba: Juruá, 2000. p. 260; [15] STF, ADI 2024-DF, Relator Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. 03.05.2007, DJ 21.06.2007. [16] STF, RE 591.033, Relatora Ministra Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 17.11.2010, DJ 24.02.2011. [17] STF, ADI 4228- DF, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 01.08.2018, DJ 10.08.2018. [18] STF, ADI-MC 926-5, voto do Ministro Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. 1º/9/93, DJ 6/5/94. [19] DIAS DE SOUZA, Hamilton. Contribuições de intervenção no domínio econômico. São Paulo: IOB, 2001, p 19. [20] DIAS DE SOUZA, Hamilton. Contribuições, medidas provisórias e reforma tributária. In: R.I.N., n. 20/13. [21] Voto do Min. Gilmar Mendes na ADO 25-DF, STF-Pleno, DJ 12/08/17. [22] voto do Min. Celso de Mello na ADI 1374, STF-Pleno, DJ 17/10/18.
2023-06-30T16:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-30/opiniao-relatorio-comissao-reforma-tributaria-iasp
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Repensando as Drogas
Outro lado: impactos da economia ilícita na economia formal
Um caicoense radicado em Natal certa vez me disse que a economia da cidade, conhecida por artesanato e culinária, girava mesmo em razão do dinheiro do crime organizado. O comentário despertou-me atenção, vindo à mente a metáfora utilizada pelo professor Celso Campilongo, ao descrever contextos em que, imersos em um plano de observação, não conseguimos enxergar adiante. O observador "não vê que não vê aquilo que não vê". Essa fórmula aparentemente tautológica indica que a observação parte de um ponto de vista relacional e, como tal, tem sempre um ponto cego, um lado oculto, não declarado porque sequer visto. Esse parece ser o caso do impacto que mercados ilícitos geram sobre a economia formal. Trata-se, talvez, de um dos aspectos menos compreendidos e estudados no âmbito da segurança pública. Sobre os impactos negativos dos mercados ilícitos na economia há abundante literatura, como mostram os relatórios da United Nations Office on Drugs and Crime (Unodc) e, no âmbito nacional, da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). O Anuário da Fiesp sobre mercados ilícitos transnacionais estima que setores ilícitos ligados a alimentação, automotivos, brinquedos, eletrônicos, higiene, medicamentos, químicos, tabaco e vestuário movimentaram, entre 2017 e o primeiro semestre de 2022 a impressionante cifra de R$ 113,62 bilhões, somente no estado de São Paulo, do que se extrai uma perda igualmente significativa em supressão de tributos (R$ 28,55 bilhões de impostos federais e R$ 23,36 bilhões de impostos estaduais), com reflexos em perdas salariais, falta de geração de empregos, sem falar no impacto concorrencial sobre a indústria nacional. Um estudo mais antigo da National Drug Intelligence Center (NDIC), do Departamento de Justiça norte-americano, estimou que em 2007 houve perda decorrente do mercado ilícito de entorpecentes da ordem de US$ 192 bilhões, apenas naquele país. Desse montante, estimou-se um prejuízo de US$ 61,37 bilhões ao sistema de justiça criminal. Por outro lado, a Unodc sempre estabeleceu como meta o combate aos mercados ilícitos, que geram, segundo tais estudos, para além da supressão de ativos no mercado formal, subemprego, corrupção e expansão de formas laterais de criminalidade. Paralelamente à expansão, no mundo, de protocolos voltados para o incremento de mecanismos de controle das formas de lavagem de dinheiro, com colaboração de entidades privadas e organismos multilaterais, observa-se, também, o crescimento sem precedentes do mercado consumidor de entorpecentes, em volume que denota a ineficácia global das ações que ordinariamente conhecemos como próprias da "guerra às drogas". Segundo a Unodc, por exemplo, o volume de manufatura de cocaína praticamente dobrou entre 2014 e 2022. Em meio ao consenso de que o combate à lavagem de dinheiro é necessário para minar o êxito econômico do crime organizado transnacional, foi publicado seminal estudo de pesquisadores das Universidades de Maryland e Washington, em cooperação com o Banco Central da Colômbia, com surpreendente achado sobre o impacto negativo da legislação antilavagem sobre a economia. O estudo procurou medir o impacto das políticas de combate à lavagem de dinheiro naquele país, a partir da implementação do chamado "Sarlaft" (algo como Sistema de Administração de Risco de Lavagem de Ativos e Financiamento ao Terrorismo), que, em resumo, consiste em uma normativa que estimula financeiras a promoverem programas de autorregulação e administração do risco de lavagem de dinheiro. Com isso, entidades privadas passaram a identificar o risco; a criar mecanismos de avaliação e controle desse risco e de monitoramento do fluxo de ativos. A ideia do programa é evitar que o sistema financeiro seja utilizado para lavagem de dinheiro do crime organizado. Slutzky, Willians e Villamizar-Villegas observaram o impacto desse programa na economia real, a partir de três planos de análise: primeiro, deslocaram seus olhares para o impacto da legislação sobre municípios que tinham índices maiores de criminalidade relacionada a tráfico de entorpecentes (obtiveram essa classificação a partir dos registros oficiais de apreensão de cocaína). Nessa primeira etapa, identificaram que, meses depois da vigência do programa, quando surgiram as primeiras ações promovidas pelo Ministério Público, com investigações divulgadas em mídia, houve um decréscimo da ordem de 12,4% sobre os depósitos bancários naquelas localidades. A partir desse achado, os pesquisadores passaram a examinar os empréstimos realizados pelos bancos afetados por essa política. Constatou-se, então, que a perda de liquidez afetou empréstimos originariamente aplicados em áreas diversas daquelas em que o tráfico de entorpecentes era elevado. Noutras palavras, esse processo levou a uma retração da oferta de crédito para outras áreas, que não eram diretamente afetadas pela política antilavagem de dinheiro. Finalmente, procurou-se relacionar o impacto da restrição de crédito sobre o crescimento econômico. Os pesquisadores chegaram, então, a uma conclusão importante, no sentido de que especialmente as pequenas empresas sofreram significativamente com a perda de crédito, obtendo redução de vendas (9,3%); propriedade (10%); ativos (3,4%) e lucros (2,5%) e incremento do endividamento em importantes 24,3%. Houve incremento do desemprego. A economia de municípios com baixa incidência de tráfico de drogas também foi abalada, o que levou os pesquisadores a sugerir que políticas de combate à lavagem de dinheiro devam ser acompanhadas de medidas fiscais destinadas a incrementar a liquidez do sistema financeiro, para minimizar os impactos negativos apontados pela pesquisa. Para nós, interessa não só a constatação da eficácia da legislação antilavagem, a ponto de afetar a liquidez do crédito naquele país, como também a observação contraintuitiva, conhecida por quem vive nas periferias dominadas pelo tráfico de entorpecentes, de que essa circulação de riquezas é absorvida por setores próprios da economia formal. Não são somente traficantes, receptadores e corruptos a se beneficiar dos recursos que correm às margens da economia formal: a própria liquidez do sistema financeiro se aproveita do fluxo decorrente de mercados ilícitos, com repercussão na vida econômica da comunidade. Essa observação demanda reflexão, pois se: a) a motivação para o crime, como demonstram os teóricos da Análise Econômica do Crime, é preponderantemente econômica (estudos da plataforma Dixim sugerem que 85% dos crimes são economicamente motivados); b) o volume economicamente mensurável do impacto da economia ilícita sobre a economia formal pode ser positivo, de alguma forma; c) a principal externalidade negativa dos mercados ilícitos em geral, como consta do Anuário da Fiesp, é precisamente a violência criminal (e não, propriamente, a saúde pública); e d) à expansão e constatação da eficácia da legislação antilavagem de dinheiro contrasta-se o crescimento do mercado ilícito de drogas e da violência urbana, pode-se afirmar, com alguma segurança, que o modelo de enfrentamento tradicionalmente conhecido como "guerra às drogas" não produz resultados racionalmente satisfatórios em relação à sua finalidade declarada. Em contrapartida, ele permanece estruturalmente hígido nas formulações propostas para enfrentamento da criminalidade violenta. É preciso observar o paradoxo com coragem. Como não é razoável supor que agentes políticos orientem suas políticas a partir de prospectivas irracionais, inclusive do ponto de vista econômico, devemos perguntar quais razões políticas e econômicas sustentam esse modelo ou, noutros termos, qual o sentido e para quem faz sentido a "guerra às drogas". Uma das explicações sociológicas recai sobre a análise da estrutura de legitimação do Estado, que se valeria da necropolítica para definir quem é descartável ou não, na expressão de sua soberania, como sugere Achile Mbembe, em seu ensaio Necropolítica. Outra hipótese — que pode coexistir com a primeira — envolve identificar quais mercados se beneficiam da guerra, mais do que da droga em si. Ambas carecem de análise. Em resumo, a observação do impacto da economia ilegal na economia formal, embora seja contraintuitiva, revela um aspecto a ser explorado por estudiosos. O volume de interesses e a sub-reptícia conveniência, para determinados setores da economia, do aporte de recursos independentemente de sua origem dificulta o trabalho investigativo e estimula canais de escoamento dos recursos ou, noutras palavras, estimula a lavagem de dinheiro e a corrupção, externalidades negativas do tráfico ilícito de entorpecentes. Por outro lado, o impacto negativo da legislação antilavagem na liquidez do sistema financeiro colombiano sugere que convivemos com esses recursos mais do que possamos imaginar. Para além da pergunta sobre por que não regularizar esse mercado, incorporando seus benefícios à economia formal e direcionando recursos para investimentos em áreas como saúde e educação pública, impõe-se saber quais setores da economia formal se beneficiam da manutenção da atual política de confronto. Também é igualmente relevante analisar como a legitimação do Estado se relaciona com a seleção específica do tráfico de entorpecentes como inimigo, obscurecendo outros atores que também se beneficiam dessa situação. Essas questões merecem um debate aprofundado para uma compreensão mais abrangente das complexas relações entre a economia ilícita, a economia formal e o Estado. Ao explorar o outro lado do paradoxo, podemos identificar o mercado oculto que se alimenta da chamada "guerra às drogas" e, dessa forma, podemos avançar em direção a abordagens mais eficazes no combate à violência ilícita organizada, das facções e do próprio Estado. _____________ Referências CAMPILONGO, Celso. Interpretação do direito e movimento sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. FIESP. Mercados ilícitos transacionais em São Paulo: a economia criminal transnacional. São Paulo: Fiesp, 2022. MBEMBE, Achile. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Artes e ensaios (periódico). Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRJ: Rio de Janeiro, 2016, pp. 123-151; NATIONAL DRUG INTELLIGENCE CENTER (NDIC). The Economic Impact of Illicit Drug Use on American Society. Washington D.C.: United States Department of Justice, 2011. SLUTZKY, Pablo. VILLAMIZAR-VILLEGAS, Mauricio; WILLIAMS, Tomas. Drug Money and Bank Lending: The Unintended Consequences of Anti-Money Laundering Policies. On-line. 30 de maio de 2020. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3280294 ou xhttp://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3280294, acesso em 07/06/2023 UNODC. World Drug Report 2022 (United Nations publication, 2022), disponível em https://www.unodc.org/res/wdr2022/MS/WDR22_Booklet_1.pdf, acesso em 07/06/2023.
2023-06-30T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jun-30/repensando-drogas-enxergando-outro-lado-impactos-economia-ilicita
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Opinião
Marcílio Toscano: Ubi vinum, ibi jus
Brasil e Portugal mantêm uma longa relação em torno do vinho. Na carta que Pero Vaz de Caminha dirigiu ao rei dom Manuel, em 1º de maio de 1500, já havia referências à bebida. Segundo o escrivão da esquadra de Cabral, durante um dos primeiros contatos com os indígenas, lhes foi oferecido vinho: "Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais". Nos dias seguintes, renovada a oferta, a reação foi outra: "Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber". Não que o vinho fosse de má qualidade: Historiadores dão conta de que as caravelas que chegaram ao Brasil teriam sido abastecidas com nada menos do que 65 mil litros de legítimo Pêra Manca, o néctar ainda hoje apreciado, produzido desde meados do ano 1300 nos arredores de Évora, no Alentejo. Desde aquela "primeira importação", o vinho e a uva espalharam-se pelo Brasil. À medida que o setor vitivinícola foi ganhando expressão social, geográfica e econômica, toda uma legislação específica foi nascendo e se aperfeiçoando, ao tratar de questões relativas à produção, circulação, comercialização, promoção e consumo do vinho. O fenômeno, aliás, não é nacional: como diriam os romanos, ubi vinum, ibi jus, ou seja, lá onde está o vinho está também o direito, mais precisamente, o "direito do vinho" ou “direito vitivinícola". Creio que a primeira vez que ouvi a expressão "direito do vinho" foi no ano 2000, na multissecular Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em um seminário doutoral conduzido pelo professor Doutor Vital Moreira, grande publicista da Escola Coimbrã. Anos antes daquele seminário, Vital Moreira tratara, em seu doutoramento, da Região Demarcada do Douro, a mais antiga do mundo, criada em 10 de setembro de 1756 pelo Marquês de Pombal. A tese deu origem a um clássico do direito do vinho: "O Governo de Baco: A Organização Institucional do Vinho do Porto", publicado em 1998 pelas Edições Afrontamento. Vou com Vital Moreira também que ouvi falar, pela primeira vez, da Associação Internacional dos Juristas da Vinha e do Vinho (AIDV). Nos passados dias 16 e 17 de junho, a mesma Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em que Vital Moreira se aposentou como Professor Catedrático, promoveu o 1º Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho, evento que reuniu professores, pesquisadores, estudantes, empresários e autoridades públicas para discutir aspectos variados da legislação vitivinícola dos dois lados do Atlântico. Impossível imaginar melhor lugar para abrigar um evento acadêmico como aquele. Não bastasse a contribuição pioneira de Vital Moreira, a tradicional Universidade de Coimbra, fundada em 1290 e patrimônio cultural da humanidade, situa-se no coração da Bairrada, uma das principais regiões vinícolas de Portugal.  Resultado de uma frutífera parceria entre a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a Academia Brasileira do Direito do Vinho (ABDVin) e a Universidade de Caxias do Sul, a conferência homenageou o romanista português António dos Santos Justo e o civilista gaúcho Bruno Miragem pelas respectivas contribuições acadêmicas ao direito do vinho. A programação do 1º Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho foi extensa e variada. Juristas portugueses de grande prestígio, como Sandra Passinhas, Jónatas Machado, Paulo Mota Pinto, António Pinto Monteiro, João Paulo Remédio Marques, João Reis, João Nogueira de Almeida,  Rui Dias, João Pinto Monteiro, Mafalda Miranda Barbosa,  Suzana Tavares da Silva, Alberto Ribeiro de Almeida e Armando Sousa discutiram com colegas brasileiros como Paulo Caliendo, Bruno Miragem e Júlio Pogorzelski temáticas relacionadas a OMC, denominações de origem, indicação geográfica, acordos de livre-comércio, cláusula penal, tributação, responsabilidade civil, infrações penais, adegas cooperativas, composição, rotulagem, promoção comercial, práticas ambientais, patrimônio cultural, enoturismo, relações de trabalho, falsificação, contrabando etc. A esse notável grupo de juristas juntaram-se também a professora Carmen Soares, Catedrática de Estudos Clássicos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que apresentou uma conferência magistral sobre o vinho na literatura, a professora Regina Vanderlinde, que compartilhou sua experiência como ex-presidente da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), e a prefeita do município viticultor de Anadia, a engenheira Maria Teresa Cardoso, que tratou das políticas públicas para a promoção do vinho. À margem dessas inovadoras e profundas discussões, visitas técnicas a vinícolas e vinhedos propiciaram momentos de um vivo contato com os modos lusitanos de compreender e fazer a vitivinicultura. A convite da organização do evento, fiz uma conferência sobre o Patrimônio Cultural Agrário e o Direito do Vinho, em que abordei o papel da Unesco na salvaguarda do patrimônio material e imaterial ligado à cultura da uva e do vinho. Tratei, entre outras coisas, do fato de que, mais do que uma bebida alcoólica, um alimento ou mesmo um remédio, o vinho era um elemento de comunhão social e cultural e não era à toa que essa era a bebida oferecida no momento mais solene da missa. Depois da minha conferência, numa das tertúlias eno-músico-lítero-atístico-jurídico-gastronômicas paralelas ao congresso, um colega professor me perguntou, se o direito fosse um vinho, qual vinho seria o direito. A pergunta me intrigou. Depois de pensar um pouco, respondi que partia da premissa de que não há uma verdade enológica universal possível, tanto quanto não me parecia plausível uma verdade jurídica universal. Há aqui tão somente possiblidades ou conjecturas.  Dito isso, respondi que o direito não me parecia, em primeiro lugar, um vinho D.O.C.G. Houve um tempo, em que se acreditava que o direito poderia ter denominação de origem controlada e garantida. Havia claramente um direito brasileiro, um direito alemão, um direito americano, um direito português. Cada sistema jurídico teria um terroir inescapável. O terroir do direito já foi o burgo, o arquiducado, o reino, o Estado-nação mas, hoje, porém,  cada vez, mais, o terroir do direito abre-se a territórios diversos, de influências globais, fluidificando-o. Concluí que o direito poderia ser um bom vinho de mesa. Nisso, porém, não havia nenhuma consideração de mérito ou qualidade. Ser um "vinho de mesa", "vin de table" ou "Tafelwein" não é obrigatoriamente um mau indicador. Já tomei grandes vinhos de mesa, produzidos no quintal da casa de alguns amigos italianos. Há mesmo o exemplo dos "Supertoscanos", cujos produtores não queriam seguir as regras rígidas impostas pelo sistema de denominação de origem italiano e preferiam a classificação "vino da tavola". Sassicaia e Tignanello nasceram como vinhos de mesa. E por falar em Supertoscanos, ainda há uma outra característica interessante nesses vinhos, que também se aplica ao direito. Eles são vinhos de assemblage, de corte ou blend. Direito é sincretismo, mistura, e esses vinhos que reúnem duas ou mais cepas trazem a dimensão da pluralidade para alcançar maior estrutura, aromas mais complexos, equilíbrio em seus taninos e acidez e completude em suas qualidades. Esse é o dia a dia do jurista e da juridicidade: reunir, agregar, juntar divergências. Um grande vinho de assemblage, como um supertoscano, é um trabalho muito intrincado, assim como é a construção de um sistema jurídico. O todo é muito maior que a soma individual das características e qualidades individuais de cada uva. Galileu Galilei disse um dia que "il vino è un composto di umore e luce". O 1º Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho constituiu, também, isso mesmo: um tempo de alegria, de (re)encontro com colegas e lugares queridos, e de muito aprendizado.
2023-07-03T20:51-0300
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Opinião
Lenio Streck: O STF, a prisão no júri e o voto equivocado de Barroso
Prisão imediata no Júri: esse é ponto central do RE 1.235.340/SC, que está no plenário virtual do STF. O relator, ministro Roberto Barroso, deu provimento ao recurso extraordinário. O julgamento continuará. Era um easy case, tornou-se um hard case e agora, com o voto do ministro Barroso, corre o risco de se transformar em um tragic case. O imbróglio. O STJ havia concedido ao réu (de Santa Catarina)  recorrer em liberdade, tudo com base em jurisprudência vinculante (!) do STF — ADCs 43, 44. Em seu voto, o ministro Barroso diz que a soberania do Júri prevalece sobre a presunção de inocência, ignorando o precedente das ADC 43 e 44. Focarei aqui minhas críticas lhanas e respeitosas ao voto do ministro Barroso. Para ele, os julgamentos do Júri são "soberanos", dispensando a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição, por opção explícita do constituinte originário (vejam o voto). Para ele, a presunção, por ser princípio e não regra, pode ser "aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes". Assim, para o ministro, não haveria que se falar em violação da presunção de inocência com o imediato cumprimento de pena de réu condenado pelo Júri. Também faz uma interpretação conforme à constituição da Lei 13.964/19, sobre a qual falei na sequência. Assim, no item 16 do seu voto, Barroso diz que é necessário ponderar o princípio da presunção de inocência e, como tal, pode ser aplicado "com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes") com a soberania dos veredictos, de modo a dar prevalência a este último fundado, inclusive, na função do Direito Penal de proteção de bens jurídicos, in casu, da vida humana. Com isso, para além da mera discussão de limitação da quantidade de pena necessária para execução imediata das decisões tomadas em plenário, compreende também que inexiste sequer necessidade de observância de qualquer delimitador de pena. Um parêntesis: é difícil fazer críticas aos tribunais no Brasil. É antipático e por vezes até gera desconfortos contra o crítico. Mas penso que, como professor, ex-procurador e agora advogado, com mais de 70 livros publicados, tenho o dever cívico-acadêmico-institucional de criticar essa falha argumentativa — que não é só de Barroso. É um problema da dogmática jurídica que insiste em "ponderar" a milhas de distância do que disse Alexy, criador dessa ponderação (a outra era a ponderação proposta por Phillip Heck, que não tem qualquer relação com aquilo que Alexy propõe). Preliminarmente, vale lembrar que o caráter vinculante das ADC 43 e 44 exige a vinculação do julgador ao seu resultado como uma condição prima facie — o que se afirma inclusive com apoio na TAJ de Alexy. Aqui já estaria resolvido o problema. Se o ministro fizesse mesmo a ponderação, o resultado seria outro. Vou demonstrar. Antes disso: quando alguém fala em ponderação não pode simplesmente dizer, em poucas linhas, que um princípio prevalece ou tem mais peso que outro. Alexy nunca disse isso. Se Barroso quer falar sobre proporcionalidade em sentido estrito, então vejamos, na sequência, como fica a Fórmula Peso [1]. Mas ele não a fez. Mais grave, nem passou pelas fases anteriores. Logo, não poderia afirmar que o princípio da presunção da inocência cede a qualquer outro princípio. Ao trabalho, alertando para o fato de que não sou adepto da TAJ. Sou crítico de Alexy. Porém, como acadêmico, não posso deixar de criticar o uso equivocado de sua teoria. Assim, primeiro, aqui, no caso concreto, por um juízo de adequação é possível afirmar que o meio utilizado (prisão após decisão do tribunal) é capaz de realizar o fim almejado (efetividade da persecução penal). Segundo, por um teste de necessidade, haveria outro meio menos invasivo à liberdade do acusado, a exemplo do uso de dispositivos eletrônicos como a tornozeleira. Em termos da proporcionalidade de Alexy, as duas primeiras etapas não foram devidamente contempladas e justificadas pelo ministro, para serem afastadas, o que evitaria se falar na ponderação em sentido estrito. Porém, na medida em ponderar se tornou uma "exigência", especialmente na prática cotidiana das cortes superiores, resta avaliar o equívoco também nesta terceira etapa para aplicação da proporcionalidade. Para tanto, em termos da teoria alexyana existem duas leis que conduzem a ponderação. A primeira: quanto maior o grau de intensidade de intervenção em um princípio Pi, maior deve ser o grau de importância de realização do outro princípio Pj. A segunda: quanto mais pesada for uma interferência em um direito fundamental, maior deve ser a certeza das premissas que a justificam [2]. Vale lembrar que a tormentosa Fórmula Peso refinada tem a sua base formal a partir dessas duas leis. Ilustrativamente: Numa dimensão avaliativa, seria difícil — senão impossível — alguém negar a intervenção grave que a liberdade sofre quando a pessoa é conduzida à prisão. Naquele ato o cidadão perde a sua liberdade. Para fins de clareza, há uma necessária sobreposição [3] entre liberdade e presunção de inocência, ao ponto que ambos os direitos assumem a mesma identidade na ponderação. De outro lado, a soberania dos vereditos deve ser considerada. Deixar de conduzir à prisão o condenado após a decisão do tribunal do júri não importa em ignorar, naquele ato, a soberania do veredito, o que continuará a ter o seu valor na apreciação do caso em grau recursal. Nesse sentido, a intervenção poderia ser considerada, num exercício de alteridade ao voto do ministro Barroso, no máximo média. Pode-se notar que a intervenção ao direito de liberdade, sendo forte (Pi= 2²=4), é mais pesada que a satisfação da soberania do júri, entendida como média (Pj= 2¹=2). A condução do acusado à prisão após o veredito seria, portanto, já neste item, desproporcional. Portanto, contrário à tese do ministro. Seguindo a consideração da certeza das premissas, o refinamento da Fórmula Peso não traz mais sorte à conclusão do voto do ministro Barroso. Para tanto, deve-se analisar as certezas das premissas justificadoras, o critério comparativo de outras medidas de intervenção igualmente possíveis e o quanto a fundamentabilidade do princípio é afetada ou otimizada. Esse racional determinará o grau atribuído às importâncias de intervenção e concretização, seguindo a escala triádica proposta por Alexy. Do ponto de vista da argumentação sobre as certezas, é certo que a condução da pessoa à prisão intervém de maneira forte à sua presunção de inocência e, portanto, liberdade (Rie=20=1). Em comparação, existe certeza apenas sobre a intervenção pelo menos média à soberania dos vereditos. Isso porque não se pode dizer que eles deixam de existir ou ter valor na ordem jurídica com a não condução à prisão. Júri continua sendo Júri e soberano com ou sem condução do réu à prisão. Aliás, nesse sentido, a soberania do veredito continua ter a mesma importância em grau recursal para definir os fatos e a responsabilidade penal. Portanto, é certo (Rje=20=1) que a intervenção à soberania dos vereditos implica uma intervenção média. Sendo mais simples: quanto à soberania dos veredictos do Júri, percebe-se que a sua fundamentabilidade não se relaciona com a imediata prisão, mas sim com a soberania para definir os fatos e a responsabilidade penal. No que tange à avaliação quanto à certeza sobre as premissas normativas (Rn), é certo tanto na doutrina quanto na jurisprudência que os direitos envolvidos — presunção de inocência e a soberania dos veredictos — são contemplados pela Constituição. Logo, ( Rin e Rjn = 21 = 2). Diante de tudo isso, a Fórmula Peso adquire a seguinte formatação [4]:   Observemos a complexidade das teses alexianas. Podemos não concordar, mas temos de reconhecer a sua profundidade. E ao fazer esta exposição, não se pretende nenhum exercício de erudição ou desrespeito aos usos não adequados. Quero apenas trazer a discussão a um patamar que a teoria merece. E reforçar a própria doutrina e seu papel epistemológico — em um país em que a doutrina mais se coloca como caudatária da jurisprudência. Sigo. Fica muito claro que a lei de colisão decorrente da aplicação da Fórmula Peso refinada implica a preponderância da presunção da inocência no caso: C (Pi P Pj) [5]. Essa norma de precedência condicionada sustenta o acerto da decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) ao garantir o direito do réu em responder em liberdade. E o equívoco do voto do ministro Barroso. Portanto, se ponderarmos, chegaremos à conclusão contrária a que chegou o ministro. Mas o equívoco do voto do ministro Barroso não para por aqui. Ao ponderar ignora também o ônus argumentativo consoante a Teoria da Argumentação [6] Jurídica do próprio Alexy. Apenas a reduzido título de exemplo em razão do espaço deste artigo, cito as regras da TAJ 1.2.j.2.5, 2.2.5.j.6, 2.2.5.j.7 e 2.4 [7]. Nesse sentido bastaria uma lida do artigo de Luís Roberto Barroso, enquanto professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) [8]. Essa exigência — a do ônus argumentativo —, aliás, passou a ser condição legal para validade da fundamentação pelo advento do artigo 489, § 2° do CPC. Vê-se assim, que, a exemplo do que muitos alunos meus já provaram, o STF e os tribunais falam em Alexy e não demonstram o que quiseram fazer [9]. Aliás, com a devida vênia e invocando o princípio da caridade epistêmica (tão bem trabalhado por Davidson e Blackburn), essas questões teóricas se repetem em outras áreas do direito, como é o caso do uso dos precedentes (ver aqui) sobre o que tenho falado insistentemente. Mas o voto tem ainda mais problemas: (1) O problema do uso das estatísticas, transformando o direito em consequencialismo; (2) Como se sabe, nunca foi proibido prender depois de decisão de segundo grau. Nem a liberdade é automática para recorrer e nem a prisão pode ser obrigatória-automática. O voto do ministro dá ares de automaticidade à prisão se a decisão vier do Júri. E isso fere o precedente vinculante; e (3) a decisão dá a entender que é função do Judiciário combater o crime. Consequencialista mais uma vez, pois. O último e não menos importante equívoco é a pretensão de fazer interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung) do dispositivo que diz que penas acima de 15 anos tem cumprimento imediato. Aqui tenho de falar sobre o "elefante na sala" que é a Lei 13.964/19, que retira do recurso de apelação o caráter suspensivo em condenações pelo Tribunal do Júri que tenham resultado em penas maiores de 15 anos. Aqui o voto comete o pecado da jurisdição constitucional, que é de mascarar uma legislação pelo judiciário como controle de constitucionalidade incidental. Seu argumento é de que a lei não deveria limitar a execução da pena para casos de condenação igual ou maior a 15 anos. Na sua opinião, a regra deveria valer para qualquer condenação, e assim ele propõe essa discussão em seu voto. Respeitosamente, pergunto-me indagar: onde está a interpretação conforme à constituição no raciocínio? O legislativo aprova lei definindo; o magistrado não concorda com a lei e determina uma nova lei (!)? Porque prisão após condenação em qualquer caso no tribunal do júri não era o que estava previsto na novatio legis, mas assim quis o ministro. Outra vez pergunto: qual é a legitimidade que um magistrado tem para alterar a letra da lei colocando outra letra no seu lugar? Interpretação Conforme tem limites. O que muda na interpretação conforme é a norma (sentido do texto), mas o tribunal não está autorizado a colocar outra "letra no lugar". Isso sem entrar no mérito da lei em si, a qual, mesmo estipulando os 15 anos mínimos de pena, ao meu juízo seria inconstitucional mesmo assim, pois viola o princípio da presunção de inocência da mesma forma. Em outras palavras, se existe inconstitucionalidade, essa está em dizer que penas de 15 anos mandam prender automaticamente. A inconstitucionalidade reside no inverso do que disse o ministro. Numa palavra final, são dias difíceis para os constitucionalistas (e processualistas penais e para os advogados de Júri). Um dia, o Supremo Tribunal quer exaltar o Júri, assegurando a importância de se executar as penas o quanto antes assim que haja condenação. Já no outro dia (em que escrevo este texto), leio que o ministro Dias Toffoli, discutindo a questão da "defesa da honra" e sua utilização para crimes contra a vida (em sua maioria feminicídios) em Tribunais do Júri no julgamento da ADPF, afirma que esse sistema precisa acabar. Cláusula pétrea em perigo, pois. A questão poderia ser posta assim? "Deve-se extinguir o júri, mas enquanto ele for 'soberano', que seja 'eficiente' e mande o máximo de pessoas para a cadeia sem direito a nem mesmo um recurso de apelação?" Vejam o quão desproporcional pode ficar a aplicação da pena. O exemplo é de Aury: se alguém for condenado por estupro, latrocínio com resultado de morte ou qualquer outro crime, não vai preso automaticamente, pois tem direito ao recurso de apelação. Já no júri, se for tentativa, não importa. Vai preso de pronto. Vejam o problema que isso pode criar para o direito brasileiro. Deixo esta "apelação" — com requerimento de uma cautelar epistêmica - para que o judiciário não desmantele a presunção de inocência mais uma vez e não legisle em sede de recurso extraordinário. O instituto da repercussão geral não pode ser uma carta branca para magistrados legislarem. Precedentes também não são feitos para o futuro. Não são leis gerais. Precedentes importam, princípios importam. Levemos eles à sério. É meu apelo. Que espero admissibilidade. E, mais uma vez: "- Tribunais, oiçam a doutrina". Os esforçados doutrinadores desejam ser ouvidos. Para colaborar na construção de uma justiça melhor. Mas se os doutrinadores não forem escutados, essa raça vai rumo à extinção. Post scriptum: quando invoco a caridade epistemológica, falo principalmente de Donald Davidson (muito bem estudado por Laura Patricio de Arruda, na dissertação Interpretação Radical e Princípio de Caridade: conceitos-chave da filosofia de Donald Davidson). O referido principio é algo que rege a interpretação dos outros e impõe ao intérprete uma maximização da verdade ou a racionalidade daquilo que o sujeito diz. Davidson defende a possibilidade de falar em objetividade, uma vez que, se a comunicação entre pessoas ocorre, então é porque uma parte considerável do que partilhamos é comum. A primeira pessoa perde seu privilégio ontológico e epistemológico e passa a ser vista como um polo em relação com o mundo e com as outras pessoas, pois o homem está inserido em um mundo social e natural, interagindo com ele. No fundo, é o que busco nos meus textos. [1] Aqui um registro: em meus seminários de doutorado, meus orientandos têm feito trabalhos aprofundados sobre a teria alexiana, com a preocupação de levar a sério a profundidade e a complexidade da obra do mestre alemão. Concordando ou não com as suas teses. Uma tese foi premiada pela Capes — Fausto de Moraes, como explicado em nota abaixo — e recentemente quem defendeu brilhantemente seu trabalho foi Pietro Lorenzoni (Jurisdição Constitucional de Crise — GEN Editora), incansável estudioso de Alexy. Ambos colaboraram com a formatação da complexa Fórmula Peso. Em termos profissionais-advocatícios, utilizei a Fórmula Peso em mais de uma vez em pareceres jurídicos (por todos, o parecer em anexo). [2] ALEXY, Robert. Princípios formais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 9. [3] Alexy vai falar da dificuldade em definir com mais precisão os direitos ponderados em determinados casos, razão pela qual um dos direitos considerados é representativo do outro. [4] Este é o resultado matemático da fórmula peso, no qual demonstra que o princípio da presunção de inocência adquire preponderância no caso concreto. [5] A conclusão, que coloca o resultado do caso em análise na regra de precedência condicionada alexyana, demonstra como prevalece a presunção de inocência e ordena a consequência jurídica primada. [6] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 4.ed. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2017, especialmente a proposta sobre a argumentação jurídica de Alexy. [7] (j.2.5) Deve-se articular o maior número possível de etapas de desenvolvimento. (j.6) Deve ser saturada toda forma de argumento que houver entre os cânones de interpretação. (j.7) Os argumentos que expressam uma vinculação ao teor literal da lei ou à vontade do legislador histórico prevalecem sobre outros argumentos, a não ser que se possam apresentar motivos racionais que deem prioridade a outros argumentos. (2.4) trata sobre as regras do uso dos precedentes, visto que certamente a ratio decidendi do precedente da ADC 44, 54 e 55 não foi enfrentado a sério. [8] BARROSO, Luís Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. In. Revisa da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003, pp. 25 – 65, p. 46. [9] Por todos, livro de Fausto Santos de Morais (Prêmio Capes), orientado por mim, em que demonstra em 189 decisões do STF, a dificuldade de aplicação da proporcionalidade no Brasil e a inclinação do uso arbitrário desse conceito. MORAIS, Fausto Santos de. Ponderação e Arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo STF. 3.ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.
2023-07-03T17:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/lenio-streck-stf-prisao-juri-voto-equivocado-ministro-barroso
academia
Estúdio ConJur
Ministro da CGU debate integridade e ESG na infraestrutura
O ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Vinícius Marques de Carvalho, participa do painel de debates “Integridade e ESG no setor de infraestrutura”, que o Instituto Brasileiro de Autorregulação do Setor de Infraestrutura (Ibric) promove nesta terça-feira (4/7), em Brasília. O evento, que ocorrerá das 9h30 às 12h e será transmitido pelo YouTube, tem apoio do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree) e da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg). Além de Carvalho, também participam do debate o presidente e a vice-presidente do Ibric, respectivamente Sergio Etchegoyen e Sílvia Lacerda, e os diretores de Sustentabilidade e de Ética e Integridade da entidade, Sergio França Leão e Valdir Moisés Simão — ex-ministro-chefe da CGU. O setor de infraestrutura no Brasil vem aprimorando seus sistemas de governança utilizando técnicas de autorregulação com o apoio do Ibric. “Isso é muito importante porque o País enfrentará nos próximos anos o grande desafio de atualização da sua infraestrutura e execução de obras de altíssima complexidade. E para isso precisará contar com empresas não só qualificadas tecnicamente, mas também com sistemas de governança e de integridade que garantam à sociedade brasileira que essas obras serão executadas com o maior nível de transparência, de responsabilidade, com a melhor qualidade possível”, afirma Valdir Simão. Clique aqui para se inscrever no evento online
2023-07-03T16:55-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/ministro-cgu-debate-integridade-esg-infraestrutura
academia
Direito Civil Atual
A empresa, o mercado e os contratos na visão de Ronald Coase
Ronald Coase (Londres, 1910/Chicago-2013) teve algumas venturas dignas de nota: viveu por 102 anos e, portanto, testemunhou os mais importantes acontecimentos históricos; residiu em dois continentes (mais especificamente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América); foi laureado com o Prêmio Nobel em 1991; e conviveu com os maiores expoentes da economia do século 20 e da primeira década do século 21. O transcurso desse entrecho autêntico, marcado por grandes conflitos bélicos, queda e ascensão de potências e crises político-econômicas, fê-lo, obviamente, para além do reconhecido e premiado economista, um assumido observador das "escolhas humanas" e, por conseguinte, do Direito. Uma vez positivos os custos de transação das relações econômicas [1], a presença da ciência jurídica torna-se tanto inevitável quanto necessária, afirma Coase. Ao contrário do que muitos economistas e juristas podem pensar, o comércio não recai precipuamente sobre bens considerados em si mesmos, mas sim sobre direitos determinados e geridos pelo direito [2], razão pela qual a economia é sobremaneira impactada por essa relação estabelecida pela lei. No processo de conversão de insumos em produtos, a opção pela estrutura vertical (centralizadora da cadeia de produção) conhecida como "empresa" seria a alternativa para reduzir os custos de transação, proporcionando uma operação economicamente viável, inclusive diante das muitas imposições legais à atuação no mercado. A empresa seria, pois, uma estrutura opcional mais vantajosa do que a atuação isolada de indivíduos ou do que a transação direta no mercado. Evidentemente, o formato verticalizado da empresa não é garantia de adimplemento das obrigações pelos agentes, mas é a estrutura mais racional para amenizar o peso das obrigações contraídas por aqueles que atuam na produção de bens e na prestação de serviços, bem como para maximizar os lucros. Em síntese, os custos de transação menores são a antessala para lucros maiores, estes, sim, o verdadeiro estímulo para a presença e o desenvolvimento da atividade empresarial no mercado. Ademais, as empresas não são autossuficientes, dependendo umas das outras para o desenvolvimento da atividade empresarial, como explica Rachel Sztajn: "[I]nstala-se o modelo de interdependência que tanto tem razões econômicas, de alocação de recursos, quanto fiscais, de economia tributária, ou logísticas, de distribuição sem investimentos, o que faz com que se conformem negócios de atuação conjunta. No plano jurídico, o fenômeno aparece em contratos de longo prazo nos quais se percebe maior cuidado nas negociações, uma vez que a redação do clausulado deve refletir relações duradouras entre pessoas, relações que se pretende estáveis." [3] Contemporaneamente, o formato horizontal (ou menos verticalizado) de empresa também se torna cada vez mais frequente, em especial com a modernização da gestão dos negócios, a tecnologia da informação e o controle da cadeia de suprimentos externa, os quais permitem custos de transação menores e mecanismos de preços mais brandos. Empresas horizontalizadas podem operar, por exemplo, na terceirização e na descentralização de serviços ou na aquisição de insumos de empresas parceiras, de modo a se concentrarem apenas em seu produto ou serviço final. Por sua vez, o mercado não surge acidental ou automaticamente, mas decorre da vontade humana institucionalizada de suprir as necessidades das relações privadas. O mercado é o ambiente físico ou artificial onde a empresa opera e seus agentes atuam, onde a empresa celebra contratos com outras empresas e com consumidores. O mercado é o locus, genérico ou especializado, onde interagem a oferta e a demanda, onde se negociam direitos de propriedade e ocorre a circulação da unidade monetária. O mercado é também um sistema evolutivo, com uma face convencional mais conhecida, mas com outra face ainda pouco estudada — e lembrada por Coase —, como as bolsas de valores e mercadorias, que, a despeito da regulação governamental, possuem uma autorregulação, além de um particular mecanismo de redução de custos de transação e um elevado volume de negócios [4]. Os contratos de longo prazo podem deparar-se, no decorrer de sua vigência, com a alteração das circunstâncias (a imprevisão) e, portanto, estão sujeitos a maiores custos de transação. Nessa chave, quando a empresa é contratante ou contratada, os atores envolvidos (empresários e gestores) têm alguma segurança diante do eventual aumento dos custos de transação, os quais poderiam ser implacáveis se estes últimos (empresários e gestores) celebrassem os contratos em nome próprio, ou seja, se contratassem fora da estrutura de atividade econômica denominada "empresa". Embora com ele coexista, a empresa oferece certa proteção contra as vicissitudes e riscos do mercado. A empresa, conduzida por uma sociedade empresária, é, por assim dizer, uma autêntica estrutura de sobrevivência ao mercado, facilitando a celebração de contratos (mesmo os de longa duração) por seus agentes e fazendo dessa contratação o exercício de sua autodeterminação. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
2023-07-03T13:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/direito-civil-atual-empresa-mercado-contratos-visao-ronald-coase
academia
Opinião
Opinião: Fórum Jurídico de Lisboa — "Não devemos temer o diálogo"
Aconteceu, entre os dias 26 e 28 de junho, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal, o XI Fórum Jurídico. Organizado pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), pelo ICJP (Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e pelo Ciap/FGV (Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getulio Vargas Conhecimento), o evento contou como tema central "Governança e Constitucionalismo Digital".  Em síntese, o objetivo do fórum foi de buscar maior compreensão do debate atual sobre a avaliação dos impactos socioeconômicos gerados pelo avanço tecnológico, acompanhado de profundas mudanças sociais — o que foi alcançado com excelência. Os números são superlativos: mais de 1.500 participantes, sendo 15% estudantes. Plateias, de manhã e a tarde, quase sempre com lotação esgotada na calorosa (em ambos os sentidos do termo) Universidade de Lisboa. Ao longo dos três dias, foram diversos painéis e mesas paralelas com a participação de especialistas e juristas com sólida formação acadêmica, autoridades e representantes da sociedade civil organizada, do Brasil e da Europa. Foi praticamente uma Davos do mundo jurídico. Questões como defesa das instituições, tema tão caro especialmente após os atos antidemocráticos de 8 de Janeiro; inclusão e regulação da economia digital, a partir da legislação e das experiências europeias; responsabilidade fiscal, em um momento em que o Brasil tem como pauta principal o ajuste das contas públicas, com especialistas discutindo a reforma tributária; além das agendas ambiental, como a necessidade de um compromisso público e privado com a descarbonização, segurança pública e educação, foram amplamente debatidas. E é da pluralidade de experiências e ideias sobre cada um dos temas abordados — e por que não do embate de posições dos diversos atores desse evento — que surgem soluções e avanços para superar os enormes desafios jurídicos, sociais e regulatórios que o Brasil enfrenta. Aliás, muitos dos problemas de que hoje padecemos emergem de um passado recente, marcado pela carência de debates empíricos. Além disso, um evento dessa magnitude, organizado no seio de prestigiada universidade europeia, tem o condão de projetar as ciências jurídicas brasileiras naquele continente, fomentando o intercâmbio cultural e a troca de experiência entre países. Sabe-se que em uma sociedade democrática, as opiniões de cada um não são fortalezas ou castelos e que, muito menos, se evolui debatendo entre iguais. Somente a dialética entre todos os agentes do processo é que permitirá traçarmos planos para encararmos os desafios vindouros. Certamente, o XI Fórum Jurídico de Lisboa deu um passo importante nesse sentido. De quando em vez se formula uma crítica a eventuais encontros havidos entre profissionais do ambiente jurídico, políticos e empresários. Encontros como esses podem ser feitos no Brasil, discretamente, se assim desejarem seus participantes. A organização de eventos sociais em paralelo ao ambiente acadêmico, ao que parece, lhes emprestou considerável transparência. Não devemos, jamais, temer o diálogo.   André Luis Callegari Antônio Carlos de Almeida Castro — Kakay Eugênio Pacelli Fernanda Tórtima Flavio Boson Fredie Didier Giuseppe Pecorari Melotti Gustavo Binenbojm Gustavo Schmidt José Roberto de Castro Neves Juliana Bumachar Juliana Loss de Andrade Luis Felipe Salomão Filho Luís Inácio Lucena Adams Luiz Gustavo A. S. Bichara Luiz Rodrigues Wambier Marcus Abraham Paulo César Salomão Filho Pedro Ivo Velloso Rodrigo Cunha Mello Salomão Ronaldo Cramer Thiago Gonzalez Queiroz Ticiano Figueiredo
2023-07-04T08:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-04/opiniao-forum-juridico-lisboa-nao-devemos-temer-dialogo
academia
Voto vencedor
'Atividade predatória', diz Celso sobre proibição de pesca de arrasto
O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello elogiou a decisão da corte de invalidar a chamada pesca de arrasto no estado do Rio Grande do Sul. O Plenário decidiu, na última sexta-feira (30/6) derrubar liminar do ministro Kassio Nunes Marques e validar trechos de uma lei gaúcha de 2018 que proíbe a prática a pesca de em toda a faixa marítima da zona costeira do estado. "Importantíssima decisão plenária do STF, por oito votos a um, ao considerar inteiramente válida uma lei gaúcha que vedava a pesca de arrasto no mar territorial brasileiro e em frente a toda extensão litoral do estado do Rio Grande do Sul. Repeliu a prática de atividade predatória legitimamente proibida por esse estado costeiro", escreveu Celso de Mello.  Leia a seguir a íntegra da manifestação do ministro aposentado Celso de Mello: "ESSA IMPORTANTÍSSIMA DECISÃO PLENÁRIA DO STF, POR OITO (8) VOTOS A UM (1), AO CONSIDERAR INTEIRAMENTE VÁLIDA UMA LEI GAÚCHA QUE VEDAVA A PESCA DE ARRASTO NO MAR TERRITORIAL BRASILEIRO E EM FRENTE A TODA A EXTENSÃO DO LITORAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, REPELIU A PRÁTICA DE ATIVIDADE PREDATÓRIA  LEGITIMAMENTE PROIBIDA POR ESSE ESTADO COSTEIRO, PRESERVOU A INTEGRIDADE DO MEIO-AMBIENTE MARINHO E FEZ PREVALECER, COM ABSOLUTA FIDELIDADE, O COMANDO INSCRITO NO ART. 225 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA! O SUBSTANCIOSO (E PRIMOROSO) VOTO DA MINISTRA ROSA WEBER, PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, FOI SEGUIDO POR TODOS OS MINISTROS DA SUPREMA CORTE, COM EXCEÇÃO DO MINISTRO KASSIO NUNES MARQUES, CUJO VOTO, COMO RELATOR, SUCUMBIU À SUPERIORIDADE JURÍDICA DA DIVERGÊNCIA OPOSTA PELA MINISTRA ROSA WEBER!". Entendimento do Supremo sobre o tema No julgamento do Plenário citado por Celso de Mello, prevaleceu o voto da ministra Rosa Weber, presidente da corte, que divergiu de Nunes Marques. A magistrada afirmou que a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios de proteção ao meio ambiente. O voto de Rosa foi no mesmo sentido do que havia proferido Celso de Mello antes de ter sua posição derrubada por liminar assinada por Nunes Marques, que acabou herdando seus processos após sua aposentadoria.  "A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais, nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a 'defesa do meio ambiente' (CF, art. 170, VI)", escreveu a ministra.  Para Rosa, a Constituição é clara em sua função de vincular a livre iniciativa econômica "aos valores sociais do trabalho e aos ditames da justiça social, de modo a adequar o poder econômico aos interesses coletivos". A ministra ainda observou que a lei gaúcha não modificou os limites territoriais do mar brasileiro, nem "a titularidade da União sobre esse bem ou o regime dominial a que está sujeito". Para ela, a legislação estadual e nacional formam "um conjunto normativo harmônico e coerente, preocupado com a preservação do meio ambiente marinho e a subsistência econômica das comunidades pesqueiras tradicionais, predominantemente artesanais, que sofrem intensamente com a devastação ambiental praticada pela pesca industrial predatória de arrasto motorizada". Todos os ministros, à exceção de Nunes Marques, acompanharam o voto de Rosa Weber. 
2023-07-05T11:47-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-05/atividade-predatoria-celso-proibicao-pesca-arrasto
academia
Senso Incomum
Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição
1. Prolegômenos necessários O texto a seguir deve ser lido despacito. E peço, uma vez mais e de antemão, que cumpramos a norma prevista no "princípio da caridade epistêmica", já trabalhado principalmente no texto intitulado "O STF, a prisão no júri e a decisão equivocada do ministro Barroso". Hoje desejo falar sobre (i) o porquê (paradoxalmente) de o juiz das garantias ser necessário, (ii) ou sobre porque não deveria ser necessário, (iii) ou sobre como é necessário exatamente porque não deveria ser necessário, (iv) ou sobre como o sintoma vem para tratar a doença. Repito aqui o que falei em vários veículos e textos: o juiz das garantias é uma medida urgente e necessária, ainda que pareça estranho que ele seja necessário. Isto porque a imparcialidade deveria ser a regra, como já apregoava a Juíza-Deusa Palas Athena (da peça de Ésquilo). Um juiz das garantias soa como se outros fossem das não-garantias. Claro que não é assim. Mas vamos discutir isso. 2. Parcialidades invencíveis? Como lidamos até hoje com o processo penal? O assunto é complexo. Diz-se que o juiz já fica(ria) comprometido desde a fase anterior. Seria uma "parcialidade invencível"? Se for isso, é porque nos acostumamos com determinadas coisas. Tornamo-las normais. De todo modo, a resposta está no interior da discussão do JG: por tudo o que se vê e se sente todos os dias neste complexo sistema de justiça em que Ministério Público faz agir estratégico e juiz ainda participa da construção da prova (veja-se a dificuldade no cumprimento do artigo 212 do CPP), parece que é quase consenso na comunidade jurídica a necessidade de um novo modelo. Também virou quase consenso que, se o JG vai trazer (mais) imparcialidade ou menos parcialidade na área criminal, é porque o atual modelo não oferece imparcialidade suficiente. Tertius non datur. 3. O juiz das garantias diante do livre convencimento e da livre apreciação Não deveria ser assim. Mas no Brasil situações como "livre apreciação da prova" (explícita na lei) e "livre convencimento" tornam essas questões de imparcialidade ou parcialidade mais complexas. Afinal, é fato que o próprio sistema admite que a apreciação do juiz é livre. E a maior parte dos processualistas com isso concorda, com o argumento de que isso é bom porque é melhor (supera) a prova tarifada, que, ao que eu lembre, ocorreu no início do século 19, quando não existiam constituições garantísticas e compromissórias e tampouco "boas tarifações", como é o caso do elenco das garantias do artigo 5º. da nossa CF/88. Ora, se a apreciação da prova é livre, por que nos surpreendemos com a "contaminação"? Daí a necessidade de um parêntesis: para demonstrar o que estou dizendo, basta ver, por exemplo, o voto de um desembargador do Paraná que concede o habeas corpus ao acusado de homicídio porque esse fez uma limpeza, algo como "matou bem". O desembargador não participou da fase anterior do processo. Portanto, estava "descontaminado", se usarmos a linguagem corrente. Mesmo assim, não parece ter agido com imparcialidade. Na mesma linha, o que dizer de tribunais superiores que não seguem seus próprios precedentes? Agora mesmo o ministro Barroso proferiu voto ignorando o precedente das ADCs 43 e 44, sob o argumento de que a soberania dos veredictos vale mais do que o direito a recorrer em liberdade assegurado já por precedente vinculante (demonstrei que o uso da ponderação feita pelo ministro foi equivocada — o link está no primeiro parágrafo desta coluna). Uma adequada imparcialidade faria com que se obedecesse ao artigo 926 do CPC (coerência e integridade). Nem vou falar da desobediência dos artigos 489 do CPC e 315 do CPP. 4. O JG como alteração da estrutura e seu impacto simbólico Desse modo, já que nos acostumamos tanto, o remédio para enfrentar essa "contaminação" parece ser a alteração da estrutura para que talvez tenhamos um juiz minimamente desconectado da fase anterior. Pode vir a funcionar. Por isso sou a favor. Tenho o senso da realidade. E sei ser pragmático. A alteração pode trazer transformações simbólicas. E isso importa em um país que preza menos a lei do que a jurisprudência. Isso não me impede de indagar: se na segunda fase o juiz continua a fazer a livre apreciação da prova ou que julgue por livre convencimento, o que garante a sua imparcialidade? Aqui começaria uma nova discussão — que necessariamente passa por uma teoria da decisão judicial. Estruturalmente, com a aprovação do JG, dependendo do próprio comportamento da doutrina e da compreensão dos juízes, poderemos ter mais garantias para os acusados. O JG, nesse contexto, neste mundo da vida, é necessário em um país com um sistema teimosamente inquisitivo (a prova disso é o modo como se estrutura o processo, em que a livre apreciação está no centro) [1]. Temos de admitir isso. Ou vamos todos para um divã. 5. Por que não há qualquer óbice constitucional à implantação do JG Em termos constitucionais, não há óbice formal ou material para que o STF julgue válido o JG. O legislativo é competente e a Constituição não veda. Simples assim. Porém, para além da declaração da constitucionalidade, há muita coisa a ser feita. Se não nos dermos conta disso, continuaremos a ter uma coisa com o nome de outra. O meu ponto, permitindo-me um grau de platitude, é que, numa república, todo juiz deveria ser "das garantias". Acompanhem o raciocínio: todos queremos que juízes sejam imparciais, certo? Imparcialidade não é uma questão de aplicação mecânica ou exegetismo (textualismo). Isso já foi superado há séculos. Mas se o juiz deve ser imparcial, por que precisamos de um juiz das garantias? Repetindo: sou a favor por razões pragmáticas. Aplaudo. Sou contra o estado de coisas que nos faz precisar do juiz das garantias. E sou contra esse estado de coisas — e a favor do JG — exatamente por saber que é esse mesmo estado de coisas que não "garante" que o juiz das garantias garanta a solução para o problema da (im)parcialidade. Quem cuida dos cuidadores? Já é um problema clássico. Hobbes resolvia com o Leviatã. Alguém precisa pôr ordem. E quando o juiz das garantias age com parcialidade? Criaremos um juiz das garantias do juiz das garantias? E depois outro? E então mais um? 6. Por que a imparcialidade deve ser o modo-de-ser do juiz A imparcialidade faz parte do juiz-como-juiz. A coisa como-coisa já deveria trazer a própria desnecessidade do juiz das garantias. E o cenário que o torna necessário é o mesmo cenário que pode vir a torná-lo inútil. Essa é a grande questão. Sou, portanto, um aliado nessa luta. Insuspeito quanto a isso, acho. Estamos na mesma trincheira. Saúdo o juiz das garantias. Mas quero ir além do JG. Há mais coisas a conquistar. Mas reconheço o jogo difícil. Insisto que o problema está no modo como concebemos a gestão da prova. Não existe (re)estrutura que supere um universo jurídico que aceita que juiz decide com discricionaridade com o argumento de que "é assim e pronto", "não tem o que fazer". Não há garantias que sejam garantidas quando até garantistas acreditam em ficções como "o livre convencimento veio pra superar a prova tarifada". Falei (d)isso para o próprio Sergio Moro, em debate em 2015, quando poucos enxergavam que o rei estava nu. Moro me respondeu: "– Tenho livre convencimento". E ainda tentou tirar onda comigo, dizendo "afinal, o livre convencimento veio para superar a prova tarifada"? Respondi: "– Ah sim, obrigado. Eu não 'sabia' (ironia)". E acrescentei que, com juízes como ele, eu preferia um textualista ou até mesmo a própria tarifação — mormente porque a "tarifação" nas constituições garantidoras é benfazeja (ou alguém acha que a própria garantia da imparcialidade pode ser superada por livre convencimento ou uma nulidade da prova pode ser superada por convencimento livre)? E assim a vida continua. Estou escrevendo um livro sobre isso. Sobre as origens. Com dados empíricos. Onde morou o juiz boca da lei? Ele habitou em algum canto do Direito brasileiro? Onde e como a tal "superação" da prova tarifada ocorreu no Brasil? E se ainda se pode falar em "superação" a um tempo em que temos um elenco de neotarifações riquíssimas como o elenco das garantias do artigo 5º da Constituição. E, mais grave: alguma garantia pode ser superada por livre convencimento? Enfim, tudo isso torna o juiz das garantias paradoxal. Por paradoxal que possa parecer, paradoxalmente o JG é necessário. Precisamos do juiz das garantias. Que pena. Mas precisamos. Só que meu papel, aqui, será o de lembrar que não resolveremos os problemas da crise do Direito no Brasil (que, aliás, vai ao ponto de necessitarmos de um JG) se não superarmos o problema de um ensino jurídico que reproduz o senso comum teórico. Um bom exemplo é que falamos em "precedentes qualificados" e não resolvemos até hoje o problema sobre o que é um precedente. Abundam os estudos sobre inteligência artificial e até hoje não resolvemos a questão da prova no Brasil. E aí queremos resolver a livre apreciação com um novo juiz. Quase hobbesianamente. Só que Hobbes sacou, homem de seu tempo, que uma hora isso precisa terminar. Ao contrário de Hobbes, sou um otimista metodológico. Por enquanto, sou a favor do juiz das garantias. Claro que sim. Mas meu otimismo também é cauteloso: sou favorável, consciente de que só sairemos dessa quando resolvermos o problema da gestão-compreensão do que é isto — o processo, o que é um precedente e sobre o que é isto — o livre convencimento e a livre apreciação da prova. Sou a favor do juiz das garantias. Mas vou sempre lembrar que todo juiz deveria ser das garantias. 7. O voto do ministro Fux e o conceito de interpretação conforme Por fim e não menos importante: li o voto do ministro Luiz Fux. Ele legislou. Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição. Interpretação conforme não altera o texto, apenas a norma. Se alterar o texto, o Judiciário legisla. Porque o Judiciário cuida do passado e o Legislativo cuida do futuro. Quem escreve textos é o Legislativo. Normas — o sentido que é dado ao texto — não podem alterar o próprio texto. Judiciário pode anular textos. Interpretação conforme é dar sentido que conforme a lei (no seu texto) à Constituição, sendo que, para isso, altera-se a norma (que é sempre, conforme nos ensina Müller, o produto da interpretação do texto). Essa é a tradição. Trago aqui alguns comentários sobre isso. O primeiro, de Canotilho: "o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo [que] através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais". O segundo é Luís Roberto Barroso, para quem "não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador". O terceiro é Gilmar Mendes, para quem, na jurisprudência do STF, os limites à interpretação conforme a constituição resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do legislador. Posso até, no limite dos limites, encontrar guarida em redefinições textuais mínimas — porém, o caso do JG, como posto pelo voto do ministro Fux, refoge a qualquer dessas possibilidades. Vejamos o que dirão os demais ministros. [1] No Dicionário de Hermenêutica, discuto os conceitos de livre convencimento e livre apreciação da prova à luz da filosofia e do direito estrangeiro. São dois verbetes que tratam da matéria.
2023-07-06T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-06/senso-incomum-juiz-garantias-interpretacao-desconforme-constituicao
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Opinião
Veruska de Góis: Agenda regulatória das liberdades de expressão
Discutir liberdade de expressão nos (quase) 35 anos da Constituição, e passado quase um quarto do novo século, exige clivagens. As categorias não parecem claras, e o chão metodológico não está firme. Não parece haver uma agenda regulatória posta. Atravessados que estamos por uma governança mundial, ainda que não tão visível, essas agências de pensamento se impõem por aqui. Assim, uma abordagem possível é perguntar: através de qual sistema de liberdade de expressão o nosso ordenamento jurídico se guiaria: o norte-americano (cuja liberdade é ampla e o discurso de ódio admitido); o europeu (Corte Europeia de Direitos Humanos, cuja regulamentação é mais restritiva), ou o interamericano (Corte Interamericana de Direitos Humanos, pautado pelo formalismo na liberdade de expressão, que exclui restrição prévia e inclui responsabilização posterior)? Um aspecto interessante é que as liberdades de que falamos ocorrem no novo espaço público da comunicação e da linguagem: as redes sociais e as plataformas, que produziram um efeito catalisador nos jogos de linguagem x limites das liberdades. A economia política das redes passa a ser imperativo no campo da reflexão e alguns "think tanks" estrangeiros mantêm um papel importante na coordenação desses debates, a partir da concentração de pesquisadores no eixo sul-sudeste e da participação em audiências no STF, bem como de parcerias com instituições nacionais e internacionais e financiamento por plataformas de tecnologia. A regulação das redes sociais é um grande fio condutor da discussão, que envolve desenhos algorítmicos como possíveis condutores editoriais, disputa de narrativas, produção de "desinformação" (agnotologia — termo criado por Robert Proctor, como ciência da "ignorância") e censura, bem como os mecanismos privados das redes, como boards ou tribunais, selos, filtros e impulsionamento. Em qualquer cenário, ocorre a devida auto exclusão de responsabilidades. O caso todo pode ser pensado a partir da compra do Twitter por Elon Musk e sua "própria compreensão de liberdade". Além do lobby das big techs, vigora um lobby dos proprietários dos meios tradicionais de comunicação no Brasil, segundo o qual toda e qualquer regulamentação da liberdade de expressão e comunicação seria censura. Um discurso falacioso, principalmente se levarmos em conta que a não-regulamentação é uma opção regulatória, que deixa a um clube fechado de atores (top-down) o poder de fazer suas regulações privadas — uma alternativa inclusive acolhida pelo STF, quando julgou a não exigibilidade do diploma para jornalistas (Recurso Extraordinário 511.961) e a Lei de Imprensa (ADPF 130). O capítulo do jornalismo ganhou novos tons no Brasil, com um Executivo abertamente hostil. São atos dessa hostilidade o Decreto 10.185/2019, que extinguiu os cargos de jornalista da estrutura do Poder Executivo Federal; e o Decreto 10.288/2020, que definiu serviços públicos e as atividades essenciais na pandemia, incluindo as atividades e os serviços relacionados à imprensa. Enquanto incluía a imprensa entre as atividades essenciais, o Executivo não fornecia respostas aos pedidos de entrevistas e aos pedidos de informação via Lei de Acesso à Informação dos jornalistas. A omissão política quanto à pandemia acabou delegando à imprensa um papel público de coleta, tratamento e divulgação das informações quanto à Covid; o Consórcio de Veículos de Imprensa (CVI). Por quase três anos, foi o Consórcio que informou sobre a pandemia e sua letalidade. E, apesar de o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 da ONU prever o combate à violência contra jornalistas, as situações de agressão física, verbal ou simbólica aumentaram. No âmbito do Judiciário, passou-se a utilizar a judicialização predatória (uma espécie de assédio processual) contra a liberdade de informação jornalística. Isso é, magistrados passaram a processar jornalistas e meios que reportavam temas e abordagens que lhes desagradavam, como denúncias e irregularidades remuneratórias. O Conselho Nacional de Justiça definiu a judicialização predatória como "o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão" (Recomendação 127/2022-CNJ). A Recomendação 127/2022-CNJ aparece como um dos primeiros resultados do Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa, e dá resposta a ações articuladas de membros da magistratura para inibir jornalistas. A definição de a judicialização predatória pode contribuir para a proteção da liberdade jornalística, no sentido mais amplo de que determinadas ações contrárias à liberdade de expressão tenham natureza processual estrutural. A contribuição do Poder Legislativo mais expressiva, até agora, teria sido o Projeto de Lei n° 2630/2020 ("Fake News"), iniciativa questionável diante de um contexto de imaturidade temática e baixo nível de entendimento quanto ao real impacto regulatório. Dadas as dimensões envolvidas, para se pensar as liberdades de comunicação e expressão, atualmente, é necessário promover um diálogo multinível de fontes, incorporando-se premissas constitucionais, decisões do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, limitações penais e leis especiais como LGPD, LAI, normas que envolvam propriedade intelectual e inteligência artificial, bem como contribuições das big techs e da sociedade civil. Ainda assim, cobra-se do Brasil articulação setorial. Se em nível judicial, existem órgãos de articulação e estabilização nos tribunais de superposição (como o STF); o mesmo não se pode dizer no âmbito administrativo. Quais agências podem articular, conduzir e moderar as reflexões e ações? Em nível descritivo, temos o Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa (âmbito administrativo do Judiciário); o Conselho de Comunicação Social (órgão previsto constitucionalmente, âmbito administrativo do Poder Legislativo); Cade, Anatel, ANPD, Comitê Gestor da Internet no Brasil e Ministério das Comunicações (âmbito administrativo do Poder Executivo). Novidade do ano, ainda no âmbito de Executivo, o Ministério da Justiça anunciou o Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas. De forma resumida, no âmbito administrativo privado, citemos o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), como uma longeva e relevante representação. Quais os mecanismos de procedimentos administrativos, como se organiza essa instância administrativa? No estudo "A Caminho da Era Digital", a OCDE apontou a "desordem" e recomendou a criação de uma agência reguladora independente de comunicação e radiodifusão, bem como a organização de um regime setorial unificado. Com isso, o clássico discurso oficial contra a regulamentação fica bastante esvaziado. A agenda regulatória setorial para as liberdades de expressão, seja para pesquisa, desenvolvimento econômico ou governança multinível, mesmo que não categorizada de forma reflexiva exaustiva, é exigente. Que se promova a agenda em nível organizativo e executivo com desenho dos papeis e agências, talvez seja um primeiro passo metodológico para um debate mais crível.
2023-07-07T17:10-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-07/veruska-gois-agenda-regulatoria-liberdades-expressao
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Grandes temas, grandes nomes do Direito
Mudança em delitos sexuais acirra debate na Espanha, diz advogada
A reforma do Código Penal espanhol levou o debate público naquele país a altos níveis de intensidade neste ano, sobretudo em relação às mudanças em tipificações nos títulos de crimes sexuais e de crimes econômicos, de acordo com a advogada Ana Carolina Carlos de Oliveira. Doutora e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e especialista em Ciências Criminais pela Universidade de Barcelona, Ana Carolina falou sobre a atividade legislativa em torno das normas punitivas espanholas em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", que a revista eletrônica Consultor Jurídico vem publicando desde maio. Nela, algumas das principais personalidades do Direito brasileiro e internacional analisam os assuntos mais relevantes da atualidade. A advogada destacou que as discussões, tanto no Parlamento quanto na sociedade da Espanha, estão especialmente acirradas em relação ao capítulo dos crimes sexuais. Segundo Ana Carolina, a legislação local tinha, tradicionalmente, uma classificação desses delitos em três categorias: abuso sexual, agressão sexual e violação (estupro). Há dois anos, porém, uma decisão da Justiça envolvendo um caso de agressão sexual coletiva a uma mulher — que, segundo o processo, não teria reagido ao ataque — levou os legisladores a discutir sobre a definição de estupro. "Era muito evidente que havia sido um caso de estupro, mas o Tribunal Supremo espanhol decidiu que era um caso de agressão sexual — ou seja, que era um caso menos grave do que um caso de estupro, porque não houve o uso de 'violência grave'. Isso gerou uma discussão social, uma manifestação coletiva nas ruas muito intensa contra o Tribunal Supremo, contra as leis espanholas, e isso se transformou em pauta dos legisladores." A atividade legislativa, prosseguiu a advogada, resultou em uma reforma do Código Penal que excluiu, no início deste ano, o tipo penal de estupro. "O foco passou a ser colocado não no exercício de violência para conseguir o ato sexual, mas na falta de consentimento dado pela mulher. E então essas condutas foram unificadas dentro do tipo penal 'agressão sexual'. Assim, tudo que fosse uma relação sexual não consentida seria classificado como uma agressão sexual — essa foi a reforma do mês de fevereiro." A mudança gerou nova reação, desta vez entre apenados. "Quando os tribunais começaram a aplicar essa lei, viu-se que alguma pessoas que haviam sido condenadas por estupro, anteriormente, acabariam tendo uma pena um pouco inferior, no cálculo material, às quais elas haviam sido condenadas. E essas pessoas começaram a entrar com vários processos de revisão da execução penal, pedindo uma pena inferior", explicou ela. Tal movimento foi seguido de nova mobilização social, o que levou à aprovação de uma outra lei de crimes sexuais nas últimas semanas. "Hoje a Espanha tem o crime de agressão sexual, que é toda relação sem consentimento. Existe uma versão de menor gravidade, que é o abuso sexual, no qual há uma relação de intimidação, mas sem uso da força. E voltou-se a uma situação anterior em relação ao estupro — que agora não é um tipo penal autônomo, mas uma forma mais grave do tipo 'agressão sexual'. Então, antes havia três crimes e agora há dois, com o estupro como forma agravada da agressão sexual", disse Ana Carolina. Agora, segundo ela, os delitos sexuais têm como eixo central da interpretação a falta de consentimento na relação. "Essa lei que provocou todas as reformas do capítulo de crimes sexuais se chama 'Somente Sim é Sim'. Então, se não há o consentimento expresso e claramente reconhecido entre as duas pessoas que ali estão, aquilo já pode entrar em algumas das classificações dos crimes sexuais do Código Penal. Mas é possível que isso seja modificado novamente, pois continua na pauta do Congresso, e pode ser que sofra revisão no Tribunal Constitucional." Crimes econômicos A reforma do tipo enriquecimento ilícito, no capítulo de crimes econômicos, também gerou debates, principalmente entre acadêmicos e legisladores. Isso porque, segundo Ana Carolina, o delito ganhou uma redação confusa. Além disso, não ficou claro como esse tipo penal será implementado. "Durante a discussão, alguns professores o olharam com muita estranheza, e é possível que se apresente um recurso de constitucionalidade pela falta de precisão, pela dificuldade que ele tem de atender ao princípio da legalidade. Tudo isso está em aberto na interpretação que o legislador espanhol adotou para o crime de enriquecimento ilícito", disse a advogada. Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-07-08T09:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-08/mudanca-delitos-sexuais-acirra-debate-espanha-advogada
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Diário de Classe
Nem toda decisão com a qual não se concorda é ativismo judicial
A coluna de hoje tem por objetivo ajudar a esclarecer um tema que tem sido recorrente nos debates jurídicos do país e que há certo tempo já transcendeu esta esfera e hoje ressoa na opinião pública com certa frequência: o ativismo judicial. Nesse sentido, tem se tornado cada vez mais comum que decisões polêmicas e/ou de grande repercussão no país sejam tachadas de ativismo judicial. No entanto, a ausência de adequada compreensão sobre o que é efetivamente o ativismo judicial acaba por vulgarizar o termo, levando a que este seja utilizado indistintamente em situações nas quais não se está diante de ativismo judicial, mas sim de um caso de judicialização da política, por exemplo; ou, ainda, simplesmente como adjetivo pejorativo para uma decisão judicial com a qual não se concorda. Neste último caso, dentro do campo da política no Brasil as acusações de ativismo judicial, em especial contra decisões do Supremo Tribunal Federal — e de maneira mais recente também contra a decisões do Tribunal Superior Eleitoral — se tornaram praxe a até mesmo plataforma de campanha política por parte de grupos políticos contrariados por decisões oriundas desses tribunais [1][2][3]. De outra parte, ministros do Supremo Tribunal Federal rechaçam a alcunha de que o tribunal seja ativista e atribuem essas afirmações ao desconhecimento sobre o papel da Corte[4]. Assim, tendo por base esta problemática estabelecida, nos propomos a escrever algumas linhas buscando desmistificar certas afirmações corriqueiramente efetuadas e demonstrar como é necessário tratar o assunto com o devido rigor teórico para que a discussão não seja rebaixada em sua complexidade e, assim, ajudar na identificação de decisões judiciais que efetivamente se constituem em ativismo judicial. De plano, vale dizer que a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) oferece substrato teórico mais que suficiente para o adequado tratamento de todas essas questões, conforme veremos a seguir, sendo imperioso o destacar os escritos do professor Lenio Streck ao longo dos anos aqui mesmo na ConJur sobre a temática, contribuindo para o debate público sobre o tema (para alguns exemplos, ver aqui, aqui e aqui). 1. O quê é o ativismo judicial? O primeiro ponto que demanda o devido esclarecimento é efetivamente dizer o que é ativismo judicial. Nesse sentido, podemos afirmar que o ativismo judicial é um fenômeno gestado dentro da própria sistemática jurídica, consubstanciado em um ato vontade do julgador, caracterizando uma "corrupção" na relação entre os Poderes, uma vez que há uma extrapolação dos limites de atuação do Poder Judiciário pela via de uma decisão que é tomada por meio de critérios não jurídicos [5]. Desta forma, tendo em vista essa caracterização do que é efetivamente o ativismo judicial, podemos afirmar que a sua ocorrência sempre será indesejável e nociva à democracia e à autonomia do Direito. Nesse ponto, vale dizer que a Crítica Hermenêutica do Direito fulmina com a tese do "bom ativismo" ou de existência "ativismos judiciais desejáveis", se contrapondo, por exemplo, à posição de Luís Roberto Barroso para quem a existência de uma postura ativista por parte do Poder Judiciário seria vista de maneira positiva, uma vez que se estaria buscando "extrair ao máximo as potencialidades do texto constitucional" [6]. 2. Qual a diferença entre ativismo judicial e judicialização da política? Esta é outra questão muito importante para a discussão e que não vem sendo tratada de maneira adequada no Brasil, que insiste em abordar ativismo judicial e judicialização da política como se fossem sinônimos, gerando percepções absolutamente equivocadas sobre decisões que seriam supostamente ativistas. De fato, ativismo judicial e judicialização da política se encontram interligados, uma vez que envolvem diretamente a relação existente entre o Direito e a política. Oportuno salientar que Lenio Streck aponta a política como um dos predadores externos do Direito, ao lado da economia e da moral, sendo esses os predadores exógenos capazes de abalar a autonomia que deve ser intrínseca ao Direito [7]. Em verdade, ativismo judicial e judicialização da política são fenômenos derivados do protagonismo judicial, que pode ser compreendido como a atuação do Poder Judiciário em um viés estatal e da atuação de seus membros ocasionalmente desviada de seu papel institucional [8] A diferença reside, especificamente, em que a judicialização da política é um fenômeno inexorável e contingencial, próprio das democracias contemporâneas, decorrente das condições sociopolíticas e consiste na intervenção do Poder Judiciário nas deficiências dos demais Poderes. Por sua vez, conforme referido anteriormente, o ativismo judicial é construído dentro do próprio Poder Judiciário, sendo produto do voluntarismo, do solipsismo e da arbitrariedade, por meio de ato de vontade do julgador, extrapolando os limites de atuação delimitados constitucionalmente para o Poder Judiciário ao tomar uma decisão que está pautada em critérios não jurídicos. Neste ponto, especialmente quando falamos em políticas públicas, a CHD oferece uma ferramenta essencial para realizar a adequada diferenciação entre o que é ativismo judicial e a o que é judicialização da política, consistente nas três perguntas fundamentais, parte integrante da Teoria da Decisão Jurídica que o professor Lenio Streck vem construindo ao longo dos anos. As três perguntas fundamentais consistem em um mecanismo para que tanto o interprete quanto aquele que se depara com uma decisão judicial sejam capazes de analisá-la e constatar se esta é uma decisão de fato ativista ou se está diante de um caso de judicialização da política. Para tanto, na tomada de decisão o juiz devera responder três perguntas fundamentais: 1) se há um direito fundamental com exigibilidade; 2) se o atendimento a esse pedido pode ser, em situações similares, universalizado e concedido às demais pessoas em mesma situação; 3) se para atender aquele direito, se está ou não fazendo uma transferência ilegal ou inconstitucional de recurso, ferindo a isonomia e a igualdade. Ao se valer dessas três perguntas fundamentais é possível verificar se o ato judicial em questão é ativista ou se está sendo contingencialmente realizada, a judicialização da política. Sendo qualquer uma destas perguntas respondidas negativamente, se estará, com razoável grau de certeza diante uma atitude ativista [9]. Sobre as três perguntas fundamentais e sua aplicação prática, vale ler o voto do ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 888.815, o caso do homeschooling, no qual o ministro se valeu das três perguntas fundamentais para se contrapor ao voto do relator e rechaçar a possibilidade de adoção do homeschooling no Brasil. De igual sorte, destaco a obra recentemente publicada pela colega Isadora Ferreira Neves, oriunda de sua tese de doutorado, intitulada Ativismo Judicial e Judicialização da Política - Três Perguntas Fundamentais para uma Distinção (editora Jus Podivm) na qual as três perguntas fundamentais são levadas ao centro da questão e cada um desses pontos é esmiuçado e aprofundado, sendo valoroso trabalho para auxiliar no adequado tratamento da questão para todos aqueles que desejaram se aprofundar na temática. Sem dúvida alguma essa diferenciação sobre o que é ativismo judicial e o que é judicialização da política é de extrema importância sob a perspectiva da Teoria do Direito. Sobretudo em face das confusões que são realizadas e da algaravia conceitual que se coloca sobre o tema. De fato, há que se reconhecer que não existem "bons ativismos judiciais" e a Crítica Hermenêutica do Direito fornece a adequada base teórica para a diferenciação destes fenômenos que tem sido equivocadamente tratados como se fossem a mesma coisa. 3. Existe ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal? Eis aqui a questão que talvez seja a mais complexa de se responder dentre aquilo que propomos no presente texto porque ela perpassa obrigatoriamente por como a pergunta é formulada. Se a pergunta fosse formulada simplesmente como "O Supremo Tribunal Federal é um tribunal ativista?" a reposta provavelmente seria não, porque o tribunal não adota posições ativistas em todas as suas decisões; nem todos os ministros possuem decisões que podem ser consideradas ativistas pelos critérios que buscamos estabelecer até agora. Essa resposta vai na linha do que foi dito pelo ministro Luís Roberto Barroso em reportagem anteriormente referida e, também, em outras declarações dadas pelo ministro às mídias referindo que o Supremo Tribunal Federal não é um tribunal ativista. Essa conclusão, aliás, vai na linha do desfecho que Isadora Ferreira Neves faz em sua obra ao tratar da aplicação das três perguntas fundamentais e a atuação do Supremo Tribunal Federal. Todavia, ao formularmos a pergunta de maneira diversa, como fizermos, a resposta também é diversa. Se a pergunta formulada é "existe ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal", a resposta será sim e esta resposta afirmativa é reconhecida pelo próprio ministro Luís Roberto Barroso. Para exemplificar este ponto, trago à baila a fala do ministro Barroso realizada no ano de 2022 no V Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito, no qual o ministro realizou conferência em que a temática foi abordada e, ainda que ele tenha novamente rechaçado que o Supremo Tribunal Federal seja um tribunal ativista, ele reconheceu que em pelo menos dois casos o STF havia sim agido de maneira ativista [10]. Concretamente, Barroso reconheceu uma ação ativista do Supremo Tribunal Federal nestes dois casos: no caso do tratamento igualitário das uniões homoafetivas e no caso da criminalização da homofobia, afirmo que o Plenário do Supremo Tribunal Federal incorreu em efetivo ativismo judicial — ao seu ver justificado — inclusive apontando que de maneira limítrofe, no segundo caso, esteve em vias de criar um tipo penal por meio de decisão judicial, embora, em seu entendimento, não tenha chegado a tal ponto. Assim, mesmo sob a perspectiva do ministro Barroso, existem sim casos de ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal, ainda que a seu ver estes sejam justificados. No entanto, como vimos até agora, sob a perspectiva da CHD, não existem "bons ativismos", ativismo judicial é danoso à democracia e violador da autonomia do direito. Portanto, se há ativismo judicial passível de ser identificado no Supremo Tribunal Federal, independentemente do caráter quantitativo deste ativismo, já é um mal sinal. No entanto, para além dos casos reconhecidos pelo ministro Barroso, sob a perspectiva aqui delineada, podemos apontar outros episódios de decisões ativistas no Supremo Tribunal Federal, como por exemplo o caso do Habeas Corpus 126. 292/SP, que fulminou a presunção de inocência e autorizou por anos a execução antecipada de pena privativa de liberdade sem trânsito em julgado após condenação em segunda instância — felizmente revertida, posteriormente, pelo julgamento das ADCs nº 43 e 44 que contaram com valorosa atuação do professor Lenio Streck — e também o caso da Reclamação 4.335/AC que, não obstante tenha sido julgada improcedente, até hoje repercute em uma tentativa recorrente do Supremo Tribunal Federal de tentar reescrever o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, como no posterior julgamento da ADI nº 3.470/RJ e mais recentemente nos Temas 881 e 885. Estes são apenas alguns exemplos gritantes passíveis de serem apontados como flagrantes casos de ativismo judicial, dentro uma perspectiva que adote o adequado rigor teórico. Poderíamos até mesmo citar o caso abordado pelo professor Lenio Streck nesta semana (ver aqui) em que o ministro Barroso constrói um texto para autorizar a prisão imediata após os julgamentos do júri que não encontra respaldo na própria previsão legal e muito menos na Constituição! Agora, feitas essas considerações podemos inferir que não se pode tratar qualquer decisão com a qual se discorde como sendo ativismo judicial. É necessário que se tenha o devido rigor teórico para que se possa afirmar de maneira contundente que se está diante de uma decisão judicial verdadeiramente ativista, conforme vimos acima. Assim, vale ressaltar que decisões recentes como a que cassou o mandato do ex-deputado federal Deltan Dallagnol; a decisão que tornou o ex-presidente da República Jair Bolsonaro inelegível; a decisão que declarou inconstitucional o indulto concedido ao ex-deputado federal Daniel Silveira; ou mesmo a decisão que mandou prender os criminosos que atacaram a Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 — todas acusadas de ativismo judicial por apoiadores descontentes, nada têm de ativistas. Conforme dito inicialmente, não é porque não se concorda com uma decisão judicial que ela é ativista. Ativismo judicial é outra coisa... [1] https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/abaixo-o-ativismo-judicial-como-daniel-silveira-faz-campanha-com-candidatura-ao-senado-indeferida-pelo-tre.ghtml [2] https://www.poder360.com.br/eleicoes/em-debate-eleitoral-bolsonaro-critica-stf-e-ativismo-judicial/ [3] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/02/critico-do-ativismo-judicial-rogerio-marinho-tem-bolsonaro-como-cabo-eleitoral-na-disputa-pelo-senado.ghtml [4] Ness sentido, reportagem publicada na ConJur: https://www.conjur.com.br/2022-ago-27/barroso-reconhece-protagonismo-stf-nega-ativismo-judicial [5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. ver. e amp. São Paulo: Saraiva. 2017. p. 87. [6] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de direito do Estado, v. 5, n. 1, 2012. p. 7. [7] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 370. [8] NEVES, Isadora F. As três perguntas fundamentais da Crítica Hermenêutica do Direito: a aplicabilidade de uma proposta de limites à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Tese de Doutorado. [s.l.] UNISINOS, 2022. p. 36. [9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. ver. e amp. São Paulo: Saraiva. 2017. p. 259 [10] BARROSO, Luis Roberto. 26 de outubro, noite - V COLÓQUIO DE CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO. 24:49 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6ynfDkrQPyE. acesso em: 1/12/2022
2023-07-08T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-08/diario-classe-nem-toda-decisao-qual-nao-concorda-ativismo-judicial
academia
Observatório Constitucional
Direitos fundamentais e democracia no Constitucionalismo Digital
1. O tempo, para todos e especialmente para os juristas, é elemento central e objeto de constantes reflexões. Nesta prestigiosa coluna do Observatório Constitucional, sou responsável por escrever artigos no começo e na metade do ano. No final do primeiro semestre e no início da segunda parte do ano, há uma tendência de refletir sobre o que ocorreu e o que acontecerá até o término deste calendário. 2. Em 8 de janeiro de 2023, os democratas ficaram estarrecidos com a barbárie dos ataques às instituições do Estado Democrático de Direito, os quais foram arquitetados por meio do pensamento autoritário e da utilização dos grupos em mensageria instantânea (WhatsApp e Telegram) e das redes sociais. Essa questão deixou ainda mais nítida a necessidade de regulamentação constitucional e adequada da internet, tendo como parâmetro a liberdade dos cidadãos e das pessoas jurídicas, mas produzindo mecanismos hígidos e proporcionais para controlar e para implementar maior transparência na atuação das empresas de tecnologia e principalmente das big techs. Nesse contexto, avançou a tramitação do relevante Projeto de Lei nº 2.630/2020 (Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), acerca do imprescindível enquadramento do mundo digital no figurino da democracia constitucional. O Congresso Nacional necessita terminar a análise desse processo legislativo no segundo semestre. 3. Exatamente o tema da governança digital ocupou as reflexões das comunidades jurídicas brasileira e europeia, no XI Fórum Jurídico de Lisboa, em 26, 27 e 28 de junho de 2023, que é promovido pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pela Fundação Getúlio Vargas e pela Universidade de Lisboa. Em perspectiva plural, o evento enfrentou inúmeros dilemas contemporâneos. Dessa forma, o painel de abertura tratou precisamente do Estado Democrático de Direito e Defesa das Instituições, versando a palestra principal (Keynote Speech) do professor Dieter Grimm sobre como salvar a democracia. As análises em relação ao direito e ao constitucionalismo não se fazem sem reflexão profunda. Não desconsidera que inovações teóricas se impõem, porém esses debates precisam ser realizados em diálogo com a tradição constitucional democrática. Assim, no Fórum de Lisboa, coordenei, com o professor Guilherme Pupe, o Grupo de Trabalho da Fundação Peter Häberle, tendo sido apresentados e discutidos exatamente que textos e pesquisas nessa perspectiva. 4. O segundo semestre, para os estudiosos do Direito, começa com boas novas, em virtude do lançamento, na Espanha, da coletânea de artigos científicos Derechos Fundamentales y Democracia en el Constitucionalismo Digital, tendo a obra a direção dos professores Francisco Balaguer Callejón e Ingo Wolfgang Sarlet e contando com a minha coordenação e dos professores Carlos Luiz Strapazzon, Augusto Aguilar Calahorro e Antonio Pérez Miras [1]. O livro foi construído com contribuições acadêmicas de professoras e professores brasileiros, espanhóis, italianos e portugueses. 5. Alguns trechos da citada obra indicam a relevância do livro. 6. "Na sociedade digital, as plataformas e serviços digitais que nela opera tornam-se um canal de fake news, desinformação, pós-verdade, fatos alternativos... transformando-se em ferramentas de soft power na guerra de valores entre poderes e grupos sociais. O recente reconhecimento do papel nocivo que eles podem desempenhar na desconstrução dos sistemas constitucionais, deu, ao mesmo tempo, um impulso para que as redes e suas empresas elaborassem suas próprias listas de valores. Valores que, embora coincidam no nome com valores constitucionais, são, no entanto, produto da autorregulação e, portanto, são também dotações que refletem os interesses econômicos das grandes empresas" [1]. O artigo científico de Augusto Aguilar Calahorro foi escrito antes dos ataques às instituições democráticas brasileiras de 8 de janeiro de 2023 e por constitucionalista espanhol, comprovando que o fenômeno da desinformação e os ataques às instituições infelizmente são uma tendência global. Entendo que existem tanto críticos sinceros como insinceros da regulamentação da internet e das redes sociais, das mensagerias instantâneas e das ferrramentas de buscas. O fragmento acima é importante chave de leitura para a adequada compreensão do tema. Explico. A utilização do léxico dos direitos fundamentais pelas big techs, de um lado, demonstra a inegável deferência que todas as pessoas jurídicas e físicas necessitam ter em relação às normas constitucionais. De outro lado, há também um uso oportunista pelas grandes empresas de tecnologia das ideias de liberdade, de igualdade e de pluralismo para tentar legitimar práticas que, com a máxima vênia, entram em rota de colisão justamente com esses valores. Chamo essa postura de uso insincero — quem sabe cínico — do instrumental dos direitos fundamentais. Essa retórica insincera dos direitos fundamentais às vezes engana ou no mínimo joga uma cortina de fumaça na discussão sobre regulamentação da internet. É um equívoco absurdo equipar regulamentação com censura ou com intervenção indevida na comunicação. O fenômeno jurídico, por excelência, disciplina as relações e atos sociais, econômicos e culturais. Com certeza, a regulamentação das redes sociais, da mensageria instantânea e das ferramentas de buscas necessita ser razoável e proporcional, além de concretizar os direitos fundamentais na melhor medida possível. Essa disciplina não é apenas constitucionalmente possível, mas necessária, conforme veremos no fragmento abaixo. 7. "A realidade digital não se limita a refletir meramente a realidade física, mas a transforma de tal forma que a cultura constitucional, os direitos fundamentais, a ideia de democracia, o Estado de Direito e a própria configuração do ordenamento jurídico assumem uma dimensão diferente. Pensemos, por exemplo, no ordenamento jurídico, tradicionalmente baseado em três princípios essenciais para garantir a segurança jurídica: unidade, coerência e plenitude" [2]. Como não regulamentar a realidade digital, quando esta impacta e principalmente modifica o próprio direito constitucional, assim como a democracia e o Estado de Direito? Nesse contexto, a questão não é se, mas como disciplinar a internet. Isso não é nenhuma novidade, no Brasil, em razão, por exemplo, da aprovação do Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.965/2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Federal nº 13.709/2018). Por sua vez, como bem apontado por Francisco Balaguer Callejón no trecho acima, a unidade do ordenamento jurídico, que possui a constituição como sua norma central, é reestruturada, porque o sistema jurídico é alargado com as regulamentações globais, advindas muitas vezes do direito privado (por exemplo, os termos de usos de equipamentos e aplicativos eletrônicos). A busca por coerência do ordenamento constitucional e jurídico é ideal teórico de boa parte da teoria e da prática jurídicas. É inegável que se vive em mundo de inflação legislativa e regulativa, contudo o papel dos operadores do direito e dos juristas é construir a coerência, a partir da adequada hermenêutica constitucional. Por outro lado, as regulamentações das empresas de tecnologia, as quais contam com a adesão de bilhões de pessoas, com frequência causam fraturas e incoerências nos sistemas estatais e sociais. 8. Ainda, "os dados são, de facto, o bem econômico essencial do mercado digital, hoje nas mãos de grandes empresas de tecnologia. Não obstante, a positivação da propriedade dos dados implicaria uma validação generalizada deste modelo de negócio, bem como a introdução de uma cosmovisão jurídica transformada - se não diferente – na qual o mercado se tornaria a peça fundamental para garantir a dignidade humana, mesmo prevalecendo sobre esta última de acordo com a oportunidade econômica do momento" [3]. A analogia de que os dados são o novo petróleo é impactante, mas incorreta. Os dados não são recursos naturais não renováveis, pois a utilização de informações não produz necessariamente o seu esgotamento. A integração de bancos de dados torna mais forte o conhecimento que empresas e governos possuem sobre o titular das informações. Também, as pessoas naturais são "o negócio" de inúmeras empresas, já que estas detêm o interesse na obtenção das informações dos indivíduos para maximizar seus lucros. Dessa maneira, a proteção das pessoas físicas como consumidores é o principal mote das reflexões jurídicas atuais. O texto acima de Daniela Dobre discute outra perspectiva: e se os dados passarem a ser vistos e regulamentados a partir do direito de propriedade dos seus titulares, isto é, pessoas naturais? A mudança não seria pequena, visto que ocorreria o emprego de robusto instituto jurídico e de enorme envergadura constitucional para proteger o titular desse direito, ou seja, todos os seres humanos! Claro que é uma proposta controversa, porém essa é uma das riquezas do livro: instigar debates complexos e árduos, contudo imprescindíveis. 9. O tema do constitucionalismo e do Direito Digital é instigante e urgente, sendo assim os debates não param. Em setembro, a Universidade de Granada, o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul realizarão o III Seminário On-Line Internacional de Constitucionalismo Digital, o qual em breve divulgaremos.
2023-07-08T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-08/observatorio-constitucional-direitos-fundamentais-democracia-constitucionalismo-digital
academia
Grandes temas, grandes nomes do Direito
Acordo de delação é instituto de natureza cível, diz Marighetto
Mecanismos de grande valia na seara criminal, os acordos de delação e a colaboração premiada são, em essência, instrumentos de natureza cível. Tal abordagem é inovadora, mas também está sujeita a críticas, já que coloca, à maneira da teoria contratual, poder público e réu no mesmo patamar. Essa é a opinião do jurista Andrea Marighetto. Advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Marighetto falou sobre o tema na série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", da revista eletrônica Consultor Jurídico. Nela, algumas das mais influentes personalidades do Direito abordam os assuntos mais relevantes da atualidade. De acordo com Marighetto, na falta de instrumentos que resolvam as questões da prática jurídica, os operadores do Direito costumam recorrer a "experiências comparatísticas", buscando ideias em jurisdições estrangeiras. Na visão dele, porém, muitas vezes os mecanismos já estão no próprio ordenamento. "Eu me refiro a instrumentos do âmbito cível que poderiam ser utilizados também no âmbito criminal", afirmou. "Eu vejo, por exemplo, que os acordos de delação, a colaboração premiada, de fato são instrumentos — como foi definido pelo próprio ministro Toffoli — de natureza cível. E, como tais, o modelo jurídico que deveria ser aplicado para regulamentar esses mecanismos é o de Direito puramente cível", prosseguiu. Isso significa que um acordo de delação é regulamentado por uma teoria contratual. Essa abordagem, contudo, pode ser encarada de duas formas. "É inovador e, evidentemente, pode também suscitar críticas, pois o poder público é representado por uma das partes que vai estar no mesmo plano de negociação do réu ou o colaborador, digamos. Porque, de fato, em uma lógica de Direito Civil, as partes são postas no mesmo nível. Então, pela teoria dos contratos, os dois têm a mesma força contratual — coisa que é um pouco inovadora para uma interpretação puramente publicística, que pode ser representada pelo Ministério Público." Clique aqui para assistir à entrevista ou veja a íntegra abaixo:
2023-07-09T16:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-09/acordo-delacao-instituto-natureza-civel-marighetto
academia
Embargos Culturais
Minha memória do professor Cancellier e o livro de Paulo Markun
Em 2017 segui de Brasília para Florianópolis para participar da banca de doutoramento de José Alexandre Ricciardi Sbizera. Tratava-se de um instigante estudo sobre as relações entre direito e literatura, assunto fascinante. O título era provocativo: "Linguagem, Direito e Literatura: estilhaços heurísticos para pensar a relação entre o riso, o jurista e o leitor". Uma tese que opunha à seriedade e à formalidade do protagonismo jurídico o escárnio e a irrisão da vida real. Uma tese chocante. O orientador desse belíssimo trabalho era Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, onde realizou-se essa memorável banca. Penso que pode ter sido a última banca de Cancellier, ou uma das últimas, entre tantas bancas que realizou. De qualquer modo, foi um privilégio. Um privilégio raro na minha vida acadêmica. Lédio Rosa de Andrade (desembargador, professor, que faleceu aos 60 anos, em 2019) também estava nessa banca inesquecível. Era muita cultura por metro quadrado. Um papo jurídico cabeça, para iniciados. Nem todo jurista sente conforto em discutir temas não dogmáticos. Alexandre Morais da Rosa, com sua visão realista do processo penal, também estava na banca. Cético, irreverente, diferente, o examinando apresentava um trabalho à altura daquele programa de pós-graduação, uma referência maior no pensamento crítico brasileiro, tradição que vinha — entre outros — da tese de Horácio Wanderley Rodrigues, "A crise do ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo : indo além do senso comum", orientado por Olga Maria Boschi de Aguiar e Edmundo Lima de Arruda Jr. Na banca dessa tese de 1992, Roberto Aguiar (UnB), Roberto Kant de Lima (UFF) e Reinaldo Fleuri (UFSC). Leonel Severo da Rocha coordenava o curso. No mesmo ano, 1992, Lédio Rosa de Andrade defendeu na UFSC dissertação sobre a então chamada "magistratura alternativa". Lenio Streck lá defendera dissertação de mestrado em 1988 ("Tribunal do Júri e estereótipos") e tese de doutorado em 1995 ("Eficácia, poder e súmulas de direito"). Ao longo dos anos de 1990, a linha da UFSC era de algum modo paralela com uma linha conceitual que se desenvolvia na UnB. Warat, Lyra Filho, Luiz Fernando Coelho, Tarso Genro ("Os juízes contra a lei"), Amilton Buerno de Carvalho, Wolkmer ("Contribuição para o projeto da juridicidade alternativa") e o então tão jovem Clèmerson Merlin Clève ("Uso alternativo do direito e saber jurídico alternativo") faziam parte dessa patota, que tanto influenciou Cancellier. Na tarde daquela banca não me passava pela cabeça, nem de longe, que o orientador daquele brilhante doutorando passaria por situação devastadora, humilhante, e de violência sem precedentes, que o levaria ao suicídio. A indignação que todos sentimos é traduzida pelo discurso fúnebre proferido pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade, em um dos momentos mais tristes e revoltantes da história do direito brasileiro. É quase uma obrigação que assistamos a essa fala cheia de indignação, em forma de lamento, de alerta e de desabafo contra a truculência e o autoritarismo. Guardo de Cancellier as mais fortes recordações. Nasceu em Tubarão, em 13 de maio de 1958. Falamos sobre essa cidade, traumatizada por uma cheia nos anos 1970. Simples, sem a afetação de alguns acadêmicos pernósticos, ainda que autoridade inconteste no meio universitário, delicado, receptivo com o visitante, defendia seu orientando, porque sabia que esse é um dos papeis do orientador, quando autorizada a defesa em banca. O orientador, todos sabemos, também é avaliado. Inteligente e perspicaz, Cancellier conduziu o júri acadêmico com alegria e segurança. Era o chefe do evento. Dominava. Pontificava. Parece que todos sabíamos que era um momento histórico, não pela tragédia que veio depois (porque não imaginávamos) mas pelo transe cultural que então vivíamos. Cancellier deixou o examinando mostrar a essência, os limites e o alcance do trabalho. Permitiu que nós examinadores explorássemos as tensões que decorriam de pesquisa tão inusitada. Foi uma tarde inesquecível, para marcar com uma pedrinha branca, como diziam os romanos em face de ocasiões memoráveis. Impressionado com o orientador, procurei conhecer sua trajetória acadêmica e ler seus trabalhos. Cancellier era um visionário. Em 2001 havia defendido dissertação de mestrado sobre o tema da informatização do Judiciário e do processo digital. Em 2003, defendeu tese de doutoramento sobre a reglobalização do Estado e a sociedade em rede. Assuntos que hoje, passados 20 anos, ainda enfrentamos com timidez. Preso de modo aviltante, afastado compulsoriamente da reitoria, num contexto sensacionalista, irresponsável e midiático, sem provas, Cancellier, abaladíssimo, suicidou-se atirando-se em um vão de um shopping center em Florianópolis. Recomendo o livro reportagem de Paulo Markun, Recurso Final - a investigação da Polícia Federal que levou ao suicídio um reitor em Santa Catarina, publicado pela Objetiva, em 2021, do qual copio a orelha: "Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi estudante de direito, militante do Partido Comunista e líder estudantil. Trocou a carreira de jornalista pela de assessor político e retornou à Universidade Federal de Santa Catarina dezesseis anos depois, tornando-se reitor com menos de dezoito anos de vida acadêmica. Sem ficha ou antecedentes criminais, no fim da tarde de 14 de setembro de 2017 juntou-se aos 2 mil presos do complexo da Agronômica, em Florianópolis, com outros seis funcionários da UFSC. Só ali teve informações sobre o motivo de sua prisão, ao ouvir a cifra que teria sido desviada do programa de educação à distância da Universidade: 80 milhões de reais. Apesar da surpresa de Cancellier, o número já corria o Brasil em sites e noticiários de TV, que anunciavam a recém-batizada Operação Ouvidos Moucos, que contava com mais de cem policiais federais. No lastro da Lava Jato, deflagrada alguns anos antes (...) a Ouvidos Moucos gerou muita curiosidade e expectativa, colocando o ex-reitor no centro de um furacão de especulações. Mas a insuportável pressão teve um desfecho trágico". O livro de Paulo Markun é uma pérola do jornalismo investigativo brasileiro. Markun é um jornalista sério. O reitor foi considerado culpado, antes de qualquer julgamento. Nas palavras do autor desse importante livro, os últimos dias de Cancellier foram um mal sem cura. O suicídio se deu 18 dias depois da prisão. Passados cinco anos, não há provas que sustentem a acusação, considerada inconsistente pelo TCU. Não se sabe, e nunca se saberá, o sentido íntimo desse gesto de desespero. Talvez, e no limite, o libelo contundente de quem se sente injustiçado. E esse sentimento, todos sabemos, é muito mais forte do que a participação hipócrita num jogo em que as cartas estão marcadas. Como ouvimos na canção (Hurricane) do poeta/compositor Nobel norte-americano (Dylan), "couldn't help but make me feel ashamed to live in a land where justice is a game".
2023-07-09T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-09/embargos-culturais-minha-memoria-professor-cancellier-livro-paulo-markun
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Segunda Leitura
A Revista dos Tribunais nº 1 e o Direito Aplicado em 1912
No ano de 1912 saiu o primeiro número da Revista dos Tribunais, ao qual outros se seguiram, impressos na Tipografia Cardozo Filho & Companhia, na rua Direta, 35, São Paulo [1]. Referido exemplar, na sua primeira página, solenemente anunciava ter na direção o advogado Plinio Barretto e ser uma publicação oficial dos trabalhos do Tribunal de Justiça de São Paulo. A RT, como é conhecida, não foi pioneira. Antes dela, em 1904, na cidade de Belo Horizonte, foi lançada a Revista Forense, que alcançou grande expressão no mundo jurídico nacional. Posteriormente, outras revistas jurídicas foram editadas, como a Revista Trimestral de Jurisprudência do STF (1957-2017) e dos Tribunais de Justiça (v.g., TJ-PR, Paraná Judiciário, 1925-2006) e Alçada, além de editoras privadas. A RT, contudo, teve um destino especial, pois acabou tornando-se a referência nacional por décadas. Como todas as outras, sofreu a ação dos tempos, foi remodelando-se e agora enfrenta a concorrência das publicações feitas na internet. Em abril deste ano o seu exemplar levou o número 1.050, o que, por si só, demonstra a relevância de seu papel no mundo jurídico. Vejamos os históricos volumes I e II. Em 1912 o TJ-SP tinha dez ministros, nome dado aos seus integrantes desde a criação em 1890, época em que o título variava de tribunal para tribunal. Só na Constituição de 1934 uniformizou-se em todo o Brasil o título de desembargador (artigo 104, "e"). A revista não era apenas da jurisprudência do TJ-SP, mas também, ainda que em número reduzido, do STF e de tribunais franceses, italianos e, em menor quantidade, da Alemanha, Bélgica e Inglaterra. Deste país há referência a um caso peculiar, no qual um cidadão pediu despejo por falta de pagamento de imóvel alugado a uma prostituta, tendo sua pretensão indeferida, porque o pedido baseava-se em cláusula contratual considerada imoral (v. II, p. 91). Além de jurisprudência, a revista tinha artigos de doutrina. Em um deles, o autor X. T., que provavelmente era o ministro Xavier de Toledo, comentou casos envolvendo acidentes de automóvel na Justiça francesa (v. II, p. 17-18). Vale aqui lembrar que naquele país surgiram os primeiros precedentes sobre responsabilidade civil, à época com grande influência na jurisprudência brasileira. Fez-se presente também André Rouast, renomado civilista francês, que viveu entre 1885 e 1979, com o artigo Do direito de preferência resultante da colação das dívidas (v. II, p. 3-15). Pareceres também eram publicados. João Mendes Júnior, reconhecido jurista que posteriormente foi ministro do STF, teve publicado seu parecer sobre Os Negócios a termo e os contractos diferenciais, dado para a Associação Comercial de Santos (v. 2, p. 289-302). Uma curiosa seção denominada "Pelas revistas e jornais" comentava casos especiais, bem como fornecia a legislação federal e estadual mais recente. Vale aqui citar a reprodução, na íntegra, de longa sentença do juiz federal Wenceslau José de Oliveira Queiroz, em 18 de março de 2012, na qual negou habeas corpus impetrado por 11 médicos e 1 farmacêutico italianos, formados nas universidades de Nápoles, Pádua, Bologna e Turim, que pretendiam aqui exercer as suas funções sem submeter-se a exame prévio em Faculdade de Medicina do Brasil (v. 1, p. 323-334). Como se vê, a questão de formados fora do Brasil que aqui pretendem exercer a medicina já é bem antiga. A administração da Justiça tinha previsão legal na Lei 18, de 21 de novembro de 1891, regulamentada pelo Decreto 123, de 10 de novembro de 1892 [2]. Seus dispositivos incluem a existência dos juízes de paz, que eram três em cada distrito, eleitos pelo voto popular e com muito poder. Os artigos 62 a 67 tratavam do Juízo Arbitral, algo que hoje é visto como uma grande novidade, mas já existia no século 19. Os agentes do Ministério Público, segundo o artigo 70, eram nomeados dentre os diplomados em direito, sempre que houver algum que acceite o cargo. Quanto aos juízes de primeira instância, na Constituição de São Paulo de 1891 inovou ao dispor que a admissão dos juízes de Direito seria feita por concurso público (artigo 46) [3] o que foi explicitado no artigo 24, §3º, do Decreto paulista 123, de 1892. A mudança, muito embora salutar, gerou revolta de deputados e senadores, tendo sido retirada na Constituição estadual de 1905 e restaurada somente no ano de 1921 [4]. Os julgamentos revelam a precariedade do sistema normativo. Em 1912 as ações civis não tinham Código próprio, o que veio a dar-se apenas em 1916. Portanto, eram julgadas com base nas Ordenações Filipinas, na Consolidação das Leis Civis, de 1858, e em leis especiais. Por exemplo, o casamento, que era objeto do Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890. As ações penais resolviam-se com a aplicação do Código Penal da República, Decreto 847, de 11 de outubro de 1890. O Tribunal de Justiça era dividido em Câmaras Criminais e de Agravos e Câmaras Civis. Ações penais, civis e comerciais eram as que preponderavam. Eram muitos os recursos por crime de homicídio e sedução, raros os casos de furto e roubo. O crime de estupro era julgado pelo Tribunal do Júri, como se vê no julgamento da Apelação crime 5.676, julgada em 25 de abril de 2012 (v. II, p. 33). Nos recursos em ações civis preponderavam questões de sucessão, penhoras e locação. Os conflitos de natureza comercial eram decididos com observância rigorosa das cláusulas contratuais. Havia também recursos de conflitos administrativos, especialmente em casos de desapropriação, educação, funcionalismo público e posturas municipais. A severidade era a regra. Por vezes, surpreendente, como no caso de um oficial de Justiça da comarca de Brotas que, por grave falta funcional, teve, contra si, decretada prisão administrativa por cinco dias, reconhecendo o TJ-SP que de tal decisão não cabia qualquer recurso, nem mesmo HC (Habeas corpus 1725, v. I, p. 364-5). As controvérsias trabalhistas eram consideradas de natureza comercial. A Apelação cível 6.730, da capital, envolvia um caixeiro vendedor que reclamava contra despedida, por ele considerada injusta. O julgamento baseou-se no Decreto 737, de 25 de novembro de 1850 [5], tendo-lhe sido desfavorável. Na verdade, as relações eram baseadas em contratos e, regra geral, o empregador levava a melhor, fato este que motivou, anos depois, a criação da Justiça do Trabalho. A doutrina só era citada em cerca de 5% dos recursos, nos casos de flagrante necessidade para suporte da tese adotada e, na maioria das vezes, em questões civis. Eis alguns dos citados: J. I. Carvalho de Mendonça (Rios e águas correntes), Lafayette Rodrigues Pereira (Direito das Cousas) e Dídimo da Veiga (Direito Hypothecário). Na esfera criminal e administrativa decidia-se com base nos fatos e profunda análise das provas. Nada mais. Algumas comarcas então existentes, como Jambeiro e Patrocínio do Sapucaí, foram extintas. Outras mudaram o seu nome, por exemplo, Faxina, que se transformou em Itapeva, Vila Bela que passou a ser Ilha Bela e Patrocínio do Sapucaí que se converteu em Patrocínio Paulista. Algumas, como a comarca de Jaboticabal, outrora sempre presentes nos recursos estampados na Revista nº 1, perderam com o tempo a sua relevância judiciária. O "Termo de bem viver", que os formados até os anos 1970 conheceram, era aplicado pela Polícia Civil ao tomar compromisso de vadios, bêbados, qualquer classe de indivíduos que perturbassem o sossego público e a paz das famílias. Com a vigência do Código Criminal da República, em 1890, onde ele não foi previsto, surgiu discussão sobre a sua vigência. O doutor Reynaldo Porchat publicou artigo em jornal, reproduzido na revista, no qual sustenta a vigência por força da Lei Estadual 18, de 21 de novembro de 1891 (v. II, p.  407-410). Os "Termos de bem viver" foram utilizados Brasil afora até a vigência da Constituição de 1988. O linguajar adotado nas decisões era muito mais simples e compreensível. Quiçá influenciados pelos hábitos judiciários da França, à época o exemplo a ser seguido, os acórdãos eram curtos e diretos. Por vezes não tinham mais do que uma página. Só em casos muito complexos chegavam a cinco ou seis páginas. Ao alto ia a ementa, com quatro ou cinco linhas. Depois, juntos, o relatório e a motivação, cada um ocupando de meia a uma página. Finalmente a conclusão, precedida da palavra "accordam", onde se encontrava a parte dispositiva. Definia-se minuciosamente o alcance da decisão e quem pagaria as custas, sem qualquer menção a honorários advocatícios, os quais, certamente, eram suportados por quem contratava. Registre-se a franqueza utilizada com frequência nos votos, o que não ocorre atualmente, muitas vezes parecendo que o juiz está a desculpar-se por decidir desta ou daquela forma. Em um caso a sinceridade chegou ao extremo. Trata-se da Apelação crime 5.667, de Sorocaba, um caso de choque de trens com feridos, submetido ao Tribunal do Júri. O ministro Cunha Canto, inconformado com o ocorrido nos autos, afirmou: se o Tribunal quisesse usar de rigor, poderia condemnar o juiz e o promotor nas custas. O processo em debate era um atestado da ignorância de ambos (v. II, p. 32). Eis, pois, o Direito e a Justiça de 111 anos atrás. Nem melhor, nem pior, apenas diferente, porque diferente era a época, as coisas e as pessoas. Conhecer o passado é requisito para compreender-se o momento atual e preparar um futuro melhor.
2023-07-09T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-09/segunda-leitura-revista-tribunais-direito-aplicado-1912
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Justiça Tributária
Reforma tributária aprovada na Câmara foi uma vitória de Pirro
Se você não sabe quem foi Pirro, que menciono no título deste texto, aguarde, pois contarei no final. A avaliação unânime da mídia e dos operadores políticos é que o governo venceu ao aprovar por larga maioria o texto da reforma tributária na Câmara dos Deputados, na semana passada. Realmente, o governo merece os parabéns pela façanha política, que nenhum outro governo no período democrático havia conseguido de forma tão ampla. Neste texto faço uma brevíssima análise crítica do que foi aprovado, independente de aspectos ideológicos, pois a PEC 45, recém-aprovada, bem como sua irmã gêmea, a PEC 110, foram propostas em 2019, durante o governo Bolsonaro, embora diversas PECs tenham tramitado sobre o assunto ao longo do tempo. A aprovação decorreu do esforço conjunto do governo Lula, representado pelo ministro Haddad, e do presidente da Câmara, Arthur Lira. Falta ver o que o Senado fará com o texto. Por ora, o que foi aprovado é, de forma singela, o seguinte: a PEC 45 propunha acabar com cinco tributos (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI), mas acabou criando quatro novos tributos (IBS, CBS, Imposto Seletivo e Contribuições dos Estados). Em concreto, temos então: (1) a reunião do PIS e da Cofins, que passará a ser denominada de CBS — Contribuição sobre Bens e Serviços, cobrada pela União; (2) a reunião do ICMS com o ISS, que passará a ser denominado de IBS — Imposto sobre Bens e Serviços, cobrado pelos estados e municípios, o que só poderá ocorrer nos termos que vierem a ser deliberados pelo Conselho Federativo (o super Confaz); (3) o IPI será transformado em Imposto Seletivo, com funções assemelhadas; e (4) foi criada uma contribuição que amplia fortemente o poder de tributar dos estados, que inclusive poderá voltar a cobrar tributo sobre as exportações, o que recorda os debates ocorridos na década de 90 do século passado (ver artigo 20). Para que o novo sistema funcione, é necessário que o Conselho Federativo seja instalado e se torne operacional, reunindo os 27 governadores e igual número de prefeitos, escolhidos sob critérios que não será apenas o da maioria per capita, mas o da maioria populacional, o que, mais uma vez confunde regras federativas (uma unidade, um voto), com critérios democráticos (uma pessoa, um voto — ver artigo 156-B, parágrafo 4º, I, "b"). E a legislação referente a esse novo tributo (o IBS — Imposto sobre Bens e Serviços) só poderá ser exercida no âmbito desse Conselho Federativo (artigo 156-B), embora a União possa vir a regular de forma isolada a CBS — Contribuição sobre Bens e Serviços, independente do Conselho. Alega-se que haverá plena compensação de créditos, (não-cumulatividade), que ficou assim descrita (artigo 156-A): "VIII – com vistas a observar o princípio da neutralidade, (o IBS) será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, inclusive direito, ou serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos da lei complementar, e as hipóteses previstas nesta Constituição". Isso é extendido "por tabela" ao CBS (artigo 149, "b", IV). Observe-se novamente a remessa do assunto para "os termos da lei complementar", que regulará as exceções, tal como hoje ocorre, gerando enorme insegurança e gigantesca litigância. E a sociedade permanece sem saber quanto vai ser cobrado, pois as alíquotas são definidas por leis ordinárias. Enfim, é o que temos aprovado até aqui. Só essa Emenda Constitucional foi aprovada na Câmara com 36 páginas de modificações de texto normativo (sem contar as justificativas!). Para que esses novos tributos sejam regulamentados terão que ser aprovadas diversas leis complementares, leis ordinárias, decretos, portarias, circulares, formulários etc. Somente ao final de tudo isso é que poderá verificar se o novo sistema será ou não mais simples que o atual. Imaginem só a regulamentação que deverá advir do Conselho Federativo para a efetiva cobrança do IBS. A litigância tributária está contratada pelas próximas três gerações. Já afirmei antes que gosto do sistema IVA de tributação do consumo, mas da forma que está sendo aprovada nos levará a discutir letra por letra essas novas normas durante décadas. Será que o Senado alterará esse sistema? É esperar para ver, embora tenha poucas esperanças de que ocorram substanciais modificações. E quem foi Pirro, mencionado no título do texto? Foi um famoso general que lutou contra o Império Romano em seus primórdios, e, depois de uma batalha em que seus exércitos, a despeito de terem vencido, foram dizimados, disse: "outra vitória como esta e estarei completamente arruinado". Ou seja, ganhou a batalha, mas a um custo gigantesco. E perdeu a guerra. O governo merece os parabéns pelo êxito político, mas espera-se que não tenha sido uma vitória de Pirro, como parece ter ocorrido. Não há nada que não possa piorar, e, no fundo do poço, sempre se pode encontrar um alçapão.
2023-07-10T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-10/justica-tributaria-reforma-tributaria-aprovada-camara-foi-vitoria-pirro
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Direito Civil Atual
Clóvis Beviláqua, fabuloso tradutor de Rudolf von Jhering
Esta coluna é uma breve história de acesso e pedido de digitalização de uma obra rara [1] e, claro, como toda boa narrativa, precedida de um prólogo preparatório. Tudo começa com a leitura de um livro de Clóvis Beviláqua, revelador de sua formação intelectual e de sua admiração especial por seis pessoas as quais denominou de "juristas philósophos" (na linguagem da época): Cícero, Montesquieu, Jhering, Hermann Post, Tobias Barreto e Sylvio Romero [2]. Ali ficava registrado muito de seu tributo acadêmico, em especial, segundo se sabe, à Jhering, por ter lastreado o cimento intelectual que modificaria toda a formação jurídica de uma escola, e que seria citado no Brasil pela primeira vez por Sylvio Romero em 1875 na defesa de tese para obter o grau de doutor em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Recife, momento em que também proclamava a morte da metafísica, num concurso polêmico e ricamente descrito por seu amigo, Tobias Barreto, que assistia atentamente às provas e, logo depois, publicaria, em 1878, Die jurisprudenz des taeglichen Lebens, republicado posteriormente em obra póstuma de 1892 como Jurisprudência da Vida Diária, dirigida por Sylvio Romero [3]. Vale o registro do próprio Tobias Barreto, quando da narrativa sobre o certame: "Ao meu ilustre comprovinciano e amigo Sylvio Romero cabe a honra de ter sido o primeiro que ousou convidar o dr. von Jhering para ir à Faculdade de Direito do Recife, lembrando-se de citá-lo na sua bela dissertação apresentada por ocasião das teses que pretendeu sustentar, porém que tiveram, como é sabido, para glória sua e eterna vergonha dos mestres, aquele triste resultado metafísico-criminal. Isso em março de 1875. Refiro-me ao célebre processo, que se instaurou contra o moço talentoso, por haver dito que a metafísica estava morta, e que os doutores da congregação estranhavam essa verdade "era só por muita ignorância" [4]. Também convém registrar a observação de Hermes Lima, em seu importante estudo biográfico sobre Tobias: "Em 1875, Sílvio, defendendo tese para obter o grau de doutor em ciências jurídicas e sociais, proclamara às barbas da congregação, ao mesmo tempo que era o primeiro a citar Jhering dentro da Faculdade, que a metafísica estava morta. Tobias assistira às provas do amigo, e depois na Jurisprudência da Vida Diária meteu à bulha os catedráticos" [5]. Pois bem, ao escrever e registrar seu débito para com Jhering em Juristas philosophos, revela entrevista pessoal com o filho do próprio Jhering, Hermann von Jhering (1850 – 1930), sobre um fato pitoresco da vida do pai, pois este desejava ter sido magistrado para poder se dedicar também à vida literária, mas quando foi tentar sua admissão para o exercício da magistratura obteve negativa oficial sob o argumento de que seu irmão já havia sido admitido à função judicante, o que obstava a possibilidade vindicada, "obrigando" Jhering a buscar sua luta pela verdade jurídica nas trincheiras da academia, dignificando de maneira maiúscula a função de professor e, por evidente, para o bem de todos que admiramos suas obras [6]. O testemunho da relevância e do tamanho de Rudolf von Jhering no Brasil, não só para uma geração, mas para todo o edifício jurídico brasileiro, se faz notar nos diversos discípulos que teve, dos mais famosos (Tobias Barreto) aos menos conhecidos (Almachio Diniz), e também na leitura atenta da mensagem enviada pela Faculdade de Direito do Recife, através da qual, segundo Clóvis Beviláqua, se curvava "a congregação da faculdade de direito do Recife ante o túmulo do mestre", pois, ainda segundo Clóvis, "em 1892, terminou essa existência gloriosa de sábio, que, aos 74 anos, se extinguia, quase, posso dizê-lo, com a pena entre os dedos". Em nota de pé de página, complementa a informação mencionada de que: "Por essa ocasião, e compartilhando da consternação que avassalara toda a sociedade internacional da ciência, a Revista Acadêmica, em nome do corpo docente da faculdade jurídica do Recife, traduzia, nas palavras que se seguem, o seu doloroso pesar”, complementando: "Essas frases, vertidas para o alemão por meu ilustre colega Adelino Filho, foram enviadas à universidade de Göttingen com as condolências dos professores de direito da escola do Recife": "Vai o século XIX aproximando-se do ocaso, e os astros mais radiosos que fulgiam em seu firmamento se vão, pouco a pouco, apagando, obumbrados na silenciosa escuridade do túmulo, onde a vida objetiva termina e começa a apoteose dos que foram verdadeiramente grandes; onde se vae consumar o drama obscuro da dissolução orgânica, mas onde não se aniquila a fecundação das idéias que, muitas vezes, continua mais vasta e mais vigorosa. Com pungente espetáculo! Quadra de apreensões! Rudolph von Jhering, o profundo pensador, o grande jurista, emulo do preclaro Savigny, e maior do que ele, Rudolf von Jhering, o representante por excelência da renovação científica que, em nossos dias, transformou o estudo do direito, cessou de existir, o que importa dizer: extinguiu-se o foco de luz mais intenso que iluminava a jurisprudência contemporânea. Mas as suas idéias não caíram nos rochedos ardentes das alegorias do Novo testamento. Criaram raízes, alastraram de extremo a extremo do mundo civilizado, e subsistirão eternamente, para atestarem, aos vindouros, a pujança de seu gênio e sua fé ardente na verdade científica. De sua doutrina podemos dizer com Cícero: 'Manet vero et semper manebit; sata estenim ingenio'. No Brasil, é profundo o respeito em que é tido o másculo pensador; são fervorosas as simpatias que suas idéias agremiaram, mormente entre os moços, e quem tem por si a mocidade é senhor do futuro, disse-o ele um dia: — 'Wer die Jugend fur sich hat, dem gehört die Zukunft'. Jhering morreu aos 74 anos. Foi uma longa vida, laboriosa e fecunda, toda consagrada aos interesses da ciência. Sua Finalidade no direito, à qual Felix Dahn aplicou o dístico grego — 'ergo deinón te daimónion te' — obra estranha de um gênio, empresa de gigante, será, por muito tempo, a bíblia nova da filosofia jurídica. O Espírito do direito romano, com os seus geniais complementos, é uma síntese da floração jurídica romana, que os futuros séculos mal terão que retocar. E a inteligência que concebeu e executou obras de tamanho vulto merece a veneração dos coevos e dos pósteros". Esse gigante, quase é dispensável dizê-lo, foi traduzido por Clóvis na obra mencionada, com autorização do próprio Jhering pouco antes de seu falecimento, e Clóvis Beviláqua inicia sua empreitada tradutória citando M. de Jong no original: Er ist der Jurist seines Jahrhunderts und der Zukunft, no início do prefácio nomeado como "Algumas palavras sobre Rudolf von Jhering", com a tradução do trecho selecionado sobre a relevância do autor traduzido: "Ele é o jurista de seu século e do futuro". Relembrando essa apresentação, explica: "Eu mesmo, em 1891, animava-me a dar á estampa a tradução de um dos opúsculos mais eruditos do preclaro mestre— 'A hospitalidade no passado', inserindo opulenta e relevante nota de rodapé: 'Para dar uma ligeira ideia do que é o livrinho de que acabo de falar, transcreverei o que a seu respeito fiz publicar no 'Archivo Brazileiro', dando notícia de seu aparecimento na Alemanha: — 'Die Gaslfreundschaft im Allerthum von Rudolf von Jhering' (Separat-Abzug aus des Deutschen Rundschau, 9 Hest, 1887). É este o título de um interessante escrito do erudito professor de Göttingen, lançado com aquela profundeza de vistas perfeitamente germânica que lhe é tão natural, o trabalho que apresento e recomendo aos leitores do Archivo é um folheto de quarenta páginas, e contendo um estudo sobre a hospitalidade no passado, feito para a Deutschen Rundschau, tirado em separado. Não é preciso dizer que nesta, como em todas as produções de Rudolf von Jhering, encontram-se observações exatas e sutis dos fatos que nos revelam aspectos novos nas relações e nas cousas" [8]. Ingressando no próprio opúsculo, prossegue: "Sua tese fundamental é, segundo as próprias palavras do autor, no último capítulo (Ergebnisse), a seguinte: «o motivo que fez surgir e estabeleceu a hospitalidade no passado, o que a transformou, não foram os sentimentos etílicos, porém os práticos; não foi um motivo desinteressado da consciência humana, porém, a necessidade egoística de tornar possível um entrelaçamento de relações comerciais. Sem a garantia protetora do direito, teria sido impossível uma troca efetiva de relações comerciais no tempo em que os estrangeiros estavam privados de direitos. Debaixo deste ponto de vista se esclarece todo o instituto; sua garantia, sua organização externa, sua história" [8]. Dito isso, realizamos uma viagem temporal, considerando-se o inescapável fato de que os livros, sempre eles, são a mais fabulosa máquina do tempo, e passamos a narrar nosso ingresso no interior da biblioteca Victor Nunes Leal, do STF, na qual há um vasto acervo, um dos melhores do Brasil em obras jurídicas e políticas. Ao fundo da biblioteca, mais discreto, existe um local reservado às coleções pessoais de Levi Carneiro, Pontes de Miranda e Hahnemann Guimarães, doados por seus familiares, com obras absolutamente únicas, infelizmente menos acessadas do que deveriam. Há, contudo, um terceiro local, um pouco mais ao fundo, numa porta lateral, no acervo chamado de "obras raras", com estantes blindadas de proteção contra incêndio. Nesse terceiro lugar estava adormecido um exemplar único da obra mencionada (A Hospitalidade no Passado), traduzida em 1889, embora publicada somente em 1891. O livro passou por uma restauração magnífica, e, com imensa alegria, pela terceira vez, tivemos oportunidade de folhear suas páginas ardentes, embora usando luvas e máscara próprias, um pouco incomodas (mas necessárias). Cuida-se um exemplar assinado pelo próprio Clóvis Beviláqua e com dedicatória a um amigo próximo: Alberto Juvenal do Rego Lins, sendo possível exercitar a imaginação sobre os leitores daquele exemplar, passando das mãos do autor e da história da tradução, além da importância do autor traduzido. Não menos excitante também é imaginar o caminho percorrido pela obra, entre o momento de seu lançamento e a sua chegada à biblioteca da Suprema Corte, e agora com um desfecho de publicização. Desta vez pedimos, e, graças aos diligentes servidores da Biblioteca Victor Nunes Leal do STF, conseguimos fazer com que essa obra fosse encaminhada à digitalização para disponibilização com vistas ao acesso público de todos, iniciado no início do mês. Celebremos, pois, o grande Jhering e seu fabuloso tradutor Clóvis Beviláqua. Celebremos a esperança depositada nos leitores que poderão, em maior extensão, tomar esse veículo do tempo, numa carona com juristas de seu século e também do futuro, como relembrado, com vistas a contribuir para a continuação de suas obras ou no enriquecimento das pesquisas jurídicas do Brasil.
2023-07-10T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-10/direito-civil-atual-clovis-bevilaqua-fabuloso-tradutor-rudolf-von-jhering
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Direito Eleitoral
TSE fez uma necessária e urgente releitura do abuso de poder
Na ação de investigação judicial eleitoral movida pelo Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral, em 30 de junho de 2023, concluiu o julgamento que decidiu, por maioria, condenar o ex-presidente "pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022" [1]. A síntese da causa de pedir foi a realização de reunião no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho de 2022, oportunidade na qual o investigado proferiu discurso que, na ótica do TSE, pretendia deslegitimar o processo eleitoral por meio da veiculação de desinformações. Esses fatos e seu respectivo enquadramento jurídico precisam ficar muito claros para que se compreenda a dimensão do que foi considerado abuso de poder pela maior instituição da Justiça Eleitoral do país e que resultou na inédita decretação de inelegibilidade do antigo ocupante do mais importante cargo da República. Embora sejam corriqueiras as acusações de utilização da máquina pública em benefício de candidatos no âmbito municipal, estadual e mesmo federal, há um elemento na condenação de Bolsonaro que ultrapassa o patrimonialismo típico do desvio de finalidade que apropria indevidamente a estrutura estatal em prol de campanhas políticas. Tradicionalmente, as espécies de abuso de poder imputadas a Bolsonaro se fundamentam na premissa da garantia à paridade de armas, segundo a qual deve ser assegurada a todos os candidatos uma disputa eleitoral com igualdade de oportunidades por meio da conquista legítima da preferência do eleitorado, a fim de mitigar as assimetrias decorrentes do uso indevido do poder econômico, político e dos meios de comunicação. Esse paradigma, que se preocupava antes em fiscalizar a instrumentalidade do processo eleitoral com o adequado uso dos recursos materiais e financeiros pelos candidatos, não parece ser mais o horizonte interpretativo suficiente para conferir a legitimidade da disputa política hodierna. O elemento inovador que o julgamento de Bolsonaro suscita é o olhar da Justiça Eleitoral dirigido para a substância, para o conteúdo da plataforma eleitoral sustentada pelo candidato, que sobeja como fundamento decisivo para a caracterização do ato ilícito. Os rótulos das categorias de abuso de poder empregados pelo Tribunal Superior Eleitoral, na realidade, apenas expressam a exteriorização no mundo empírico quanto à utilização da estrutura do Palácio da Alvorada (abuso de poder político), da TV Brasil e da divulgação em redes sociais (uso indevido dos meios de comunicação social), mas cujo verdadeiro abuso se assenta mais em função do conteúdo de seu pronunciamento e menos no modo pelo qual ele foi transmitido. Não que antes não se examinasse o teor das mensagens propagadas pelos candidatos para aferir a desvirtuação da máquina administrativa ou dos meios de comunicação social, sob a ótica da promoção pessoal, visando a auferir dividendos eleitorais, que, de maneira mais ou menos implícita, dissimulava a condição de candidato no exercício da função de gestor. Essa deformação passou a adquirir outra conotação quando o TSE decidiu, em 7 de dezembro de 2021, que "ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade — quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito — e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim" [2], no caso que levou à cassação do deputado paranaense Fernando Francischini. A teleologia dessa perspectiva do abuso de poder não se explica pela ruptura do princípio da impessoalidade na administração pública mediante o aparelhamento de sua estrutura para confundir o eleitorado entre o que seriam as ações do candidato e as ações do agente estatal. Aqui, não há elementos próprios da propaganda eleitoral no sentido de enaltecer as qualidades pessoais do candidato para incutir no eleitorado a ideia de que ele é o mais apto a exercer a função pública, tampouco pedido de voto ou apoio em seu favor. O benefício eleitoral, nesse contexto, advém da adesão angariada entre os cidadãos adeptos de teorias conspiracionistas, em princípio, contra o sistema eletrônico de votação, mas também da canalização de ideais contrárias à democracia. Não se alude à quebra de paridade de armas na acepção de que um candidato ostenta uma posição privilegiada no pleito decorrente da utilização abusiva de recursos públicos ou privados em detrimento de outras candidaturas, mas consiste, sobretudo, na ilegitimidade da preferência eleitoral inspirada por impulsos antidemocráticos. Essa tênue distinção entre os dois paradigmas de abuso de poder acima expostos, inclusive, não escapou à sagacidade da defesa do investigado, Jair Messias Bolsonaro, que logo se ocupou de arguir a incompetência da Justiça Eleitoral, uma vez que a reunião com os embaixadores, em que foi questionada a confiabilidade das urnas eletrônicas, estaria despida de caráter eleitoral, por se tratar de típico ato de governo; tese que foi, contudo, refutada pelo Plenário da Corte. O precedente do final de 2021, que pavimentou o caminho para o julgamento de Bolsonaro, gerou desdobramentos que atestam a existência concreta de uma nova dimensão do abuso sobre o qual a Justiça Eleitoral agora é instada a enfrentar. Em 16 de março de 2023, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, por maioria, condenou à inelegibilidade o deputado estadual, Delegado Cavalcante, então candidato a deputado federal, em virtude de discurso proferido em comício realizado em 7 de setembro de 2022 com o seguinte teor: "O presidente Bolsonaro é o mais querido, é o que a população está querendo. E não vamos aceitar que as urnas dê a vitória para quem não presta. E digo mais: se a gente não ganhar... se a gente não ganhar — eu vou repetir — se a gente não ganhar nas urnas, se eles roubarem nas urnas, nós vamos ganhar na bala. Na bala. Nós vamos ganhar na bala. Não tem nem por onde. Nós vamos ganhar na bala" [3]. O voto divergente que prevaleceu demonstrou a similaridade com o "Caso Francischini" e reputou presente o abuso de poder político, em função do suporte da estrutura político-partidária para o comício, além da condição de deputado estadual, e o uso indevido dos meios de comunicação, pois o candidato publicou sua fala em perfil de rede social. Os julgamentos de Francischini e Cavalcante expõem como desinformação, incitação à violência e ameaça às instituições democráticas estão entrelaçadas enquanto formas de discurso destinadas à captura da preferência eleitoral e que, por isso, deslegitimam os mandatos eventualmente conquistados sob essa plataforma política, além de impor a decretação à inelegibilidade como medida de proteção do Estado Democrático de Direito em face daqueles que contra ele atentaram. A evolução da divulgação de informações inverídicas sobre urnas eletrônicas e o sistema eletrônico de votação até a pregação do recurso à insurreição armada contra o Estado de Direito não é uma mera contingência dessa expressão do abuso. Trata-se de realidade presente a ascensão do populismo de caráter antidemocrático, que, segundo explica Jan Werner Müller [4], não representa uma face legítima da moderna política democrática, tampouco uma patologia decorrente de cidadãos irracionais. Esse fenômeno é a sombra permanente da política representativa, tendo em vista que os populistas não se opõem aos princípios dessa representatividade, mas apregoam a narrativa de que somente eles podem ser considerados os representantes legítimos do povo, isto é, são antipluralistas. Apenas eles representam o povo e todos os outros competidores políticos são ilegítimos. O povo, para eles, é uma entidade moral homogênea cuja vontade não erra. Por isso, argumenta Müller que populistas devem ser criticados não apenas como antiliberais, mas, sobretudo, como um real perigo para a democracia, de modo que sua participação no debate político seria condicionada a que se mantenham na legalidade e não incitem a violência. Esse viés autoritário do populismo aposta em uma razão binária beligerante que reproduz uma lógica de ódios e afetos para legitimar todos aqueles que integrem a comunidade moral que detém o monopólio da condição de "povo" e, por conseguinte, deslegitimar os excluídos. Essa plataforma política que aposta na divisão no lugar do consenso e explora o preconceito em vez de combatê-lo, agrava a intolerância, que é crescente no Brasil e no mundo. No campo político, a intolerância consiste na tentativa de apagar ou não admitir pontos de vista diferentes daqueles do próprio indivíduo, enquanto a intolerância na esfera social se caracteriza pela falta de habilidade ou disposição em respeitar as diferenças de toda ordem entre as pessoas, que, conforme Lilia Schwarcz, se expressa na forma de "racismo, misoginia, antissemitismo, homofobia, pragmatismo religioso ou político, horror aos estrangeiros (...)" [5]. Contra essa ameaça à democracia ainda não há resposta institucional pronta e acabada. Muito se mencionou no debate público recente o paradoxo da tolerância de Karl Popper, abordado em sua obra A Sociedade Aberta e seus Inimigos, para propor uma explicação sobre limites da convivência com a intolerância no regime democrático. Não se atentou, contudo, que antecede o paradoxo da tolerância a referência de Popper ao paradoxo da liberdade formulado por Platão, que critica uma versão demasiadamente ingênua do liberalismo, da democracia, e do princípio majoritário, que propõe implicitamente a indagação: "E se for vontade do povo, não que ele próprio governe, e sim um tirano em seu lugar?" [6]. Nesse caso, o homem livre, no exercício de sua liberdade, desafia a própria liberdade e clama por um tirano. Para se evadir dessa contradição, Karl Popper oferece uma compreensão do problema que não se baseia nas qualidades intrínsecas das virtudes do princípio majoritário, mas nos vícios da tirania e na adoção de mecanismos que lhe evitem e resistam. Segundo o filósofo, deve ser classificado como democracia o governo do qual se livra sem derramamento de sangue, por meio de eleições gerais e instituições sociais que assegurem a retirada pacífica dos governantes e que não sejam facilmente destruídas pelos detentores do poder, ao passo que tirania, ou ditadura, representam o contrário, isto é, os governados não conseguem expurgar os governantes a não ser por meio de revoluções vitoriosas. Daí por que Popper afirma que o princípio de uma política democrática deve ser agora uma proposta de criar, desenvolver e proteger as instituições políticas, para evitar a tirania, pois o princípio democrático significa aceitar que uma política má na democracia, desde que persista a possibilidade de mudança pacífica do governo, é preferível à subjugação por uma tirania, por mais sábia ou benévola que seja. A teoria da democracia não se baseia, assim, no princípio absoluto do governo da maioria, mas na existência de métodos igualitários para o controle democrático. O sufrágio e o governo representativo, mais do que fins em si mesmos, devem ser considerados, na realidade, eficazes instrumentos de salvaguarda institucional contra a tirania, passíveis de constante aperfeiçoamento. Essa é a perspectiva que o conceito guarda-chuva do "abuso de poder" no Direito Eleitoral necessita incorporar. Até então, a ênfase no aspecto político, econômico ou no uso de meios de comunicação social restringe as ferramentas de proteção do regime democrático e nem sempre se mostra suficiente a coibir adequadamente discursos antidemocráticos patrocinados pelos candidatos. Na esteira dos precedentes que vem se formando sobre a matéria, o abuso de poder consistente em ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia depende da utilização da prerrogativa do poder político e/ou de sua veiculação nos meios de comunicação social, incluída a internet. Nos casos Francischini e Cavalcante, o exercício da função parlamentar foi considerado como elemento para caracterizar o abuso de poder como político ou de autoridade e a divulgação em suas redes sociais de suas falas foi enquadrada como uso indevido dos meios de comunicação. Essas condicionantes excluem da incidência do campo do abuso de poder o candidato que não exerce mandato ou é agente público, em sentido estrito ou amplo, como também não alcança pronunciamentos que não sejam veiculados nos meios de comunicação social, como falas em reuniões particulares, visitas a eleitores e comunidades, entrevistas concedidas a rádios e televisões sobre os quais não detém gerência, discursos em comícios e espaços públicos ou qualquer modalidade de propagação de ideias antidemocráticas que se opere na clandestinidade. Se um candidato, nessa simples condição, atenta contra a democracia por meio da realização de discursos políticos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito sem que isso seja veiculado em suas redes sociais ou algum veículo oficial de comunicação da campanha, uma visão estreita do abuso de poder o eximiria de vir a ser responsabilizado com a perda do mandato ou com a decretação de inelegibilidade. Essa lacuna da doutrina do abuso de poder há de ser preenchida com a devida extensão que as ameaças à democracia exigem para que o ato ilícito contemple toda e qualquer manifestação de candidatos que pretendam captar a preferência eleitoral com base em plataformas políticas autoritárias, que incitem o ódio e a intolerância, com manifesto conteúdo desinformativo [7]. O julgamento de Bolsonaro é o convite urgente para que as instituições se aperfeiçoem e incrementem a sua grade de proteção e defesa da democracia pela Justiça Eleitoral. [1] TSE. Aije n. 0600814-85.2022.6.06.0000. Rel. min. Benedito Gonçalves. Julgado em 30/06/2023. [2] TSE. Recurso Ordinário Eleitoral nº 0603975-98.2018.6.16.0000. Rel. min. Luís Felipe Salomão. Julgado em 07/12/2021. [3] TRE/CE. AIJE n. 0602936-06.2022.6.06.0000. Rel. Designado juiz George Marlmeinstein Lima. Julgado em 16/03/2023. [4] MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2016, p. 101. [5] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 214. [6] POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 138. [7] Essa proposta é defendida na obra A tolerância no processo eleitoral: contornos jurídicos e perspectivas, resultado da tese de doutorado defendida por este autor no Programa de Pós Graduação da Universidade de São Paulo, publicada pela editora Lumen Juris.
2023-07-10T08:00-0300
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Opinião
Balazeiro e Bastos: Profissões qualificadas e IA
O fato de que o surgimento de novas tecnologias possui inexorável impacto nas relações de trabalho não encerra novidade alguma. Desde o movimento ludita do início do século 19 na Inglaterra, quando se atribui a Ned Ludd a destruição de máquinas têxteis em um ato de revolta contra o avanço técnico até, muito anos após, por ocasião dos debates constituintes brasileiros de 1988, ao se reconhecer os efeitos de redução de empregabilidade decorrentes da mecanização em um país de monoculturas regionais como o café ou cana-de-açúcar, sempre se atestou a influência das transformações tecnológicas no mundo trabalho e a necessidade de se reforçar as estruturas de proteção social. Talvez o grande debate no momento resida na profundidade e no alcance dessas transformações frente aos desenvolvimentos na área da inteligência artificial (IA) — notadamente na sua velocidade e nas profissões e quantitativos de trabalhadores atingidos pelas. A inteligência artificial é objeto de estudo de cientistas da computação de forma sistemática desde a década de 1950 — notadamente a partir da Conferência de Dartmouth, realizada no verão de 1956, no Dartmouth College, New Hampshire nos Estados Unidos. Embora o tema não seja absolutamente recente, tem havido uma crescente preocupação com a aplicação dessa tecnologia. Sabe-se que antes do estudo sistematizado das últimas setenta décadas, considerações sobre a inteligência artificial podem ser rastreadas até antiguidade, com fez Pierre Marquis[1] e seus colegas ao compilarem contribuições de Aristóteles, Abu Bishr Matta ibn Yunus e Thomas Bayes. Por certo, o que Marquis buscou identificar nessas experiências passadas foram os elementos básicos da inteligência artificial, como os preciso conceitos da lógica e da matemática que são a base para essa tecnologia. Do período em que o termo cotidiano foi cunhado, a computação avançou a passos largos. Ocorre que o avanço dos equipamentos (hardwares) — seguindo a Lei de Moore que previu, em 1965, com surpreendente grau de acerto, que a capacidade de processamento duplicaria a cada dois anos — ocorreu de forma mais notada que o avanço da programação ou dos softwares.  E aqui reside o assombro do momento. É que as aplicações que usam inteligência artificial nos últimos anos evidenciam um salto exatamente das peças de programação (softwares). Embora os modelos de linguagem sejam a faceta da IA que mais impressiona — suscitando debates sobre inteligências similares às humanas — a verdade é que a IA é uma tecnologia com diversas aplicações além do processamento de linguagem natural (PLN, na sigla em inglês). Outros ramos da IA incluem por exemplo o processamento de imagens (visão computacional) e análise de dados massivos (big data) tendem a ser amplamente aplicados em todos os processos computacionais. Ademais, há ainda ramos que incluem o aprendizado de máquina, a robótica, os sistemas especialistas e as redes neurais. Nos últimos anos — e, com maior ênfase, nos últimos meses, com a popularização de aplicativos como o ChatGPT — tem sido crescentes os debates sobre as ferramentas que utilizam IA. A diferença é que agora as discussões não se centram apenas na admiração ou nos benefícios dessas aplicações, tendo como cerne, em realidade, o receio dos efeitos deletérios da IA na sociedade. Uma pesquisa no Google Trends, serviço que mede o quanto um termo é usado na internet, revela que a busca por "inteligência artificial" dobrou de setembro de 2022 a julho de 2023. Para que se tenha uma breve noção da enorme preocupação com o desenvolvimento da inteligência artificial, em maio passado, trezentos e cinquenta cientistas e executivos de tecnologia lançaram um manifesto alertando sobre os perigos existenciais dessa tecnologia. Chegaram a afirmar que "mitigar o risco de extinção pela IA deve ser uma prioridade global, juntamente com outros riscos de escala societal, como pandemias e guerra nuclear". Pouco antes, empresários da área de tecnologia como Elon Musk (Tesla) e Steve Wozniak (co-fundador da Apple) pediram uma moratória de seis meses no desenvolvimento de sistemas avançados de IA. É bem verdade que a preocupação vai muito além do mercado de trabalho, chegando a se cogitar em risco existencial para a humanidade, a exemplo de outra tecnologia que se começou a desenvolver uma década antes: a energia nuclear. Filósofos, cientistas, engenheiros e empresários se filiam a previsões de que a inteligência artificial possa conduzir a uma superconectividade — conhecida como inteligência artificial geral — ou mesmo cruzar um ponto específico chamado de singularidade[2]. Para os cientistas da computação a singularidade trará mudanças sociais e históricas de tamanha relevância que sequer poderíamos entender do ponto de vista do presente. Ray Kurzweil,  festejado autor de "A Singularidade está Próxima"[3], chega  a afirmar que a singularidade seria um ponto futuro no qual o progresso tecnológico acelerado levará a mudanças radicais e imprevisíveis na sociedade humana. A questão nodal é que em um horizonte muito mais curto — como a atual fase de assombro com o ChatGPT — algumas implicações, com os efeitos no mercado de trabalho já são prementes. A relação entre inovações e o mercado de trabalho sempre foi observada de perto. Hoje são bastante diminutos os contingentes de datilógrafos e telefonistas — ocupações relativamente comuns no passado. A digitalização levou ao sumiço das revelações de fotografias, do telex e do fax. Mas quais seriam as profissões vulneradas pela IA? Há receios de que trabalhadores da indústria de publicidade sofram com o dall-e, sistema capaz de gerar imagens com requinte artístico seguindo instruções textuais [4]. Outros profissionais frequentemente citados são trabalhadores da indústria manufatureira, bem como o pessoal alocado nas atividades de atendimento ao consumidor — já em grande escala substituídos por chatbots e assistentes virtuais baseados em IA que não se comparam com os primeiros sistemas baseados em voz e que tinham uma marguem de acerto tão reduzida que foram descontinuados — ou, ainda, motoristas, notadamente nos EUA onde os avanços com veículos autônomos e sistemas de entrega autônomos já deixaram de ser previsões futuristas, dentre outras. Um aspecto menos abordado, contudo, parece ser o impacto da IA nas chamadas profissões mais qualificadas. É referenciado que a engenharia, em suas diversas áreas, costuma selecionar pessoas com alta capacidade analítica e raciocínio matemático para formar profissionais capazes de projetar aplicações técnicas, de pontes a robôs da indústria automobilística, passando pela produção de alimentos industriais, pela produção agrícola, aeronáutica, e a geração e distribuição de energia. A questão é que as atividades de projeto vêm sendo desempenhadas com qualidade cada vez maior por sistemas de IA. E o que dizer da atividade de desenvolvimento dos próprios softwares? Paradoxalmente, essa é uma das funções da IA consideradas mais bem sucedidas, exatamente a redação de algoritmos de programação. Habitualmente os avanços tecnológicos que vulneram trabalhos precários são discutidos com cerne na preocupação em se manter emprego e renda, e a médio e a longo prazo, com o objetivo de que esses avanços possibilitem a requalificação das pessoas para atividades, cujo labor seja socialmente mais valorizado, tais como o trabalho de médicos, advogados, servidores públicos. Mas ainda são poucas as reflexões concernentes à incidência da IA sobre esses trabalhos para os quais se exigem maior qualificação técnica formal. Profissões de nível superior costumam ter profissionais orgulhosos da alegada complexidade de seus trabalhos. Mas não é absurdo cogitar que parte do trabalho desempenhado por profissionais da área jurídica e médica sejam atingidos por sistemas que desempenhem essas atividades de forma idêntica — talvez não com a mesma qualidade, mas certamente de forma satisfatória diante de sistemas cada vez mais massivos. O tema causa ainda maior preocupação quando se percebe em nosso país uma tendência à compreensão de que as profissões tidas por mais qualificadas resultariam em maior carga de autonomia e, por essa razão, não necessitariam do manancial de proteção do direito do trabalho. Com efeito, sob o argumento de maior autonomia, há que se ter em mente que a guinada de utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no mundo do trabalho tem servido como novo instrumento para o esgarçamento das condições de trabalho nas profissões mais qualificadas e, especialmente, nos trabalhos precários. É o que se visualiza, sem grandes dificuldades, em trabalhos tais como aqueles realizados integralmente em regime de home office e nos intermediados por plataformas digitais, nos quais, via de regra, os trabalhadores arcam com os custos para a execução do trabalho — o que não se verifica em trabalhos regulados por normas jurídico-trabalhistas. Não fosse isso, é atribuída a Neils Bohr a sentença precisa e irônica de que é muito difícil fazer previsões, especialmente para o futuro. Mas nos arriscando um pouco, não nos parece haver no horizonte próximo — ou, ao menos esperamos que não haja — o risco de que a IA se traduza em um cenário digno da ficção científica de cinema, em que haja completa dominação dos homens pelas máquinas. Todavia, sem a ousadia de conceber uma singularidade, podemos prever um reequilíbrio nas preocupações de futuro entre as chamadas profissões mais qualificadas e as menos qualificadas. Há um quarto de século, Domenico de Masi, de grande e singular repercussão no Brasil, propunha um futuro do trabalho na era pós-industrial onde as pessoas poderiam focar nos trabalhos mais criativos e qualificados[5]. Atualmente, os mais entusiastas da IA defendem uma era de abundância e prosperidade com a mesma promessa de um futuro com mais tempo livre e melhor qualidade de vida. Nessa nova equação, entrementes, a ideia de se dedicar às atividades intelectuais e mais criativas pode não ser tão promissora. A substituição de parte da mão de obra na lavoura de cana-de-açúcar por maquinário agrícola não pode ser acusada de uma deterioração da qualidade do trabalho. Isso porque o trabalho nessa área já era tido como precarizado, como regra geral. Por outro lado, essa tendência demandou — e ainda demanda — debates sobre reposicionamento profissional, qualificação e geração de políticas de inclusão social através de programas de renda mínima [6]. Uma eventual escassez na demanda por engenheiros, artistas, programadores e operadores do direito teria de ser enfrentada por outros tipos de medidas. A propósito, na 111ª Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho, realizada em junho de 2023, foi aprovada resolução sobre a segunda discussão recorrente acerca da proteção dos trabalhadores, aludindo expressamente à necessidade de se avaliar os impactos da inteligência artificial e do gerenciamento algoritmo para esse escopo protetivo. De modo especifico, ali compreendeu-se que a Organização Internacional do Trabalho deve intensificar suas atividades de desenvolvimento de conhecimento e capacitação quanto à avaliação de impacto e conscientização sobre os desafios e oportunidades colocados pela digitalização, como inteligência artificial e gerenciamento algorítmico, para a proteção dos trabalhadores, incluindo riscos emergentes de SST, a fim de apoiar respostas políticas que garantam justiça, transparência e não discriminação de decisões. O ser humano moderno se acostumou aos avanços tecnológicos. Nos últimos 200 anos todas as gerações se maravilharam com avanços técnicos e passaram a viver, no fim de suas existências, um mundo diferente daqueles que conheceram na infância. Se é certo que as atuais preocupações com a IA vão além das relações de trabalho, também é inquestionável que as implicações desse fenômeno são de difícil avaliação e exigirão uma abordagem mais ampla que perpasse pelo sistema educacional, pela regulamentação legal das profissões pela própria estrutura do mercado de trabalho. E essa abordagem mais ampla, inclusive sob o viés protetivo e principiológico do direito trabalhista, também terá de incluir as profissões mais valorizadas socialmente para as quais também tem havido importantes efeitos para os trabalhadores decorrentes da inserção da IA e das TICs. [1] Pierre Marquis, Odile Papini, Henri Prade. Elements for a History of Artificial Intelligence in  A Guide Tour of Artificial Intelligence Research 1: Knowledge Representation, Reasoning and Learning. Springer Nature Switzerland AG 2020. [2] O termo singularidade na tecnologia da informação não se confunde com o emprego na matemática e na física. Na matemática a singularidade está relacionada com ponto no qual um dado objeto matemático não é definido; normalmente quando uma função tende a um valor zero no denominador. Para a física, a singularidade normalmente envolve situações em que igualmente o denominador tende a zero e, consequentemente, o resultado da função tende ao infinito. [3]Kurzweil, Ray. Singularidade está próxima quando os humanos transcendem a biologia. Brasil, Iluminuras, 2018. [4] We Need to Talk About How Good A.I. Is Getting. Kevin Roose. The New York Times. 24 de agosto de 2022. [5] Domenico de Masi. O Futuro do Trabalho: Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. 4ª ed. UNB: Brasília, 2000. [6] Em julho de 2022, o Procurador-Geral da República ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO 73, apontando mora do Congresso Nacional em regulamentar o artigo 7°, inciso XXVII, da Constituição Federal que confere aos trabalhadores urbanos e rurais o direito social à proteção em face da automação.
2023-07-11T17:26-0300
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Direitos Fundamentais
Direito fundamental à segurança jurídica na Constituição
O princípio da segurança jurídica constitui elemento essencial e princípio estruturante da noção de Estado de Direito, visto que a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano [1], viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização [2]. No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF), após mencionar a segurança como valor fundamental no seu Preâmbulo, a incluiu no seleto elenco dos direitos "invioláveis" arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade. Muito embora em nenhum momento tenha o nosso constituinte referido expressamente um direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos da Constituição, como é o caso, dentre outros (e limitamo-nos aqui a exemplos extraídos do artigo 5º, da CF, do princípio da legalidade e do correspondente direito a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), da expressa proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI), da irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º, inciso XL [3]. Igualmente, é possível reconhecer o princípio da segurança jurídica como implicitamente consagrado no artigo 37 da CF, ao dispor sobre os princípios regentes da administração pública, como é o caso da legalidade. Da mesma forma, existem manifestações importantes da segurança jurídica no campo das limitações constitucionais ao poder de tributar, em especial no artigo 150, inciso I (é vedado aos entes federativos exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça), inciso II (vedação de tratamento desigual entre os contribuintes), inciso III, letras "a", "b" e "c" (todos relativos à irretroatividade em matéria tributária). Além disso, de há muito resulta incontroverso, em sede doutrinária e jurisprudencial (destaque para a prática decisória do STF e do STJ) que a CF consagra um princípio geral e fundamental da segurança jurídica e um correspondente direito fundamental, ambos implicitamente positivados no texto constitucional, cujos conteúdos e alcance serão devidamente desenvolvidos logo a seguir. Quanto ao conteúdo do princípio da segurança jurídica, como bem destaca Gomes Canotilho, em lição que recolhemos como pressuposto da nossa análise, o princípio da segurança jurídica (aqui também tomado em sentido amplo como abrangendo a proteção da confiança) exige tanto a confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder público, quanto a segurança do cidadão no que diz com as suas disposições pessoais e efeitos jurídicos de seus próprios atos, de tal sorte que tanto a segurança jurídica quanto a proteção da confiança incidem em face de qualquer ato de qualquer órgão estatal [4]. A segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual das suas próprias posições jurídicas [5]. De acordo com a lição de Hartmut Maurer, a segurança jurídica pode ser compreendida em sentido dúplice, pois, se por um lado, ela se refere à função do direito, visando assegurar segurança por meio do direito, no sentido de que o direito deve criar uma ordem consistente e segura, por outro, ela forma um princípio estruturante, que diz com a clareza e determinação do próprio conteúdo das normas, de modo a assegurar a segurança do direito [6]. De modo complementar, Virgílio Afonso da Silva assinala que os objetivos primordiais da segurança jurídica são "a garantia de certa estabilidade em relação a fatos jurídicos ocorridos no passado, de clareza em relação ao direito vigente no presente, e de alguma forma de previsibilidade para as relações jurídicas futuras" [7]. A segurança jurídica pode ser compreendida, em certa medida, como uma "ponte normativa intertemporal" a (inter)ligar o passado, o presente e o futuro, no tocante aos atos e fatos jurídicos (legislativos, administrativos e jurisprudenciais). Na feliz síntese de Gomes Canotilho, a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva (do direito objetivo), aponta para a garantia da estabilidade de ordem jurídica, ao passo que, do ponto de vista subjetivo, exige que o cidadão (indivíduo) possa confiar nos atos do Poder Público, no sentido da calculabilidade e previsibilidade dos seus (dos atos do Poder Público) respectivos efeitos jurídicos [8], o que, por sua vez, remete à noção de proteção da confiança legítima como expressão essencial da segurança jurídica no Estado de Direito [9]. A proteção da confiança, como corolário do princípio da (e direito fundamental à) segurança jurídica, de há muito encontra guarida e aplicação na jurisprudência do STF [10] e do STJ [11]. Note-se, também nessa quadra, que a estabilidade e previsibilidade em termos institucionais (incluindo a estabilidade e previsibilidade jurídica) é fundamental para o exercício dos direitos fundamentais do cidadão, particularmente nas relações jurídicas travadas em face do Estado, na medida em que a dignidade humana não restará suficientemente respeitada e protegida onde as pessoas estejam expostas a tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas [12]. Aspecto que há de ser repisado e enfatizado, é que a segurança jurídica, portanto, para além da sua conformação normativa como princípio da nossa ordem constitucional (com as funções, manifestações e exigências já sumariamente apresentadas), assume também o status de direito e garantia fundamental, o que reforça a sua dupla dimensão objetiva e subjetiva [13]. Todavia, aquilo que se pode designar de um direito fundamental à segurança jurídica, na condição de direito fundamental em sentido amplo, veiculado e garantido por uma norma de natureza principiológica, somente pode ser compreendido e concretizado mediante o reconhecimento de sua multidimensionalidade e das posições jurídicas nas quais se decodifica, incluindo direitos fundamentais especiais de segurança jurídica, mas também a sua articulação com outros princípios e direitos fundamentais. O princípio (e direito fundamental) da segurança jurídica, nesse cenário, opera, em primeira linha, como uma garantia de proteção dos direitos fundamentais em face da atuação do legislador e do administrador, tanto no âmbito constitucional quanto — e de modo especial — infraconstitucional, frente a medidas legislativas e administrativas que impliquem supressão ou restrição nos níveis ou patamares de proteção dos direitos já existentes, muito embora tal proteção também se dê relativamente em face do Estado-Juiz. Os atos legislativos e administrativos — mas também as decisões judiciais —, por meio dos efeitos e consequências jurídicas concretas que operacionalizam, para além de impactarem direitos e garantias desde a sua vigência, igualmente criam expectativas legítimas para os titulares de posições jurídicas asseguradas por tais atos estatais, notadamente em vista da confiança (no Estado) de que o seu exercício será respeitado e assegurado hoje e no futuro [14]. Nesse sentido, é exemplar decisão do STF, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, reconhecendo as perspectivas objetiva e subjetiva derivadas do regime jurídico-constitucional de proteção da segurança jurídica:  "O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais." [15] É pertinente, nesse contexto, sublinhar que a tese de que restrições de direitos — para além da observância das exigências da reserva legal, da proporcionalidade e da proteção do núcleo essencial — não devem ser retroativas implica a vedação de intervenções restritivas arbitrárias e excessivas por parte dos poderes estatais no âmbito de proteção de direitos e garantias fundamentais, inclusive pelo fato de que a retroatividade de medidas restritivas representa ofensa ao direito fundamental à e princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, a segurança jurídica, dotada de status e regime jurídico de direito fundamental, implica posições jurídicas subjetivas de natureza defensiva ou negativa, que blindam restrições retroativas, a fim de assegurar a integridade, estabilidade, certeza e previsibilidade na aplicação do direito a fatos jurídicos pretéritos e que já produziram efeitos (tanto no mundo jurídico quanto no mundo fático). No que diz respeito à dimensão objetiva do princípio e do direito fundamental da segurança jurídica, todos os atores estatais encontram-se vinculados (a exemplo do que ocorre com os direitos fundamentais em geral) por deveres de proteção que implicam a adoção de medidas positivas e eficazes para assegurar níveis satisfatórios de segurança jurídica [16]. Note-se, nesse contexto, que eventual omissão ou mesmo ação que não assegure níveis satisfatórios de eficácia aos deveres de proteção, representa uma violação da assim chamada proibição de proteção insuficiente e, portanto, consiste em violação do(s) direito(s) fundamental(ais) em causa [17]. Tendo aqui apresentando, em linhas gerais e numa perspectiva introdutória, o conteúdo e o significado do princípio da segurança jurídica e do correlato direito fundamental à segurança jurídica na CF, remetemos o leitor à próxima coluna, onde teremos a ocasião de desenvolver um pouco mais o tema.   [1] Cf. bem lembra MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 113. [2] Na doutrina, v. SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed., Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2018, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. Cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 206 e ss. [3] STF, RE 637485, Tribunal Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 01.08.2012. [4] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 252. [5] Este o ensinamento de SCHULZE-FIELITZ, Helmuth. Kernelemente des Rechtstaatsprinzips. In. DREIER, Horst (Org.). Grundgesetz Kommentar. v. II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998. p. 184. [6] Cf. MAURER, Hartmut, Staatsrecht I, 5. ed., München: C.H. Beck, 2007, p. 220. [7] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2021, p. 240. [8] Cf. a síntese de Canotilho, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 257. [9] Sobre a proteção da confiança no direito público, v., na literatura brasileira e limitando-nos à produção monográfica, especialmente Maffini, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro, Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2006, bem como Ávila, Humberto. Segurança Jurídica, op. cit., p. 360 e ss. [10] Na jurisprudência do STF, vide, em caráter meramente exemplificativo, a ADI 4545/PR, relator ministro Rosa Weber, j. em 05.12.2019 e o RE 636553, relator ministro Gilmar Mendes, j. em 19.02.2020, leading case do Tema de Repercussão Geral 445. [11] STJ, EREsp 1.517.492/PR, 1ª Seção, relator ministro Og Fernandes, julgado 08.11.2017; STJ, REsp. 1.813.684/SP, Corte Especial, relator para acórdão ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02.10.2019; e STJ, REsp 1.928.635/SP, 1ª Turma, relator ministro  Regina Helena Costa, julgado em 10.08.2021. [12] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais..., pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica.... p. 206 e ss. [13] No sentido de reconhecer a dupla dimensão da segurança jurídica, como princípio e direito fundamental, v. SARLET, Ingo W. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, v. 39, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 53-86. [14] Na doutrina, sobre a expectativa legítima de direitos, v. BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência: ascensão e queda de um regime de erros e privilégios. Revista de Direito da Procuradoria -Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 58, 2004, p. 145. [15] STF, ARE 861.595, 1ª Turma, relator ministro Roberto Barroso, julgado 27.04.2018. [16] SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais..., p. 148 e ss. [17] Apenas para ilustrar com exemplos da jurisprudência do STF, v. ADI 861, Tribunal Pleno, relator ministro Rosa Weber, j. em 06.03.2020), ADI 5312, Tribunal Pleno, relator ministro Alexandre de Moraes, j. em 25.10.2018.
2023-07-11T12:18-0300
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Opinião
Duran Gonçalez: Responsabilização penal das fake news
"[…] é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira" [1]. Diógenes procurava pelas ruas com a sua lanterna um homem justo [2]. A justiça talvez seja a maior busca nas sociedades humanas. Todos se abalam, ou quase todos, quando deparados com uma violação ao que consideramos necessariamente tutelado em nossa sociedade, existindo na violação de bens jurídicos relevantes, nosso maior empenho em frustrar a ação de violadores. O Direito Penal como a mais poderosa arma que dispõe o Estado para conter as condutas danosas e pacificar a sociedade, muitas vezes se mostra obsoleto diante das novas formas de delinquência. A expansão do Direito Penal, com a vinda ao mundo jurídico de novos tipos penais; a constante tipificação de ações consideradas de perigo abstrato; a defesa de teorias cada vez mais fundadas no funcionalismo, nos apontam uma tendência futura, onde o combate a crimes complexos poderia exigir um rebaixamento de garantias [3]. O professor Silva Sanches, já nos ensina, com sua teoria das velocidades do Direito Penal, que a expansão de novos tipos de delinquência traria a existência de uma nova forma de se aplicar o Direito Penal, que seria o Direito Penal de Terceira Velocidade, com um menor apego a garantias. Já o professor Günther Jakobs defende a existência de um Direito Penal do "Inimigo", que seria aplicado a aqueles que cognitivamente não aceitariam submeter-se às regras elementares de convívio em sociedade. Sendo assim, haveria uma divisão do Direito Penal: do Cidadão — com respeito aos direitos e garantias constitucionais; e do Inimigo — com a flexibilização de direitos e garantias constitucionais e legais [4]. Com esta introdução, podemos dizer, que segundo os autores citados, a expansão de novas formas de criminalidade exigiria novas maneiras de combate, com a flexibilização de garantias individuais, com o objetivo de proteger a sociedade. O direito à livre expressão é uma das maiores garantias dos Estados democráticos, sendo o alicerce da formatação das sociedades livres, pois onde não existe liberdade de manifestação, não existe liberdade de mudança, contendo-se a evolução. A censura é certamente a maior arma dos Estados autocráticos, caracterizando-se como uma violência ao intelecto que é aprisionado pelo silêncio, mantendo-se assim o status quo, buscando impossibilitar evolução e mudança [5]. A liberdade de expressão é um direito inalienável nos Estados democráticos, todavia, devemos nos indagar se esse direito é absoluto, ou relativo, devendo ser observado em consonância a outras garantias, para que assim seja preservado. Um conceito de democracia tem sido por diversas vezes utilizado atualmente, e que com bases na teoria da democracia de militância descrita por Karl Loewenstein em seu artigo científico "Militant Democracy and Fundamental Rights", se fundamenta a necessidade nos dias atuais da existência de um conceito de "democracia defensiva", que seria basicamente a utilização de instrumentos do Estado, como mecanismos de defesa do próprio regime democrático, contra os excessos na utilização de direitos e garantias sustentados pelos próprio sistema. Seria a democracia defensiva um freio, para que excessos não coloquem em risco a própria democracia [6]. Nesses dias, verificamos uma crescente utilização do ciberespaço, por meio das plataformas de redes sociais e aplicativos de comunicação, para o cometimento de uma vária gama de crimes, inclusive aqueles contra o próprio regime democrático, com a propagação de notícias falsas com o objetivo de manipular a população quanto a temas que sustentam a base do sistema, como a lisura das eleições por exemplo. Essas ações orquestradas que utilizam as redes sociais e os aplicativos de comunicação, beneficiando-se da rapidez e alcance das informações e amparando-se na garantia da liberdade de expressão para difusão de notícias falsas, causam e já causaram grandes lesões a bens jurídicos relevantes, como individualmente a honra de diversas pessoas, e coletivamente a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, como presenciamos em 8 de janeiro de 2023 [7]. Diante de questões tão graves, com violações sistêmicas a bens jurídicos muito relevantes, discute-se a necessidade de ação do Direito Penal como ultima ratio, para que se possa conter tais avanços criminosos. Por esta razão, o Congresso Nacional discute já há algum tempo a necessidade de tipificação penal para punir a propagação de noticias falsas, as conhecidas fake news. O Poder Legislativo tem se preocupado com essa questão, sendo que no Senado, até pouco tempo, estavam em análise 17 propostas com o objetivo de tornar crime a criação e a distribuição de notícias falsas na internet e nas redes sociais. O PL 632/2020 busca penalizar as autoridades públicas que divulgarem fake news, as quais poderão responder por crime de responsabilidade. Já o PL 3.813/2021 propõe incluir no Código Penal, entre os crimes contra a paz pública, "criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante". O tema é semelhante ao PL 5.555/2020, que torna crime deixar de se submeter, sem justa causa, à vacinação obrigatória em situação de emergência de saúde pública, e propagar notícias falsas sobre vacina [8]. São várias as propostas de tipificação da conduta de criar ou divulgar notícias falsas, mas para o presente artigo nos ateremos ao PL 3.813/2021, que no caso estabelece um crime de perigo ou mera conduta, ou seja, sem a necessidade de comprovação de lesividade concreta, atribuindo o dolo apenas ao conhecimento da falsidade da notícia, ou seja, caso divulgue notícia que desconhece ser falsa, estaríamos diante de uma atipicidade material da conduta. Os verbos utilizados pelo PL 3.813/2021, "criar" ou "divulgar", demonstram uma intenção do legislador de antecipar barreiras, impedindo a divulgação do conteúdo, penalizando o ato de criar o conteúdo falso, mesmo que não o divulgue. Ao nosso ver, o ato de criar "notícia falsa", sem a demonstração de intenção de divulgá-la, classificaria o tipo penal como sendo de perigo em abstrato, todavia, entendemos que no caso das "notícias falsas" uma punição somente seria legítima com a demonstração de potencial lesividade, ou o dolo específico de criar o conteúdo para difundi-lo, mesmo que seja impedido por situação alheia a sua vontade. É necessária que a tipificação penal respeite minimamente as garantias individuais de liberdade de expressão, já que a nosso ver a mera criação de conteúdo sem a sua divulgação não coloca em risco bem jurídico tutelado, não atraindo assim a incidência do direito penal, todavia, não impedindo a atuação de outros ramos do direito. Demonstra o projeto de inclusão desse tipo ao Código Penal a deliberada intenção de impedir a divulgação de todo e qualquer tipo de notícia falsa, penalizando os idealizadores de tais notícias, que muitas vezes estão ocultos ao público em geral, mas que com o aparato estatal destinado a persecução penal virão a "luz" e serão devidamente punidos. A questão de tipificação das fake news nos coloca no olho do furação do fervoroso debate entre eficácia penal e garantia individual, no qual o legislador deve friamente sopesar os alcances do tipo penal incriminador, para que possa com a sua existência defender bens jurídicos relevantes, e ao mesmo tempo resguardar garantias individuais, fazendo com que garantias não sejam usadas como escudo por delinquentes, e que a eficiência do tipo penal seja alcançada com a punição daqueles que realmente ultrapassando seus direitos violem bens jurídicos individuais ou coletivos, mas que nunca seja utilizada como meio de promoção de censura, sendo este verdadeiro dilema que requer toda nossa atenção. [1] NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. São Paulo: Hedra, 2007. [2] CARVALHO, Daniel Filipe. Nietzsche e a lanterna de Diógenes. Disponível em: https://periodicos.ufop.br:8082/pp/index.php/raf/article/download/557/513/. Acesso em 8.2.2021. [3] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luíz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002. [4] JESUS, Damásio E. De. Direito penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10836>. Acesso em: 7 jul. 2023. [5] AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa e Estado autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999. [6] LOEWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental rights, I. The American Political Science Review, [s. l.], v. 31, n. 3, p. 417-432, June 1937. DOI: https://doi.org/10.2307/1948164. [7] CAPEZ, Fernando. 8 de janeiro de 2023: um triste dia para a democracia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-12/janeiro-2023-triste-dia-democracia. Acesso em: 7 jul de 2023. [8] MONTEIRO, Ester. Projetos em análise no Senado combatem desinformação e fake news. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/noticias/materias/2022/09/26/projetos-em-analise-no-senado-combatem-desinformacao-e-fake-news>. Acessado em 9.3.2023.
2023-07-11T11:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-11/duran-goncalez-responsabilizacao-penal-fake-news
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Grandes temas, grandes nomes do Direito
Pesquisas ajudam a suprir lacunas do Judiciário, diz Elton Leme
Durante boa parte do século passado, as decisões judiciais foram proferidas com base somente na experiência dos magistrados. Isso começou a mudar na década de 1990, época em que os juízes passaram a contar com pesquisas que mostravam, por meio do método científico, o que era, de fato, o Poder Judiciário brasileiro e qual era a realidade da prática jurisdicional. Uma contribuição essencial para essa virada foi a série de levantamentos feita pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário, da FGV Conhecimento. Essa é a análise do coordenador adjunto da instituição, desembargador Elton Leme, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ele falou sobre o tema em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", que a revista eletrônica Consultor Jurídico vem apresentando desde a última semana. Nela, algumas das mais influentes personalidades do Direito falam sobre os assuntos mais relevantes da atualidade nacional. Segundo Leme, o Centro de Inovação da FGV — que é coordenado pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça — se dedica a produzir informações que conduzem a decisões judiciais mais qualificadas e capazes de atender às demandas atuais de uma sociedade "extremamente dinâmica, ágil, que se transforma a cada dia". "Nós estamos em uma fase muito interessante do conhecimento da atividade judiciária. Eu diria que, no século passado, todas as decisões judiciais eram baseadas no empirismo puro, na experiência, na intuição", disse Leme. Já no mundo digitalizado, prossegue o desembargador, o Judiciário dispõe de ferramentas capazes de mostrar quais são as lacunas nas decisões judiciais. Um exemplo disso é a questão da desinformação disseminadas na internet. "Esse conhecimento é muito importante quando tratamos da modulação de conteúdos de plataformas, de redes sociais. Mas esse é um exemplo de uma entre múltiplas linhas de pesquisas que estamos desenvolvendo no centro", disse o desembargador. O magistrado afirma que a linha do tempo das pesquisas sobre o Judiciário se divide em fases. A primeira delas lançou um olhar sobre os juízes e pode ser resumida pela pergunta "quem somos?". O estudo foi um marco na história da Justiça, e a ele se seguiram mais duas peças do quebra-cabeça. "No final do século passado, em 1997, realizou-se uma grande pesquisa em que se perguntava: 'quem somos nós, os juízes?'. Esse foi um marco de uma série de pesquisas, que foi a primeira geração delas. Essa pesquisa, inclusive, foi renovada recentemente, em 2019, para saber a evolução do Judiciário brasileiro." Na segunda etapa, em 2005, foi a vez da pergunta "o que fazemos?". A resposta veio na forma da estudo elaborado pelo próprio Judiciário. "Na ocasião, foi lançada no Supremo Tribunal Federal, e depois deu-se continuidade no Conselho Nacional de Justiça, a 'Justiça em Números', para saber o que estávamos fazendo em quantidades, métricas, e o que era preciso fazer, em termos numéricos para atender às grandes demandas, a litigiosidade excessiva da sociedade brasileira." Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-07-13T16:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/pesquisas-ajudam-suprir-lacunas-judiciario-elton-leme
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Opinião
Reis Friede: Fontes do Direito
A expressão fontes do Direito traduz a origem do Direito, seu nascedouro; onde as normas jurídicas são reveladas e têm seu princípio. Ainda no âmbito de um preliminar exame sobre o tema, cumpre ressaltar que as denominadas fontes do direito constituem objeto de inúmeras controvérsias na doutrina, as quais recaem no seu próprio conceito e natureza jurídica, como também na sua ampla e diferenciada gama de classificações. Outrossim, há quem faça distinção entre as expressões "fontes do direito" e "fontes jurídicas", outorgando à primeira um caráter de gênero, do qual a segunda seria uma simples espécie, como leciona, por exemplo, Maria Helena Diniz que, na qualidade de discípula dos ensinamentos de Carlos Cássio, demonstra acolher a denominada Teoria Egológica, segundo a qual o jurista deve ater-se tanto às fontes materiais como às formais, uma vez que toda fonte formal contém, de modo implícito, uma valoração, que só pode ser compreendida como fonte do Direito no sentido de fonte material. Não obstante a multiplicidade de questões inerentes ao tema, o que, por si só, permitiria escrever um volumoso livro, o presente texto limitar-se-á a analisar a questão de uma forma bastante sintética, onde serão expostos apenas alguns dos mais variados conceitos existentes e, igualmente, tecidas superficiais considerações restritivamente a algumas das inúmeras classificações em detrimento de outras tantas de igual importância. Nesse sentido, a melhor concepção estrutural sobre "fontes do direito" é a que percebe a mesma como gênero a abranger os conceitos de "fontes jurídicas" e de "fontes de fundamento de validade das normas jurídicas", o que permite abordar a notável contribuição de Kelsen sobre o assunto, para quem as denominadas "fontes do direito", em seu aspecto formalizante, somente se expressam através da segunda hipótese, o que significa dizer que apenas e tão somente é possível o "nascedouro" do direito e, em especial, sua validação, através de uma norma anterior e de hierarquia superior. Desta feita, para Kelsen, as fontes do direito, não obstante sua amplitude, resumem-se, em seu contexto formalizante, às chamadas "fontes de fundamento", que outorgam validade existencial às normas jurídicas (e ao direito, de modo geral) e que encerram, como origem última, uma norma de concepção política "criadora", a que ele denomina de "norma fundamental". Tal norma, objeto instrumental do denominado Poder Constituinte, ou seja, do poder soberano que concebe o próprio Estado, seria, sob esta ótica analítica, o poder criador da própria "declaração formal do Estado", ou seja, sua Constituição, espelhando a norma jurídica superior que outorga validade às demais normas jurídicas de hierarquia inferior, dentro de um espectro de "ordem" que convencionamos chamar de "ordenamento jurídico". Assim, no âmbito da doutrina Kelsiana, o direito estaria fundado nas normas jurídicas que, em uma concepção de ordem hierárquica, se validariam umas nas outras até chegar ao ápice de uma "pirâmide normativa" traduzida pela Constituição (conceito próprio de supremacia hierárquica), e esta nas constituições anteriores (conceito próprio de supremacia por anterioridade) até chegarmos ao nascedouro básico, ou seja, a norma fundamental dentro de um conceito analítico de supremacia política. Em outras palavras, a hierarquia das normas apresentada por Kelsen sob a forma de uma pirâmide traduz, portanto, a relação de interdependência entre as normas, da qual depende a constituição do sistema jurídico e determina a sua estrutura. Dito isso, dezenas de páginas seriam necessárias para ilustrar a extensa e complexa doutrina Kelsiana relativa às fontes do direito, o que retiraria o caráter amplo, diversificado e, sobretudo, desapaixonado que tal dissertação deve ter. Portanto, encerramos este capítulo inicial e provocativo, ainda que com suas inerentes lacunas, para tecer considerações sobre as denominadas "fontes jurídicas", na qualidade de uma das espécies consagradas do gênero "fontes do direito". Fontes jurídicas Os mais diversos autores nacionais e estrangeiros utilizam a nomenclatura "fontes jurídicas" para traduzir o âmago das "fontes do direito", classificando-as através das mais variadas formas e modalidades. Sem adentrar nesta importante discussão, torna-se oportuno consignar que as chamadas fontes jurídicas formais constituem uma espécie de "moldura do direito", onde o fundamento estruturante do direito se perfaz e se cristaliza, propiciando uma roupagem técnico-jurídica ao próprio Direito. Ainda, cumpre asseverar que, comumente, a doutrina também subdivide as fontes jurídicas formais em fontes estatais e fontes não-estatais, em função da natureza intrínseca de sua origem. Fontes jurídicas estatais (formais) As fontes jurídicas estatais, por seu turno, classificam-se, segundo expressiva parcela dos doutrinadores, em fontes legislativas (ou fontes de produção, para alguns) e fontes jurisprudenciais (ou fontes de aplicação, para outros). As fontes legislativas confundem-se, frequentemente, com o denominado processo legislativo e suas variadas espécies normativas relativas à produção do Poder Legislativo (ex vi: emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, decreto legislativo, resoluções do Senado e da Câmara, etc),  mas há quem dê maior amplitude à expressão, para fazer inserir a produção do Poder Constituinte (ou seja, a Constituição) e a produção normativa dos demais Poderes Executivo e Judiciário, acrescentando, assim, os chamados atos administrativos normativos (ex vi: decretos, regimentos, regulamentos, portarias, instruções normativas, etc). Por efeito, para estes últimos, as fontes jurídicas estatais traduziriam toda e qualquer norma jurídico-política emanada pelo Estado e de forma "escrita". As fontes jurisprudenciais, de suma importância para a atualização dinâmica do sistema à luz da realidade social que se impõe, refletiriam, por seu turno, as fontes emanadas especificamente pelo Poder Judiciário, porém relativas restritamente ao seu papel jurisdicional, ou seja, suas sentenças e decisões que, em última análise, transformariam, através de uma cognição valorativa, a norma geral, prevista em lei (em seu sentido extra amplo), em norma específica ou individualizada, dando-lhe uma interpretação atual que atenda às necessidades do momento dos fatos. A questão, embora à primeira vista pareça simples, é, no entanto, por demais complexa, posto existir, em nosso ordenamento jurídico, a possibilidade de o Poder Judiciário, — ainda que restrito à sua função judicante —, produzir normas de caráter geral (ex vi: os dissídios coletivos na Justiça do Trabalho, as Súmulas Vinculantes editadas pelo STF, etc). Não é por outra razão que figuram, neste cenário, inúmeras controvérsias relativas à questão, assim como incontáveis e distintas classificações possíveis em matéria de fontes jurídicas. Fontes jurídicas não-estatais (formais) Em contraposição às fontes jurídicas estatais, expressiva parcela da doutrina, em uma classificação excludente, preleciona a existência das chamadas "fontes jurídicas não estatais" para traduzir toda e qualquer fonte — escrita ou não-escrita — que tenha como origem um ente não-estatal ou uma produção normativa difusa na sociedade. Ainda que muitas controvérsias subsistam neste contexto analítico, é sabido que a doutrina mais abalizada sobre o assunto tem aceitado, pelo menos em tese, quatro diferentes espécies de fontes jurídicas não estatais, a saber: os costumes, a doutrina, o negócio jurídico e a produção normativa de grupos sociais. Costumes Os costumes são comumente reconhecidos como uma produção normativa difusa em sociedade, que se caracteriza por dois aspectos importantes: o uso (e, especificamente, a reiteração do uso e do costume) e a validação (reconhecimento) jurídica sobre o mesmo. Há também — e é importante frisar — o aspecto subsidiário do costume, corolário de sua absoluta impossibilidade de confrontar a lei, ou seja, a produção normativa estatal, o que é sempre verdadeiro na maioria dos países ditos legalistas ou de supremacia normativa estatal, — como é o caso do Brasil —, mas inaplicável naqueles em que subsiste o chamado direito costumeiro em sua vertente ampla, como é o caso da Inglaterra. Em necessária adição ao já exposto, merece atenção a importantíssima distinção entre o costume meramente social (de nítida feição sociológica) e o costume como fonte do direito (de nítida feição jurídica). No primeiro caso, encontram-se todos os usos e costumes difusos em uma sociedade, que podem, inclusive, confrontar a lei e até mesmo constituir-se em crime (ex vi: soltura de balões e a denominada farra do boi). No segundo caso, figuram os usos e costumes, igualmente difusos em uma sociedade, que, ao reverso, complementam o ordenamento jurídico, regulando, em certa medida, situações não perfeitamente delineadas na lei (exemplo: organização de "filas"). Em vista disso, o segundo elemento caracterizador do costume jurídico, qual seja, a validação ou reconhecimento jurídico, é fundamental para prover o costume da qualidade de autêntica fonte jurídica, ou, em sentido mais elástico, de genuína fonte do direito. A dúvida que fomenta amplos debates doutrinários repousa, neste particular aspecto, apenas na fonte de validação jurídica, que, para a maioria dos estudiosos do tema vertente, ocorre exclusivamente através do Poder Judiciário. Não podemos, todavia, comungar silenciosamente desta doutrina, — que reconhecemos ser amplamente majoritária —, posto que, em certa medida, é o Poder Judiciário, em última análise, que também outorga, em muitos aspectos, a validação jurídica à lei, particularmente após a condenável edição da E.C. nº 3, em 1993, que criou a esdrúxula figura jurídica da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), rompendo, sob certo ângulo analítico, a concepção básica de presunção iuris tantum (ou seja, relativa) de constitucionalidade (e, portanto, de plena validade jurídica) das leis em seu sentido amplo. Doutrina A doutrina é comumente lembrada pelos estudiosos do tema como a segunda fonte jurídica não-estatal, simbolizando uma forma analítica, expositiva e esclarecedora do Direito, feita geralmente por juristas, professores e operadores do Direito, a quem compete, de um modo geral, o estudo aprofundado da Ciência Jurídica, não havendo nada que impeça que o material jurídico seja analisado por representantes de outras áreas do conhecimento humano, o que certamente contribui em muito para o engrandecimento do Direito. Não é por outra razão que o legislador muitas vezes se baseia em conceitos doutrinários para a elaboração de novas leis ou mesmo para o aperfeiçoamento legislativo daquelas já existentes, da mesma forma que o magistrado frequentemente ampara a decisão a ser tomada em sólido aporte doutrinário, assinalando para o leitor que a posição adotada recai na opinião de renomados autores havidos como expoentes no assunto em discussão, o que, de certo modo, sinaliza o acerto do decisum prolatado. De fato, é inegável o papel desempenhado pela doutrina no âmbito de um sistema jurídico, onde os profissionais do Direito buscam os esclarecimentos necessários para a formação de uma opinião a respeito de uma temática a ser investigada. Negócio jurídico Uma terceira fonte jurídica não-estatal, amplamente mencionada pela doutrina, reside nos chamados negócios jurídicos, em particular os de natureza bilateral (lembrando, por oportuno, que os negócios jurídicos também podem ser unilaterais, como, por exemplo, a doação simples ou o testamento), como são exemplos, por excelência, os contratos. Significa dizer que a manifestação de vontade exteriorizada por pessoas (físicas ou jurídicas), com o fim de produzir efeitos jurídicos, traduz-se em autêntica fonte de Direito. Não é sem razão, portanto, que os contratos são conhecidos, entre os civilistas, através do famoso jargão de "lei entre as partes", o que traduz o seu poder normativo. Destarte, as pessoas (físicas ou jurídicas), a partir do poder negocial do contrato, criam normas (particulares e individualizadas) que vinculam as partes celebrantes. Poder normativo dos grupos sociais A quarta e última fonte jurídica não-estatal reconhecida majoritariamente pela doutrina fundamenta-se no denominado poder normativo de grupos sociais organizados na sociedade, tais como clubes, agremiações, sindicatos, etc, que "escrevem" seus estatutos e normatizações regulamentares no âmbito de suas respectivas ingerências. Apesar das inúmeras dúvidas e questionamentos que pairam sobre o tema, deve ser consignada, sobretudo, a mais importante delas, que reside exatamente em saber se grupos sociais paralelos ao Estado (ex vi: crime organizado) também possuem o escopo de irradiar um autêntico poder normativo, particularmente quando é o próprio Estado reconhecedor, — ainda que a título informal —, quanto à existência de "poderes paralelos" em certas partes de seu território. De qualquer sorte, cumpre registrar que ainda são pouquíssimos os autores que abordam o assunto, sendo certo que, para a maioria da doutrina, o conceito de "poder normativo dos grupos sociais" ainda se limita aos denominados grupos sociais formalmente reconhecidos pelo Estado. Conclusão As denominadas fontes do direito alimentam acesos debates doutrinários. Neste norte, a melhor concepção estrutural sobre "fontes do direito" é a que percebe a mesma como gênero a abranger os conceitos de "fontes jurídicas" e de "fontes de fundamento de validade das normas jurídicas". Por este ângulo, diversos autores utilizam a nomenclatura "fontes jurídicas" para traduzir o âmago das "fontes do direito", classificando-as através das mais variadas formas e modalidades. Uma das mais tradicionais e pedagógicas classificações revela uma divisão preambular das fontes do Direito em fontes formais e fontes materiais, existindo, ainda, dentro deste escopo classificatório, quem admita a existência de fontes formais-materiais, reconhecendo algo que se revela evidente, ou seja, que toda fonte formal repousa, em sua origem, em uma ou mais fontes materiais. Ainda, cumpre asseverar que, comumente, a doutrina também subdivide as fontes jurídicas formais em fontes estatais e fontes não-estatais, em função da natureza intrínseca de sua origem. Seja como for, da mesma forma que se pode afirmar que as Fontes do Direito são de suma importância para a aplicação do direito, é oportuno deixar registrado que árdua é a tarefa daquele que decide se debruçar sobre o tema vertente, posto que irá esbarrar em múltiplas classificações doutrinárias, o que explica as diversas perspectivas apresentadas pelos estudiosos do assunto.
2023-07-13T16:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/reis-friede-fontes-direito
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Opinião
Renato Ferraz: O triste vale-tudo do arbítrio judicial
A jurisprudência, com muita frequência, diz que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos das partes. Pode isso? É de uma obviedade tão óbvia que não pode! É o triste vale-tudo: decido primeiro, fundamento depois! Decido como acho. Ora, o juiz tem que decidir por princípios. Aliás, a fundamentação completa das decisões não é favor. É dever! É uma garantia do cidadão na democracia! Afinal, por que motivo os tribunais recusam aquilo que é exigido pela lei e Constituição? A propósito, o juiz não jurou cumprir as leis e a Constituição?! Isso tem nome: arbítrio judicial! Por quê? Porque, como se sabe, consoante o inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". No mesmo sentido, o Novo Código de Processo Civil (NCPC), no artigo 11, repete essa premissa constitucional: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". Por sinal, estabelece o artigo 489, § 1º, IV, do NCPC, de forma cirúrgica, que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: "não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador". Alguma dúvida? Porém, pela relevância, temos que voltar ao tema. A questão é inerente ao Estado Democrático de Direito. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 2.184.064 - RJ, decidiu: "Ademais, a bem da verdade, cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento, não estando obrigado a rebater, um a um, os argumentos apresentados pela parte quando já encontrou fundamento suficiente para decidir a controvérsia (EDcl no AgRg no AREsp 195.246/BA, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 4/2/2014)." No mesmo sentido, vejamos a ementa do acordão pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AgInt. no REsp 1.701.981: "Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. Nesse sentido: REsp 927.216/RS, 2ª Turma, relatora ministra Eliana Calmon." Tristes decisões. Incrível: a Constituição e a lei dizem X e o STJ diz Y. Pior: é o Tribunal da Cidadania que está descumprindo o inciso IX do artigo 93, da CF, e os artigos 11 e 489 § 1º, IV, do NCPC. E agora, José? E a prestação jurisdicional? A prestação jurisdicional vai mal. Exemplos como esses do STJ é que não faltam. Juízes e tribunais "fundamentam" de acordo com suas opiniões. Não enfrentam todos os argumentos das partes. Vale o "decisionismo", o "achismo" e o "ementismo". Que feio! Não há dialeticidade. Não há contraditório substancial. Infelizmente, essas decisões não-fundamentadas, vão se multiplicando, no mundo forense, com um simples copiar e colar; o que, robustece o arbítrio judicial. É faz-de-conta de que as decisões são fundamentadas! Quem tem experiência nos tribunais já viu e vê toda hora decisões não-fundamentadas que falam: decreto a prisão preventiva nos termos do artigo 312 do CPP, indefiro a tutela de urgência, pois não estão presentes os requisitos do artigo 300 NCPC, indefiro por falta de amparo legal. Os exemplos são muitos. Não é um ponto fora da curva. Em 14/6/2023, na Comarca da Capital-RJ, o Juízo de Direito "fundamentou" dizendo: Mantenho a r. decisão de ID 433284478 pelos seus próprios fundamentos. Fantástico, não é?! É evidente de que essas decisões são nulas! Daí a observação do grande processualista e desembargador Alexandre Freitas Câmara [1] "O juiz que se limita a repetir fórmulas e textos legais, achando que assim fundamenta suas decisões, e um mau juiz, que com toda certeza proferiu decisão com parcialidade, sendo tal decisão flagrantemente inconstitucional." Voltando as decisões do STJ. Sempre com todo o respeito: inicialmente, chama atenção especial o voto condutor, no Agravo em Recurso Especial nº 2.184.064/RJ "cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento". Livre convencimento? Como assim? Pode uma decisão ser “ fundamentada” no livre convencimento? Procurei no Novo Código de Processo Civil. Não encontrei nada. No artigo 371 do NCPC não existe a palavra livre. Será que o STJ está aplicando o artigo 131 do CPC/73? Por isso, que acredito em assombração jurídica. Até parece que estamos no CPC de 1973. Decidir de acordo com o livre convencimento não é decidir conforme a Constituição e a Lei. Em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos! Cabe ter presente, neste ponto, a lição do festejado e respeitabilíssimo Lenio Streck [2]: "Como justificar, na democracia, o livre convencimento ou a livre apreciação da prova? Se democracia, lembro Bobbio, é exatamente o sistema das regras do jogo, como pode uma autoridade pública, falando pelo Estado, ser 'livre' em seu convencimento? Pergunto: A sentença (ou acordão), afinal, é produto de um sentimento pessoal, de um subjetivismo ou deve ser o resultado de uma análise do direito e do fato (sem que se cinda esses dois fenômenos) de uma linguagem pública e com rigorosos critérios republicanos? Porque a democracia é o respeito às regras do jogo. (...) Meu Deus... em 2019, juízes escolhiam antes e fundamentavam depois, com base num negócio a que chamavam de 'livre convencimento'... como é que pode?" Prosseguimos. A ementa supracitada aduz que "Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram". Socorro! Como qualquer outra ciência o Direito Processual tem princípios. Um deles é o princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais. Fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê. O que seriam questões relevantes do processo? Quais as questões que não são relevantes? A fundamentação é a justificação jurídica-política que mostra como o magistrado chegou àquela conclusão. Está diretamente ligada à necessidade da legitimação do poder. Trata-se, pois, de uma garantia ligada à ideia de um processo justo. De acesso à ordem jurídica justa, na feliz visão do professor Kazuo Watanabe. Ora, é o Direito das Leis que obriga a fundamentação das decisões judiciais, vale dizer, que impõe ao órgão julgador o dever de examinar todos os argumentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente. Vejamos o que ensina, com brilhantismo, o mestre e desembargador Alexandre Freitas Câmara [3]" "Ora, se a parte apresenta diversos argumentos, e um deles é acolhido, sendo suficiente para justificar uma decisão que a favoreça, evidentemente não há para o órgão jurisdicional qualquer dever de examinar os demais argumentos, que se limitariam a confirmar a decisão proferida. Pois é neste, e apenas neste sentido, que se pode examinar como correta a afirmação de que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos da parte se já encontrou um que sustenta a sua conclusão. (...) De outro lado, porém, se a parte deduz vários argumentos e um deles é rejeitado impõe-se o ao órgão julgador o dever de examinar os demais fundamentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente. É que só é legitimo decidir contrariamente ao interesse de uma das partes se todos os seus argumentos forem rejeitados." Quem, recorre, é evidente, quer que o julgador enfrente todos os argumentos deduzidos no processo. É o que fala o artigo 489, §1º, IV, NCPC. Logo, não há espaço para discricionaridade e subjetividade; pois toda atividade estatal está submetida à lei e ao Direito. É o entendimento de um dos juristas mais influentes do Direito, Lenio Streck [4]: "Não é possível realizarmos leitura do artigo 489, parágrafo 1º, IV, do novo CPC, atribuindo a ele a conclusão de que o juiz não tem o dever e examinar todos os argumentos das partes. Somente, é claro, com o atendimento ao artigo 489, parágrafo 1º, IV (e todos os seus demais incisos) teremos a demonstração de que todas as opções decisórias foram submetidas ao filtro do contraditório e que o raciocínio decisório levou em conta o conglomerado de argumentações das partes, relevantes para o julgamento da causa". Uma palavra final: Os argumentos dos ministros do STJ, desembargadores e juízes alegando de que "o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos das partes" refletem, sim, o autoritarismo e arbítrio judicial, que coloca em risco à democracia. Pois é. Está dificílima a vida dos advogados e das partes. A comunidade jurídica e a OAB têm que se indignarem! Não se pode omitir! Senhor, livrai-nos do arbítrio judicial... Referências [1] CÂMARA, Alexandre Freitas, Lições de Direito Processual Civil, Vol., 6ª edição, 2ª tiragem, 2002, p.51, LUMEN JURIS [2] STRECK, Lenio https://www.conjur.com.br/2019-set-26/senso-incomum-claro-texto-cpc-stj-reafirma-livre-convencimento [3] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, p.69, Gen/Atlas, 2023 [4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014
2023-07-13T15:22-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/renato-ferraz-triste-vale-tudo-arbitrio-judicial
academia
Interesse Público
Vinculação cognitiva nas audiências e consultas públicas
Instrumentos de diálogo e monitoramento, como a audiência pública e a consulta pública, promovem espaços de interação e participação que aproximam indivíduos, empresas e a administração pública. Previstos em caráter geral na Lei nº 9.784/1999, porém percebidos como simples faculdades da administração pública, aceitos como veículos participativos compatíveis com a discricionariedade administrativa procedimental, esses instrumentos podem ir além do caráter democratizante e servir como verdadeiras ferramentas de experimentação administrativa. Experimentar, por natureza, exige o enfrentamento do desconhecido. Na etapa preparatória, comum a qualquer exploração, a obtenção do máximo de informações é essencial para aumentar as chances de sucesso e impedir atuações futuras inconformes e surpresas ao se tatear no escuro. A experimentação depende e é motivada por informações. Como sustentado em coluna anterior, a "experimentação opera em pequena escala e visa a favorecer o aprendizado fatual e incremental, a descoberta das variáveis relevantes e a coleta de informações antes da decisão regulatória geral ou da generalização de práticas bem-sucedidas" [1]. Em síntese, na fase de planejamento da experimentação administrativa deve-se extrair o máximo da informação disponível, avaliar as práticas usuais, ponderar custos e benefícios, considerar o contexto local e a opinião dos usuários para avançar na experimentação. A administração pública é mais do que executar a lei de ofício — exige ouvir, observar, monitorar e planejar mudanças gerais, administrativas ou legislativas, e alterações experimentais ou incrementais, exigentes do aprendizado com os erros e acertos do experimento. Os instrumentos de diálogo representam exatamente os mecanismos que permitem a administração pública divulgar, captar e processar informações em procedimento dinâmico de troca com privados, sejam eles administrados em geral ou entidades diretamente interessadas no processo. Tanto a consulta pública quanto a audiência pública são previstos na Lei de Processo Administrativo (LPA) — Lei nº 9.784/1999 — como instrumentos de instrução para "manifestação de terceiros" (artigo 31) e para "debates sobre a matéria do processo" (artigo 32), respectivamente. Assim, ambos são espaços de diálogo promovidos por autoridade administrativa para obter informações de pessoas e entidades externas — a consulta pública através de contribuições escritas e a audiência pública por meio de contribuições orais. Além destas previsões expressas a respeito da audiência pública e da consulta pública, a LPA também permitiu em seu artigo 33 o estabelecimento de "outros meios de participação de administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas". A abertura estabelecida em lei para instrumentos inominados diversos da audiência e da consulta pública, possibilita que a administração pública inove e experimente formas que possam contribuir para seus objetivos [2]. Essa discricionariedade conferida à Administração proporciona múltiplos usos dos instrumentos de diálogo público-privado para trocas de informações, adaptáveis aos objetivos de cada caso. Irene Nohara e Thiago Marrara citam como exemplo de outros meios de participação a realização de "conferências, encontros, enquetes pela Internet, consultas eletrônicas" [3], mas pode-se apontar também a sondagem de mercado e o roadshow. Portanto, a LPA ao disciplinar o processo administrativo federal de forma geral e aberta, deixa espaço não só para a escolha do instrumento utilizado, como também para a instituição de prazos, procedimentos e coordenação da sua realização [4]. A maleabilidade do procedimento destes instrumentos e a discricionariedade conferida à administração pública, possibilitam o uso estratégico e intencional dos instrumentos a fim de alcançar objetivos específicos. Observa-se que cada um dos instrumentos de diálogo pode ser promovido em diferentes espécies, dependendo da sua finalidade e público-alvo. Pode-se identificar consultas públicas ou audiências públicas: (1) técnicas, voltadas para especialistas em determinados assuntos [5]; (2) com a população impactada, visando colher a opinião dos diretamente afetados [6]; (3) com possíveis interessados, buscando escutar players com interesse direto na questão; e (4) livres, abertas a todos. As informações captadas pelos instrumentos de diálogo citados e sua utilidade prática para administração pública dependerão de escolhas conscientes e intencionais, bem como do procedimento adotado. É preciso saber qual a finalidade visada para identificar a melhor forma de alcançá-la — o que inclui a escolha da espécie de instrumento de diálogo, do momento para sua realização, e do público-alvo. Assim, antes de promover um espaço de diálogo, o gestor público deve se perguntar (1) o que quer descobrir, (2) quem será capaz de proporcionar tal descoberta, (3) qual instrumento possibilitará captura de informações com maior qualidade, e (4) qual o melhor momento para conseguir as informações desejadas. A resposta de cada uma dessas perguntas impacta o resultado da outra, sendo a identificação da finalidade determinante para as escolhas procedimentais. Assim, sabendo o que se quer descobrir e quem pode fornecer a informação desejada, é possível identificar o melhor instrumento de captura de informações. Assim como a finalidade, o público-alvo e a espécie de instrumento de diálogo utilizado, o tempo é um fator crucial para a efetividade do processo de captação de informações. Como apontado em artigo anterior, a "coordenação de interesses, informações, recursos e competências no âmbito da Administração Pública pressupõe a programação do tempo de tomada das decisões" [7]. Assim, se o espaço de diálogo ocorrer cedo demais, pode ocorrer ausência de parâmetros seguros e informações confiáveis suficientes para que os participantes tenham noção do proposto e possam contribuir de forma relevante. Já se ocorrer tarde demais, com tudo praticamente encaminhado, pode não haver muito espaço para contribuições e mudanças de rumo. Estabelecer quando é cedo ou tarde demais também dependerá do objetivo e da função da audiência ou da consulta. Vale destacar que a utilização de instrumentos de diálogo não precisa se limitar a um único momento em uma oportunidade de experimentação — pode ocorrer em diversos momentos do processo [8], inclusive com a mistura de diferentes instrumentos desde que faça sentido no caso específico e colabore para uma finalidade determinada e condizente com as escolhas. Coletadas as informações que auxiliarão na tomada de decisões durante a experimentação administrativa através de instrumentos de diálogo público-privado, outro ponto importante é o estabelecimento do nível de vinculação da administração pública ao utilizar estes instrumentos. Pode-se falar em vinculação para a realização em si da audiência pública ou da consulta pública (artigo 10, VI da Lei 11.079/2004), bem como de vinculação para apresentação de resposta fundamentada (artigo 31, §2º e artigo 34 da Lei 9.784/1999), mas a Administração não está vinculada a acatar as contribuições. Assim, o dever de publicidade vai além de meramente informar sobre o objeto do procedimento de diálogo e de divulgar as contribuições e o que ocorreu, sendo necessário prestar respostas e explicar o encaminhamento. O que não significa que a administração pública deva acatar as contribuições recebidas. Em verdade, os instrumentos de diálogo participativo, como a audiência pública e a consulta pública, não podem ser apenas encenações teatrais administrativas. Criam vinculação cognitiva, pois obrigam o gestor a avaliar e a responder às manifestações apresentadas, ao menos de forma agrupada. Essa é uma decorrência lógica da autovinculação administrativa e deriva do ato de convocação do instrumento de diálogo e monitoramento. Os instrumentos referidos não criam vinculação decisória, mas a ausência de resposta e consideração das manifestações apresentadas pode ensejar a nulidade desses eventos administrativos, o que em alguns casos pode paralisar procedimentos e iniciativas governamentais, quando estes instrumentos participativos sejam de realização obrigatória (vg, artigo 2º, XIII, e artigo 40, § 4º, I, da Lei Federal 10.257/2001). A avaliação sobre a repercussão das contribuições no plano decisório cabe ao gestor, que pode optar por um rumo a seguir mesmo que ocorra maioria de contribuições em sentido oposto. Nesse caso, há ônus maior para explicação da decisão contrária. Por óbvio, no caso de a decisão ser alinhada com as contribuições recebidas, essas, naturalmente, acabam reforçando e servindo de justificativa parcial para a decisão, diminuindo o ônus argumentativo e explicativo da Administração. No documento "Avaliação da participação na elaboração de políticas públicas" da OCDE, colhe-se: "El propósito más frecuente es el de respetar la información, la consulta y la implicación de los ciudadanos? La respuesta es no. Es tan relevante evaluar el proceso de control y monitorización como el de aprendizaje y el de obtención de apoyo para las decisiones" [9]. A apresentação das respostas da administração pública deve ser cuidadosa com o conteúdo da justificação, bem como adotar formas acessíveis. A comunicação é um aspecto extremamente relevante dos mecanismos de diálogo público-privado tanto em momento prévio de apresentação de informações pela administração para os participantes, quanto em momento final com o retorno e encaminhamento dos resultados. As respostas podem ser politicamente sensíveis, de forma que uma boa comunicação, com respostas completas e bem fundamentadas, bem como a escolha de momento oportuno para a divulgação dos resultados, pode fazer toda a diferença na sua consequência para o projeto. Portanto, deve-se contar com estratégia de comunicação — o que implica também saber com quem se está dialogando, que informações se quer passar, e qual o objetivo visado. Dadas as considerações apresentadas, entende-se que a utilização de instrumentos de diálogo em processos administrativos consiste em processo de troca de informações e aprendizado mútuo, porém possui repercussões administrativas relevantes. Aqueles que participam aprendem sobre o projeto, a política pública envolvida e as intenções da administração pública, enquanto esta aprende sobre a recepção do que apresentou, a opinião dos participantes, a existência de interesses envolvidos, tendo a oportunidade e a obrigação de considerar as manifestações recebidas. Audiências e consultas públicas municiam processos de experimentação administrativa e podem servir de base para instrumentos diversos com propósitos semelhantes, mais ajustados ao contexto, que igualmente obrigam a administração a lhes conferir consistência e resposta. Eles auxiliam a administração pública a compreender os interesses em jogo, os interessados e contrainteressados, elementos essenciais para que se possa testar práticas experimentais, inovadoras e em regime de monitoramento. Sabe-se que a lei não pode conter toda a ação administrativa e entender a administração pública como agente capaz de inovar impõe à função administrativa a necessidade de experimentar como atividade diária comum e não só como resposta à momentos de crise [10]. Experimentar não é lançar precedentes, protocolos e práticas estabelecidas pela janela. Experimentação e inovação podem partir de chão sólido e estável e nem sempre há necessidade de reinventar a roda. Os instrumentos de diálogo previstos na LPA são exemplos de processos administrativos que podem ser utilizados como ferramentas experimentais na gestão pública. A identificação do potencial uso desses mecanismos obriga também a reconhecer um grau mínimo de vinculação cognitiva que deles deriva. Resta à administração pública assumir que no seu interior cabem inovações criativas na teoria e na prática da gestão [11], porém também a responsabilidade de preservar a integridade e a relevância social dessas iniciativas, respondendo ao cidadão que aceita ao seu convite para opinar e avaliar políticas e iniciativas públicas em processos administrativos participativos. [1] MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação: uma introdução. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-14/interesse-publico-direito-administrativo-experimentacao-introducao [2] Destaco mais uma vez a importância da autonomia legislativa dos entes da federação no processo administrativo. Como destaquei em artigo anterior: "Preservada a autonomia legislativa poderão as unidades subnacionais inovar na matéria administrativa, sem amarras centralistas, exercitando o papel também de "laboratórios de experimentação" em matéria processual administrativa, respeitados os princípios constitucionais obrigatórios". MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao. [3] NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo administrativo: Lei nº 9.784/99 comentada. São Paulo: Atlas, 2009. p. 244. [4] Como apresentado em artigo anterior: "Por óbvio, preservada a autonomia administrativa da própria União, cabe a ela disciplinar o processo administrativo federal, mas não legislar sobre prazos, procedimentos, coordenação orgânica, recursos administrativos ou legitimados para o processo administrativo com eficácia nacional abrangente, de modo a alcançar as demais unidades da Federação". MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao. [5] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública especializada voltada para a comunidade cientifica durante o processo de licitação do projeto de concessão do Zoológico de São Paulo e do Jardim Botânico (https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/2020/04/sima-convoca-comunidade-cientifica-para-audiencia-sobre-concessao-do-zoo-e-botanico/). [6] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública com objetivo de "apresentar o projeto de concessão e receber contribuições das comunidades locais" durante o processo de licitação do projeto de concessão do Parque Estadual Turístico Alto Ribeira – PETAR. [7] MODESTO, Paulo. O silêncio administrativo como técnica de experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, jan. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-27/interesse-publico-silencio-administrativo-tecnica-experimentacao. [8] O Relatório de Pesquisa "Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal" produzido pelo Ipea cita dentre as soluções de aperfeiçoamento a realização de audiências em mais de um momento: "A partir da análise das dimensões expostas, é possível elaborar algumas sugestões para o aperfeiçoamento das APs como espaços participativos de interação entre Estado e sociedade. Em primeiro lugar, a ocorrência de audiências em apenas um momento do processo decisório de Belo Monte prejudicou a efetiva participação no caso aqui estudado. Como mencionado, as audiências ocorridas seguiram a legislação, que prevê audiências no âmbito do processo de licenciamento ambiental no momento anterior à emissão da LP com o objetivo de discutir o EIA-Rima. Entretanto, a limitação da ocorrência de audiências em um momento específico para discutir projetos tão polêmicos e complexos, como é o caso de Belo Monte, gera dois problemas: de um lado, a sociedade reivindica uma participação ao longo de todo o processo decisório; e, de outro, técnicos do Ibama afirmam que muitas informações importantes são definidas em período posterior à aprovação da LP". IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal. Relatório de Pesquisa. Brasília, 2013. p. 120. [9] Evaluación de la participación pública en la elaboración de políticas públicas [Texto impreso] I traducción de María José Burgos. _l.a ed.- Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública: Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), 2008 -142 p.; 24 Cffi- (Estudios y Documentos). [10] UNGER, Roberto Mangabeira. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72, 2011. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8584 [11] "La gestión pública debe reconocerse como el principal ámbito de innovaciones creativas en la teoría y la práctica de la Gestión". González, José Juan Sánchez. Gestión Pública y Governance. Instituto de Administración Pública del Estado de México. Ioluca, México, 2002. Mariana Mazucatto em seu texto "O Estado empreendedor", por igual, demonstrou o papel central do Estado para diversos desenvolvimentos tecnológicos, de inovação e pesquisa. Cf. MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.
2023-07-13T09:37-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/interesse-publico-vinculacao-cognitiva-audiencias-consultas-publicas
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Senso Incomum
Legitima defesa da honra é incompatível com a íntima convicção?
Antes de qualquer coisa, aqui vai o spoiler acerca de minha posição: ao menos a partir da tese dos ministros que acompanharam o voto do ministro Roberto Barroso na admissão da prisão imediata em qualquer decisão condenatória do Tribunal do Júri, posição baseada na soberania dos veredictos, torna-se contraditório, na ADPF 779, proibir o uso da tese da legitima defesa da honra. Portanto, a resposta é "havendo íntima convicção, não é incompatível o júri absolver por legitima defesa da honra"! Explicarei. 1. O ponto central da posição do ministro Barroso (vejam o voto) é a de que a soberania dos veredictos do júri é superior, em termos ponderativos, à presunção da inocência; 2. Consequentemente, a soberania dos veredictos é o ponto central do júri, a ponto de passar por cima do precedente vinculante exsurgente das ADCs 43, 44 e 54; 3. Sendo isso correto, não há razão para colocar em segundo plano a mesma soberania dos veredictos no mesmo momento em que se examina o uso de qualquer tese no plenário do respectivo tribunal popular; 4. Isto é, se a soberania dos veredictos vale mais do que a presunção da inocência, por qual razão a íntima convicção, que está na mesma hierarquia da soberania, ficaria em segundo plano em relação ao uso da tese da clemência, legitima defesa da honra ou qualquer outra? 5. Ou a convicção é íntima ou não é. Tertius non datur. 6. Sou contrário à intima convicção por razões (e também da tese da legitima defesa da honra) que já declinei em dezenas de textos e livros (ler aqui entrevista minha e de Aury). Todavia, em se mantendo a íntima convicção (e não vi qualquer contestação do ministro Barroso a essa previsão constitucional), torna-se inconstitucional impedir que o advogado esgrima qualquer tese e os jurados absolverem por qualquer tese, inclusive a legítima defesa da honra; 7. Se a íntima convicção vale, então... vale; 8. Consequentemente, proibir o uso da tese da legítima defesa da honra no júri é contrariar a Constituição e isso decorre da coerência e da integridade da posição adotada pelo ministro Barroso no seu voto no Recurso Extraordinário no qual entendeu ser a soberania dos veredictos cláusula máxima do júri, a ponto de superar a presunção da inocência; 9. Se as decisões devem ser coerentes e íntegras (artigo 926 do CPC), parece contraditório entender que a soberania dos veredictos permite prisão imediata e, ao mesmo tempo, imiscuir-se na íntima convicção dos jurados. Aliás, é impossível, filosoficamente, sustentar essa intromissão. Como cercear o que está no íntimo? Quem poderá dizer o que se passa no íntimo de cada jurado? Simplesmente ninguém. 10. Afinal, se o júri é soberano nos seus veredictos — e para chegar ao veredicto ele tem a garantia de julgar por íntima convicção — como se poderia compatibilizar essas teses contraditórias entre si? Explico e insisto de forma direta. A "íntima convicção" é um modelo já superado por séculos de filosofia. Surgiu do otimismo romântico dos revolucionários em 1790. No seu tempo, fazia sentido. Não melhoramos em nada filosoficamente? Mas isso é assunto para outro texto (spoiler: estou escrevendo novo livro em que contemplo o assunto). Por agora, meu ponto é: (1) não se pode ter o melhor dos dois mundos. Sob pena de ficarmos com o pior deles. (2) Se admitirmos que a soberania dos veredictos vale mais que a presunção de inocência, somos obrigados a admitir que é possível, num paradigma constitucional (e de intersubjetividade, em que uma decisão fundamentada é garantia mínima de um direito íntegro e coerente), que se julgue e se decida por íntima convicção. Outra pergunta (e que também vou contemplar no livro). Que "sistema de precedentes" é esse que não consegue extrair de uma decisão paradigmática como a da presunção de inocência nas ADCs mais do que um textualismo superficial, que não dá conta dos princípios que fundamentam a decisão (que, afinal, é o que vincula num precedente)? Estamos preparados para levar nossas teses às últimas consequências? Esse é o busílis. Simples assim. E complexo. Eram estas reflexões que queria trazer. Para dialogar. Afinal, como disseram dias atrás os advogados e professores que participaram do Congresso em Lisboa, "não devemos temer o diálogo". Correto. Diálogo sempre. Essa é a ideia. Assim como já propus o diálogo nos textos "O STF, a prisão no júri e a interpretação equivocada do ministro Barroso" e "O juiz das garantias e a interpretação desconforme com a Constituição" dias atrás, reitero a intenção do debate com estas reflexões sobre a soberania dos veredictos e o papel da intima convicção. E sobre o futuro do júri. Que, aliás, é cláusula pétrea. Só podemos extinguir o júri se extinguirmos, antes, esta Constituição. Será esse um caminho que queremos seguir? De novo: não podemos ter o melhor dos dois mundos. Insistir nisso pode ser perigoso. Afinal, como já disse o ministro Luís Roberto Barroso quando do julgamento da AP 565 (caso Cassol), "o dia em que a Constituição for o que os intérpretes quiserem independentemente do texto, nós vamos cair numa situação muito perigosa". Tem toda a razão. Os textos podem revidar, como avisa de há muito o nosso querido Friedrich Müller (Die Texten können zurück schlagen).
2023-07-13T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/senso-incomum-legitima-defesa-honra-incompativel-intima-conviccao
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Grandes temas, grandes nomes do Direito
CP não comporta 'cegueira deliberada' em lavagem, afirma Bottini
Quando se trata de lavagem de dinheiro, a lei brasileira exige que, para ser punida, a conduta deve ter sido praticada de forma dolosa. No entanto, é possível aplicar a lei substituindo o dolo pela teoria da cegueira deliberada? O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini defende que não. Livre docente do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP, Bottini falou sobre os conceitos de dolo e culpa no âmbito da Lei de Lavagem de Capitais em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", que a revista eletrônica Consultor Jurídico vem apresentando desde a última semana. Nela, algumas das mais influentes personalidades do Direito falam sobre os assuntos mais relevantes da atualidade. Inicialmente, Bottini destacou o peso do fator dolo no tipo penal de lavagem brasileiro. Para ilustrar a ideia, ele comparou a legislação local com os diplomas similares criados em países europeus. "Nós vemos que a redação do nosso tipo penal de lavagem de dinheiro é bastante diferente. No Brasil, a lavagem de dinheiro exige um ato de ocultação, de esconder, mascarar aqueles bens provenientes do delito. Na Europa, não. Lá, o mero recebimento do produto do crime, a mera aquisição, já é caracterizada como lavagem de dinheiro. O tipo 'lavagem de dinheiro' na Europa é muito mais amplo, muito mais abrangente do que no Brasil. Lá não é necessário haver a ocultação." Diante disso, prosseguiu Bottini, a prática de lavagem de dinheiro "por imprudência, por negligência, por imperícia" — ou seja, a prática culposa — não é uma forma prevista como crime na legislação brasileira, ao contrário da maior parte dos países europeus. Esse cenário, por sua vez, levanta outra questão: é possível, no ordenamento brasileiro, substituir o dolo pela teoria da cegueira deliberada para imputar o crime a uma pessoa que se coloca em posição de ignorância sobre a origem dos valores que ela oculta? "Eu entendo que não. O artigo 20 do nosso Código Penal prevê que uma pessoa que desconhece um dos elementos do tipo penal — por exemplo, a origem dos bens, no caso da lavagem de dinheiro — não pode responder pela prática dolosa. A não ser que existam indícios claros, e que ela conheça esses indícios, que façam com que ela suspeite da origem dos bens", explicou ele. "Nesse caso, então, haveria o dolo eventual, que é admitido, pela maior parte da jurisprudência, como elemento da lavagem de dinheiro. Mas a cegueira deliberada — aquela que não sabe da origem daqueles bens porque eventualmente se colocou numa posição de cegueira deliberada — não pode substituir o dolo no nosso ordenamento jurídico", disse Bottini. Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-07-14T09:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-14/cp-nao-comporta-cegueira-deliberada-lavagem-afirma-bottini
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Paradoxo da Corte
Crédito e fato gerador: o artigo 49 da Lei de Recuperação
Nem sempre o legislador é preciso na redação da lei. E, não raro, a imprecisão do texto legal acaba contaminando a exegese jurisprudencial. Dispõe o artigo 49, caput, da Lei nº 11.101/05, que: "Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". Partindo-se dessa regra, parece evidente ser impossível habilitação de crédito lastreada em sentença provisória sujeita a recurso, simplesmente porque não há título judicial definitivo. A habilitação de crédito na recuperação judicial, aparelhada com decisão condenatória, pressupõe, por óbvio, a estabilização do montante do débito e sua respectiva exigibilidade. E isso porque no âmbito do direito concursal não se viabiliza habilitação de crédito "provisória", diferentemente do que preceitua o artigo 520 do Código de Processo Civil, que autoriza o cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso despido de efeito suspensivo. Na verdade, a teor do disposto no inciso IV do artigo 7º-A da Lei de Recuperação e Falência: "os créditos incontroversos, desde que exigíveis, serão imediatamente incluídos no quadro-geral de credores, observada a sua classificação...". Assim, a sentença condenatória impugnada não ostenta, ainda, o requisito da exigibilidade. Aliás, nesse particular, é clássica a lição de Francesco Carnelutti, no sentido de que a sentença sujeita a recurso, além de ineficaz, não passa de um documento público, nada mais, porquanto, ainda que confirmada em segundo ou superior grau, será inexoravelmente substituída pelo acórdão superveniente (Riflessioni sulla condizione giuridica della sentenza soggetta alla impugnazione, Rivista di diritto processuale civile, 1928, pág. 193). Não obstante, diante de acentuada divergência de interpretações quanto ao disposto o artigo 49, caput, da Lei nº 11.101/05, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por bem submeter a questão ao regime de recursos repetitivos, tendo sido firmado o entendimento, ao ensejo do julgamento da 2ª Seção, no Recurso Especial nº 1.840.531/RS, da relatoria do ministro Ricardo Villas Boas Cuêva, de que: "para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador" (Tema 1.051). No que concerne aos honorários de sucumbência, restou ainda assentado, com lastro em precedente da Corte Especial (EAREsp nº 1.255.986/PR) que: "Vale destacar, ainda, a questão dos honorários advocatícios sucumbenciais. O direito à percepção dos honorários nasce com a sentença ou ato jurisdicional equivalente (fato gerador)... Se a sentença que fixou os honorários foi proferida em momento posterior ao pedido de recuperação judicial, o crédito que dela decorre deve ser caracterizado como extraconcursal (não se sujeita aos efeitos da recuperação), conclusão que se amolda ao entendimento ora esposado de que é o fato gerador que define se o crédito é concursal ou extraconcursal. Em atenção ao disposto no artigo 1.040 do Código de Processo Civil de 2015, fixa-se a seguinte tese: 'Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador'...". Ao analisar esta conclusão a que chegou a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, entendo que, do ponto de vista prático, dificilmente encontra ela consistência na prática forense. E isso, porque, num caso concreto sob meu patrocínio, no qual a sentença, que fixou a verba honorária de sucumbência no percentual de 10% do valor da condenação, foi proferida antes do pedido de recuperação judicial. Contra tal ato decisório foi interposto recurso de apelação. No julgamento pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, ocorrido após o pleito de recuperação judicial, os honorários advocatícios foram majorados para 18% e, ainda, no Superior Tribunal de Justiça, fixados em 20%. Este exemplo bem evidencia, de um lado, a instabilidade do crédito reconhecido na sentença de primeiro grau, sobretudo com os acréscimos posteriores, e, de outro lado, a inequívoca ausência de exigibilidade. Ora, nesta hipótese, dada a evidente impossibilidade de habilitação do crédito certificado na sentença (porque inexigível), o respectivo "fato gerador" somente pode ser a decisão monocrática ou o acórdão proveniente do Superior Tribunal de Justiça, independentemente do trânsito em julgado. É em tal sede, como se observa, que a condenação em honorários de sucumbência se estabiliza, tornando o título executivo judicial, certo, líquido e exigível, reunindo, pois, os requisitos que ensejam ao credor: a) a habilitação de crédito se o pedido de recuperação ainda não foi deferido; ou, b) caso já pendente o processo concursal, o cumprimento definitivo da sentença. No caso que tive de enfrentar, partindo desta cronologia, somente com a decisão monocrática proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, aumentando a verba honorária, é que o título executivo judicial do meu cliente se estabilizou, visto que substituiu o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi então a partir daquele momento que o título executivo judicial reuniu os seus três requisitos: certeza, liquidez e exigibilidade ("fato gerador"). Todavia, nesta data, já não era mais possível submetê-lo à recuperação judicial, uma vez que formado após o deferimento da recuperação. Tanto isso é exato que em caso análogo e julgado após a fixação do Tema 1.051 (22/9/21), a 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça bandeirante, no julgamento do Agravo de instrumento n. 2096743-77.2019.8.26.0000, deixou patenteado que os honorários de sucumbência, arbitrados em recurso julgado em data posterior à aprovação do plano de recuperação possui natureza extraconcursal. Com efeito, colhe-se desse importante precedente, relatado pelo Desembargador Cesar Ciampolini, que: "Crédito consistente em verba honorária advocatícia sucumbencial arbitrada em sede de apelação julgada em momento posterior ao ajuizamento da recuperação judicial. (...) Tema repetitivo 1.051, firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.843.332: 'Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador'. Novo julgamento do recurso, consoante o artigo 1.030, inciso II, do Código de Processo Civil, determinado pela Corte Superior, observando-se o que foi por ela assentado. Caso a que se há de aplicar a tese firmada, uma vez que o fato gerador do crédito da agravante, qual seja, o julgamento do recurso em que se deu a fixação dos honorários sucumbenciais, deu-se posteriormente à recuperação. Extraconcursalidade, dessa forma, que deve ser proclamada". Pois bem, retornando ao caso acima mencionado, com a baixa dos autos à vara de origem, dei início ao cumprimento de sentença, visando à cobrança dos honorários definitivamente fixados pelo Superior Tribunal de Justiça; em seguida, devidamente intimado, o executado ofereceu impugnação, argumentando que o crédito havia sido constituído (sentença) antes do deferimento do pedido de recuperação judicial e, portanto, deveria ser considerado crédito concursal. Para minha surpresa, tal tese foi acolhida na sentença que julgou procedente a mencionada impugnação. Interposto recurso de apelação (nº 0001714-78.2020.8.26.0362), foi ele integralmente provido pela 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, com voto condutor do Desembargador Arantes Theodoro, valendo transcrever o seguinte trecho: "Ora, no caso presente a sociedade de advogados não estava reclamando os honorários fixados na sentença, que eram de 10% do valor da condenação. Ela cobrava, sim, os honorários que ao final da fase recursal lhe haviam sido deferidos pela Corte local (18%) agora com o agravamento de 15% sobre o valor acumulado concedido pelo Superior Tribunal de Justiça, verba que ante a limitação prevista no artigo 85 do Código de Processo Civil perfazia 20% do valor da condenação. Logo, o caso era de se reconhecer que o crédito por aqueles honorários só se formou quando foi fixada a aludida remuneração, o que ocorreu em 22 de agosto de 2019, com o julgamento do derradeiro recurso. Pois tendo o pedido de recuperação judicial sido apresentado em 25 de setembro de 2017 e deferido pelo Juiz em outubro seguinte, restava concluir que àquele regime não se submetia o aludido crédito, já que formado posteriormente. Realmente, se até aquele momento inexistia o crédito pelos honorários de 20% do valor da condenação, não se haveria mesmo de sujeitá-lo ao regime concursal, até porque nem seria materialmente possível à credora naquela ocasião habilitá-lo no juízo da recuperação. Note-se que outra seria a conclusão se as instâncias recursais tivessem apenas confirmado quantitativamente a condenação em honorários imposta pela sentença, o que como se viu aqui não ocorreu" (grifei). Diante desse contexto, acerca desta relevante questão, concluo reafirmando que: (1) no julgamento do Tema repetitivo 1.051 pelo Superior Tribunal de Justiça restou firmada a tese de que "o direito à percepção dos honorários nasce com a sentença ou ato jurisdicional equivalente"; (2) o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e, sobretudo, a decisão monocrática exarada pelo Superior Tribunal de Justiça, que, sucessivamente, substituíram a sentença de primeiro grau, majoraram a verba honorária, deve (a última delas) ser reputada como "ato jurisdicional equivalente", pois a reformou para aumentar o valor da verba honorária de sucumbência; (3) não se viabiliza a habilitação de crédito "provisória", aparelhada com título ainda inexigível (artigo 7º-A, inciso IV, da Lei n. 11.101/05); (4) o artigo 1.008 do Código de Processo Civil estatui que o acórdão proferido pelo tribunal em sede de recurso substitui a decisão recorrida; e, por fim, (5) o título executivo judicial cuja exigibilidade é alcançada em momento posterior à decisão que aprova o processamento da recuperação judicial representa crédito extraconcursal.
2023-07-14T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-14/paradoxo-corte-credito-fato-gerador-artigo-49-lei-recuperacao
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Observatório Constitucional
Terceira etapa da reforma tributária: STF e cláusulas pétreas
A recente aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45, de 2019, na Câmara dos Deputados, após décadas de estudos e trabalhos legislativos, representa um passo importante num debate que há muito permanecia latente no Congresso Nacional. Desde os anos 1990, foi se estabelecendo certo consenso de que o sistema tributário brasileiro — complexo, regressivo e anacrônico — carecia de mudanças. Contudo, nunca havia sido possível construir os caminhos necessários para efetivamente levar a cabo uma reforma tributária ampla. Até hoje. A palavra está agora com o Senado, onde já tramita a PEC nº 110, de 2019, em muito convergente com a proposta aprovada na Câmara dos Deputados: criação de IVA (ou IBS), base ampla, crédito financeiro e princípio do destino. Mas esta coluna não tem por objeto o debate legislativo, nem pretende este artigo discutir o conteúdo da proposta aprovada ou apresentar sugestões para a próxima etapa do processo legislativo. Trata dos momentos seguintes do debate constitucional, quando o Supremo Tribunal Federal vier a se debruçar sobre a matéria, e dos precedentes que a corte já firmou sobre os limites à reforma constitucional, inclusive em matéria tributária. Discutir os limites constitucionais da reforma não representa, nesse caso, antecipar uma terceira etapa do processo reformador, a fase judicial. No diálogo constitucional, os precedentes firmados no STF influenciam os próprios contornos do debate parlamentar e muitas vezes motivam também reações legislativas, no nível da lei e da Constituição, em resposta a decisões do tribunal. Foi o que se viu, por exemplo, na Emenda Constitucional nº 33, de 2001, que autorizou a incidência de ICMS sobre a importação de bens destinados a pessoa física, e da Emenda Constitucional nº 39, de 2002, que acrescentou ao texto constitucional a competência para contribuição para custeio do serviço de iluminação pública. Quanto à reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados, em outros trabalhos acadêmicos [1] já sustentamos que seus principais desafios são três: superar o obstáculo da rigidez constitucional, administrar os conflitos federativos e garantir a autonomia financeira dos entes subnacionais. Rigorosamente, são elementos que se entrelaçam, três perspectivas de um mesmo objeto. Como se sabe, o sistema tributário brasileiro é peculiar. Tem bases especialmente rígidas, estabelecidas no nível da própria Constituição. Para redefini-las é preciso alterar o texto constitucional, com efeitos relevantes na partilha de receitas e na distribuição da carga tributária entre diferentes segmentos econômicos e contribuintes. Uma mudança assim passa por um esforço singular de composição de conflitos e administração de disputas federativas, horizontais e verticais, em torno de novas — e velhas — bases tributárias. Depende também da superação de um certo estado de desconfiança federativa, que nos assombra há anos e parece resultar de expectativas de recomposições fiscais frustradas, como no caso da compensação prevista na Lei Kandir e na Emenda Constitucional nº 42, de 2003, matéria inclusive julgada pelo STF na ADO 25, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. No contexto de uma economia que, cada vez mais, torna-se digital, reformar a tributação — notadamente a que incide sobre o consumo — significa redefinir ou abandonar conceitos que servem de lastro para a partilha de competências no Brasil, evitando lacunas e sobreposições. É ainda caminhar para a superação e.g da velha dicotomia mercadoria-serviço, da lista taxativa e, sobretudo, de certa maneira de aplicar esses conceitos que ainda insiste em solucionar controvérsia tributárias da era digital com princípios do direito romano. As décadas de demora no Congresso Nacional mostraram que essa não é uma tarefa fácil, especialmente quando se trata de reformas amplas e profundas, como a aprovada na Câmara dos Deputados. Além disso, há limites de conteúdo, que a própria Constituição estabelece no §4º do artigo 60, na forma de cláusulas pétreas, sob pena de desnaturar-se. Nenhuma delas é específica para o campo tributário, mas duas revelam-se particularmente importantes nessa temática: as que vedam emendas tendentes a abolir "a forma federativa de Estado" e "os direitos e garantias individuais". O Supremo Tribunal Federal em diversos julgados, sob a égide da Constituição de 1988, firmou a orientação no sentido de que as limitações constitucionais ao poder de tributar são cláusulas pétreas. Os princípios tributários, como e.g. o da anterioridade e o da irretroatividade, asseguram direitos fundamentais dos contribuintes. A imunidade recíproca, por sua vez, decorre do pacto federativo. Precisamente com esse fundamento, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 939, de relatoria do ministro Sidney Sanches, declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos da Emenda Constitucional nº 3, de 17/3/1993 — criadora do Imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (IPMF) — que permitiam que a nova exação fosse exigida sem observância às limitações ao poder de tributar previstas no artigo 150, III, "b" (princípio da anterioridade) e VI (imunidades tributárias). Foi esse o primeiro julgado no qual o STF conheceu de uma ação direta contra uma emenda à Constituição e provavelmente também a primeira vez que o tribunal assentou a leitura extensiva que erigiu as limitações ao poder de tributar ao patamar de cláusulas pétreas. A orientação firmada nesse julgamento a respeito das limitações ao poder de tributar influenciou decisivamente a jurisprudência do STF e foi, posteriormente, reaplicada em outros casos decididos pela corte, como, por exemplo, o Recurso Extraordinário nº 587.008, relatado pelo ministro Dias Toffoli e julgado em 6/5/2011, e a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.661, relatada pelo ministro Marco Aurélio e julgada em 20/10/2011. Essa maneira de ler a Constituição assenta as balizas do debate da reforma constitucional tributária, que se mostram especialmente desafiadoras, quando se trata de reformas amplas que extinguem, fundem, substituem ou criam exações. No texto aprovado para a PEC 45, de 2019, há exemplos de disposições que afastam ou excepcionam limitações ao poder de tributar. A alteração promovida na redação do §1º do artigo 150 afasta a aplicação do princípio da anterioridade em relação ao exercício financeiro (artigo 150, III, "b") para os impostos seletivos sobre "produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente". A regra do artigo 149-B, parágrafo único, excepciona a aplicação da imunidade prevista no artigo 195, § 7º, em relação à contribuição sobre bens e serviços (artigo 195, V). A previsão do §1º do artigo 129 do ADCT determina a não aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal (artigo 150, III, "c") em relação às alíquotas de referência fixadas pelo Senado Federal. O artigo 9º, §5º, I, da emenda afasta a aplicação do princípio da legalidade tributária (artigo 150, I) à revisão anual do valor do crédito presumido concedido ao produtor rural. A bem da verdade, é discutível se todas essas hipóteses configuram verdadeiras exceções a limitações constitucionais ao poder de tributar ou se apenas esclarecem hipóteses em que essas disposições já não seriam naturalmente aplicáveis. Mas não é isso que está em questão neste artigo. O ponto para o qual queremos chamar atenção é que, levada à risca a orientação adotada na ADI 939 — e reafirmada em diversas outras decisões posteriores — alguns desses dispositivos e outros que podem eventualmente ser incluídos no Senado seriam de duvidosa constitucionalidade. Sim, porque não poderia uma emenda constitucional afastar uma limitação constitucional ao poder de tributar. As exceções seriam apenas as previstas no texto constitucional originário, não caberiam outras. No entanto, não nos parece que essa seja a forma mais adequada de ler os julgados do STF, tampouco a disposição do artigo 60, §4º, da Constituição, quando o que se discute é uma reforma tributária ampla como a proposta na PEC 45. Sem negar a importância desses precedentes nem ignorar a maneira como eles influenciam o pensamento tributário vigente e talvez a própria formulação de alguns dispositivos da PEC 45, é fundamental reconhecer que as circunstâncias são outras. Não estamos a discutir ajustes pontuais ou o acréscimo de novas exações à ordem jurídica vigente. A proposta é mudar todo o sistema de tributação do consumo: substituir impostos, criar competências, modificar as regras de partilha de receitas e propor novos arranjos institucionais de deliberação federativa. Admitir uma interpretação menos restritiva, nesse quadro, não parece ir de encontro ao núcleo duro da Carta Constitucional. Afinal, trata-se de um redesenho da tributação do consumo de forma global, não da inclusão de mais um tributo, como no caso julgado pelo STF na ADI 939. A maneira ampla e profunda como se apresenta o debate legislativo é relevante para a interpretação das mudanças propostas. Veja-se ao menos um exemplo particularmente ilustrativo. Aprovada a PEC, o IPI deixará de existir, de acordo com a regra de transição. Mas está prevista a competência para a instituição do imposto seletivo (IS), a incidir sobre "produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente". A emenda previu para o IS a mesma exceção antes aplicável ao IPI: ambos escapam à vedação da alínea "b" do inciso III do artigo 150 da Constituição, isto é, a proibição de cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou. Há nisso violação de cláusula pétrea? Não. Substituíram-se tributos, redesenhou-se a tributação do consumo de forma ampla. Essa ordem de ideias, aliás, não se coloca apenas quanto aos chamados direitos fundamentais dos contribuintes, senão também em relação às regras de partilha de receitas e divisão de competências tributárias, que têm estreita conexão com a forma federativa de Estado e repercutem na autonomia dos entes subnacionais. É válida uma emenda constitucional que altere a competência tributária dos entes subnacionais suprimindo impostos (e.g. ICMS e ISSQN)? Mudanças dessa ordem afetam o pacto federativo? Eliminam a autonomia dos entes subnacionais? O Conselho Federativo pensado para o (novo) Imposto sobre Bens e Serviços é compatível com o pacto federativo firmado em 1988? Com questionamentos assim, entre outros, foram impetrados ao menos dois mandados de segurança, no Supremo Tribunal Federal: o MS 39.289, pelo deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, e o MS 39.303, pelo deputado Alexandre Ramagem. Ambos são de relatoria do ministro Luiz Fux. Nenhum deles foi apreciado até o momento. Também aqui é fundamental enxergar a amplitude do movimento institucional proposto: uma reforma ampla da tributação do consumo. Recusar de todo a possibilidade de reunir impostos, criar novos foros de debate federativo e — sim, também isso — redistribuir recursos na federação é aceitar que estamos fadados a permanecer com um sistema tributário pensado nos anos 1960, cujas bases tributárias já mostram sinais de erosão, e que não se revela plenamente capaz de lidar com todos os desafios que nossa sociedade em rede e nossa economia, cada vez mais, digital apresentam. O fato é que, desde 1988, o STF não lidou com uma reforma constitucional tributária ampla, como a proposta na PEC 45, de 2019. Nunca decidiu caso similar ou parecido. E a razão é simples: tal reforma nunca houve sob a égide da Constituição vigente. Todos os casos decididos cuidavam de alterações mais ou menos pontuais no texto da Constituição. Os precedentes foram firmados nessas circunstâncias. Num sistema tributário rígido como o nosso, no qual a tributação do consumo está fragmentada nos três níveis da federação e, pelo menos, cinco tributos diferentes, mudanças amplas demandam novos arranjos federativos e outras formas de cobrar impostos e partilhar receitas. Fazer alterações dessa magnitude, sem soluços nem hiatos, no quadro de uma sociedade que tem pressa e de uma economia que muda rápido e se digitaliza, é tarefa árdua, quase impossível. Mas sua primeira etapa legislativa já foi vencida na Câmara dos Deputados por 382 votos. Há pelo menos mais duas pela frente, uma legislativa e outra judicial. Com os ajustes e debates necessários, que nenhuma delas tarde.
2023-07-15T08:00-0300
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Diário de Classe
Educação para a democracia: lições de Martha Nussbaum
A proximidade entre o Direito e a Literatura é a mesma que redimensiona o século 21. Isso porque, "[...] no Brasil celebramos recentemente a Constituição Balzaquiana e comemoramos o seu ciclo de saturno. Sobrevivemos ao extremado século XX, suas guerras e conquistas" [1]. Assim, chegamos ao século 21 com alguns aprendizados, mas também com muito a aprender. Apesar de a humanidade ter vivenciado uma era de estruturas repressivas ou a Era dos Extremos, chegamos a um cenário em que esperávamos um olhar crítico sobre os fenômenos jurídicos. Contudo, conforme destaca o professor Lenio Luiz Streck, o Direito não parece ter se apropriado das contribuições trazidas pela viragem linguística e a superação do dualismo sujeito-objeto. Ocorre que os modelos de pensamento (paradigmas) que orientam determinado momento histórico se tornam tão imperceptíveis que fundam o senso comum teórico de determinada área de conhecimento. E a construção do saber jurídico bebeu de uma fonte individualista, de vertente racionalista, caracterizada pela fragmentação do conhecimento [2]. Dessa forma, o paradigma que forjou o senso comum teórico do jurista da contemporaneidade foi o paradigma liberal-individualista-normativista-racionalista. O sistema jurídico brasileiro está estruturado essencialmente sobre esses pilares, que, embora já esgotados, insistem em permanecer dominantes. Assim, sua estrutura e função estão em descompasso. Tudo isso culmina em uma crise do direito que sucede a crise do próprio Estado. O resultado disso é o emperramento da "engrenagem jurídica" e a estereotipação do conhecimento jurídico. Isto é, o sistema (e o saber) jurídico continua(m) a funcionar atendendo aos compromissos assumidos outrora. É nesse sentido que se apresenta uma crise em espiral, uma crise silenciosa, mas nem por isso menos prejudicial em razão de sua natureza. Martha Nussbaum, filósofa e intelectual estadunidense, dedicou boa parte de suas pesquisas ao estudo de temas envolvendo justiça social, direitos humanos, direito e literatura e educação, alertando para uma crise educacional silenciosa [3] de enormes proporções [4]. Mas o que pode ser compreendido como a causa central desta crise educacional que se reflete em uma ameaça à democracia? Um dos principais fatores é a ênfase que os governantes de diversos países têm conferido às estratégias para aumentar o Produto Nacional Bruto (PNB). Parte desses planos tem, consequentemente, levado os países a desvalorizar e, assim, suprimir, de maneira equivocada, boa parte das disciplinas que fomentam as competências indispensáveis para manter viva a democracia, isto é, as disciplinas relacionadas às humanidades. Essas concepções partem da premissa de que tais disciplinas não contribuem para o almejado (e de fato necessário) desenvolvimento econômico, sendo-lhe, ainda, prejudicial. Dessa forma, o custo disso é a diminuição do desenvolvimento de importantes características e capacidades que são indispensáveis para uma qualidade de vida e para o desenvolvimento de aspectos fundamentais de uma vida genuinamente humana. Isso resulta na fragilização das democracias, uma vez que importantes aspectos como a capacidade de alteridade, o uso responsável da liberdade, a capacidade de articular um discurso e o pensamento crítico por meio do diálogo, a simpatia e empatia para com o outro etc., podem vir a ser enfraquecidos, pois essas e outras capacidades são amplamente desenvolvidas ou cultivadas pelas humanidades. Nesse sentido, a compreensão sobre a educação para uma cidadania democrática demanda que pensemos acerca do que são as nações democráticas e pelo que elas lutam. Diferentemente do que se espera de uma educação para cidadania, nos sistemas educacionais que têm como objetivo exclusivo o lucro, competências essenciais são descartadas. Mas não só. A visão linear e fragmentada não abre espaço para a organização do conhecimento. É nesse sentido a indispensabilidade de uma reforma, com a superação do senso comum teórico. Isto é, uma educação que leve em conta a complexidade, a interdisciplinaridade, o desejo de saber, o amor de ensinar e, fundamental: a dúvida. Portanto, de reconhecimento das potencialidades de pensamento empático e crítico que as humanidades são capazes de desenvolver. Nussbaum explica que a capacidade de imaginar a experiência do outro é inerente a todos os seres humanos, mas esta deve ser aumentada e aperfeiçoada. Isso somente será possível quando as humanidades, as artes e a literatura — forem presença nos currículos. Diante da importância das humanidades para a educação como um todo, isso não seria diferente no ensino jurídico. Isso porque, as escolas de direito também devem estar preocupadas com a formação para democracia e cidadania, considerando as exigências de uma nova sociedade e dos novos direitos. O ensino jurídico não pode ser descolado da história do pensamento humano. No campo da formação em Direito, como em qualquer outra área da formação humana, há necessidade da construção de um pensamento crítico por meio da transdisciplinaridade. Este texto, de certo modo, propõe, sob o viés de Martha Nussbaum, o reconhecimento da educação e humanidades enquanto elemento propulsor do desenvolvimento de muitas capacidades indispensáveis para o desenvolvimento do ser humano, especialmente para os juristas. Por fim, coadunamos com o pensamento de Shecaira de que "talvez a literatura não faça dos leitores pessoas melhores, mas ela ainda pode fazer dos leitores pessoas mais atentas à complexidade de questões morais que tendem a ser subestimadas" [5].   REFERÊNCIAS ESPINDOLA, Angela Araujo; SANGOI, Bernardo Girardi. O senso comum teórico do jurista e a arte de reduzir cabeças. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 3, n. 1, p. 37-56, 2016. ESPÍNDOLA, Angela Araújo. A teoria da decisão e o homem que confundiu a mulher com um chapéu. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, p. 595-614, 2018, p. 604. NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. WWF Martins Fontes, 2015. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. SHECARIA, Fábio Perin. A importância da literatura para juristas (sem exageros). Anamorphosis. V.4, p. 357-377, 2018. Disponível em: http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/423 . Acesso em: 03 jul. 2023, p. 358. [1] ESPÍNDOLA, Angela Araújo. A teoria da decisão e o homem que confundiu a mulher com um chapéu. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, p. 595-614, 2018, p. 604. [2] ESPINDOLA, Angela Araujo; SANGOI, Bernardo Girardi. O senso comum teórico do jurista e a arte de reduzir cabeças. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 3, n. 1, p. 37-56, 2016. [3] Em sua obra "Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das Humanidades?", o leitor encontra um manifesto com a "intenção de funcionar como um chamado para a ação". Onde a crise silenciosa da educação coloca em risco a própria democracia e as novas gerações. [4] NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. WWF Martins Fontes, 2015, p. 5. [5] SHECARIA, Fábio Perin. A importância da literatura para juristas (sem exageros). Anamorphosis. V.4, p. 357-377, 2018. Disponível em: http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/423. Acesso em: 3 jul. 2023, p. 358.
2023-07-15T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-15/diario-classe-educacao-democracia-licoes-martha-nussbaum
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Ambiente Jurídico
A relação entre coisas antigas e o patrimônio cultural
A palavra "antigo", com o significado daquilo que se conserva há muito tempo, vetusto, tem sua origem no latim "antiquus" e adjetiva, em grande medida, coisas que merecem respeito, estudos e admiração pelo seu alargado lapso temporal de existência, sendo se lembrar, a propósito, as frases dos filósofos Plutarco (Queroneia, 46 d.C. — Delfos, 120 d.C.), para quem "ignorar as vidas dos homens da antiguidade é continuar sempre na infância" e Confúcio (Tsou, 551 a.C. — Qufu, 479 a.C.), que recomendava: "estude o passado se quiser decifrar o futuro". No campo do Direito do Patrimônio Cultural, merecem proteção aqueles bens que são dotados de especial significado e valor[1] (não dizem respeito apenas à antiguidade), podendo compreender, por exemplo, atributos arquitetônicos modernos (como a cidade de Brasília e o Conjunto da Pampulha, reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco) ou a vinculação e uso por personagens de relevo para a trajetória civilizacional do país (a exemplo da casa de Chico Mendes, em Xapuri (AC), tombada pelo Iphan em 2008). Entretanto, é preciso reconhecer que a antiguidade de um bem é um dos atributos que mais se destacam para o seu reconhecimento como portador de valor cultural, pois é da essência humana a reverência pelas coisas mais remotas, que carregam consigo uma espécie de aura sagrada que lhes impõe  respeito e conservação pelas gerações. Em tal cenário, de longa data são os dispositivos, conceitos e deliberações que atribuem proteção a coisas surgidas, cultivadas ou construídas nos tempos de antanho, sendo de indiscutível relevo para a seleção de bens culturais o atributo cronológico pretérito. No âmbito do Direito Canônico, por exemplo, em 28 de abril de 1462, Pio 2º expediu a Bula Papal Cum almam nostram urbem, onde se prevê a excomunhão, além de pesadas multas, a "todos, religiosos ou leigos, sem exceção, independentemente de seu poder, dignidade, de seu status e posição, do mérito eclesiástico (mesmo pontifical) ou mundano que venham demolir, quebrar, danificar ou transformar em cal, de forma direta ou indireta, pública ou secretamente, qualquer edifício público da antiguidade ou quaisquer remanescentes de edifícios antigos que existam no solo da cidade ou em seus arredores, mesmo que eles se encontrem nas propriedades que lhes pertençam na cidade ou no campo". Em 1519 o célebre Rafael Sanzio, que havia sido designado pelo papa Leão 10 para conservar os bens da Igreja Romana, dirigia carta ao pontífice em que manifestava sua preocupação com a preservação do patrimônio cultural e dizia: "é dever de todos e de cada um amar a sua pátria e seus pais; por isso me sinto compelido a empregar todas as minhas débeis forças para conservar, o quanto possível, certa vida na imagem, ou antes, na sombra dessa cidade, e assegurar que esse testemunho do mérito e poder dos divinos espíritos não seja destruído ou danificado por celerados ou ignorantes". As raízes da proteção jurídica ao patrimônio cultural brasileiro se prendem, obviamente, ao ordenamento jurídico de Portugal, onde é considerado embrião do sistema legal o Alvará Régio de 20 de agosto de 1721, por meio do qual dom João 5º atribuiu à Real Academia de História a adoção de providências "para se conservarem os monumentos antigos, que podem servir para ilustrar, e certificar a verdade da mesma história" em que determinou: "daqui em diante nenhuma pessoa de qualquer estado, qualidade e condição que seja, possa desfazer ou destruir em todo nem em parte, qualquer edifício que mostre ser daqueles tempos ainda que em parte esteja arruinado e da mesma sorte as estátuas, mármores e cipos". Especificamente em solo brasileiro, o primeiro indício de preocupação governamental com a preservação do patrimônio cultural data do ano de 1742, quando o então vice-rei do, André de Melo e Castro, Conde de Galveias, escreveu ao governador de Pernambuco, Luis Pereira Freire de Andrade, ordenando a paralisação das obras de transformação do Palácio das Duas Torres, construído por Maurício de Nassau, em um quartel para as tropas locais, ocasião em que foi determinada a restauração do palácio em razão de sua antiguidade e relevância histórica. Feito o breve passeio pelo tempo, insta salientar que temos hoje vigentes em nosso país dispositivos legais que atribuem especial proteção a bens em razão de sua ancianidade. Quanto ao patrimônio paleontológico, por exemplo, o artigo 2º. da Portaria DNPM 542/2014 estabelece que se considera fóssil o resto, vestígio ou resultado da atividade de organismo que tenha mais de 11 mil anos. Ou seja, são protegidos elementos naturais vegetais ou animais que remontam ao período pleistocênico e ficam submetidos ao regime jurídico estabelecido pelo Decreto 4.146/42. Em relação ao patrimônio arqueológico pré-histórico brasileiro, todos os vestígios materiais deixados pelos povos que aqui viveram até a chegada de Pedro Álvares Cabral (1500) ficam submetidos ao regime jurídico da Lei 3.924/61. São os chamados bens arqueológicos pré-cabralinos. Importante diploma para evitar a evasão do patrimônio cultural brasileiro para outros países é a Lei nº  4.845/65, que proíbe a saída, para o exterior, de obras de arte e ofícios produzidos no país, até o fim do período monárquico (15 de novembro de 1889), estabelecendo: Art.1º - Fica proibida a saída do País de quaisquer obras de artes e ofícios tradicionais, produzidas no Brasil até o fim do período monárquico, abrangendo não só pinturas, desenhos, esculturas, gravuras e elementos de arquitetura, como também obra de talha, imaginária, ourivesaria, mobiliário e outras modalidades. Art.2º - Fica igualmente proibida a saída para o estrangeiro de obras da mesma espécie oriundas de Portugal e incorporadas ao meio nacional durante os regimes colonial e imperial. Art.3º - Fica vedada outrossim a saída de obras de pintura, escultura e artes gráficas que, embora produzidas no estrangeiro no decurso do período mencionado nos artigos antecedentes, representem personalidades brasileiras ou relacionadas com a História do Brasil, bem como paisagens e costumes do País. A seu turno, em defesa do patrimônio bibliográfico, a Lei nº 5.47/68 dispõe sobre a exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros, estabelecendo: Art. 1º Fica proibida, sob qualquer forma, a exportação de bibliotecas e acervos documentais constituídos de obras brasileiras ou sobre o Brasil, editadas nos séculos 16 a 19. Parágrafo único. Inclui-se igualmente, nessa proibição a exportação de: a) obras e documentos compreendidos no presente artigo que, por desmembramento dos conjuntos bibliográficos, ou isoladamente, hajam sido vendidos; b) coleções de periódicos que já tenham mais de dez anos de publicados, bem como quaisquer originais e cópias antigas de partituras musicais. Em Minas Gerais, a Lei Estadual  nº 5.741/71, que dispõe sobre a proteção especial de  documentos, obras, locais de valor histórico e artístico, monumentos,  paisagens naturais e  jazidas arqueológicas, pelo Estado, dispõe em seu artigo 3º, que independentemente de decisão do Conselho Estadual de Cultura, mas devendo constar de seu Registro Cultural, ficam considerados sob proteção especial do Estado os  documentos, as obras e locais históricos e monumentos, com mais de  150 anos, existentes no território mineiro. Ainda segundo a lei, os  templos, construções residenciais e todos os valores móveis existentes  no interior deles estão compreendidos na aludida proteção. De tal forma, em Minas Gerais há a presunção legal do valor cultural dos bens acima enumerados que tenham mais de um século e meio de existência. No campo internacional, a Convenção sobre a defesa do patrimônio arqueológico, histórico e artístico das Nações Americanas (C-16)  — Convenção de São Salvador — aprovada em 16 de junho de 1976 (Santiago, Chile), estabelece especial proteção, entre outros, para os monumentos, edificações, objetos artísticos, utilitários, etnológicos, intactos ou desmembrados, da época colonial, bem como os correspondentes ao século 19; bibliotecas e arquivos; incunábulos e manuscritos; livros e outras publicações, iconografias, mapas e documentos editados até ao ano de 1850. Enfim, é destacada a potencialidade de coisas antigas serem integrantes do patrimônio cultural de um povo. A vetustez ou ancianidade são indícios de especial valor e devem ser objeto de criteriosa análise para a seleção dos bens culturais do nosso país. [1] Portadores de referência à ação, à memória e à identidade do povo brasileiro, nos termos do art. 216, caput, da CF/88.
2023-07-15T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-15/ambiente-juridico-relacao-entre-coisas-antigas-patrimonio-cultural
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Tribunal do Júri
O jury trial pela ótica da professora Valerie Hans
Nos artigos dos dias 23 de abril de 2022 e 30 de abril de 2022, foram publicadas nesta coluna algumas reflexões levantadas pelo professor argentino Alberto Binder durante a aula magna do curso de pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI. Pouco mais de um ano depois, a aula de encerramento do curso contou com a participação de uma das mais importantes pesquisadoras sobre o Tribunal do Júri do mundo, a professora Valerie Hans [1], da Universidade de Cornell (EUA), autora de mais de 150 publicações sobre julgamento por jurados. Suas pesquisas são fundamentais para o aprimoramento do Tribunal do Júri e subsidiam milhares de outros estudos em todos os continentes. Para entender seus posicionamentos, em primeiro lugar, faz-se necessário entender o contexto do júri na ordem mundial. Um estudo publicado em 2021 [2] indicou que atualmente existem 71 países que possuem julgamento com cortes escabinadas — em que jurados leigos decidem em conjunto com magistrados — e 56 países com o modelo de julgamento de júri formado apenas por cidadãos. Já em relação à quantidade de decisões tomadas por leigos (ou corte híbrida, ou júri) em casos criminais por continente, tem-se que, na África, 72% dos julgamentos são realizados por jurados leigos; na Ásia, 42%; na Oceania, o maior percentual, 93%; na Europa, 70%; na América do Norte, 78%; e na América do Sul, o menor percentual, apenas 33%. Esses números revelam a importância desse modelo de julgamento. Em outro diapasão, a nível qualitativo, nos últimos 50 anos diversas pesquisas mostraram os benefícios e os prejuízos do julgamento pelo júri, principalmente nos Estados Unidos, país que, de forma absoluta, realiza uma grande quantidade de sessões. De acordo com Valerie Hans, como principais vantagens desse modelo citam-se a incorporação dos valores contemporâneos da própria comunidade na interpretação e busca dos fatos que estão sendo julgados; a correção de erros e testes de interpretação na fase de deliberação dos jurados; a proteção contra preconceitos e vieses típicos dos julgadores profissionais. No entanto, chama especial atenção a correlação entre o Tribunal do Júri e a democracia. A Suprema Corte americana, em Duncan v. Louisiana (1968) expressou que "proporcionar a um acusado o direito de ser julgado por um júri de seus pares dá a ele uma proteção inestimável contra um promotor corrupto ou excessivamente zeloso e contra um juiz complacente, tendencioso ou excêntrico". Mas a importância vai muito além disso. A legitimidade de uma decisão tomada pelo júri vincula-se aos princípios do próprio sistema acusatório, pois oferece um julgamento genuinamente público e transparente, em que: (a) As partes, acusação e defesa, têm a oportunidade de produzir provas perante os julgadores; (b) As partes têm a real possibilidade de serem ouvidas; (c) O Conselho de Sentença é formado pela comunidade e o resultado da decisão é publicizada imediatamente. Assim, os princípios da oralidade e da imediatidade restam materializados neste modelo de julgamento. Em que pese em diversas oportunidades, nessa coluna, tenha sido discorrido sobre como, no processo penal brasileiro, o procedimento do júri é o que mais se aproxima do sistema acusatório [3], frisa-se que é indispensável ter a percepção que isso também acontece nos demais ordenamentos jurídicos. Outra questão umbilicalmente ligada à democracia exposta por Valerie é a necessidade de formação de um júri diverso. Por mais que a maior parte das pesquisas norte-americanas tenham seu foco de atenção na diversidade racial [4], a diversidade também deve incluir a de gênero e a de classes socioeconômicas. Refere-se principalmente àquilo que temos insistido sobre a necessidade de representação da sociedade no júri [5], que não somente deveria perpassar por um aumento na quantidade de membros do Conselho de Sentença, mas também pela formação adequada da lista de jurados. Por derradeiro, um júri diverso é visto com especial legitimidade pela própria comunidade. Para aqueles que acreditam que no júri "ganha" aquele que melhor "engana" os jurados, a professora aponta diversas pesquisas empíricas que certificam que as provas apresentadas em plenário constituem o fator mais relevante para o veredito [6]. Assim, aquela alegação — quase um mantra entoado pelos detratores do júri — de que júri seria um "grande teatro" não possui qualquer fundamento científico. Impossível não apontar o impacto causado nos próprios jurados que participam de alguma sessão do júri. Uma pesquisa recém realizada descobriu que, após esta vivência, os jurados desenvolveram uma melhor percepção sobre o sistema de júri (88,5%), sobre o sistema de justiça em geral (79.7%), sobre o próprio governo (55,5%) e até em relação à polícia (56,9%) [7]. Com isso, comprova-se não apenas a importância do júri para a comunidade como um todo (naquilo que se denomina de "caráter pedagógico" do júri [8]), mas inclusive nos próprios jurados que compuseram o Conselho de Sentença [9]. Enfim, as pesquisas científicas apontam que as vantagens no julgamento por jurados superam, em muito, as desvantagens. Talvez a maior crítica ao nosso modelo, que também já havia sido apontado pelo professor Alberto Binder, também bastante discutido por nós em outras oportunidades [10], é a ausência de deliberação entre os jurados. Ainda pelo viés crítico, Valerie Hans indicou que a quantidade de jurados afeta a qualidade da decisão, restando demonstrado que uma composição de 12 jurados julga de maneira mais correta e confiável do que júris com formações menores [11]. Todas essas ponderações, que expõem a umbilical ligação entre o júri, o sistema acusatório e a democracia, são fundamentais para um Estado Democrático de Direito. Neste sentido, um estudo mostrou uma diferença significativa na correlação entre os índices de medida de democracia dos países que possuem um sistema de júri, sendo que aqueles com o maior índice possibilitam a existência efetiva do julgamento por jurados [12]. O Tribunal do Júri continua a ser um modelo a ser seguido para que tenhamos uma Justiça mais humana e respeitadora de valores democráticos. Apesar de o procedimento necessitar de aprimoramento — com vistas a concretizar, principalmente, os direitos e garantias constitucionais e convencionais dos acusados —, as pesquisas demonstram que se trata de uma forma de julgamento que propicia decisões de maior qualidade, justas e imparciais. [1] Valerie Hans (M.A. e Ph.D. pela Universidade de Toronto). professora de Direito da Cornell Law School (EUA). Editora da Journal of Empirical Legal Studies e da Annual Review of Law and Social Science. Autora de grandes obras americanas sobre tribunal do júri, como "Juries, Lay Judges, and Mixed Courts: A Global Perspective", "American Juries: The Verdict", "The Jury System: Contemporary Scholarship", "Judging the Jury" e mais de 150 outras publicações. [2] Sanja Kutnjak Ivković & Valerie P. Hans, A Worldwide Perspective on Lay Participation, in Juries, Lay Judges, and Mixed Courts: A Global Perspective 323, 338 (Sanja Kutnjak Ivković, Shari S. Diamond, Valerie P. Hans & Nancy Marder, eds., 2021). [3] Sugiro a leitura do Capítulo 3, "Em busca de um júri democrático" (na obra: PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, 2a. ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023), bem como, aqui na ConJur, "A humanização e a imediatividade da prova no júri"; "O enfrentamento dos modelos de prova nos debates em plenário". [4] Samuel R. Sommers, On Racial Diversity and Group Decision Making: Identifying Multiple Effects of Racial Composition on Jury Deliberations, 90 J. PERS. & SOC. PSYCHOL. 597 (2006). [5] "Tribunal do Júri: representatividade social e o sistema norte-americano". Sob a perspectiva da escolha de jurados imparciais: "O voir dire como ferramenta para a seleção de jurados imparciais". Recentemente também analisamos pelo viés da paridade de gêneros, em uma série de três artigos: "Paridade de gêneros no Conselho de Sentença do Tribunal do Júri: PL 1918/21", "Parte 2" e "Parte 3". [6] De maneira mais didática, indicamos a ampla pesquisa de revisão publicada na obra American Juries: The Verdict (2007), de Valerie Hans e Neil Vidmar. [7] Porterie, M. S., Romano, A., & Hans, V. P. (2021). El jurados Neuquino: El comienzo del jurados clásico en la Argentina. INECIP. [8] "Nunca se pode esquecer do caráter pedagógico do Tribunal do Júri, como forma de não apenas propagar o caráter cogente das normas, como também reforçar o correto funcionamento das instituições." (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, 2a. ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 494) [9] Nos EUA, por exemplo, onde o voto para as eleições não é obrigatório, a taxa de participação nas eleições, por aqueles que posteriormente participaram do júri, aumentou. Também, foi reconhecido que a participação no júri fez aumentar outras formas de participação cívica. [10] Além dos livros, discutimos aqui na ConJur em "Tribunal do Júri: deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões". [11] Saks, M.J., Marti, M.W. A Meta-Analysis of the Effects of Jury Size. Law and Human Behavior. 21, 451–467 (1997). [12] Sanja Kutnjak Ivković, & Valerie P. Hans, Beacons of democracy? A Worldwide Exploration of the Relationship between Democracy and Lay Participation in Criminal Cases. 98 Chi.-Kent L. Rev. 135-166.
2023-07-15T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-15/tribunal-juri-jury-trial-otica-professora-valerie-hans
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Embargos Culturais
"O Plenário Virtual, esse outro desconhecido", de Camila de Souza
"O Supremo Tribunal Federal, esse desconhecido", de Aliomar Baleeiro, parece-me publicado pela primeira vez em 1968. Uma época de crise nas relações entre Judiciário e Executivo, mais uma, muito bem estudada em livro essencial de Felipe Rocondo, "Tanques e Togas, o STF e a Ditadura Militar". Como mote no título do livro de Baleeiro, a pesquisadora Camila Nascimento de Souza publicou pela Lumen Juris um alentado estudo sobre o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, com o título "O Plenarío Virtual, esse outro desconhecido". Um jogo de palavras inteligente e para iniciados. E é um assunto para se levar muito a sério, e Camila o fez. Ao que consta, 90% dos julgamentos colegiados na Corte Suprema são processados nessa modalidade. Na origem, a pesquisa é uma dissertação de mestrado, com orientação e inspiração em Patrícia Perrone Campos Mello, constitucionalista brasileira muito prestigiada e preparada, que assina o prefácio, que faz referência a Leda Boechat Rodrigues, a sempre relembrada historiadora da Corte Suprema. Leda foi casada com o historiador José Honório Rodrigues, que foi diretor do Arquivo Nacional, com quem esteve em Washington, onde impressionou-se com a Suprema Corte americana. Leda, inclusive, deixou-nos uma obra básica sobre o constitucionalismo norte-americano. Leda Boechat, Patrícia Perrone e Camila de Souza formam, nessa lógica historiográfica, um olhar privilegiado sobre o ambiente das grandes decisões constitucionais. Camila explica a construção conceitual do Plenário Virtual a partir do instituto da repercussão geral. O Plenário, nessa leitura, significa, segundo a autora, uma solução para a repercussão geral e para a administração do acervo dos recursos extraordinários. É a crise do extraordinário, preocupação recorrente em magistrados como Moreira Alves, Sepúlveda Pertence e Gilmar Mendes. Conceitualmente, a autora insiste que o Plenário Virtual deu fim à ausência como anuência, com forte referência na Emenda Regimental 50/2020. O pano de fundo do livro consiste na concepção realista de que a desmaterialização dos segmentos da vida, com a extensão do ambiente digital tem, também e inexoravelmente, uma inflexão nos ambientes de julgamento. Nesse caso, o Plenário Virtual significa continuidade e permanência, dada sua imaterialidade. A autora ilustra esse argumento com a lamentável invasão de 8 de janeiro de 2023. No dia seguinte, registra Camila, a ministra Rosa Weber (na presidência) "convocou um tipo de sessão virtual sem precedentes: a sessão virtual extraordinária permanente". Para Camila, o Plenário Virtual é uma realidade. É indício da concepção de uma quase transformação de julgamentos em tecnologia, argumento que Camila sustenta com base em Richard Susskind, autor canônico nesse tipo de pesquisa. O tema da digitalização do direito, no sentido procedimental, é também explorado por Leonardo Peter da Silva ("Justiça Digital Sustentável", livro cuja resenha publicarei em breve) e, quanto a tema específico de direito público, o direito fiscal, por Paulo Mendes de Oliveira (em artigo que publicou com Andréa Mussnich Barreto, sobre os julgamentos virtuais do STF e o direito tributário). O capítulo 4 do livro me pareceu o mais instigante. A autora analisa o novo desenho institucional do Supremo a partir da ampliação de competências do Plenário Virtual. Apresenta ao leitor um conjunto de diagnósticos e visões para o futuro. Camila lembra-nos que o ambiente é novo, mas que persistem problemas antigos, o que alimenta alguma incompreensão da comunidade jurídica. Ainda que resultado de pesquisa acadêmica o livro é prático e destinado também ao uso de quem operamos na Suprema Corte. Há fluxogramas, tabelas de evolução normativa e, principalmente, um passo a passo de muita utilidade, apresentado com base em informação e desenho do próprio Supremo. Um livro para ser lido com outro recentemente publicado em homenagem a Roberto Rosas, pioneiro no estudo do direito sumular, obra coletiva coordenada por Gilmar Mendes e Victor Pinheiro, que também resenharei ao terminar essa importante leitura. Penso que Camila Nascimento de Souza apresenta-nos um livro prático, talvez confirmando que a história das instituições jurídicas é também prioritariamente a narrativa dos tempos presentes.
2023-07-16T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-16/embargos-culturais-plenario-virtual-outro-desconhecido-camila-souza
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Grandes temas, grandes nomes do Direito
Prisões preventivas afetam empresas e investimento, diz advogada
Por vezes usado como forma de obter confissões e acordos de delação, o hábito de decretar prisões preventivas afeta não só os investigados, mas também as companhias cujos executivos sejam alvos dessa medida, e até mesmo a confiança dos investidores estrangeiros. Essa é a opinião da advogada Anna Carolina Noronha. Cursando mestrado na Universidade de Salamanca (Espanha) sobre o problema da excessividade da prisão, a advogada refletiu sobre o assunto em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com algumas das principais personalidades do Direito brasileiro e internacional sobre os assuntos mais relevantes da atualidade. Segundo Anna Carolina, sua pesquisa acadêmica pretende demonstrar que o sistema penal brasileiro decreta um número exagerado de prisões preventivas, o que desrespeita a ideia de que só se deve prender alguém quando outras cautelares menos gravosas não forem suficientes. Esse cenário, segundo ela, é especialmente prejudicial quando o Direito Penal se conjuga com os Direitos Econômico e Empresarial. "Isso é muito importante porque, desde a Constituição de 1988, todas as matérias estão interligadas e devem se basear no princípio da dignidade humana e em todos os direitos processuais constitucionais." Para comprovar seu ponto de vista, ela comparou a situação do Brasil com a da Espanha. "Por meio de dados e da jurisprudência, eu pude fazer uma comparação e detectar que, apesar de a legislação da Espanha ser até mais branda quanto à utilização da prisão preventiva (no caso, basta que haja o risco de fuga), no Brasil nós não temos a revisão desse modelo de prisão, mesmo com a lei do pacote 'anticrime'. E ela é muitas vezes utilizada como forma de obter a confissão espontânea e a delação premiada." Na visão da advogada, o excesso de prisões prejudica não só o investigado por crime de colarinho branco — que foi o foco principal da "lava jato", por exemplo —, mas todas as empresas e a confiabilidade do investidor estrangeiro em relação ao Brasil. "As empresas também foram atingidas com isso. Passou da pessoa investigada, que sofreu uma antecipação de pena, e atingiu as empresas das quais elas faziam parte. E isso trouxe uma grande crise econômica para o Brasil." Para Anna Carolina, as lições deixadas por iniciativas similares não foram aproveitadas no Brasil. "Após a operação 'mãos limpas', da Itália, nós não soubemos aproveitar o aprendizado sobre o que deu errado ali. Eu espero poder contribuir para que o Brasil aprenda, com isso, a separar a pessoa jurídica da pessoa física e saber que empresa precisa continuar." Por fim, a advogada fez um apelo para que o princípio da continuação da empresa passe a ser considerado no decorrer das investigações sobre corrupção. "Pune-se depois de investigar, depois de se formar um processo e depois de condenar a pessoa física responsável. Mas as empresas precisam continuar, porque elas geram empregos para os brasileiros e ajudam a economia brasileira — que ficou tão prejudicada com a operação 'lava jato'. Espero que isso não se repita no futuro, e que mudanças políticas não nos levem a tomar as mesmas atitudes." Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-07-18T09:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-18/prisoes-preventivas-afetam-empresas-investimento-advogada
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Senso Incomum
Íntima convicção rima com qualquer tipo de absolvição
Escrevi na coluna da semana passada que o uso da tese da legítima defesa da honra não é incompatível com a íntima convicção no Júri (ler aqui). Como se diz no Twitter, sigam o fio: 1. Expliquei que, válida a íntima convicção, não é possível sindicar o seu conteúdo — exatamente porque íntima convicção é algo insondável. O que quis dizer é que precisamos levar nossas teses às últimas consequências. Quis dizer que é uma contradição entender que a soberania dos veredictos permite prisão imediata e, ao mesmo tempo, imiscuir-se na íntima convicção dos jurados. Simples assim. 2. De todo modo, vejo que ficaram dúvidas. Um amigo estimado, de alta patente jurídica, disse-me que gostara do meu texto, mas continuava a achar que não havia incompatibilidade entre íntima convicção e legítima defesa da honra. 3. Pois foi exatamente isso que eu falei na minha coluna. Era exatamente este o busílis: se vale a íntima convicção... então vale. Era esse o ponto. De todo modo, agradeço ao meu interlocutor, porque me oportuniza a deixar isso ainda mais claro. §§§ Como já referi na coluna passada, a íntima convicção é uma resposta dos revolucionários franceses à prova tarifada do antigo regime — enfim, ao modo como se julgava. Era o povo que deveria, agora, julgar. E com sua convicção pessoal. Típico otimismo revolucionário. Vejamos: (i) Interessante é o que diz o artigo 342 do Código de Instrução Criminal do ano de 1808, na França pós-revolucionária: "A lei não pede contas aos jurados quanto aos meios pelos quais se convenceram; não prescreve as regras das quais devem fazer depender em particular a plenitude e suficiência de uma prova; preceitua que interroguem a si mesmos, em silêncio e recolhimento, e que busquem determinar, na sinceridade de sua consciência, que impressão as provas produzidas contra o acusado e os meios de sua defesa causaram em seu raciocínio... A lei não os faz senão uma pergunta, que contempla toda a medida de seus deveres: tens uma convicção íntima?" (ii) Avez-vous une intime conviction? Era esse o ponto. Era mesmo esse o ponto. E é aí que está a questão, percebem? (iii) Pronto. Parece que até hoje não inventaram melhor conceito de íntima convicção do que o que consta no artigo 342. É isso. Gostemos ou não. Eu — todos sabem — não concordo com o uso da íntima convicção em um Estado Democrático de Direito. Porém, em sendo válido — e isso parece não incomodar a comunidade jurídica — então temos de tirar consequências. E qual é? É a de que íntima convicção não é sindicável. Ponto. §§§ Insisto: não me agrada a ideia de "íntima convicção". É um equívoco filosófico, porque ignora exatamente o paradigma da intersubjetividade. Só que, se vale, e se já foi reafirmada como válida, não pode ser (casuisticamente) ignorada — em seus pressupostos e suas consequências —, de vez em quando, por aqueles que dizem que ela vale. Não gosto da ideia de íntima convicção. Mas é preciso ter coerência. a) Nesse sentido, aliás, os italianos já falaram, no século 19, na íntima convicção na teoria negativa das provas legais: a livre apreciação — e isso vale para a convicção íntima, na nossa discussão — só se aplica em favor do acusado, sendo a condenação sempre dependente de requisitos previstos em lei. Claro e evidente: se a íntima convicção e o livre convencimento surgiram num paradigma iluminista, pós-revolucionário, qual poderia ser seu sentido? Se o que veio foi para superar exatamente um sistema inquisitorial, num ambiente filosófico de celebração da racionalidade e da liberdade humana, bom... b) Poderíamos aprender com os italianos. Íntima convicção só para absolvição. Não esqueçamos que o quesito a ser respondido é: o réu deve ser absolvido? c) Explico: o quesito genérico é feito, nitidamente, em favor do réu. Escrevi sobre isso em artigo na ConJur em 2019. E isso se deduz de uma coisa singela: não se pergunta se o réu deve ser condenado. Disso deflui a pergunta: o recurso previsto na letra "d" do inciso III, do artigo 593 é também um recurso que pode ser manejado pela acusação? Como aferir a contrariedade à prova dos autos se os jurados podem absolver o acusado sem necessidade de dizer por quê? E não esqueçamos o voto do ministro Celso de Mello sobre o tema. d) No fundo, o que quero dizer aqui é simples: um Estado (Democrático) de Direito exige coerência. E precisamos ter coerência com nossas próprias teses. Simples assim. E complexo. §§§ Numa palavra: (A) Quero também lançar minha provocação epistemológica à comunidade jurídica. Estou escrevendo livro sobre o assunto, mas já lanço aqui o problema. (B) Será possível que insistiremos na surrada tese de que "a livre apreciação (ou livre convencimento) veio para superar a prova tarifada"... Assim, na maioria das vezes em citações repetidas? (C) Ora, é verdadeiro dizer, no seu contexto, no seu tempo, que o livre convencimento veio para superar um paradigma de provas tarifadas no sistema romano, do direito canônico etc. Mas é verdadeiro de certo modo. E só é verdadeiro no contexto e com as devidas explicações. Que não vejo serem feitas. Haverá muitas revelações no livro.
2023-07-20T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-20/senso-incomum-intima-conviccao-rima-qualquer-tipo-absolvicao
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Interesse Público
Tema 698: o STF "lacrou" o controle de políticas públicas?
O Supremo Tribunal Federal veio de julgar o Tema 698 da Repercussão Geral (RE 684.612), e a tese ali fixada foi amplamente divulgada — inclusive pela corte — como uma parametrização para "decisões judiciais a respeito de políticas públicas". O acórdão não se tem ainda publicado, mas a tese enunciada, e a maneira como ele tem sido veiculada, já permitem a formulação de comentários iniciais. A progressiva afirmação da possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas — aparentemente positiva, na perspectiva de efetividade de direitos fundamentais — propôs ao Poder Judiciário uma missão que ele mesmo, frequentemente, em momentos de autocrítica, reconhece pouco instrumentalizado a atender. O problema está em que é difícil recuar, depois de uma proclamação de competência como esta. O grande desafio tem sido como construir um modelo de jurisdição que permita o desenvolvimento responsável desse controle, sem cair numa simples proclamação retórica. O Tema 698 parece ter pretendido avançar nesse desafio. Primeiro ponto a se demarcar, diz respeito à circunstância de que a tese se enunciou a partir de uma demanda coletiva — a ação original era civil pública, manejada pelo Parquet. Esse contexto influenciou, evidentemente, a conclusão — mas gera dificuldades na oferta de uma aplicação abrangente da solução gizada na tese, como alguns pretendem sustentar. Comecemos pelo item 1 da tese, assim enunciado: "1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes". Uma leitura apressada pode sugerir não se tenha nesta primeira proclamação exatamente um dado novo no complexo equacionamento do tema do controle judicial de políticas públicas. Esta primeira impressão, todavia, seria equívoca. Observe-se que o que se está afirmando seja compatível com o princípio constitucional do equilíbrio e harmonia entre os poderes, é a decisão judicial que se materializa através de intervenção em políticas públicas voltadas à realização dos direitos fundamentais. Explicita-se, com o vocábulo "intervenção", uma autorização constitucional vislumbrada pela corte, seja para desenhar originalmente um programa de ação governamental; seja para reconfigurar uma iniciativa de mesma natureza que se aponte como deficiente. A se confirmar tenha sido essa efetivamente a conclusão da corte — nem sempre a tese de repercussão geral traduz com absoluta fidelidade nuances do que foi decidido no caso concreto; ter-se-á a consolidação de um entendimento que restava ainda controverso. Afinal, ainda que restasse razoavelmente consensuada a ideia de que a jurisdição poderia determinar a proteção, na esfera individual de direitos, da projeção de direitos fundamentais consagrados pela Constituição; o mesmo não se poderia dizer da intervenção jurisdicional que se revela potencialmente substitutiva da escolha a ser empreendida pela administração. Formulando esse tipo de afirmação em sede de repercussão geral, e no bojo de uma ação civil pública, incontestavelmente o que se quis foi afirmar que a jurisdição nesse domínio deve ter por objetivo mais do que providências pontuais, mas sim a estruturação de um programa de ação estatal apto à garantia, com maior abrangência, do direito fundamental discutido. O temperamento do intervencionismo extremado que poderia resultar de uma interpretação ampliativa do que se veio a enunciar no item 1, se dá com o conteúdo do item 2 da tese firmado no Tema 698: "A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado". Em que pese o avanço em se reconhecer na segunda parte do item 2 que à administração caiba a oferta do programa de ação; o enunciado suscita algumas perplexidades. Afinal, tem-se na mesma sentença, como aparente antecedente lógico, da indicação de um conteúdo recomendado à prestação jurisdicional — "apontar as finalidades a serem alcançadas". O texto sugere, portanto, uma relação de congruência entre as finalidades, a serem fixadas pela sentença; e os planos e meios adequados à sua concretização. A indagação que se põe é como construir essa congruência na dinâmica do desenvolvimento da relação processual. Parece claro que o apontamento das finalidades a serem alcançadas, a ser implementado pelo julgador, não deve ser uma afirmação genérica ou abstrata, sob pena de violação ao artigo 489, parágrafo 1º, II bem como 497 — este último, em especial, referindo a tutela específica. Disso resulta que do magistrado é de se exigir um conhecimento do problema público, que lhe permita formular com um mínimo grau de especificidade, as finalidades a serem alcançadas, indicando ainda qual seja a métrica admissível para a aferição do atendimento a esses mesmos objetivos. Componente ainda relevante desta parcela da condenação será a indicação de qual o período dentro do qual essas mesmas finalidades devam ser alcançadas — sem o que inexistirá parâmetro objetivo para afirmar-se o cumprimento ou não da decisão. A enunciação do item 2, in fine — "determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado" – parece sugerir um caráter mandamental a este componente da ordem judicial. O ponto sensível, todavia, repousa em saber se o plano que venha a ser apresentado pela administração está ainda sujeito a um juízo apriorístico de aprovação ou reprovação. Afinal, as finalidades a serem alcançadas hão de ser fixadas em sentença — portanto, o processo de conhecimento já encontrou a solução do litígio (sujeita, eventualmente, a recurso). O debate apriorístico quanto à (in)aptidão do plano apresentado pela administração soaria como uma atípica liquidação de sentença. Será esse o quadro cogitado pelo Supremo Tribunal Federal? Antecipo uma inclinação pela resposta negativa — uma vez proferida a sentença e traçadas as finalidades exigíveis da administração, a ela e somente a ela caberá a indicação de qual seja a estratégia de ação reputada mais adequada ao alcance desses mesmos objetivos. Essa parece ser a compreensão mais consentânea com uma tese de repercussão geral que tem como pano de fundo o reconhecimento de que as escolhas estratégicas de ação constituem matéria estranha à órbita de atuação do Judiciário. A matéria todavia não se teve por suficientemente elucidada no equacionamento oferecido ao Tema 698. A enunciação da tese parece claramente comprometida com um vício de perspectiva que o Direito Processual, e os julgadores, parecem ter dificuldade de superar, a saber; valorizar a execução de sentença — afinal, é neste momento da relação processual que se efetivará a alteração no mundo da vida que a prestação jurisdicional pretendeu oferecer. O universo das políticas públicas é fortemente caracterizado pela dinâmica que lhe é própria. Assim, desde a identificação do problema público; passando pela exploração das alternativas de seu tratamento, tem-se a possibilidade de alteração relevante nas condições que determinaram e sobre as quais incidirá a política pública. Disso se extrai que o quadro sobre o qual incidirá a ordem judicial não comporta a estabilização que é tão cara ao Direito Processual. Nestes termos, o item 2 da tese parece ainda operar a partir de uma premissa de estabilidade que pode se revelar irreal. No campo, por exemplo, das finalidades a serem enunciadas pela sentença; ainda que o objetivo em si possa ser razoavelmente assentado, os indicadores de seu atendimento como volume de pessoas alcançadas, e ainda tempo necessário à maturação da ação pública podem mudar. Suponhamos uma demanda onde se discuta acesso a creche. O macro objetivo é estável — assegurar o acesso ao direito constitucionalmente previsto à creche — mas o número de vagas a serem disponibilizadas, e o interstício de tempo em que isso deve se verificar não é necessariamente estável. A questão que se porá então diz respeito à incorporação dessa dinâmica, em algo que no Direito Processual, é classicamente sujeito à estática — a saber, a coisa julgada. Claro, a resposta que o Direito Processual oferece às relações sujeitas a dinâmica, é o reconhecimento do caráter rebus sic stantibus da decisão judicial — mas como essa solução se aplicaria no universo do controle de políticas públicas? Haverá a necessidade de propositura de nova demanda para o realinhamento das finalidades desenhadas na sentença original? A mudança de condições se informa no curso da mesma demanda, com a reconfiguração das finalidades originalmente fixadas? Outro vetor da solução fixada no Tema 698 é a imperativa apresentação — e execução, naturalmente —, pela administração, do plano e/ou meios necessários ao alcance da finalidade pretendida pela decisão judicial. Aqui igualmente se tem o problema da incidência do dinamismo que é próprio ao universo das políticas públicas. A velha lógica aparentemente linear sugerida pelo ciclo das políticas públicas — segundo a qual, depois da formulação, tem-se a simples implementação e avaliação — é de há muito reconhecida como mero instrumento pedagógico. Afinal, é sabido que é no plano da implementação que se terá o teste último e real da adequação da resposta ao problema público traçada na etapa da formulação da política pública. Não será incomum que o plano original de ação tenha seu aprendizado na fase de implementação, que sugerirá por sua vez ajustes no desenho inicial. Como esse tipo de calibragem, que é comum no universo das políticas públicas, se dará no modelo enunciado pelo STF? As alterações ao plano de ação apresentados em cumprimento da sentença, sugeridas pela implementação em curso, devem ser novamente informadas ao juízo? Estão sujeitas a algum tipo de valoração — além do atendimento, ao final do interstício fixado na sentença, das finalidades nela igualmente tratadas? Finalmente, mas não menos importante, tem-se o problema do convívio entre esse tipo de intervenção jurisdicional estruturante, e aquelas que se verifiquem no micro; no plano de provimentos individuais. Duas são as razões que me levam à advertência. Primeiro, como assinalada no início do presente ensaio, a tese foi fixada em sede de ação coletiva, e só a elas terá aplicação. Evidentemente seria descabido pretender que no curso de demanda individual, sujeita aos limites subjetivos clássicos, a Administração fosse chamada à elaboração de plano geral de ação. Disso decorre que é previsível a coexistência do plano traçado pela administração, e de provimentos individuais que se revelem eventualmente incompatíveis com delimitado na ação coletiva. Ainda no exemplo da creche, se o plano apresentado pela administração compreende a incorporação gradual no sistema, de crianças segundo faixa etária; uma decisão individual que determine a matrícula de criança em idade ainda não compreendida no plano de ação, compromete a sua implementação. Nem se diga que uma única decisão individual não tenha esse condão. O fato é que no campo da proteção a direitos fundamentais, especialmente os de cariz socioeconômicos, a judicialização dificilmente se dá em escala tão diminuta que se mostre irrelevante à execução do plano de ação submetido em atenção à tese fixada no Tema 698. Como se dará então a relação entre demandas individuais e coletivas, onde se esteja buscando o desenho de uma política pública efetiva? A tese, nos termos em que está posta, não funcionará como mais um desincentivo ao manejo da ação coletiva? Afinal, no manejo da demanda individual, o pedido versará sobre a solução pontual já delimitada — matrícula imediata no sistema de creches. Na demanda coletiva, o que se pode obter é a delimitação de um plano de ação que pode requerer um determinado tempo até a geração do resultado pretendido. Não se está com essas considerações, a negar qualquer utilidade aos termos da tese fixada no Tema 698. Tem-se em alguns aspectos, avanços — mas ela está longe de empreender a um equacionamento já operacional do controle judicial de políticas públicas. O magistrado que tenha em seu escaninho eletrônico uma ação civil pública para sentença hoje, tem uma série de questões irresolvidas. Levanta-las é um importante exercício para prosseguir no desenvolvimento de critérios que possam subsidiar novos avanços no tormentoso tema do controle judicial de políticas públicas. Uma última observação é de se fazer. A pretensão de uma solução única, totalizante, é uma simplificação. A gestão de políticas públicas é atividade fortemente influenciada pelo contexto em que a atividade da administração se desenvolve — e este não é o mesmo, na saúde e no desenvolvimento tecnológico. Problemas públicos são complexos, e por isso não se harmonizam com soluções simplificadoras.
2023-07-20T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-20/interesse-publico-stf-lacrou-controle-politicas-publicas-julgar-tema-698
academia
Opinião
Felipe Brasil: Direito como integridade ou como indecisão?
Em Levando os Direitos a Sério (1974), Ronald Dworkin lança raízes de uma teoria do direito que ganha corpo em Uma Questão de Princípios (1985) e O Império do Direito (1986), onde o filósofo do direito ergue uma proposta interpretativa fundada no direito como integridade, propondo que a decisão judicial não pode se desagregar da história institucional de dada comunidade, criando metáforas como a do romance em cadeia e do juiz Hércules, para resgatar o direito do sistema positivista que o encarcerava. Dworkin era norte-americano e alicerçou sua teoria tecendo críticas ao positivismo representado por Herbert Hart, catedrático na Universidade de Oxford e magistrado britânico. Não obstante a origem do debate e a construção da teoria interpretativa de Dworkin se deem em sistemas jurídicos da common low, isso não impediu a disseminação de seu sofisticado empreendimento teórico e a sua incorporação pelos ordenamentos jurídicos contemporâneos. E, cada vez mais, o diálogo entre tradições anglo-saxônicas e romano-germânicas contribuem para formação de um direito mais universal. Nesse particular, o Código de Processo Civil, ao esquematizar a doutrina dos precedentes judiciais, é paradigmático, principalmente ao impor, no artigo 926, que os Tribunais devem manter sua jurisprudência uniforme, estável, íntegra e coerente. Mas não se fique com a equivocada impressão de que o Código de Processo Civil de 2015 inaugurou a adoção de ferramentas da common low no ordenamento jurídico brasileiro. Basta recordar que o judicial review foi previsto na Constituição brasileira de 1891, por influência de Rui Barbosa, por isso alcunhado de "Marshall brasileiro" [1]. Por outro lado, embora a adoção do controle difuso de constitucionalidade remonte ao século 19, a doutrina do stare decisis (basicamente, mantenha-se a decisão) em terras brasileiras remonta à década de 90 do último século, principalmente através dos seguintes atos normativos: a) Emenda Constitucional nº 3/1993: acrescentou o §2º ao artigo 102 da Constituição de 1988, prevendo o efeito vinculante nas decisões proferidas pelo STF em sede de ações declaratórias de constitucionalidade no âmbito do controle concentrado; b) Lei nº 9.868/99: prevê, no parágrafo único do artigo 28, que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgão do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. c) Lei nº 9.882/99: dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevendo eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão (artigo 10, §3º). d) Emenda Constitucional n. 45/2004: introduz o artigo 103-A na CF/88, com a possibilidade do Supremo Tribunal Federal editar súmulas vinculantes, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Foi regulamentada pela Lei nº 11.417/2006. e) Leis 11.418/2006 e 11.672/2008: introduzem, respectivamente, o sistema de repercussão geral para o recurso extraordinário e recurso especial repetitivo, no CPC/1973. Assim, o CPC/2015 consolida uma tendência de internalização da doutrina de precedentes do common low ou anglicização do direito brasileiro, buscando uma normatização mais organizada da doutrina da stare decisis. No entanto, o que se nota é uma imaturidade e certa confusão nesta construção tupiniquim: de um lado, temos a previsão de súmulas vinculantes, onde o que vincula é o enunciado normativo, e não a ratio decidendi (holding) do precedente, ao contrário da noção dos precedentes, na outra ponta, acompanhamos "precedentes" formados à la carte, para serem revistos ou modificados em curto espaço de tempo, rompendo com a lógica da uniformização, coerência e integridade. Não que o precedente seja petrificado, longe disso. Existem técnicas específicas, como o distinguinshing, para afastar a aplicação do precedente ao caso concreto por ser distinto do leading case, ou o overruling, para superação do precedente pela própria Corte. Mas o afastamento ou a superação do precedente exigem um ônus argumentativo mais denso (nesse sentido, veja-se o artigo 489, §1º, inciso VI do CPC). Neste caldeirão em ebulição, adicione-se a teoria da abstrativização do controle difuso, segundo a qual, as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso possuem os mesmos efeitos da decisão proferida em controle concentrado [2], e temos mais precedentes vinculantes do que aqueles previstos no artigo 927 do CPC. Pois bem, superada essa tarefa hercúlea — para voltarmos à Dworkin — de definir o que — e o que não deveria ser, mas é — precedente judicial, retomamos a teoria da interpretação construtiva do autor norte-americano. O jusfilósofo advoga que o juiz Hércules tem a responsabilidade decisória de resolver o conflito sem descurar da história institucional, com a qual tem um dever de integridade, afastando-se do pragmatismo, ao não descuidar o passado, mas sem adotar uma linha convencionalista, desprezando o futuro. "(...) o direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos — direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção — que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como (integridade) supõe que as pessoas tem direitos a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre o seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la." [3] Portanto, ao refutar a limitação pelo passado, própria do convencionalismo, bem como, a perigosa linha pragmática do realismo jurídico, segundo a qual a decisão judicial depende do que "o juiz comeu no café da manhã", o autor elabora uma sofisticada teoria de interpretação construtiva, onde: "(...) se deve atribuir ao passado um poder especial próprio no tribunal, contrariando o que diz o pragmatismo, isto é, que não se deve conferir tal poder. Explica porque os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada além de um interesse estratégico pelo restante." [4] Na linha desta perspectiva, é que Dworkin desenvolve a metáfora do romance em cadeia na busca da única resposta correta, aonde: "(...) decidir casos controversos no Direito é mais ou menos como esse estranho exercício literário. (...) Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora." [5] Deve o julgador, portanto, despir-se de inclinações morais subjetivas, que marcam uma postura voluntarista e solipsista, aceitando que desempenha uma função que lhe impõe um dever de lealdade com os valores comunitários construídos pela comunidade em que está inserido. O direito como integridade, por outra via, não fossiliza a atividade criativa, mas somente baliza os rumos da atividade judicante, reclamando uma coerência aos capítulos anteriores deste intricado romance. Nas palavras de Dworkin: "(...) quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira história política de sua comunidade irá às vezes restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo geral. Se não o fizer — se seu limiar de adequação derivar totalmente de suas concepções de justiça e a ela for ajustável, de tal modo que essas concepções ofereçam automaticamente uma interpretação aceitável —, não poderá dizer de boa-fé que está interpretando a prática jurídica. Como o romancista em cadeia, cujos juízos sobre adequação se ajustavam automaticamente a suas opiniões literárias mais profundas, estará agindo de má-fé ou enganando a si próprio." [6] Evidente que a teoria jusfilosófica do autor não se esgota nestas breves citações, mas é possível, desde já, concluir que o autor, ao romper com um positivismo assentado em um sistema rígido de regras — mas que tinha nos hard cases seu calcanhar de Aquiles, já que permitia a discricionariedade do julgador, sem qualquer padrão de controle — reconhece o padrão normativo dos princípios jurídicos, reclamando-os para ao centro gravitacional do ordenamento jurídico, ao lado das regras jurídicas, e, sobre esta fundação revitalizada erguer a arquitetura da teoria da interpretação construtiva, que tem na integridade do direito (representada pelo romance em cadeia), as vigas que sustentam este empreendimento teórico. Postas todas estas premissas, parece claro que a adoção de um sistema de precedentes judiciais, aos moldes da common law, reclama profunda reflexão sobre a teoria crítica de Dworkin, poupando, assim, séculos de involução e indefinição. Bem ou mal, temos o privilégio de poder adotar um norte epistemológico desvelado por todo o debate antipositivistas x positivistas que nos precedeu. No Brasil, o acentuado voluntarismo da classe dos magistrados tem dificultado a implementação do sistema de precedentes de forma íntegra. Como ilustração, tomemos o caso da execução antecipada da pena privativa da liberdade no direito/processo penal: até 2009, o Supremo entendia constitucional a execução antecipada da pena; em 2009, com o julgamento do HC 84.078/MG, adotou a tese da inconstitucionalidade da antecipação da execução da pena. Em 2016, no julgamento do HC 126.292/SP, retomou o antigo entendimento; finalmente, em 2019, com o julgamento das ADCs 43, 44 e 54, assentou constitucional a redação atual do artigo 283 do Código de Processo Penal, e, portanto, inconstitucional a execução antecipada da pena privativa de liberdade. Essa oscilação na jurisprudência da Corte Suprema em intervalos curtos de tempo demonstra tudo que o sistema de precedentes repudia: a insegurança e a incoerência. Sem adentrar na questão do mérito, mas fazendo uma abordagem sobre a estabilidade dos precedentes norte-americanos, em 2022 a Suprema Corte dos EUA, no caso Dobbs vs Jackson Women’s Health Organization revogou a decisão pró-aborto estabelecida no paradigmático Roe vs Wade, em 1973. Em apertadíssima síntese, a Suprema Corte americana não proibiu o aborto, mas, ao revogar o precedente firmado no caso Roe vs Wade e outros, entendeu que a questão é de competência dos Estados, pela via legislativa, e não pelo Judiciário, permitindo, assim, que os Estados legislem amplamente sobre a proibição do aborto. Independente do exame sobre a (in)correção da decisão proferida, o fato é que transcorreram cerca de cinqüenta anos, e várias resistências e retomadas do tema nos debates institucionais, para que o precedente fosse superado. Como dito antes, o precedente formado não pode ser fossilizado, existindo técnicas — como o overruling — que permitem sua superação. Mas a superação do precedente exige uma alteração no contexto fático, na tessitura social, política ou econômica que justifique a alteração do entendimento. Permitir que a modificação na composição do tribunal admita a reavaliação de precedentes rompe com toda lógica de segurança jurídica e integridade a que se propõe a doutrina do stare decisis. Em conclusão, a introjeção de mecanismos típicos de tradições anglo-saxônicas é viável, salutar e, de certo modo, não é novidade, mas é necessária uma adequação, uma guinada da cultura voluntarista para uma concepção do direito como integridade, em homenagem à segurança jurídica. Na realidade brasileira, a prática pretoriana está mais para um livro de contos do que um romance em cadeia. [1] O controle difuso de constitucionalidade de leis traduz a possibilidade de controle judicial de lei ou ato normativo que afronte a Constituição Federal, e foi originariamente previsto na primeira Constituição da República do Brasil, em 1891. No direito comparado, remete-se ao famoso caso Marbury v. Madison (1808), quando o Chief Justice John Marshall, aplicou, de forma pioneira, a doutrina do judicial review. [2] Em resumo, o STF entendeu que houve mutação constitucional — alteração do sentido da constituição sem alteração de texto — do artigo 52, X da CF, que atribui ao Senado Federal a incumbência de suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. [3] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo:Martins Fontes, 1999. P. 164. [4] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo:Martins Fontes, 1999. P. 203. [5] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 238. [6] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
2023-07-22T11:00-0300
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Observatório Constitucional
Duas juízas e as mulheres em cortes constitucionais
Mundo afora, quando se fala em mulheres integrando cortes constitucionais ainda se fala em pioneirismo. Poucas décadas nos separam, em 2023, de uma realidade em que todas as cortes constitucionais em funcionamento no mundo eram formadas exclusivamente por membros do sexo masculino. As primeiras mulheres a ocuparem esses cargos têm muito em comum; vieram para mudar um paradigma há muito estabelecido, e exercem suas funções num ambiente predominantemente masculino. Com a proximidade da aposentadoria da ministra Rosa Weber, cresce em nossa esfera jurídica a especulação acerca da sua eventual substituta, e aventa-se a hipótese de o Supremo Tribunal Federal voltar a ter uma única mulher integrando seus quadros. Achei prudente, assim, juntar a minha voz às de outra(o)s juristas que têm mantido esse assunto sob os holofotes [1] e falar sobre juízas constitucionais. A minha contribuição toma a forma de paralelos entre duas mulheres que ocuparam o posto de ministras em suas respectivas Supremas Cortes nacionais de forma pioneira. Para além de chamar atenção à importância de termos mulheres integrando as Cortes Constitucionais, é uma forma de prestar homenagem a ambas, e em especial à ministra Rosa Weber, que nos próximos meses se aposentará do STF, e cuja trajetória na corte revela virtudes e contribuições fundamentais para o tribunal como instituição, e para a jurisdição constitucional brasileira. No voto mais notório que proferiu em quase 12 anos no Supremo Tribunal Federal, a ministra Rosa Weber se dedicou a discutir as virtudes do processo e da colegialidade e a importância dos precedentes vinculantes [2]. Embora as análises do seu voto no HC nº 152.752/PR sejam invariavelmente coloridas pelas consequências políticas da decisão [3], não escapou aos juristas que o posicionamento da ministra não apenas continha elementos louváveis quanto à segurança jurídica, institucionalidade e autocontenção do tribunal, mas também que se tratava de uma anomalia entre seus pares [4]. De fato, como ministra Rosa Weber frequentemente cedeu à colegialidade e defendeu o processo e os precedentes estabelecidos, por vezes em detrimento de suas próprias posições. Como presidente do tribunal, no último ano, teve também a oportunidade de promover mudanças fundamentais [5] à superação definitiva da mais recorrente e grave crítica ao funcionamento do Supremo nas últimas décadas: a atuação individual de seus ministros [6]. A reforma tem sido apontada como um de seus grandes legados no STF [7]. Rosa Weber foi apenas a terceira mulher, em mais de um século de funcionamento do tribunal, a integrar o Supremo. Mas não é apenas por isso que ela possui muito em comum com a primeira mulher a integrar a Suprema Corte dos Estados Unidos. Sandra Day O'Connor foi empossada em 1981, trinta anos antes da posse de Rosa Weber, e já estava aposentada quando a última passou a integrar o STF [8]. As duas mulheres possuem histórias de vida profundamente distintas. O'Connor atuou na política antes de se tornar juíza, e foi senadora do estado do Arizona, eleita pelo partido republicano [9]. Rosa Weber foi juíza de carreira, ocupando todos os cargos da justiça do trabalho, inclusive o de ministra do TST [10]. E, no entanto, as juízas constitucionais que Sandra Day O'Connor e Rosa Weber se tornaram tem muito mais em comum do que o tempo e as circunstâncias nos levariam a imaginar. Ambas foram ministras discretas, que pouco se manifestam fora dos autos. No caso de Rosa Weber, trata-se de uma anomalia; por uma série de motivos, nossa cultura constitucional é tolerante à presença e voz constante dos ministros do Supremo na mídia, e são poucos os que não fazem uso dessa abertura constantemente. No caso de Sandra Day O'Connor, nada mais do que a regra de comportamento para os Justices da Suprema Corte: nos Estados Unidos há uma cultura em que a legitimidade da Suprema Corte depende, em larga medida, da aparência de discrição, técnica e imparcialidade de seus juízes [11]. Sandra Day O'Connor também foi, como Rosa Weber, uma juíza aversa à polarização. Nos anos 1980 a crescente polarização política nos Estados Unidos, que hoje atinge os níveis mais agudos, já chegara à Suprema Corte. O'Connor foi escolhida para o cargo pelo presidente republicano Ronald Reagan, num período em que as indicações à Suprema Corte integravam as plataformas de campanha de republicanos e democratas. Reagan prometera aos seus eleitores indicar à Suprema Corte ministros comprometidos às causas conservadoras do partido, e especialmente dispostos a reverter o polêmico precedente Roe v. Wade [12], que garantia às mulheres americanas o direito ao aborto [13]. A Justice O'Connor, no entanto, rejeitou o rótulo de conservadora e se tornou uma juíza moderada. Apesar de formalmente incluída entre os membros mais conservadores da corte, por ter sido indicada por um presidente republicano, ela integrou a maioria progressista em precedentes fundamentais, como Lawrence v. Texas [14], em que a corte reconheceu a inconstitucionalidade da criminalização da homossexualidade, e Grutter v. Bollinger [15], em que foi reafirmada a constitucionalidade das ações afirmativas em universidades. E, é claro, recusou-se a integrar a maioria para reverter Roe v. Wade em Planned Parenthood v. Casey [16], precedente que garantiu a manutenção do direito ao aborto nos Estados Unidos por 30 anos [17]. É justamente no papel que ambas as juízas constitucionais exerceram e exerceram na questão do aborto que encontramos uma terceira e fundamental semelhança entre elas: uma especial preocupação com o respeito aos precedentes e a colegialidade. Sandra Day O'Connor foi a figura central na manutenção do direito ao aborto na Suprema Corte americana, resistindo a todas as tentativas de reverter o precedente, sempre com argumentos voltados a autocontenção da corte, ao processo, e ao respeito aos precedentes [18]. Em 1989, a Suprema Corte americana julgou Webster v. Reproductive Health Services [19], um caso com o potencial de reverter Roe, em que uma lei do estado do Missouri que estabelecia diversas restrições ao direito ao aborto tinha a sua constitucionalidade questionada. A Justice O'Connor capitaneou a maioria com uma opinião em que insistiu não ser necessário, para decidir o caso, revisitar Roe v. Wade, que se manteria hígido como precedente vinculante. Três anos mais tarde, quando se tornou impossível fugir de uma reanálise de Roe, O'Connor contrariou as expectativas dos políticos republicanos e dos próprios membros mais conservadores da corte ao costurar uma terceira via para, mais uma vez, conservar Roe. Numa opinião escrita em conjunto com os Justices Kennedy e Souter no caso Casey, O'Connor baseou a opinião primordialmente na importância do precedente vinculante, afirmando que "a obrigação de seguir o precedente começa com a necessidade, e uma necessidade contrária marca seu limite externo" [20]. A lógica da decisão é só ser possível reverter um precedente vinculante quando tal reversão se mostra absolutamente necessária. Trata-se de uma justificativa processual, anterior a qualquer exame do direito material em discussão, e que encontra eco na defesa formulada por Rosa Weber dos fatores necessários para legitimar a alteração da jurisprudência de uma Corte Constitucional, explicitados em seu voto no HC nº 152.572/PR: "(...) a segurança jurídica...consiste em um valor ínsito à democracia, ao estado de direito e ao próprio conceito de justiça, além de traduzir, na ordem constitucional, uma garantia dos jurisdicionados. Nesse enfoque, a imprevisibilidade, segundo entendo, por si só qualifica-se como elemento capaz de degenerar o Direito em arbítrio. Por isso aqui já afirmei, mais de uma vez, que, compreendido o Tribunal como instituição, a simples mudança de composição não constitui fator suficiente para legitimar a alteração da jurisprudência, como tampouco o são, acresço, razões de natureza pragmática ou conjuntural... É dizer, a consistência e a coerência no desenvolvimento judicial do Direito são virtudes do sistema normativo enquanto virtudes do próprio Estado de Direito" [21]. A ministra Rosa Weber, como se sabe, escreverá sua própria participação na história do direito constitucional ao aborto nos próximos meses. É dela a relatoria da ADPF que discute a descriminalização do aborto no Brasil, processo que levou consigo para sua curta presidência, e já afirmou diversas vezes que levará a julgamento, a fim de consignar seu voto, antes de sua aposentadoria [22]. Embora juridicamente os argumentos das ministras tenham de ser necessariamente distintos (ao contrário de Sandra Day O'Connor, Rosa Weber não está enfrentando a possível reversão de um precedente vinculante da corte, mas uma primeira análise do plenário do tribunal, em controle concentrado de constitucionalidade, do tema do direito ao aborto de um feto saudável), a coincidência do protagonismo das duas num tema tão sensível à igualdade feminina é mais um aspecto marcante dos paralelos que podem ser traçados entre as juízas constitucionais, e um lembrete poderoso de que vozes femininas são necessárias nas cortes constitucionais. [1] BASTOS, Ana Carolina A. Caputo; MEDINA, Damares. A sucessão da ministra Rosa Weber e o princípio do não retrocesso. JOTA, 15/06/2023, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/a-sucessao-da-ministra-rosa-weber-e-o-principio-do-nao-retrocesso-15062023; AMPARO, Thiago. Mulher Negra no STF, nove nomes. Folha de S.Paulo, 19/07/2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2023/07/mulher-negra-no-stf-nove-nomes.shtml; SIGNORELLI, Ana Sofia Monteiro; BUZZI, Catarina de Macedo. O debate sobre a indicação de uma mulher à Suprema Corte brasileira. JOTA, 11/4/2023, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-debate-sobre-a-indicacao-de-uma-mulher-a-suprema-corte-brasileira-11042023. [2] HC 152.752/PR, rel. min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 4/4/2018. [3] MENDES, Conrado Hubner. Colegialidade Solitária. Época, 13/4/2018, disponível em: https://epoca.globo.com/politica/Conrado-Hubner/noticia/2018/04/colegialidade-solitaria.html; CHUEIRI, Vera Karam de. MACEDO, José Arthur de Castillo. O processo pelo processo: ou Kafka e o voto da Ministra Rosa Weber. JOTA, 9/5/2018, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/kafka-voto-ministra-rosa-weber-09052018; STRECK, Lenio Luiz. MEYER, Emilio Peluso. O HC de Lula — maioria transformada em minoria: a "colegialidade" em ação! ConJur, 05/04/2018, disponível em https://www.conjur.com.br/2018-abr-05/opiniao-hc-lula-maioria-transformada-minoria. [4] GODOY, Miguel Gualano de; FORTES, Luiz Henrique Krassuski. Uma ode ao Direito Processual Constitucional. JOTA, 20/4/2018, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/uma-ode-ao-direito-processual-constitucional-20042018. [5] Emenda Regimental nº 58, de 19 de dezembro de 2022. Disponível em: https://digital.stf.jus.br/publico/publicacao/120773. [6] C.f. GODOY, Miguel Gualano de. O Supremo contra o processo constitucional: decisões monocráticas, transação da constitucionalidade e o silêncio do Plenário. Revista Direito e Práx. Vol 12, n. 2, Abr-Jun 2021; Dos 216 casos parados por vista no STF, só 37 estão prontos para julgamento. ConJur, 9/4/2015, disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-abr-09/216-casos-parados-vista-stf-37-podem-julgados; Prazos de pedidos de vista não são respeitados. Estado de Minas, 4/12/2017, disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2017/12/04/interna_politica,921696/prazos-de-pedidos-de-vista-nao-sao-respeitados.shtml. [7] ESTEVES, Luiz Fernando Gomes; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Novas Regras para Decisões Monocráticas e Pedidos de Vista no STF: É o fim do individualismo? JOTA, 12/07/2023, disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/novas-regras-para-decisoes-monocraticas-e-pedidos-de-vista-no-stf-12072023; MARQUES, José. STF restringe decisões individuais de ministros e fixa novas regras na corte sem fazer alarde. Folha de S.Paulo, 26/12/2022, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/12/stf-restringe-decisoes-individuais-de-ministros-e-fixa-novas-regras-na-corte-sem-fazer-alarde.shtml; Limite a decisões individuais do STF é importante legado de Rosa Weber, avalia Celso de Mello. Valor, 27/12/2022, disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/12/27/limite-a-decisoes-individuais-do-stf-e-importante-legado-de-rosa-weber-avalia-celso-de-mello.ghtml. [8] GREENHOUSE, Linda. What we lost when we lost Sandra Day O'Connor. The New York Times, 23/9/2021, disponível em: https://www.nytimes.com/2021/09/23/opinion/sandra-day-oconnor-supreme-court.html. [9] GREENHOUSE, Linda. The First and Last of her Kind. The New York Review, 7/11/2019, disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2019/11/07/sandra-day-oconnor-first-last-her-kind/. [10] Curriculum Vitae – Ministra Rosa Weber, disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoComposicaoPlenariaApresentacao/anexo/CurriculumVitaeMinRosaWeberatualizado.pdf [11] "Nos Estados Unidos, é chocante quando um juiz expressa a sua opinião". JOTA, 18/03/2019, disponível em: https://www.jota.info/justica/estados-unidos-juiz-opiniao-18032019. [12] Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973). [13] GREENHOUSE, Linda. The First and Last of her Kind. The New York Review, 07/11/2019, disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2019/11/07/sandra-day-oconnor-first-last-her-kind/. [14] Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003). [15] Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003). [16] Planned Parenthood of Southeastern Pa. v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). [17] GRIFFIN, Lisa Kern. Sandra Day O’Connor’s “First” Principles: a constructive vision for an angry nation. Judicature, vol. 105, n. 1, 2021, disponível em: https://judicature.duke.edu/articles/sandra-day-oconnors-first-principles-a-constructive-vision-for-an-angry-nation/. [18] GREENHOUSE, Linda. The First and Last of her Kind. The New York Review, 07/11/2019, disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2019/11/07/sandra-day-oconnor-first-last-her-kind/. [19] Webster v. Reproductive Health Services, 492 U.S. 490 (1989). [20] Voto da maioria em Webster v. Reproductive Health Services, 492 U.S. 490 (1989). [21] Voto da Ministra Rosa Weber no HC 152.752/PR, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 04/04/2018. [22] RECONDO, Felipe; WERNECK, Diego; ALVIM, Juliana Cesario; PEREIRA, Thomaz. Sem precedentes nº 119: 2023 será o ano em que o STF julgará a descriminalização do aborto? JOTA, 3/2/2023, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/sem-precedentes/2023-sera-o-ano-em-que-o-stf-julgara-a-descriminalizacao-do-aborto-03022023.
2023-07-22T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-22/observatorio-constitucional-duas-juizas-mulheres-cortes-constitucionais
academia
Opinião
Opinião: Função exercida pelas regras segundo Schauer
Segundo Frederick Schauer, toda regra é uma generalização. Seja ela uma regra descritiva, que se limita a atestar ou a descrever certos fatos, ou uma regra prescritiva, destinada a guiar, controlar ou alterar o comportamento daqueles a que ela se destina, fato é que somente faz sentido se falar em regras caso seu conteúdo derive de uma generalização. Quando esta não está presente não podemos falar em regras, mas apenas em ordens ou comandos específicos. Basta notar, diz Schauer, que chamamos de regra a proibição contida em uma placa para que as pessoas em geral não pisem na grama, mas não chamamos de regra uma instrução dada por alguém numa situação específica para que não pisemos na grama [1]. As regras prescritivas, que são o foco das preocupações de Schauer, se subdividem em duas espécies: instruções e mandamentos. As primeiras são regras que, por si só, não geram um dever de obrigação perante o seu destinatário. São regras justificadas por considerações instrumentais, no sentido de que indicam um curso de ação a ser seguido na persecução de seus objetivos. Por isso, caso o indivíduo entenda que seguir a instrução não levará ao resultado pretendido, ele está livre para ignorá-la e agir da forma que achar melhor. Somente devemos agir de acordo com instruções quando acreditarmos que "[…] segui-las nos poupa tempo ou energia, ou que elas diminuem a probabilidade de erros e ansiedade na tomada de decisões" [2]. Mandamentos, por outro lado, não são de observância meramente opcional, e isso porque eles exercem uma pressão normativa sobre o indivíduo mesmo quando ele, tudo o mais considerado, acredita que obedecê-los não levará ao melhor resultado. Isso não quer dizer, é claro, que a força das regras mandatórias seja absoluta, até mesmo porque, como lembra Schauer, em muitos casos existe uma diferença entre aquilo que temos uma razão para fazer e aquilo que devemos, de fato, fazer. A questão é: quando diante de instruções o indivíduo tem a faculdade de segui-las ou não, de acordo com o seu próprio entendimento, e se ele opta por não seguir a instrução a pressão normativa até então por ela exercida desaparece. Já quando diante de mandamentos o indivíduo possui uma razão para agir conforme o prescrito pela regra mesmo quando acredita que a descumprir levará ao melhor resultado [3]. Exemplificando: "use a fonte times new roman em seus textos" é uma instrução. Caso o agente queira usar outra fonte, por qualquer motivo que for, ele pode ignorar a instrução, que a partir de então não exercerá qualquer pressão sobre ele. Já "Não dirija com velocidade acima de 80 km/h" é uma regra mandatória. Ela fornece uma razão para ação por si só, que é independente do seu valor em algum caso particular, do fato de que ela levará ao resultado almejado ou não. Mas, como visto, mandamentos não são absolutos. Podem existir razões em sentido contrário que justifiquem a sua violação, como, por exemplo, dirigir a 100 km/h para levar uma criança com crise alérgica ao hospital. Neste caso a violação à regra está justificada em uma outra razão para ação, tida pelo indivíduo como superior à razão que ele possui para agir conforme a regra. A força exercida pela regra, contudo, continua presente, tanto que ele deve ser multado por dirigir acima da velocidade permitida. Seguindo. As regras, sejam elas descritivas ou prescritivas, possuem uma dupla estrutura: uma antecedente, chamada de predicado fático, que veicula as hipóteses fáticas genéricas que, se observadas, implicam na aplicação da regra; uma consequente, que consiste no resultado prescrito pela regra em caso de satisfação do predicado fático [4]. Para compreender melhor este ponto, basta lembrar das normas penais. O antecedente da regra é a descrição do crime, ao passo que o consequente é a pena a ser aplicada em razão do cometimento do crime. O predicado fático é sempre produto de uma generalização (e daí porque regras são generalizações). A generalização, contudo, jamais é completa porque sempre fruto de uma escolha, seja do próprio objeto da generalização, seja de sua direção ou intensidade. Justificação é o nome dado por Schauer aos motivos que fundamentam a escolha de uma generalização em detrimento de outra; é ela que determina, dentre as inúmeras formas de se generalizar um determinado fato ou evento, qual será aquela que comporá o predicado fático da regra. Isto é, tendo em mente os objetivos a serem alcançados com a regra (justificação) se torna possível identificar a generalização mais adequada para satisfazer esses objetivos. A generalização, em muitos casos, também lida com probabilidades: certa vez ocorreu um fato "X" incômodo e, como é possível que ele ocorra novamente, melhor proibi-lo através da criação de uma regra "Y" [5]. De um caso particular é possível se retirar inúmeras generalizações. O que restringe o escopo de possibilidades é exatamente a justificação. No exemplo dado por Schauer: um cliente entra com um cachorro em um restaurante, que começa a latir para os demais clientes e a derrubar tudo o que vê pela frente. O dono do estabelecimento, ciente de que esse evento pode ocorrer novamente (probabilidade), decide criar uma regra para proibi-lo. Ele, portanto, precisa fazer uma generalização. Supondo que o cachorro seja preto, uma opção disponível é proibir a entrada de todo e qualquer animal de estimação preto no restaurante. Isso, contudo, não impede que um cachorro branco entre no estabelecimento e faça a algazarra que ele pretende evitar com a regra. Pode-se, ainda, criar uma regra proibindo a entrada de cães, mas, nesse caso, estaria aberta a possibilidade entrar um gato ou um porco que sejam tão inconvenientes quanto um cachorro. Uma outra opção é banir todo e qualquer animal de estimação do restaurante. Essa generalização, por sua vez, é igualmente falha, na medida em que proíbe a entrada do cão-guia de um cego. Em resumo, as possibilidades são inúmeras, e cada uma delas se mostrará, em algum momento, incompleta [6]. É neste ponto que se revelam importantes as noções de subinclusão e sobreinclusão. Como as generalizações e, consequentemente, as regras, são seletivas e incompletas, em dado momento a aplicação de uma regra a algum caso particular entrará em conflito com o que a justificação dessa mesma regra exige. Basta lembrar do caso da regra que proíbe a entrada de cães no restaurante. Qual a justificação imediata dessa regra? Impedir que animais ferozes e/ou agitados incomodem os clientes. Ocorre que impedir a entrada do cão guia do cego conflita com a justificativa dessa regra, já que, por natureza, cães guias são animais dóceis e calmos. As regras, portanto, são sempre subinclusivas ou sobreinclusivas com relação à sua justificação. Subinclusivas quando o predicado fático da regra abrange menos situações do que a sua justificação autoriza (a regra proíbe cães, mas não porcos ou gatos); sobreinclusivas quando o predicado fático abrange mais situações do que a sua justificação autoriza (o caso do cão guia) [7]. Nas palavras de Noel Struchiner, a generalidade característica do predicado fático da regra. "[…] é responsável pelo fenômeno da subinclusão ou sobreinclusão das regras ou pela sua potencial subinclusão ou sobreinclusão. É o fato de as regras prescritivas incorporarem mais casos do que deveriam, ou deixarem de incorporar casos que deveriam incorporar para concretizar suas justificações subjacentes, que torna o direito, ou melhor, a prática jurídica, um terreno de opções ou escolhas" [8]. Com efeito, uma regra nada mais é do que uma simplificação das justificações que lhe deram origem, tornando-as mais acessíveis e compreensíveis. Por essa razão, ela não é capaz de abarcar (e nem tem essa pretensão) de forma perfeita as justificações que foi projetada para concretizar. Regras são regras precisamente em razão de sua generalidade, e mesmo se fosse possível uma regra ser formulada de forma a antever todas as suas hipóteses de aplicação, ela seria "[…] muito complexa para fornecer as orientações que esperamos das regras" [9]. Dada essa falibilidade inerente à lógica de funcionamento das regras, não seria melhor aplicar diretamente as justificações ao caso concreto, sem a intermediação das regras? Schauer diz que não, na medida em que as justificações são frequentemente imprecisas e vagas e, consequentemente, incapazes de fornecer com precisão o tipo de orientação necessária para a coordenação da vida em sociedade — isso sem contar a possibilidade de existirem várias justificações para uma regra, de forma que sua aplicação ao caso concreto levaria a um outro problema: qual das justificações será aplicada? Em outras palavras, a aplicação direta das justificações tende a originar incertezas e imprevisibilidades na sua aplicação, e daí a necessidade da fixação de regras que as simplifiquem [10]. Então, em sendo o entrincheiramento das justificações em regras a melhor forma de se pôr fim às controvérsias que surgem na sociedade, a questão é: como lidar com as experiências recalcitrantes? Ou, em termos mais gerais, se Schauer entende que o Direito nada mais é do que a aplicação de regras, sendo estas o que o distingue do mero exercício do poder ou da prática desmedida do jogo político, qual o lugar das regras no sistema jurídico e como elas devem ser aplicadas pelo juiz [11]? É neste ponto que entra em cena aquilo que Schauer chama de positivismo presumido, teoria segundo a qual as regras jurídicas possuem uma força institucional presumida, e não absoluta, isto é, ao mesmo tempo em que constrangem/limitam a atuação do intérprete na sua aplicação, permitem que ele possa superá-las caso isso seja exigido pelas circunstâncias que envolvem o caso concreto. O positivismo presumido reforça o papel central e coercitivo das regras no sistema jurídico sem retirar a possibilidade de o aplicador deixar de aplicá-las caso a exigência dessa não aplicação supere a força institucional da própria regra [12]. As regras jurídicas possuem uma presunção de validade que não pode ser afastada pelo julgador, salvo em situações excepcionais. Elas devem ser aplicadas pelos juízes independentemente do que eles pensam ser o mais justo ou mais correto; somente em situações em que a aplicação da regra leve a resultados extremamente injustos ou absurdos é que estaria aberta a possibilidade de sua não aplicação. Nas palavras de Schauer, existe uma presunção não absoluta em favor do resultado gerado pela aplicação literal da regra que somente pode ser derrotada quando o juiz identificar a existência de razões especialmente exigentes que demandam a superação desse resultado [13]. O termo "presumido", nesse sentido, diz respeito à força possuída pelas regras, que exige a sua aplicação ao caso concreto "[…] a menos que razões particularmente exigentes possam ser fornecidas para não aplicá-las" [14]. Com efeito, "a aplicação do positivismo presumido leva à conclusão de que aos juízes é possível deixar de aplicar uma regra não quando [...] eles acreditam que a regra produziu um resultado errôneo ou subótimo neste caso, não importa o quão bem fundamentada essa crença, mas quando, e somente quando, as razões para a não aplicação são percebidas pelo tomador de decisão como particularmente fortes" [15]. O resultado indicado pela regra é, por si só, uma razão para ação particularmente forte — daí a noção que as regras possuem uma força institucional presumida. Então, as razões particularmente exigentes que possibilitam, em um dado caso concreto, a superação da regra, devem ser superiores não só às razões que o magistrado possui para aplicar a regra, mas também ao valor da regra em si, enquanto produto de um processo legislativo democrático e protetora de determinados valores e/ou princípios tidos como importantes pelos legisladores. Nas palavras de Schauer, o positivismo presumido é um método de decisão que prescreve que os juízes devem assumir o resultado indicado pela regra como uma razão para ação que é independente das circunstâncias factuais do caso concreto, e isso mesmo quando "[…] esse resultado diverge do resultado que seria indicado pela aplicação direta das justificações que subjazem a regra, e mesmo quando esse resultado diverge do resultado que seria alcançado, dentro de uma determinada teoria substantiva da decisão, pela aplicação direta de todas as considerações relevantes reconhecidas por essa teoria substantiva da decisão." [16] Com efeito, o positivismo presumido, ao mesmo tempo que não atribui ao juiz uma tarefa de aplicação mecânica da lei, tem o mérito de buscar controlar eventuais abusos interpretativos. Há, ademais, a prescrição de uma postura psicológica que deve ser assumida pelo juiz: não deve ele buscar ativamente e incessantemente razões que autorizam a não aplicação da regra. Muito pelo contrário. A ideia é que o juiz dê apenas uma olhada de relance, realize uma checagem preliminar e precária sobre as considerações subjacentes à regra, não sendo admitido o seu engajamento ativo na procura por razões extrajurídicas/factuais que possam levar à superação da regra [17]. Não é o papel do juiz procurar incessantemente razões que possam justificar a não aplicação da regra, em uma tentativa de fazer prevalecer a sua vontade a qualquer custo. A sua postura inicial deve ser sempre a de subserviência ao Legislativo, cujas decisões estão amparadas pela soberania popular. [1] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 18. [2] FAGGION, Andrea. Existem razões morais especiais? Uma discussão da teoria da razão prática de Joseph Raz. In.: REIS, Luciana Silva; LEITE, Rafaela Fernandes (orgs.). Uma discussão da teoria da razão prática de Joseph Raz. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021, p. 20. [3] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 05. [4] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 23. [5] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 26-27. [6] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 25-26. [7] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 32-34. [8] STRUCHINER, Noel. O direito como um campo de escolhas: por uma leitura das regras prescritivas como relações. In.: RODRIGUEZ, José Rodrigo; COSTA, Carlos Eduardo Batalha de Silva e; BARBOSA, Samuel Rodrigues (orgs.). Nas fronteiras do formalismo: a função social da dogmática jurídica hoje. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 104. [9] "[…] too complex to provide the guidance we expect from rules." SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 28. [10] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 94-95. [11] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 167. [12] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 196-197. [13] SCHAUER, Frederick. Formalism. The Yale Law Journal. Vol. 97, n. 04, 1988. Disponível em: <https://philpapers.org/rec/SCHF-48>. Acesso em 09 jul. 2023, p. 547. [14] "[…] unless particularly exigent reasons can be supplied for no applying it." Em SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 203. [15] "[…] they believe that the rule has produced an erroneous or suboptimal result in this case, no matter how well grounded that belief, but instead when, and only when, the reasons for overriding are perceived by the decision-maker to be particularly strong." Em SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 204. [16] "[…] that result diverge from the result that would have been indicated by direct application of the justifications lying behind the rule, and even when that result diverges from the result that would have been reached, within a given substantive theory of decision, by direct applications of all relevant considerations recognized within that substantive theory of decision." Em SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 100. [17] SCHAUER, Frederick. Rules and the rule of law. Harvard Journal of Law and Public Policy. Vol. 14, 1991, Disponível em <https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/hjlpp14&div=50&id=&page=>. Acesso em 9 jul. 2023, p. 677.
2023-07-24T19:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-24/opiniao-funcao-exercida-pelas-regras-segundo-schauer
academia
Direito Civil Atual
Incapacidade civil e o "louco mais famoso da história da psiquiatria"
Continuação da parte 1 Na primeira parte deste artigo [1], foi descrito o Caso Schreber — "o louco mais famoso da história da psiquiatria e da psicanálise" [2] — sob a ótica de sua autobiografia de nome "Memória de um doente dos nervos" ("Memórias"). Na "segunda série" de suplementos às Memórias, escrita entre outubro e novembro de 1902, Schreber afirmou o seguinte: "depois de tudo isto não me resta mais nada senão oferecer minha pessoa ao julgamento dos especialistas, como objeto de observação científica". "Este convite é o principal objetivo que persigo com a publicação do meu trabalho."[3] Atendendo a esse intrigante convite, tentar-se-á, de forma breve e limitada, aqui, analisar as implicações do Caso Schreber na incapacidade civil com base na psiquiatria forense. Laudos periciais sobre Schreber Em laudo pericial emitido em 1899, dr. Weber[4] abordou, inicialmente, o primeiro surto, ocorrido ente 1884 e 1885, considerando-se que Schreber "sofrera de um grave ataque de hipocondria, do qual se curou"[5]. Nesse sentido, não havia sintomas que, efetivamente, tenham afetado o seu discernimento. O referido laudo se concentrou em descrever a evolução de sua paranoia — já exposta no texto anterior — e, ao final, indicou que Schreber, apesar de ter solidificado e internalizado toda a compreensão paranoica da realidade, estava em condições melhores em razão de seus esforços de levantar sua interdição e voltar para casa. Ou seja, apesar de apresentar bastante lucidez sobre os assuntos em geral, mantinha ainda uma ideia fixa e irremediável sobre as alucinações e delírios por quais passou. O segundo laudo do dr. Weber, emitido em 28 de novembro de 1900, confirmou o primeiro laudo e o cenário se solidificou: Schreber tinha uma visão coerente e lúcida sobre a realidade, entrando com fluidez e maestria em assuntos jurídicos, políticos, econômicos, dentre outros, exceto quando se tocava no tema de suas alucinações e delírios. Desse modo, apesar de todo o avanço em seu estado mental, para Weber "[o] elemento mais importante para avaliar a capacidade de agir do paciente é e continua sendo sempre o fato de que ele não revela compreensão da natureza mórbida das inspirações e das ideias que o movem, e tudo o que se apresenta à observação objetiva como alucinação e ideia delirante é para ele certeza inabalável e legítimo motivo de ação" [6]. A questão para o dr. Weber era, sobretudo, a dúvida a respeito de como Schreber agiria diante dos problemas do dia a dia, considerando a inexistência de uma compreensão clara sobre sua doença e seu período recluso no sanatório, sem convívio social. Essa resistência de Schreber era clara nas observações feitas por ele ao recurso que seria interposto em face da sentença que negou seu pedido de levantamento da interdição [7]. Schreber foi expresso sobre esse ponto: "Deixo em aberto a questão de saber se as ideias em questão realmente derivavam de alucinações ou se se baseavam em fatos reais" [8]. Acolhendo a posição dos laudos do dr. Weber, a sentença negou o pedido de levantamento da interdição. Com a interposição de apelação, dr. Weber foi novamente convocado para emitir um laudo pericial, desta vez para a Corte de Apelação de Dresden. Nele, apesar de manter a opinião dos laudos anteriores, dr. Weber relatou que Schreber estava agido com certa autonomia, fazendo viagens, passeios, visitando museus, teatros, tratando de pequenos negócios de forma razoável, administrando o dinheiro que recebe mensalmente sem problemas. Weber concluiu que "os fenômenos mórbidos atualmente se manifestam externamente, em sua maior parte em áreas relativamente secundárias", e "não ameaçam prejudicar de modo significativo os interesses mais vitais do próprio doente, como saúde, patrimônio, honra — interesses, aliás, que podem ser salvaguardados por medidas curatelares"[9]. Weber indica que não há como prever se sua situação se agravará no futuro e se existiria a possibilidade de um grave perigo, indicando que o estado geral de Schreber não tende à piora e que a Corte não deveria levar a incerteza sobre eventual piora de Schreber como um critério para decidir sobre o levantamento da interdição.  Com isso, a Corte decidiu pelo levantamento da interdição de Schreber, considerando-o plenamente capaz para todos os atos da vida civil. Schreber na visão da psiquiatria forense Conforme Guido Arturo Palomba, a esquizofrenia é um transtorno grave, de difícil recuperação. Conforme o tratadista, "dificilmente, em face da esquizofrenia, seja de qual forma for, o indivíduo reúne condições para o exercício dos atos da vida civil". Em alguns casos, no entanto, passados anos da fase aguda, a pessoa com esquizofrenia pode apresentar somente "alguns poucos e leves defeitos esquizofrênicos", caracterizando a chamada "esquizofrenia em remissão", permitindo-se, portanto, o levantamento da interdição[10]. Com isso, na visão de Guido Arturo Palomba, não é conclusão imediata a de que a pessoa com esquizofrenia deve ser submetida à interdição total. Poderia bastar uma interdição parcial, com fundamento na incapacidade relativa. Há  casos em que a interdição é desnecessária, com evidência de "esquizofrenia em remissão". Quanto ao caso Schreber, durante o período inicial da segunda internação e durante toda a terceira internação, as evidências indicam a ausência de qualquer condição para o exercício de atos da vida civil. Porém, considerando que as Memórias não concedem laudos periciais que permitam uma análise precisa da condição mental de 1891 a 1898, tampouco ao período da terceira internação (1907 e anos seguintes), a análise ficará restrita ao período de 1899 a 1902. Nos laudos periciais, dr. Weber entendeu que Schreber era "uma pessoa capaz psiquicamente, mas com ideias de origem patológica" [11]. Notou-se muita estabilidade da vida pessoal e intelectual de Schreber. No entanto, nos dois primeiros laudos, não havia evidências, para Dr. Weber, de que Schreber teria condições de realizar, sozinho, todos os atos da vida civil, em razão dos "defeitos esquizofrênicos" (em especial, deficiência em sua autocrítica). Assim, apesar da "capacidade psíquica", havia uma patologia que poderia, sim, repercutir na vida social, na capacidade de fato. Se analisado sob a ótica do Direito Civil brasileiro antes da reforma da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 ("Estatuto da Pessoa com Deficiência" ou "EPD"), Schreber poderia ser declarado relativamente incapaz, pois nessa hipótese se compreendiam "os parcialmente comprometidos psicologicamente, ou seja, (...) os fronteiriços, aqueles que apresentam diminuição do entendimento ou da capacidade de autodeterminação"[12]. Como consequência, a condição de Schreber poderia dar ensejo a uma interdição parcial, o que implicaria indicação de um curador para "assistir" Schreber nos atos da vida civil. No entanto, já em 1902, em razão da maior liberdade a Schreber para realizar sozinho atos da vida civil, foi possível ao dr. Weber concluir que ele conseguiu realizar alguns negócios e viagens com autonomia e sem intercorrências. A lucidez, já identificada em Schreber, permitiu que ele retomasse sua vida como um cidadão com discernimento, apesar da existência de "defeitos esquizofrênicos", como a ausência de consciência sobre sua paranoia. Por isso a conclusão da Corte de Apelação de Dresden foi a de conceder o levantamento de sua interdição. Verificou-se efetivamente que a patologia não afetou, concretamente, boa parte de os atos básicos da vida civil daquela pessoa. Sob a ótica do Direito Civil brasileiro anterior à reforma promovida pelo EPD, a conclusão seria similar, já que não havia nenhuma restrição ao discernimento, tampouco tendência à prática de atos que geram prejuízo aos seus negócios, ao seu patrimônio ou à sua honra constatados expressamente pelo laudo pericial do dr. Weber. Conforme Guido Arturo Palomba, se, em casos de esquizofrenia, a capacidade crítica não tiver sido afetada de forma grave, havendo a manutenção dos valores éticos-morais e defeito circunscrito à afetividade que não é grave, permitindo que o paciente mantenha vínculos satisfatórios com o mundo, uma ocupação útil e contatos sociais, ainda que tenha uma certa falta de empatia ou algumas esquisitices de comportamento, "pode-se falar, e a bom direito, que houve satisfatória 'cura social', e neste caso é justo o perito opinar pela capacidade civil total, pela desinterdição (no caso de ter sido interditado no passado), pela capacidade de exercer o poder familiar, se as demais circunstâncias o permitirem" [13]. Conclusão Dentre os vários aspectos criticáveis no EPD, o objetivo destas colunas sobre o Caso Schreber é escancarar somente alguns dos principais problemas da reforma legislativa — não todos. Em primeiro lugar, o EPD declara que todas as pessoas com deficiência são plenamente capazes para todos os atos da vida civil (artigo 6º), retirando das hipóteses de incapacidade absoluta e alocando para as hipóteses de incapacidade relativa a seguinte hipótese: "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade". Isso fez com que a psiquiatria forense, e também os tribunais, passassem a utilizar o dispositivo — que é genérico e era antes voltado a casos como o "coma" — para proteger as pessoas com transtornos mentais, o que seria o caso da esquizofrenia[14]. Em segundo lugar, o sistema, hoje, não permite a constituição judicial de curador com poderes de representação para cuidar sozinho do patrimônio e dos negócios da pessoa com transtorno metal. Só é possível curador com poderes de assistência, com fundamento na incapacidade relativa. Em casos como o de Schreber, cuja internação foi necessária e houve até sintomas catatônicos de imobilidade — que implicou a impossibilidade de emissão de sua vontade —, a incapacidade relativa seria ineficaz para a proteção de seus negócios e patrimônio. Só restaria àqueles que se importam com Schreber a gestão de negócios (artigo 861, Código Civil). Esse é um efeito adverso do "apriorismo" legal, que procura evitar o rigor da interdição simplesmente suprimindo a incapacidade absoluta e afirmando uma capacidade que pode, na prática, ou seja, na vida civil real, não se verificar. Em terceiro lugar, a reforma parece se pautar em uma visão de que a incapacidade é uma "sanção" e não uma "proteção", apesar de farta doutrina que sustente a última posição. Na França, a confusão foi resolvida por meio da substituição do termo "incapaz" ("incapable") por "maior protegido" ("majeur protégé")[15]. O Caso Schreber demonstra que, em vez de haver uma reforma tendente a abolir as hipóteses de incapacidade, deveria ocorrer, na verdade, uma ampliação da quantidade de hipóteses de incapacidade com uma gradação dos níveis de proteção, como no caso do Direito francês[16].  Apesar das críticas já existentes à antiga redação dos artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002[17], o modelo de incapacidade ao menos dava flexibilidade para que os peritos e os tribunais adequassem a incapacidade à gravidade do transtorno mental, evitando proteção rígida em casos simples e proteção tênue em casos graves. A antiga redação dava mais espaço para que a psiquiatria contribuísse com o Direito, medindo-se, ao lado da diagnose psíquica, a efetiva interação do quadro mental com o mundo ao redor para saber se, e em que medida, o indivíduo necessitaria de suporte para a vida civil. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] https://www.conjur.com.br/2023-jun-19/direito-civil-atual-incapacidade-civil-schreber-parte. [2] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e organização de Marilene Carone. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 9. [3] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 219. [4] Psiquiatra de Schreber e Diretor do sanatório (Sonnenstein). Dr. Weber, por vezes, denuncia ser amigo de Schreber. Em seus laudos, Weber descreve com precisão as variações de comportamento de Schreber por conhecê-lo como paciente e por compartilhar o dia a dia com ele, embora haja conflito direto entre o diagnóstico feito por Weber (“Paranoia”, como “doença mental”) e a conclusão de Schreber sobre seu próprio estado. Ao ler os laudos do Dr. Weber, Schreber discordou e afirmou que teria sido acometido de uma “doença dos nervos”, não uma “doença mental”. Na visão de Schreber, ele sempre teve condição de emitir conscientemente sua vontade. [5] WEBER. Laudo médico-legal nos autos do processo (1899). In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 236. [6] WEBER. Laudo médico distrital (1900). In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 248. [7] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 249 e seguintes. [8] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 251. [9] WEBER. Laudo Pericial do Conselheiro Dr. Weber O.I. 152/0 (1902). In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 281. A única exceção trazida pelo Dr. Weber é o desejo de publicação das memórias que, no seu entender, prejudicará a sua honra. [10] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. São Paulo: Atheneu Editora, 2003. p. 652. [11] GUIRADO, Marlene; MARTINS-AFONSO, Felipe; GUIRADO, Luisa. Loucura e neurose em freud: a cena originária da clínica psicanalítica em análise. Curitiba: Appris, 2012. p. 181. [12] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. p. 157. [13] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. p. 652. [14] BARROS, Daniel Martins de. Introdução à Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed, 2019. p. 53-54. [15] BATTEUR, Anick. Droit des personnes, des familles et des majeurs protégées. 9. ed. Paris: Lextenso éditions, 2017. p. 502 e ss [16] Nesse sentido, ver colunas já publicadas sobre as reformas no Direito francês: https://www.conjur.com.br/2021-nov-29/direito-civil-atual-recentes-reformas-incapacidade-maiores-direito-civil-frances-parte#_ftn7 e https://www.conjur.com.br/2021-dez-06/direito-civil-atual-incapacidade-maiores-direito-civil-frances-parte.  [17] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. p. 157-158.
2023-07-24T13:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-24/incapacidade-civil-louco-famoso-historia-psiquiatria
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dados na mesa
Evento da FGV discutirá impactos das Varas Empresariais do TJ-SP
A Fundação Getúlio Vargas (FGV) promoverá, no próximo dia 1º/8, a partir das 9h, um evento sobre as Varas Empresariais do Tribunal de Justiça de São Paulo e seus impactos no tempo médio processual, na qualidade das decisões e na previsibilidade dos julgamentos. O seminário discutirá os resultados de um estudo feito pela pesquisadora Ana Paula Ribeiro Nani, sob a orientação da professora Viviane Müller Prado. O evento acontecerá na sede da FGV Direito SP, no bairro paulistano da Bela Vista, e será aberto ao público. Os interessados podem se inscrever gratuitamente no site da instituição. A pesquisa em questão abordou aspectos como a especialização judiciária para o aprimoramento de seus serviços e os processos de criação das Varas Empresariais no TJ-SP, que estão em expansão. O corregedor-geral da Justiça, desembargador Fernando Antonio Torres Garcia, participará da mesa de debates entre o Judiciário e a advocacia contenciosa empresarial sobre os resultados empíricos da pesquisa. Além de Garcia, a mesa contará com o desembargador aposentado Manoel de Queiroz Pereira Calças; o desembargador Eduardo Azuma Nishi, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; e a juíza Renata Mota Maciel, da 2ª Vara Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem da Comarca da Capital. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-SP. Clique aqui para conferir a programação do evento
2023-07-24T12:20-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-24/evento-fgv-discutira-impactos-varas-empresariais-tj-sp
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Opinião
Franca e Troccoli : Fracionamento e securitização da arte
Quando se diz que a arte foi à bolsa de valores, o que se imagina? O Touro de Wall Street? A mão de Maurizio Cattelan na Bolsa de Milão? O urso e o touro da Bolsa de Frankfurt? Talvez a Bourse de Commerce de Paris e a coleção Pinault. Para além da dimensão estética, essa relação ganha agora um novo capítulo com a Artex, a primeira bolsa dedicada à negociação de ações de obras-primas, criada em Liechtenstein por um príncipe e um ex-banqueiro. A largada da Artex será a Oferta Pública Inicial (IPO na sigla em inglês), em setembro, de Três Estudos para Retrato de George Dyer (1963), tríptico do anglo-irlandês Francis Bacon, comprado da Christie's por US$ 51 milhões, em 2017, e hoje avaliado em US$ 55 milhões. A Artex oferecerá, via bancos e corretoras globais, 70% do trabalho, em 385 mil ações ordinárias no valor nominal de US$ 100. Tanto quanto Uber e Airbnb, a Artex chega prometendo compartilhamento, democratização e acesso — a artistas, colecionadores, investidores e ao próprio público, vez que, após a IPO, a pintura será exibida em um museu. Há tempos, é verdade, algumas startups já ofereciam o fracionamento (e tokenização) de quadros, mas nenhuma organizada como bolsa de valores, com cotação e liquidez diárias, além de sujeita a regulamentos mais rígidos e transparentes. A operação parece simples: as obras — do Renascimento ao século 20 — provém de colecionadores, leiloeiras, marchands e galerias; cada obra é adquirida por uma sociedade anônima criada especificamente para esse fim e cujas ações serão cotadas na nova bolsa. A hiperfinanceirização das artes é uma realidade no pós-pandemia e o modelo pode ser replicado no país, mas exige um marco regulatório mais sofisticado que o atual, que fortaleça a segurança jurídica, a transparência, o direito dos artistas e o combate à lavagem de dinheiro, ao tráfico de bens culturais e à sonegação fiscal. Num mercado de arte fracionada, a regulação deve estabelecer, por exemplo, quem responde pelas pesquisas de due diligence e proveniência, como fica o direito de sequência, como funciona o seguro, quem paga os custos de armazenamento e proteção, quem toma a decisão de revenda, qual a responsabilidade em caso de falsidade ou misattribution, quais os limites éticos do relacionamento com museus, quem faz a avaliação inicial, como quantificar o lucro das ações, o que acontece se a obra mudar de mãos. Ainda não há respostas para todas essas questões. Quanto maior os riscos difusos, incalculáveis e não compensáveis, menor a confiança e o número de players nesse mercado. Com essa nova forma de investimento em arte, o aperfeiçoamento regulatório se mostra essencial para o êxito e a segurança de todos os envolvidos. Isso é indispensável para atrair interessados em comprar um pedaço desse Bacon ou, amanhã, ações de um Volpi, Portinari ou Tarsila do Amaral.
2023-07-25T18:24-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-25/franca-troccoli-fracionamento-securitizacao-arte
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Opinião
Jonathas de Assis: Processo penal acusatório e análise interdisciplinar
O paradigma político-jurídico da contemporaneidade, especialmente no campo do processo penal, é uma conquista civilizatória. É imprescindível a consciência histórico-crítica, nesse sentido, sob pena de revigorarmos, paulatinamente, o modelo inquisitorial no processo penal. Isso sobretudo se atentarmos para o fato de que o período inquisitório medieval sucedeu ao regime processual acusatório, preponderante na Europa Ocidental até o século 13 [1]. O Directorium Inquisitorium e o Malleus Maleficarum constituíram os principais guias procedimentais da atuação das Inquisições [2].  O seguinte trecho do Directorium Inquisitorium é ilustrativo: "Es peculiar y nobilíssimo privilegio del tribunal de inquisicion no están los jueces obligados a seguir las reglas forenses, de suerte que la omision de los requisitos que em derecho se requieren no hace nulo el proceso (...)" [3]. O uso da tortura é permitido, pois a descoberta da verdade material é uma das finalidades intrínsecas do processos inquisitorial. O juiz inquisidor, que acusa e julga, é, contudo, o cerne do sistema. Segundo o italiano Cordero, o modelo inquisidor caracteriza-se pelo primado das hipóteses sobre os fatos [4]. "A prova servia para demonstrar o acerto da imputação formulada pelo juiz inquisidor", produzindo no magistrado "quadros mentais paranoicos e tendências policialescas", nos dizeres de Jardim.  Deste modo, o estudo prévio do sistema processual penal acusatório é basilar para a compreensão, mesmo que limiar, dos princípios acerca do exercício do direito de ação pelo sujeito acusador, incluindo-se, nesse aspecto, o instituto das condições da ação. Os modelos inquisitorial ou acusatório influenciam na conformação dessas categorias jurídicas, ora privilegiando o valor da defesa social, ora as garantias individuais. O exercício criterioso do direito de ação certamente advém de um modelo garantista, enquanto sua flexibilização poderá contribuir para o autoritarismo. Por ser do tipo escalonado, o desenvolvimento regular do processo penal exige uma mutação valorativa acerca do fato penal, da suspeita à forma indiciária, até o juízo de certeza. A Persecutio criminis contempla etapas extraprocessuais de elevada importância, tudo a subsidiar o correto exercício do direito de ação ou a antecipação de um juízo negativo do "direito ao processo" pelo acusador.   Como observa Julio Maier, citado por Geraldo Prado [5], o sistema acusatório, no que pertine ao exercício do direito de ação, contempla poderes relativos à oportunidade, disponibilidade e conveniência, opondo-se ao modelo inquisitivo, que se qualifica também pelo dever inarredável de perseguição criminal. Prado destaca as características do sistema acusatório [6], cujo objetivo consiste na preservação dos direitos fundamentais do acusado em face do arbítrio do Estado, contrapondo-se ao modelo inquisitivo, em que a realização do direito material é o núcleo da regulação dos atos processuais, enfatizando "que o juiz cumpre função de  segurança pública  no  exercício  do  magistério penal", nesse modelo. Em síntese, o modelo acusatório se qualifica pela separação das funções de acusar, defender e julgar, sendo a gestão das provas atributo das partes, interessadas na resolução do conflito.  O ordenamento jurídico, contudo, é repleto de resquícios inquisitivos. Recurso de ofício de decisão favorável ao acusado; produção antecipada de prova pelo juiz, mesmo sem ter sido deduzida uma pretensão processual, e outros exemplos.  O juiz, no processo penal acusatório, deve manter sua imparcialidade. Se buscar realizar tarefas de acusação, "esquecendo-se" que a Constituição de 1988 elegeu um legitimado, dotado de garantias [7] que permitem o exercício regular e incorruptível, a priori, do magistério acusatório, comprometerá a credibilidade indispensável para a atividade jurisdicional. O acusador é o legitimado a avaliar a viabilidade jurídica da eventual pretensão processual, ainda inexistente, analisando o lastro probatório da imputação — justa causa —, o fumus commissi delicti e a punibilidade concreta. O arquivamento do inquérito, assim, prescindiria da exigência de determinação judicial, pois o órgão acusador ainda não deduzira a pretensão processual, elemento necessário à integração do órgão judicial à relação jurídica processual, reservando-se este apenas assegurar a reserva de jurisdição e imposição de providências cautelares no curso fase pré-processual.  A atividade do órgão acusador nessa fase é justamente formar sua convicção, a opinio delicti, acerca do preenchimento dos requisitos necessários ao recebimento da pretensão acusatória, critérios que contemplam as condições da ação, sendo que a instrução será realizada em contraditório, no seio do processo. O princípio acusatório, nessa fase, é salutar a impedir atuação jurisdicional que antecipe juízos inoportunos. Se o preenchimento das condições da ação envolve investigação e colheita de elementos de convicção, objetivando embasar a pretensão acusatória, a atuação do juiz nessa etapa é, claramente, tarefa acusatória. Incumbe somente ao órgão acusador valorar os elementos indiciários colhidos nessa etapa procedimental da persecução criminal, pois este quem solicitou diligências e avaliou a inquérito policial — enfim, atuou como parte, interessadamente, como é inerente a este sujeito processual. Tentar substituir-se ao acusador, ainda mais nessa etapa preliminar, seriamente comprometerá a imparcialidade, e, com tantos juízos de culpa pré-formulados, a dialética processual será meramente formal. Assim, um juízo negativo prévio acerca da inviabilidade da pretensão e do próprio exercício do direito de ação, pois "carecedor de ação" [8], deveria simplesmente ser acatado pelo órgão judicial.   A compreensão da complexidade do sistema de justiça criminal, desde a observação do sistema econômico e político vigente e excludente, da criminologia [9] e o seu impacto, necessário, na dogmática penal, constitui premissa para uma adequação do sistema criminal à Constituição, reinterpretando-o pela concepção de Estado prestacional, efetivando os objetivos da fundamentais da República Federativa do Brasil, que certamente perpassa o modelo de justiça penal. Geraldo Prado alerta para uma interpretação adequada do artigo 129, I, da CR, que garante ao Ministério Público o monopólio do exercício da ação penal de iniciativa pública, na forma da lei [10]. A instituição, portanto, segundo os vetores constitucionais, deverá atuar na política criminal do Estado, conformando-a pelo princípio democrático, conforme a lúcida percepção de Maximiliano Rusconi, que alude ao princípio da oportunidade como elemento racionalizador do poder de persecução criminal, evitando-se uma seleção deformante, dirigindo-se os recursos públicos para a repressão da criminalidade de maior custo social, caracterizando o Ministério Público como instituição legitimada a operar, criteriosamente, a desjudicialização dos casos penais [11]. Os princípios que formatam essa instituição seriam capazes de evitar a quebra da isonomia e o arbítrio, possível crítica formulada à flexibilização do exercício da ação penal.  Portanto, o entrelaçamento entre política criminal, direito de ação e órgão acusador necessariamente perpassa uma análise transdisciplinar. [1] SALO DE CARVALHO. Antimanual de Criminologia. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2013, pg.137. [2] Ibidem, p.136. [3] EIMERIC, Nicolau. Manual de inquisidores, para uso de las inquisiciones de España y Portugal ó Compendio de la Obra titulada Directorio de Inquisidores, de Nicolao Eymerico. Valladolid: Editorial Maxtor, 2010, p. 22. [4] Apud CARVALHO. Op., cit., p. 141. Ibidem, p.141. [5] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 171. [6] Ibidem, p. 170. O autor desfaz a noção ilógica de igualdade entre o sistema acusatório e o princípio acusatório. Este comporia o conjunto de regras e princípios que comporiam o sistema, sendo o principal princípio, orientando a coerência jurídica de todos os outros. Ibidem, p. 173. [8] A expressão deriva do processo civil, caracterizando o juízo negativo de preenchimento das condições da ação, extinguindo-se o processo sem resolução de mérito. [9] A criminologia crítica evidencia o uso seletivo do sistema de justiça criminal, constatando que a população carcerária é preponderantemente composta por membros marginalizados da sociedade, sem instrução adequada, sendo os crimes patrimoniais e o tráfico de drogas os delitos de maior repercussão. A ineficácia das políticas públicas certamente amplia os quadros de desigualdade e constitui fator criminógeno, no complexo processo de desenvolvimento da atividade criminal.  [10] PRADO, Op,. cit,. p. 206. [11] Ibidem, 205.
2023-07-25T12:18-0300
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Fábrica de Leis
Uma boa política regulatória necessita de prazos previstos em lei
A Lei Geral das Agências Reguladoras (LGA), que entrou em vigor em 1º de outubro de 2019, constituiu inegável avanço na construção da política regulatória brasileira ao tratar de instrumentos de tomada de decisão regulatória fundamentais, como a análise de impacto regulatório, consultas e audiências públicas, bem como agenda regulatória. Considerando que não havia, até o advento da LGA, uma lei que estabelecesse regras gerais sobre processo normativo no âmbito da administração pública federal, instrumentos de política regulatória foram paulatinamente sendo construídos por cada uma das agências reguladoras, por força de normas genéricas previstas em suas leis instituidoras e de regras específicas dispostas em regimentos internos e outros atos normativos interna corporis. A LGA, na tentativa de uniformizar processos regulatórios bastante assimétricos entre as agências, conforme já observado aqui, transformou a consulta pública em um mecanismo de participação obrigatório para a edição de qualquer ato normativo "de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados" (artigo 9º da LGA). A consulta pública é um mecanismo por meio do qual qualquer pessoa, física ou jurídica, interessada no objeto da norma em fase de elaboração, pode submeter, por escrito e por meio da internet, críticas, sugestões e contribuições. Consulta às partes interessadas é um dos instrumentos de política regulatória mais destacados pela OCDE, já que é considerado pela organização imprescindível para conferir legitimidade aos processos regulatórios e incrementar a qualidade da regulação. Na nossa avaliação, a principal contribuição da LGA não foi tornar a consulta pública um instrumento obrigatório às agências reguladoras. A maioria delas, com exceção de quatro — ANA, Ancine, ANS e Anvisa — já adotavam a consulta pública de forma obrigatória em processos normativos de interesse geral de regulados e consumidores. A principal novidade trazida pela LGA foi a introdução de prazos para a realização dos ritos e procedimentos das consultas públicas. A LGA introduziu alguns prazos importantes para a realização das consultas públicas pelas agências reguladoras. Em primeiro lugar, previu, no seu artigo 9º, § 2º, período mínimo de 45 dias entre o início e o término do prazo para recebimento das contribuições das partes interessadas. Esse prazo instituído por lei se revelou superior ao previsto individualmente para as agências. No caso da Aneel, por exemplo, o prazo mínimo previsto em instrumento normativo da agência era de quatro dias úteis. A LGA também passou a exigir, por força do seu artigo 9º, § 4º, que cada agência divulgasse em seu sítio eletrônico o inteiro teor de todas as contribuições recebidas das partes interessadas. Antes da promulgação dessa lei, eram poucas as agências ou órgãos com competências regulatórias (e.g. Banco Central do Brasil) que divulgavam parte ou a integralidade das contribuições que recebiam. Por fim, a LGA estabeleceu, no seu artigo 9º, § 5º, que cada agência deveria disponibilizar, em até 30 dias úteis após deliberação final do seu conselho diretor ou diretoria colegiada, posicionamento sobre as críticas ou as contribuições apresentadas na consulta. O prazo estabelecido na lei para a resposta da agência deve ser contado a partir da decisão final da agência sobre a matéria. Como não há prazo para essa decisão ocorrer, enquanto a diretoria não deliberar sobre o tema, a agência não está obrigada a posicionar-se em relação às contribuições recebidas, ou mesmo notificar aos participantes caso opte por desistir de regular o tema debatido na consulta. A figura abaixo apresenta as fases e correspondentes prazos previstos pela Lei nº 13.848/19 para o processo de consulta pública. Figura 1 — Fases do processo de consulta pública após a edição da Lei nº 13.848/19 A LGA acertou, tanto na teoria, quanto na prática, ao instituir prazos para os procedimentos de consulta pública das agências reguladoras federais. Na teoria, prazos são um meio que o legislador possui para impulsionar a ação administrativa. Prazos procedimentais são instituídos para combate atrasos crônicos da atuação administrativa por meio da imposição de datas-limite para que a Administração tome determinadas decisões. Prazos estabelecem prioridades ao administrador, fornecem subsídios para que se resista a pressões externas para atrasar o processo de tomada de decisão, sinalizam a necessidade por recursos financeiros adicionais, bem como forçam o poder executivo a não se esquivar de decidir assuntos delicados. Por fim, os prazos constituem um importante mecanismo de accountability, já que reduzem os custos de monitoramento de grupos da sociedade civil, evidenciam claramente quando uma lei é violada e criam um espaço direto para o controle — legislativo, executivo e judicial — dos atos administrativos. Além disso, como demonstraremos a seguir, prazos podem contribuir para o incremento de participação nos processos decisórios das agências. Na prática, estudo empírico que estamos desenvolvendo no âmbito do projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, sinaliza efeitos positivos dos prazos introduzidos pela LGA para os procedimentos das consultas públicas. Após a LGA, o prazo médio para recebimento de contribuições das partes interessadas nas consultas públicas das agências reguladoras federais aumentou. Os prazos médio e mediano para recebimento das contribuições nas consultas públicas gravitavam em torno de 30 dias antes da lei. Com o advento da LGA, esses prazos aumentaram para ao menos 45 dias, mesmo antes da sua promulgação (a lei foi aprovada em junho, porém entrou em vigor no início de outubro), indicando que as agências se anteciparam para se adequarem aos novos prazos legais. O aumento do prazo para recebimento de contribuições é salutar, na medida que tem o potencial de engajar um número maior de participantes. Prazos muito exíguos podem comprometer a efetividade da participação, já que pessoas que teriam interesse em participar podem não tomar conhecimento da realização do mecanismo ou podem não ter tempo suficiente para enviar contribuições por escrito. Para garantir participação, portanto, não basta que as agências realizem consultas públicas, mas também que elas o façam de forma que as partes interessadas possam realmente participar, dispondo de tempo para tomar conhecimento do problema levantado e preparar suas contribuições. Do contrário, somente grupos de interesse altamente articulados terão condições de participar. Gráfico 1 — Prazos para recebimento das contribuições nas consultas públicas por ano (dias) Uma vez concluída a fase de recebimento das contribuições, cabe ainda à agência processar as informações recebidas e formular um relatório de análise das contribuições. O tempo de resposta da agência é definido como o período compreendido entre a data de encerramento do recebimento de contribuições e a data de publicação desse relatório de respostas. Um prazo muito extenso para a análise das contribuições recebidas prolonga indevidamente a tomada de decisão da agência, dificultando também a prestação de contas aos participantes. Não basta, portanto, que a agência responda aos participantes, é necessário que o faça em tempo hábil. Um tempo excessivamente longo de resposta da agência pode, inclusive, comprometer o interesse do agente em participar de mecanismos futuros, deixando-o com a percepção de que a agência não deu atenção às suas demandas. A LGA também tem contribuído para que as agências ofereçam respostas mais céleres aos participantes das consultas públicas, mesmo sem uma exigência explícita para isso. O prazo médio de oferecimento de resposta das agências diminuiu com o advento da LGA. Esse prazo era de 200 dias antes da LGA, caindo para 142 dias após a entrada em vigor da lei. Nos anos de 2021 e 2022, subsequentes à edição da lei, os prazos médios de resposta ficaram abaixo de 100 dias (Gráfico 2), embora o tempo de resposta às contribuições varie significativamente entre as agências. Além disso, verificamos uma tendência de aumento das taxas de resposta das agências nas consultas públicas. A taxa de resposta das agências, correspondente ao percentual de consultas públicas em que a agência publicou relatório de análise de contribuições, é, no geral, baixa (32%). Esse fato contraria os objetivos dos mecanismos de participação social, de ampliar a legitimidade democrática dos reguladores e contribuir para um diálogo efetivo com a sociedade. Após a LGA, no entanto, verificou-se uma tendência de aumento da taxa de resposta, que atingiu o patamar de 47% das consultas públicas em 2022, o maior índice da série. Gráfico 2 — Relatório de resposta às contribuições: taxa de resposta (%) e prazo médio de resposta (dias) Além da publicação do relatório de análise de contribuições, a agência deve publicar a decisão final após concluída a consulta pública. O resultado final varia de acordo com o objetivo do mecanismo de participação realizado e pode, dentre outros exemplos, se manifestar na forma da aprovação de uma revisão tarifária ou da edição de uma nova norma regulamentar. Verificamos também uma tendência de diminuição do prazo médio das agências para publicação de suas decisões finais após o advento da LGA. Há uma considerável variação em torno do tempo médio/mediano de finalização das regras, tanto dentro como entre as agências. De todo modo, no agregado, o que se nota é que entre 2019 e 2022, tanto o tempo médio quanto mediano de decisão final têm diminuído. Esse ritmo pode resultar de diversos fatores, como complexidade das normas, número de contribuições recebidas, fatores internos das agências, entre outros, mas, de modo geral, revela que a tomada de decisão das agências tem se tornado mais ágil. Gráfico 3 — Tempo médio e mediano de publicação da decisão final (dias) Em breve síntese, o que se nota é que a LGA parece estar contribuindo para um aumento do prazo médio de contribuição das consultas públicas, um aumento da taxa de resposta às contribuições, bem como uma diminuição no prazo médio nas publicações das respostas aos contribuintes e de suas decisões finais. Na área regulatória, são raras as leis que estabelecem prazos para reguladores observarem no processo de criação de normas. A Lei Geral das Agências rompe com essa tendência, ao exigir do regulador a observância de prazos com o objetivo de incrementar a transparência, garantir maior participação e aumentar a responsividade das agências. Ao que parece, essa estratégia parece estar dando certo.
2023-07-25T11:21-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-25/fabrica-leis-boa-politica-regulatoria-necessita-prazos-previstos-lei
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Opinião
Tarso Genro: Segurança de Estado e segurança nacional
Entre os dois mundos, a trégua em que não estamos (As cinzas de Gramsci, Pasolini) O "estado de segurança" pública de um Estado de Direito, formalmente organizado, é aquela situação material em que as suas instituições formais são aptas para afastar "qualquer perigo" ou instabilidade grave, operando dentro das suas instituições legítimas e nas suas formas legais. O sentido maior do "estado de segurança" numa democracia é a defesa da vida, dos direitos da cidadania, da sanidade ambiental e da integridade territorial, e em cuja capacidade política está contida a possibilidade também para decidir sobre a exceção. A segurança do Estado, no Estado Social Constitucional, portanto, deve compor uma visão específica da "segurança da nação", cujos objetivos vinculam a política de segurança nacional à democracia constitucional, com os objetivos expressos no Preâmbulo da Constituição. Os parâmetros que envolvem essas relações, todavia, não são mais os mesmos do século passado, posto que os seres humanos que formam a comunidade política da nação tanto estão mais próximos como mais distantes entre si; tanto estão mais humilhados quanto oprimidos; tanto são mais solidários como mais isolados nas suas prisões voluntárias das redes sociais. A sociedade em rede da nação moderna tanto é uma sociedade de socialização das virtudes como da distribuição das crises e das perversões humanas, produzidas nos fluxos do movimento sem freios do capital financeiro globalizado e da velocidade da informação em que o mundo é local e o local é o mundo, onde todos estão sempre no centro, independentemente de onde estejam geograficamente: parodiando Borges, no deserto das utopias sempre se está no "centro". Socorro-me do pensamento do mestre Luigi Ferrajoli, no seu Razões Jurídicas do Pacifismo [1], no qual ele organiza as preliminares da sua proposta de uma "Constituição da Terra". Faço-o para sustentar que a segurança pública, com base no Preâmbulo da Constituição, hoje, deve ser redefinida face à nova situação global. Ela é, mais do que antes, parte estrutural da segurança do Estado, cujas qualidades ou negatividades geram, mais do que tudo, os efeitos mais contundentes na vida cotidiana da comunidade da nação. É na segurança para viver em público que estão os vínculos da vida comum, mais ou menos humanizados, bem como estão nas lacunas mais evidentes da relação complexa entre a moral e o direito, que transita para a vida diária na segurança. É através do Estado polícia e do Estado controle social que a segurança pública, como política pública integrada como segurança do Estado, revela e apreende tanto as grandezas do Direito posto na Constituição como também pode mostrar o lado perverso da força sem lei. A questão da segurança universal como conjunto abstrato de situações globais abre, neste contexto, um novo problema de fundo, a ser resolvido nos diversos níveis da intervenção jurídica e política do Estado para "afastar qualquer perigo". Os diversos níveis da segurança não estão mais separados da segurança do Estado, cujas instituições se expressam não só como "norma", mas igualmente como integrantes de uma "conduta" previsível no meio social. Quando Ferrajoli se expressou sobre as esperanças de paz no planeta, advertiu sobre isso: "o que ocorreu sem dúvida é certamente o contrário. No novo mundo multipolar, (...) foram ignorados e inclusive agravados os grandes problemas do planeta (...) (que assim) acumularam contra o Ocidente suas ameaças à paz mundial e à segurança, que a nossa própria miopia contribuiu para gerar". O sentido da segurança pública, assim, deixa de ser algo a ser tratado isoladamente, visto só de dentro do território, pois a sua problemática não é mais predominantemente paroquial, mas vem integralmente por dentro da nova ordem global. Vem nos fluxos financeiros, informativos, culturais e de armas potentes, vem na exploração da biodiversidade e na apropriação ilegal das biodiversidades internas, nos processos ilegais do tráfico de drogas, de pessoas e bens, que se que se originam — tanto dentro como fora da economia formal — dentro e fora do território, do mundo para qualquer bairro e vem de qualquer bairro para todo o mundo. Este movimento — interno e externo — é promovido por novos interesses, tanto legais como ilegais, conjugados na nova ordem geopolítica, nos novos e diversos pontos fragmentários de poder político, ao mesmo tempo que são próximos e distantes dos novos centros de poder real. No capítulo III [2] do livro de Rogério Gesta Leal Matrizes de Políticas de Segurança Pública no Brasil, está dito: "é preciso criar condições para que se universalize a expectativa de que as leis serão cumpridas e os direitos serão respeitados, sobretudo os fundamentais, como o direito à vida, (...) pois não há direito nem legalidade sem garantias de que as normas serão aplicadas no limite, pelo uso comedido da força, (...) para que se atualizem as mencionadas garantias, com efetividade e resultados". A democracia liberal só sobrevive, assim, como afirmação, não como uma negação da ideia iluminista de uma sociedade baseada na razão e na igualdade, na forma do Estado Social Constitucional: só nele a democracia, com um sistema de segurança pública reformado, pode se impor sobre a ilusão de segurança imediata e arbitraria das velhas ordens totalitárias. A verdade é que nenhum governo poderá se manter legítimo, no atual contexto global, sem que coloque na sua agenda uma estratégia coerente de três passos, com vistas a uma "segurança pública" cidadã: 1º) a ideia de segurança pública, deve ser pensada no momento universal — planetário — ora vivido, pela integração da ideia democrática com a "Segurança do Estado" (democrático constitucional), conectada com a "Segurança Nacional" (fundada no Estado de Direito); 2º) da atual concepção de segurança pública, burocrático-weberiana, depende a produção de uma visão nova da "segurança pública", para mais além da visão tradicional da função-máquina weberiana; 3º) compreender que há uma disputa permanente, virtual e real — ideológica e militar — pelo controle dos territórios mais ricos em bens naturais que se apoia no "keynesianismo militar" (da "era de Reagan"), pelo qual a aceleração da indústria armamentista nos países ricos é uma estratégia econômica de defesa da economia nacional destes e de um modo de fazer as suas guerras de interesse geopolítico. Em artigo publicado em maio de 2023, escrevi o seguinte sobre situação da África do Sul no século passado, onde essa ideia integrada de segurança servia a finalidades racistas e totalitárias: "Nelson Mandela esteve preso por 27 anos, primeiro na Prisão de Robben Island, depois dos 6 anos na Prisão de Pollmoore. Finalmente, (...) foi para o complexo de Victor Vester — de 88 a 90 — já assessorado por um Oficial do Exército Sul-africano. Esta última etapa do seu martírio fechou o circuito (...) do comando político e das negociações com o Governo racista, que estavam em ascensão desde a melhoria das suas condições carcerárias, quando Mandela foi retirado da Ilha de Robben" [3]. A situação histórica referida, que iniciara, no "apartheid" social e racial — promovido dentro da "ordem jurídica" — fazia uma fusão das questões da segurança do Estado com as instituições formais da segurança nacional, que proporcionaram a exclusão da maioria negra da ordem vigente e assim moldaram uma concepção de segurança pública expandida, para apontar em qualquer "desordem" social (ou crimes comuns) — cometidos dentro das comunidades da maioria negra — ameaças concretas à segurança do "Estado de Direito" racista e da ideia de nação racista, "legalmente" instituída. A transição de um criminoso comum de "alta periculosidade" ("terrorista") para a condição de chefe de Estado só foi possível quando algo muito forte abate-se sobre o Estado concreto, numa uma fusão hoje historicamente improvável: nela a ordem que morria já continha dentro dela uma outra ordem, que já se tornara hegemônica sem dominar plenamente o Estado. É o que não ocorre hoje na transição a ser feita política e normativamente do Estado do Direito moderno para o Estado Social constitucional. Cabe lembrar os estudos de Adorno sobre o radicalismo de direita, que está presente nos períodos modernos mais narcísicos quando a dissolução das utopias se transforma em "eras de expectativas decrescentes" através de uma "franja de lunáticos" que, em condições sociais dadas, tende a se ampliar. Em estudos posteriores, numa palestra de 1967, o filósofo já constata que esses grupos não são somente compostos por "lunáticos", mas igualmente por "antecipadores" de um "estado de alma generalizado", que toma forma de um "desejo coletivo do apocalipse" [4]. É a emergência do arquétipo cultural da 20. A ideia que o direito, nas democracias constitucionais — em qualquer país centrado em instituições democrático-liberais — fazem de si mesmas, é uma ideia-chave para verificar a efetividade dos valores contidos nas suas normas superiores. A visão do liberalismo constitucional americano sobre a proteção do cidadão "em face da arbitrariedade estatal" — trazida para a realidade sociológica do convívio com "outros iguais" — adquire no "direito fundamental" à "segurança pública" coletiva, uma ideia fundante [5], pois ela, a verdadeira e universal segurança pública, é que gera um convívio social livre e igual. Substituir o "aposto explicativo" franja de lunáticos por grupos sociais inteiros subordinados à hipnose do mercado, que rompe ou vulnera a coesão social, na qual as pessoas podem ser minimamente solidárias para sobreviverem, explica a visão que o liberalismo democrático quer cultuar para si mesmo. E que deve ser cultuada tanto por uma reorganização de conceitos como por práticas de governo coerentes com a sociedade universal globalizada. [1] FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Edição de Gerardo Pisarello. Madrid: Editorial Trotta,A.S,2004.p.66 [2] LEAL, Rogério Gesta. SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: AVANÇOS E RECUOS. (em fase de elaboração). [3] GENRO, Tarso. Lula e Mandela: negociação, revolução e democracia. Disponível em: https://sul21.com.br/colunastarso-genro/2019/09/lula-e-mandela-negociacao-revolucao-e democracia/.Acesso em: 4 de maio de 2023. [4] GENRO, Tarso. A hidra não foi anulada. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-hidra-nao-foi-anulada/. Acesso em: 4 de maio de 2023. [5] KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: Os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático (Einführung in die Staatslehre: Die Geschichtlichen Legitimitätsgrundlagen des demokratischen Verfassungsstaates). Tradução: Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2009, p.239.
2023-07-26T12:26-0300
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Streck e Berti: Reconhecimento de pessoas na releitura de Barroso
Ao negar provimento ao Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 227.629 de São Paulo, o ministro Roberto Barroso fez constar em sua fundamentação que "o entendimento desta Corte (STF) é no sentido de que 'o art. 226 do Código de Processo Penal não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível' (RHC 125.026-AgR, Relª. Minª. Rosa Weber)". Veja-se que o voto cita precedente de 2015, da 1ª Turma, vencido o ministro Marco Aurélio. Para comentar a decisão do ministro, faz-se necessário transcrever o caput do artigo 226, do Código de Processo Penal: "Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: (...)" Verifica-se que o artigo 226 do CPP é imperativo. A língua portuguesa também é um bom auxílio para a hermenêutica. O artigo determina a forma como se deve proceder quando houver a necessidade de fazer-se o reconhecimento pessoal. Diferentemente do que decidiu o ministro Barroso, não se trata de uma recomendação. Trata-se claramente de uma determinação. Logo, se o legislador não previu qualquer exceção, por evidente que não cabe ao interprete fazê-lo. O artigo 226 do CPP é uma garantia do CPP recepcionada pelo artigo 5. da Constituição. Proteção do cidadão contra o poder do Estado. Lei e Constituição não recomendam. Não aconselham. Determinam. Se admitirmos que se trata de uma recomendação, poder-se-á dizer que se trata de um conselho, como se a pretensão do legislador fosse a seguinte: veja-bem, nobre autoridade, eu recomendo que em casos de reconhecimento de pessoas, o procedimento deve ser este; mas se não for, não tem problema. A decisão do ministro Barroso, para além de conferir uma interpretação que constrói um novo texto, representa um retrocesso em face daquilo que restou decidido pela 6ª Turma do STJ no julgamento do RHC 139.037/SP, de relatoria do ministro Rogério Schietti, no qual restou assentado que "A Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC, realizado em 27/10/2020, propôs nova interpretação ao art. 226 do CPP, a fim de superar o entendimento, até então vigente, de que o disposto no referido artigo constituiria "mera recomendação" e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual descumprimento dos requisitos formais ali previstos. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: (...)." (d/n) O artigo 226 do CPP é um "dever-ser", porquanto determina o modo como o reconhecimento de pessoas "deve ser" realizado. E quando se diz que a interpretação do ministro Barroso esgota o sentido da norma, é porque em se tratando de uma mera recomendação (como ele diz!), o seu descumprimento não gera qualquer consequência. Aqui uma pitada de Hans Kelsen seria fundamental: norma jurídica é o sentido de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem. Sem sanção, não há norma. Se não determina, não é norma jurídica no sentido coativo do direito penal-processual penal. Logo, qual o sentido de uma norma que determina uma forma que "deve ser" observada (portanto, um "dever-ser"), mas que não gera qualquer consequência em caso de inobservância desta forma? Se é assim como diz o Ministro Barroso, a pergunta que fica é: qual o sentido da existência do artigo 226, do CPP? Com as devidas vênias o ministro Barroso está equivocado. No Processo Penal, forma é garantia e garantias devem ser respeitadas. Aliás, garantias devem ser garantidas, sobretudo pelo Judiciário. Em um Estado Democrático de Direito, o Judiciário exerce função de garante. Simples assim. Mas talvez a questão mais grave nisso tudo esteja no fato de que o ministro Barroso legisla ao dizer que o artigo 226, do CPP, é mera recomendação. Produz lei nova. O que não é novidade nos dias de hoje, em que qualquer decisão se transforma em tese — com nítida intenção de legislar para o futuro. E todos nós sabemos o quanto é prejudicial para um Estado Democrático de Direito quando o Judiciário, ao interpretar o direito, cria direito. Vale rememorar, neste particular, o entendimento que se firmou no julgamento do HC 126.292 e o quanto foram importantes as decisões das ADCs 43, 44 e 54. Se o nosso sistema está ancorado (ainda) no civil law, não se pode admitir que o judiciário aplique o direito desaplicando-o, porque a observância da legalidade pelo Poder Judiciário traduz-se em segurança jurídica, já que está no ordenamento jurídico (na legalidade) a previsão de todos os direitos e deveres inerentes ao Estado e aos cidadãos. Não é por outro motivo que o Poder Judiciário diz o direito (jurisdictio) e não cria o direito (tarefa que incumbe ao legislativo). Nesse sentido, há vasta literatura preocupada com esse fenômeno da indevida criação do direito (Jacinto Coutinho e Marcio Berti [1]; Lenio Streck [2]; além de textos e obras de autores como Marcelo Cattoni, Georges Abboud, Clarissa Tassinari e todos os que escrevem preocupados com o fenômeno do ativismo judicial e diálogos institucionais). Obviamente que não se desconhece que toda interpretação produz sentidos. Sentidos não são simplesmente reproduzidos. Há sempre a relação texto e norma, em que a norma é o produto da interpretação do texto (Müller). Porém, a norma não é um texto apartado, novo, descolado do texto. O sentido atribuído ao texto não pode ser um sentido que contrarie ou esvazie o texto. Tem-se, portanto, que o artigo 226, do CPP, não é mera recomendação; não é um mero conselho que, não observado, gera consequência alguma; ao contrário, trata-se de uma norma imperativa que determina um "deve-ser" naquilo que diz com a forma como o procedimento de reconhecimento de pessoas "deve ser" feito, sendo que a sua inobservância gera a nulidade do reconhecimento, porquanto trata-se de uma garantia processual. Vem aqui uma questão final: o artigo 226 é produto original do CPP. Veja-se que já na época havia essa preocupação. Há mais de 20 anos a 5ª Câmara Criminal do TJ-RS já dava plena eficácia ao artigo 226 (Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Luis Gonzaga Moura e Lenio Streck). Alguém já se deu conta da importância desse dispositivo? No meio de um Código originalmente inquisitivo, com prisão obrigatória, prisão administrativa e poucas garantias, ali já aparecia essa garantia do reconhecimento. Surpreende, pois, que em pleno Estado Democrático de Direito, em que estamos discutindo o juiz das garantias e com tantas discussões sobre garantismo, o STF tenha manifestação desidratando um dispositivo garantístico escondido lá no meio do CPP dos anos 40 do século XX. Aliás, é nessa linha que vai o correto voto do ministro Gilmar Mendes no HC 206.846 SP, falando da redação original do CPP de 1941, sem modificações por leis posteriores: "Sem dúvidas, há o que aprimorar na legislação atual, como a adoção de um método de alinhamento justo, o qual pressupõe outras medidas além daquelas determinadas na octogenária redação do art. 226". Nesse julgamento, a 2ª Turma, por maioria, sob a presidência do ministro Nunes Marques, deu provimento ao recurso ordinário em habeas corpus para absolver o recorrente, ante o reconhecimento da nulidade do reconhecimento pessoal realizado e a ausência de provas independentes de autoria, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e André Mendonça. [1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda.; BERTI, Marcio Guedes, in LEGALIDADE E HABEAS CORPUS: UMA ANÁLISE A PARTIR DO VOTO DO MIN. NILSON NAVES NO HC 76.686/PR. Habeas Corpus: teoria e prática: estudos e homenagem ao Ministro Nilson Naves / Anna Maria Reis... [et al.] (org..). – 1. ed. – Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido, 2023, p. 260. [2] Conferir o verbete Resposta adequada à constituição (resposta correta). In: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 385-406.
2023-07-27T15:11-0300
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Soares e Filgueiras: Individualização da penalidade pecuniária
É amplamente abraçada, na bibliografia de Direito Tributário, a responsabilidade objetiva pelos ilícitos fiscais. Assevera COÊLHO que "a infração fiscal configura-se pelo simples descumprimento dos deveres tributários de dar, fazer e não-fazer, previstos na legislação" [1]. Em igual sentido vai a lição de Torres, ao aduzir que "não importa, para a punição do agente, o elemento subjetivo do ilícito, isto é, se houve dolo ou culpa na prática do ato" [2] [3]. Outros tantos autorizadíssimos autores perfilham o entendimento. Tamanho é o acolhimento da teoria que a doutrina mais moderna — como é a de Takano [4] —, em crítica a esse entendimento, chega a falar na existência de um verdadeiro mito da responsabilidade objetiva no Direito Tributário. Todo esse "mito", sabe-se, tem suas raízes fincadas no artigo 136, do CTN, que predica que, "salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato". Para mais, esse posicionamento tradicional anda de mãos dadas com a impossibilidade de dosimetria da penalidade em matéria de Direito Tributário Sancionador. O principal fundamento daqueles que assim entendem — lembrou Carsoni [5] — reside na natureza de ato administrativo do lançamento tributário (por isso mesmo, plenamente vinculado à lei). Verificado o "fato típico", a multa fiscal deveria ser aplicada de maneira chapada ou padronizada, pouco importando se presente dolo ou culpa, sob pena de responsabilidade funcional (artigo 142, p. u., CTN). Pensamos que esse posicionamento não procede. Nunca procedeu, na verdade, porquanto firmado em premissas equivocadas — parte de interpretações desarrazoadas dos dispositivos do CTN referidos acima. E, ainda que possuísse alguma consistência, viria-na perdendo, em face do evoluir da doutrina e da jurisprudência. No que segue, pretendemos tecer uma breve crítica à teoria da responsabilidade objetiva no Direito Tributário Sancionador, emprestando especial atenção ao equívoco que é inadmitir a dosimetria das penalidades fiscais de natureza pecuniária. Antes disso, será necessário fazer um breve resgate conceitual das multas fiscais, a fim de delimitarmos o objeto da análise a que nos propomos. Em seguida, estudaremos brevemente as funções das sanções tributárias, o que será essencial para o deslinde da questão. Multas fiscais: conceito Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que as normas jurídicas possuem a estrutura lógica de um juízo hipotético ("se, então"). Condiciona-se determinada consequência (apódose) à verificação de um suposto (prótase) - no lendário magistério de Carvalho [6]. Mas esse condicionamento não consiste em relação de causalidade, própria dos fenômenos da natureza. Em direito, a relação entre suposto e consequência é de normatividade; o que enlaça prótase e apódose é uma cópula deôntica. O direito, diante de um suposto fático, diz não o que provavelmente ou com certeza irá acontecer, mas o que deve acontecer; prescreve, não descreve. E a norma não se esgota. Seu comando incide tantas quantas forem as vezes que se realize o fato imponível; a norma tem sempre a sua "força cogente renovada" [7]. Em segundo lugar, em vista dessas observações, há de ser feita distinção entre dois tipos de normas: as normas que impõem um dever jurídico e as normas que sancionam (negativamente) o descumprimento do mesmo. Esses dois tipos de normas são o equivalente, respectivamente, ao que Kelsen chamou de normas secundárias e normas primárias; ou ao que Cossio, em sua teoria egológica do direito, chamou de endonormas e perinormas. Preferiremos esta última terminologia. Sendo desnecessário maior aprofundamento, o importante aqui é ter-se em mente que, em última análise, o suposto ou prótase da perinorma é justamente o descumprimento da endonorma, ou melhor, do comando contido em sua apódose. De maneira mais simples: o que enseja a punição é o descumprimento de um dever jurídico; é o ilícito — lembrou Silva [8]. Em terceiro e último lugar, não há confundir o plano da norma com o plano dos fatos. Em outras palavras, não há confundir a prótase e a apódose (plano da norma), que acabamos de analisar, com, respectivamente, o fato jurígeno, "acontecido efetivamente no mundo fenomênico" [9], e a relação jurídica que, também no mundo fenomênico, em virtude da norma se instaura (plano dos fatos). Pois bem. No dizer do Código Tributário Nacional, "a obrigação (tributária) principal surge com o fato gerador" (artigo 113). Já se nota que, ao menos neste dispositivo, "fato gerador" reporta-se ao plano dos fatos; reporta-se a um fato jurígeno ou imponível. Certo é que, também segundo esse mesmo artigo 113, "a obrigação principal tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária". Vê-se que a obrigação tributária dita "principal" pode tanto ser uma obrigação de pagar tributo como uma obrigação de pagar penalidade pecuniária. A norma em virtude da qual aquela se instaura é uma endonorma, e, esta, uma perinorma. Diz-se da primeira norma tributária impositiva, e, da segunda, norma tributária sancionadora. Justamente destas últimas — normas tributárias sancionadoras — é que nos ocuparemos. Estaremos ainda no campo do Direito Tributário, ou, mais especificamente, no das obrigações tributárias principais que tenham por objeto o pagamento de penalidade pecuniária, i.e., de multas fiscais. Extrapola, portanto, o escopo de nossa análise os crimes de fundo tributário, objeto de estudo do que se convencionou chamar de Direito Penal Tributário. Funções Podemos apontar — com Oliveira [10] — ao menos três funções das multas fiscais. Tal como em demais ramos do direito, em Direito Tributário, assumem as sanções função (1) penalizante e punitiva, (2) reparatória e (3) preventiva. É certo que a doutrina costuma associar aquela primeira função - penalizante/punitiva — às multas ex officio, e a segunda — reparatória — às multas moratórias. Mas a verdade é que essas duas espécies de multa "mais se vinculam às circunstâncias em que são previstas para serem aplicáveis — geralmente quando cobradas pelo Fisco ao flagrar o infrator ou quando pagas pelo infrator sem cobrança prévia pelo Fisco - do que às suas funções" [11]. Enfim, seja qual for a multa fiscal de que se trate, essas duas funções estarão sempre presentes, em maior ou menor grau. O mesmo se diga quanto à função preventiva. Qualquer que seja a sanção tributária de que se cuide, sempre a multa — ou a consciência de sua potencial aplicação — tenderá a compelir o sujeito passivo da obrigação ao pagamento. Sendo cediço que as normas tributárias impositivas são, em larga medida, normas de rejeição social [12], é bem possível imaginar no que resultou a seguinte política — narrada por Nobre, Vieira e Tupiassu: "Na França, por exemplo, diante da crise fiscal tomada como estopim da famosa Revolução de 1789, um tributo patriótico foi 'exigido' dos cidadãos, que deveriam contribuir voluntariamente com cerca 1/4 de sua renda, a fim de sanar o gigantesco déficit orçamentário que assombrava o país. Necker, entusiasta da ideia, considerava que os cidadãos contribuiriam felizes para o bem-estar e interesse geral da nação" [13]. Desnecessário dizer que a política teve seu propósito absolutamente frustrado, tendo sido ínfima a arrecadação lograda pelo governo francês. Essa passagem revela, de maneira cômica, a função preventiva das sanções tributárias. Possibilidade de individualização da pena Feitas essas considerações, passamos a uma breve crítica à teoria da responsabilidade objetiva pelos ilícitos (estritamente) fiscais, especialmente ao que predica ser incabível a dosimetria das sanções tributárias. Isso será feito demonstrando-se algumas razões pelas quais a individualização da penalidade tributária pecuniária é, mais do que autorizada, devida. Em primeiro lugar, há uma razão que guarda relação com as funções das sanções tributárias, abordadas logo acima. É ela: o não acolhimento da individualização ou dosimetria esvazia de sentido todas ou algumas das funções das sanções tributárias, o que acaba por conduzir ao efeito confiscatório e, por consectário, à inconstitucionalidade. Tome-se o exemplo de dois contribuintes: um que deliberadamente tenha pagado tributo a menor ou a destempo, e outro que tenha feito o mesmo, em idênticas condições, só que por razões de dificuldade financeira. Inadmitir a dosimetria das penalidades fiscais a serem fixadas para esses contribuintes é o mesmo que puni-los igualmente. É o mesmo, portanto, que aquiescer com que a dificuldade financeira do segundo contribuinte, que o levou a cometer a pretensa infração, em nada importe para (1) o quanto deva ser penalizado/punido esse contribuinte, (2) o quanto o erário deva ser reparado por esse contribuinte e (3) o quanto devam ser prevenidas reincidências desse contribuinte. Tudo bem que, sendo idêntico o prejuízo ao erário em ambos os casos, justifica-se o igual desempenho da função reparatória das multas sobre os dois contribuintes. Acontece que, se é certo que o segundo contribuinte cometeu infração fiscal por razões de dificuldade financeira (não tendo, portanto, agido por dolo ou culpa), não há porque puni-lo, ao menos não com a mesma intensidade com que se pune o primeiro (este, sim, tendo tido elemento subjetivo no seu agir). Trata-se, mais do que uma questão de (ir)reprovabilidade da conduta ou de culpabilidade, de uma questão de justiça individual, como ainda será comentado. Não há, ademais, porque o Estado prevenir-se da reincidência do segundo contribuinte. A prevenção pode se justificar para a conduta do primeiro contribuinte, mas não para a do segundo. Afinal, este, diferentemente daquele, pagou a menor ou a destempo não porque assim quis, mas em razão de circunstâncias que estavam fora de seu alcance. Não há, portanto, como a multa vir a influenciar na sua reincidência. Enfim, vê-se que, nesse exemplo, somente a função reparatória importou. Somente a necessidade de reparação do erário era idêntica em ambos os casos, e ela, por si só, conduziu a multas de igual importe. As funções de penalização/punição e de prevenção, que acenavam para a necessidade de sanções diversas — o que teria sido proporcionado pela individualização ou dosimetria das penalidades —, tiveram seu sentido esvaziado. Nisso, revelou-se patente o efeito de confisco da multa fixada para o segundo contribuinte, e, por isso mesmo, a sua inconstitucionalidade. Em segundo lugar, não pode o artigo 136 do CTN — referido acima — ser interpretado irrestritamente, como quer parte da doutrina. Tenha-se em mente que a individualização da pena, inscrita no artigo 5º, XLVI da CF/88, decorre dos princípios da culpabilidade e da igualdade, e consiste em "direito individual que busca dar concretude ao princípio da justiça" [14], como já deixamos entrever. Não deixa espaço, portanto, para aplicações chapadas ou padronizadas de penalidades fiscais. A doutrina, em face do artigo 136 do CTN, não hesita em afastar a exigência de dolo para a caracterização dos ilícitos fiscais. Por outro lado, grande controvérsia gera a imprescindibilidade de culpa. A bem ver, este elemento subjetivo é, sim, exigido. Isso porque o artigo 136 do CTN não pode ser interpretado ignorando-se que "a exigência de culpa, em seu sentido estrito, é decorrência natural do direito sancionatório" [15]. Em terceiro lugar, nem mesmo o parágrafo único do artigo 142 — também referido acima — obsta a individualização da pena. É verdade que a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, mas disso não se segue, pela ótica do Direito Administrativo, que a dosimetria da pena não encontre o seu lugar. Ensinou Carsoni, valendo-se de Marçal Justen Filho: "Em matéria de graduação das penas fiscais, a discricionariedade não figura como um 'defeito da lei', mas como um mecanismo de promoção da justiça, pelo qual é encontrada 'uma solução normativa para o problema da inadequação do processo legislativo'. O legislador não dispõe de condições para prever antecipadamente a solução mais satisfatória para todos os eventos futuros. Por isso é que 'A discricionariedade é uma solução normativa orientada a obter a melhor solução possível, a adotar a disciplina jurídica mais satisfatória e conveniente para resolver o caso concreto.' A discricionariedade, nessas condições, constitui instrumento necessário para dar concretude à individualização da pena, permitindo a adequação da sanção a cada situação concreta" [16]. Já no que toca à autoridade judicial, seria até mesmo de se perguntar, sob a ótica da Teoria do Direito, se é possível falar-se em discricionariedade. Pensamos, apoiados em Dworkin [17], que não. Também aqui, partindo-se da compreensão do direito como integridade, mostra-se plenamente possível a individualização da penalidade fiscal. Em quarto lugar, não se pode perder de vista um argumento histórico trabalhado pela doutrina. À época do anteprojeto do Código Tributário Nacional, cogitava-se da incorporação, ao Direito Tributário Sancionador, de variados institutos do Direito Penal, tais como imputabilidade, autoria, coautoria, cumplicidade, extinção da punibilidade e — o que é especialmente interessante aqui — circunstâncias atenuantes e agravantes [18]. Essa importação de figuras, é certo, não vingou, talvez em razão da grande complexidade que proporcionaria [19]. Mas é fato que a possibilidade de graduação das penalidades fiscais não restou em nada prejudicada. Dispositivos do próprio CTN o sinalizam, "tais quais o art. 108, inc. IV, ao impor a equidade na aplicação da legislação tributária pelas autoridades administrativas; o art. 112 do CTN, que impõe a consideração da natureza ou as circunstâncias materiais do fato ilícito, sua natureza e seus efeitos na cominação de penalidades; e ainda o art. 100, parágrafo único do CTN, que exclui a pretensão punitiva caso o contribuinte tenha agido em estrita conformidade com instrução ou informação da autoridade administrativa" [20]. Para mais, as discussões da época vieram a inspirar uma série de disposições da legislação infraconstitucional, que, em nada obstada, consignou regras de dosimetria das penalidades fiscais [21]. A título exemplificativo, cita-se, aqui, a Lei nº 4.502/64, que, em seu artigo 67, reza que "compete à autoridade julgadora, atendendo aos antecedentes do infrator, aos motivos determinantes da infração e à gravidade de suas consequências efetivas ou potenciais; II - fixar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicável". Conclusão Numa conclusão, seja porque a graduação das penalidades fiscais é um imperativo constitucional, sob pena de desvirtuarem-se as funções das sanções fiscais, conduzindo-se ao efeito confiscatório e, por isso mesmo, à inconstitucionalidade; seja porque a doutrina tradicional, partidária do "mito da responsabilidade objetiva" parte de uma interpretação desarrazoada dos artigos 136 e 142, p. u., ambos do CTN; seja, ainda, porque uma breve digressão histórica legislativa revela que nada obsta a legislação de prever mecanismos de graduação das penalidades fiscais; conclui-se que, mais do que autorizada, é devida a individualização ou dosimetria em matéria de Direito Tributário Sancionador. [1] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 29. [2] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 271. [3] Não obstante, ambos autores não ignoram haver exceções. [4] TAKANO, Caio Augusto (2017). A Dosimetria das Multas Tributárias: Proporcionalização e Controle. Revista Direito Tributário Atual, (37), 30–58. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/344. [5] CARSONI, Fernanda Alves Fernandes da Silva (2017). A Individualização da Pena no Direito Tributário Sancionador: Competência para a Graduação da Penalidade Fiscal e Princípios e Direitos que autorizam tal Atividade. Revista Direito Tributário Atual, (37), 119–143. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/293, p. 127. [6] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 5. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. [7] Idem, p. 190. [8] SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 132. [9] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed., 8ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, pp. 72 e ss. [10] OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Sanções Tributárias e Denúncia Espontânea. In MACHADO, Hugo de Brito. Sanções Penais Tributárias. São Paulo: Dialética, 2005. [11] Idem, p. 400-401. [12] NOBRE, Simone Cruz; VIEIRA, Iracema Teixeira; TUPIASSU, Lise. Fundamentos da Sanção no Direito Tributário. Revista Direito Tributário Atual, n.43. ano 37. p. 386-409. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2019, p. 396. [13] Idem, p. 394. [14] CARSONI, Fernanda Alves Fernandes da Silva (2017). A Individualização da Pena no Direito Tributário Sancionador: Competência para a Graduação da Penalidade Fiscal e Princípios e Direitos que autorizam tal Atividade. Revista Direito Tributário Atual, (37), 119–143. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/293, p. 132. [15] TAKANO, Caio Augusto (2017). A Dosimetria das Multas Tributárias: Proporcionalização e Controle. Revista Direito Tributário Atual, (37), 30–58. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/344, p. 38. [16] Idem, p. 128. [17] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3ª ed. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2010, pp. 108 e ss. [18] CARSONI, Fernanda Alves Fernandes da Silva (2017). A Individualização da Pena no Direito Tributário Sancionador: Competência para a Graduação da Penalidade Fiscal e Princípios e Direitos que autorizam tal Atividade. Revista Direito Tributário Atual, (37), 119–143. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/293, p. 130. [19] Idem, p. 129. [20] TAKANO, Caio Augusto (2017). A Dosimetria das Multas Tributárias: Proporcionalização e Controle. Revista Direito Tributário Atual, (37), 30–58. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/344, p. 38. [21] CARSONI, Fernanda Alves Fernandes da Silva (2017). A Individualização da Pena no Direito Tributário Sancionador: Competência para a Graduação da Penalidade Fiscal e Princípios e Direitos que autorizam tal Atividade. Revista Direito Tributário Atual, (37), 119–143. Recuperado a partir de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/293, p. 131 e ss.
2023-07-27T12:23-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-27/soares-filgueiras-individualizacao-penalidade-pecuniaria
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Senso Incomum
Em revista, a questão dos precedentes qualificados e persuasivos
Recebi a Revista de Precedentes, editada pela diretoria científica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) — Volume 1, número I (acessar aqui). Cumprimentos pela iniciativa. Revistas jurídicas sempre são muito bem bem-vindas. Assim, desde já indago se, para os próximos números, é possível remeter/submeter artigos. Sigo. Chama a atenção que a parte primeira trate do sistema de precedentes qualificados. O capítulo é de autoria de Juan Pablo Couto de Carvalho, membro da AGU e professor, e Maria Fernanda Wirth, mestre em direito e assessora de ministra do STJ. Enfim, pensei, vou entender, finalmente, o que são os precedentes qualificados e por que são assim chamados. Vejamos o que diz o tópico que pretende explicar esses precedentes. Depois de reproduzir o dispositivo e os incisos, dizem os autores: "Aqui cabe esclarecer que o art. 927 indica decisões ou enunciados que possuem efeito vinculante, de observância obrigatória na jurisdição. Isso não significa, contudo, que os demais precedentes e a jurisprudência cujos substratos (decisões, acórdãos etc.) não constam nesse enunciado não mereçam ser observados. Ao contrário, todo precedente vincula os Tribunais de alguma maneira, funcionando como forte ferramenta de persuasão, o que justifica o estudo da pesquisa de jurisprudência". Guardados os devidos contextos, até aqui a afirmação está correta, no sentido de que todo precedente, atendidos certos requisitos, vincula. Sempre falei que, em uma democracia, qualquer decisão de Tribunal Superior deve ser aplicada a partir da coerência e integridade — artigo 926 do CPC, dispositivo, aliás, produto de sugestão minha ao relator Paulo Teixeira. Mas uma decisão deve vincular pelo fato de ser precedente e não por ser uma norma geral e abstrata construída para o futuro. Que é o que se tem verificado. E mais: um precedente deve "vincular" desde que entendido qual é o sentido da vinculação. O que "vincula", afinal, não é "a decisão". O que vincula é a lei à qual o precedente se refere. Precedente não tem vida autônoma. Mas vejamos a sequência. "O Código não estabelece uma dicotomia entre precedentes vinculantes (que estariam no rol do art. 927) e precedentes persuasivos ou não vinculantes (que não constam no arrolamento do referido artigo). Todo precedente deve, necessariamente, ser observado e considerado dentro de seus limites hermenêuticos e relevância para o caso posterior." Ora, os que os autores não falam — e poucos na doutrina se insurgem contra isso — é que, se o código não estabelece, por qual razão o tribunal ou os Tribunais Superiores podem alterar o CPC dizendo o que ele não diz? Essa é uma questão antiga. Quais os limites da jurisdição? Pode o Tribunal legislar? Pode produzir teses e normas gerais para o futuro? E veja-se a consequência drástica dessa dicotomia na aplicação dos artigos 489 do CPC e 315 do CPP. Não é necessário dizer, aqui, a consequência dessa dicotomia na aplicação dos aludidos dispositivos. O STJ, aliás, aplica a dicotomia para redefinir o conteúdo do inciso VI do artigo 489, parágrafo 1º do CPC, problemática que tratei em artigo nesta ConJur. Os próprios articulistas reconhecem o que é lei e seu valor. Eis: "Esse novo modelo de precedentes foi criado de maneira expressa pelo legislador, objetivando uma maior previsibilidade no ordenamento jurídico". Sim, se o modelo foi criado pelo legislador, por qual razão essa criação pode ser alterada, sem controle de constitucionalidade, por quem não tem poderes de legislador? Aliás, o próprio STJ possui um precedente (seria qualificado ou persuasivo?), da relatoria do então ministro Teori, pelo qual, na Recl. 2.645, diz: não se admite que seja negada aplicação, pura e simplesmente, a preceito normativo "sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade" (e aqui me permito acrescentar as seis hipóteses de não aplicação de leis constantes na CHD). Ou seja, podemos verificar aqui uma contradição no texto dos articulistas: "Foi criado de maneira expressa pelo legislador". Mas e se o próprio texto dos articulistas fala — corretamente — que o código não distingue precedentes "vinculantes" de precedentes "persuasivos"? Em síntese, depois de dizer que o artigo 927 não trouxe dicotomia, a Revista acentua: "Esses precedentes, enunciados no art. 927 do CPC, têm três eficácias distintas: EFICÁCIA PERSUASIVA – sua finalidade é persuadir o magistrado, funcionando como uma diretriz para a decisão, tendo poder para influenciar a solução do caso concreto. EFICÁCIA VINCULANTE – a eficácia vinculante ocorre se houve similitude fática e jurídica ente o caso apresentado e o acórdão paradigma. EFICÁCIA OBSTATIVA – impede a interposição de novos recursos para discutir teses já pacificadas nos precedentes listados no art. 927 do CPC". De novo: se o legislador não estabeleceu dicotomia, por qual razão a jurisdição pode fazê-lo? Isso é o que Dworkin chama de grave defeito do positivismo: o criterialismo. Nossa prática e nossa dogmática são criterialistas. Criam seus próprios critérios ad hoc, num jogo de linguagem próprio, fora dos quais não se pode fazer sentido de uma discussão. Só que os critérios são arbitrários. Resta saber, ao fim e ao cabo, se a decisão (ou as decisões do STJ) que estabeleceram a dicotomia que o CPC não estabeleceu é, ela mesma, um precedente qualificado. Para que o próprio argumento não perca a coerência. Aliás, se há precedentes qualificados, persuasivos (o quanto são persuasivos?) e obstativos, não seria o caso de, a cada citação, colocar ao lado o que cada precedente é? E o precedente for persuasivo, por qual razão se escolheu esse e não outro? Não deveria haver uma justificativa? Por exemplo, o que dizer do precedente da Recl. 2.645? Dizer que precedentes qualificados são os que estão no CPC não resolve. Até porque, se o Código não fala que são precedentes qualificados, o mínimo que se espera é uma construção dogmática mais robusta sobre o significado dos precedentes qualificados. Criam-se os critérios, mas não se os explica. Trata-se — e a crítica aqui é acadêmica e lhana, como é de meu feitio — de um criterialismo (falo no sentido de Dworkin). Eis minha contribuição desta semana sobre o recorrente tema dos precedentes [1]. Numa palavra — e recorro uma vez mais a Donald Davidson e seu "princípio da caridade epistêmica" —, essa é uma discussão que os tribunais deveriam fazer com toda a comunidade jurídica. Mas não é o que se tem visto. [1] Além de dois livros, já muito escrevi sobre isso na ConJur: Precisamos falar sobre os precedentes à brasileira (acesse aqui), Ainda e sempre o ponto fulcral do direito hoje: o que é um precedente? (acesse aqui), A jurisdição constitucional e a "cultura de precedentes" (acesse aqui), A pergunta: o que é necessário para existir um precedente? (acesse aqui).
2023-07-27T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-27/senso-incomum-revista-questao-precedentes-qualificados-persuasivos
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Opinião
Pereira e Casseb: Recordando Gláucio Veiga em seu centenário
"Para Gláucio Veiga, crítico e irmão intelectual de Gilberto Freyre" (dedicatória em BURKE, Perter; PALLARES BURKE, Maria Lucia G. Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: Editora UNESP, 2009). "Muitos de minha geração (e dos segmentos de gerações onde me incluo) receberam dele, às vezes misturados à ironia e à irreverência, esse estímulo e essas sugestões que nos ajudaram a enfrentar a vida. (...) Aprendi com Gláucio que cultura é exigência, e só a exigência crescente mantém vivos os valores culturais" (SALDANHA, Nelson. Recordando Gláucio Veiga. Junho de 2010). "Gláucio Veiga: não é justo que marxismo e agora orteguismos sejam atuais obstáculos à nossa aproximação. Vai este com um abraço do companheiro de estudos e seu admirador – Gilberto Freyre"(dedicatória em Insurgências e Ressurgências Atuais) Neste ano, em 28 de julho de 2023, completa-se o centenário de nascimento do professor, pesquisador, autor e advogado Gláucio Veiga. Gláucio Veiga foi tudo menos um pensador monotemático, tendo enveredado por diversos campos do saber, desde o Direito até a História, Política, Filosofia, Sociologia, Economia e Antropologia; era um intelectual com formação humanística ampla e profunda. Não escreveu uma autobiografia, mas, em notas introdutórias a alguns textos, ele deixou pistas, que permitem entrever suas influências. Em Mais Explicação que Introdução, Veiga relata haver conhecido muito cedo os estudos de Tristão de Ataíde, de Proust, Max Scheler e termina com uma frase que identificamos como uma tensão importante em sua análise da história da Faculdade de Direito do Recife: "pude avaliar o movimento modernista e recebi a primeira ducha de água fria sobre meu fervente fanatismo por Tobias Barreto" [1]. Desde os 13 anos, Gláucio Veiga lia em alemão e iniciara sob pseudônimo seus artigos em jornais no matutino A Imprensa, em João Pessoa. Gláucio ainda colaboraria em A União, também em João Pessoa, e no Jornal do Commercio do Recife. Depois dos seis anos de périplo pelo país, em razão da permanência no Exército, Gláucio Veiga foi colaborador nos suplementos culturais do Diário de Pernambuco. Ele mesmo fez referência à presença no Liceu Paraibano de Cleanto de Paiva Leite [2], já com leituras marxistas, além de Celso Furtado [3] e do filho de Pimentel Gomes [4]. Nesses suplementos culturais, Gláucio Veiga assume uma posição de crítica a Gilberto Freyre, reconhecendo que todos em Pernambuco, de certa forma, deviam a Gilberto Freyre, mas ele, Veiga, despontaria dizendo "jamais subi a escadaria dos Apipucos", em clara referência à residência de Gilberto Freyre. Freyre, no trecho citado no início deste texto, pontuou bem duas influências sobre Gláucio Veiga: Marx, e seu principais continuadores [5], e Ortega Y Gasset [6]. Veiga se dedicou por mais de dez anos, com acompanhamento em diário, à leitura marxista. Preservou o tom crítico, até certo ponto irônico, e dialético em boa parte de seus escritos. As sínteses e antíteses eram presentes em vários textos, além de aproximações tão inusitadas quanto polêmicas, como quando viu identidades entre Frei Caneca e Dom Vital ou quando claramente criticou D. Pedro I e o Poder Moderador em referência implícita ou, até mesmo explícita, ao período de exceção democrática e ao governo militar, em 1975 [7]. Gláucio Veiga foi um autor produtivo e polissêmico. Escreveu sobre temas históricos, filosóficos, políticos, sociológicos, jurídicos, elaborou, coordenou e publicou pesquisas pioneiras de sociologia eleitoral em Pernambuco, direito tributário, direito econômico, ciência política, economia política, teoria do estado e processo penal [8]. Em todos, o tom crítico e, pelo menos, intuições originais. Ao contrário do que possa parecer, a sua erudição [9] e seu caráter polêmico não o afastaram do contato permanente com os mais jovens. Nelson Saldanha relembra que "ele jamais temeu ajudar os mais novos, nem trocar ideias" [10]. Testemunhamos esse perfil no final dos anos 1990, oportunidade em que um grupo de estudantes recebeu apoio de Gláucio Veiga nas ações de recuperação de uma Sala Museu e reorganização do periódico estudantil Estudantes-Caderno Acadêmico [11]. Gláucio Veiga tinha a compreensão de que era imprescindível para formação do professor o teste por meio de defesas de teses e de concursos públicos de provas e títulos [12]. Nessa linha, Veiga redigiu e defendeu várias teses e obteve sucessivos títulos. Tivemos acesso a diversas delas. Em 1952, ele obteve o título de doutor e livre-docente em teoria do estado pela Faculdade de Direito da Universidade do Recife com a tese "Estado, teologia política e existencialismo" [13]. Claramente Gláucio Veiga seguia a linha de uma teoria politizada do Estado, além de historicista, em oposição a uma formalista e puramente jurídica. Em 1954, participando de concurso para catedrático na Faculdade de Direito da USP, obtém o título de livre-docente em Economia Política com a tese "Revolução Keyneseana e Marxismo" [14]. Em 1955, desta vez de processo penal e na Faculdade de Direito do Recife, obtém o título de livre-docente em processo penal com a tese "Narcoanálise e processo penal" [15]. Nessa tese, entre as várias questões sobre os meios de obtenção da verdade, há páginas provocativas sobre verdade e processo, com muito referencial estrangeiro, inclusive alemão e soviético. Gláucio Veiga, já doutor e detentor de três títulos de livre-docência, realizou mais dois concursos: o de Catedrático de Ciência Política da Universidade do Recife, hoje UFPE, devendo-se frisar que ele já detinha a condição de catedrático interino dessa cadeira, e de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife. Para Ciência Política, preparou a tese "Da racionalidade da conduta religiosa como conduta política (uma interpretação do puritanismo)" [16]; para Economia Política apresentou a tese "Integração Econômica: Problemática histórica e atual" [17]. Palhares e Saldanha citam uma quarta livre-docência em Sociologia Educacional pelo Instituto de Educação de Pernambuco, além de técnico em administração pública e privada e organização pelo Dasp, também com defesa de tese [18]. Muitos desses livros tiveram forte repercussão local e mesmo nacional [19], pois Veiga, conhecido nacionalmente pelas publicações em periódicos e por ligações e contatos intelectuais variados que iam de Orlando de Carvalho em Minas Gerais a Miguel Reale em São Paulo, enviava exemplares para bibliotecas e amigos. Contudo, essa difusão foi muito aquém da que alcançaram as obras de Nelson Saldanha, Vamireh Chacon ou Clóvis Beviláqua, publicadas por editoras com melhor distribuição nacional, o que ainda hoje nos põe a missão de compreender e preservar a memória do professor Gláucio Veiga, de sua obra e de seu legado cultural.
2023-07-28T20:45-0300
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Direitos Fundamentais
Princípio da segurança jurídica e o papel do Poder Judiciário
Como já adiantado na nossa última coluna, o princípio da segurança jurídica e os correspondentes direitos fundamentais (segurança jurídica como um direito em sentido amplo e suas dimensões especiais) vincula diretamente todos os atores estatais, ainda que observadas certas diferenças, como, em primeira linha, aquelas vinculadas à natureza das respectivas funções, designadamente, legislativa, executiva e judiciária. Isso porque, como igualmente já referido no mesmo texto, os atos legislativos e administrativos — mas também as decisões judiciais —, por meio dos efeitos e consequências jurídicas concretas que operacionalizam, para além de impactarem direitos e garantias desde a sua vigência, igualmente criam expectativas legítimas para os titulares de posições jurídicas asseguradas por tais atos estatais, notadamente em vista da confiança (no Estado) de que o seu exercício será respeitado e assegurado hoje e no futuro [1]. Nesse contexto, calha invocar lição de Luiz Guilherme Marinoni e de Daniel Mitidiero, no sentido de que "o direito à segurança jurídica no processo constitui direito à certeza, à estabilidade, à confiabilidade e à efetividade das situações jurídicas processuais. Ainda, a segurança jurídica determina não só segurança no processo, mas também segurança pelo processo" [2]. Assim, em linhas gerais, o processo deve estar à serviço da segurança jurídica e da proteção dos direitos materiais — em especial, dos direitos e garantias fundamentais —, notadamente em vista dos efeitos concretos e impactos e restrições produzidos pelas decisões judiciais. Além disso, não apenas cabe aos órgãos judiciários o controle dos atos/omissões dos demais atores estatais que implicam ofensa às exigências da segurança jurídica, mas também a tarefa de também proteger os cidadãos em face de sua própria atuação, como se dá, por exemplo, na hipótese de mudança de entendimento jurisprudencial dominante ou mesmo suficiente para servir de base sólida para a proteção da confiança legítima nela depositada pelos cidadãos, em especial quando se trata de jurisprudência dos Tribunais Superiores. O modo pelos quais o próprio Poder Judiciário pode cumprir com os seus deveres de proteção no âmbito da segurança jurídica são diferenciados, existindo já uma série de diplomas legislativos dispondo sobre a matéria, ademais de todo um arcabouço jurisprudencial, com destaque aqui para decisões do STF e do STJ. No campo legislativo, calha iniciar invocando o disposto no artigo 2º da Lei nº 9.784/1999, de acordo com o qual, "A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão" (Incluído pela Lei nº 13.655/2018). Também em 1999 foram editadas as duas leis que, a despeito de importantíssimos desenvolvimentos posteriores no plano jurisprudencial, ainda regem o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade no Brasil, nomeadamente, as Leis nº 9.868/99 e nº 9.882/99, que regulam, respectivamente, a ADI e a ADPF. De acordo com o que dispõem, respectivamente, os artigos 27 e 11 das referidas leis que: "Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado." ... "Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado." A propósito, é de se salientar que em maio deste ano foi entregue em mãos ao deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, anteprojeto de lei elaborado por comissão de juristas presidida pelo ministro Gilmar Mendes do STF, comissão da qual temos a honra de atuar na relatoria, com o objetivo de sistematizar e atualizar todo o controle abstato de constitucionalidade das leis e atos normativos, inclusive incorporando a jurisprudência da nossa mais alta corte sobre a matéria, ademais da proposição de algumas inovações, que, contudo, aqui não cabe analisar. Na esfera do processo civil, a necessidade de atentar para as exigências da segurança jurídica igualmente foi objeto de atenção. Nesse sentido, chama a atenção que já no seu primeiro artigo, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC) solenemente dispõe que o processo civil é "ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na" Constituição Federal de 1988 (CF), valores e normas que, à evidência, incluem a segurança jurídica. Tanto isso é verdadeiro que o CPC, como amplamente conhecido, consagra o princípio (e direito) da segurança jurídica em diversos dos seus dispositivos, como é o caso do artigo 525, § 13, do artigo 535, § 6º (inclusive no sentido da prevalência ou favorecimento do princípio da segurança jurídica), do artigo 926, caput (a respeito da "estabilidade" da jurisprudência), bem como do artigo 927, § 3º (adequação dos efeitos de decisões judiciais na hipótese de alteração de jurisprudência dominante de tribunais superiores, em respeito ao interesse social e à segurança jurídica) e § 4º (princípios da princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia). Mais recentemente, destaca-se a reforma substancial levada a efeito pela Lei nº 13.655/2018 no texto da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), com destaque para o disposto no seu artigo 30, de acordo com o qual "as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas". Sem que se vá aqui adentrar (ainda) o exame das disposições legais colacionadas, o que se busca sublinhar é o quanto a proteção da segurança jurídica pelo Poder Judiciário, inclusive contra os seus próprios atos, tem sido assumida como um elemento central do papel do Poder Judiciário no contexto de um Estado Democrático de Direito. Nada obstante as exigências da segurança jurídica devam ser observadas e protegidas por todos os órgãos do Poder Judiciário, é certo que, não só, mas também nesse contexto, a necessidade de promover um ordenamento jurídico minimamente inteligível, estável e previsível está intimamente ligada tanto ao papel de Supremas Cortes como o STF e de outros tribunais aos quais incumbe a guarda da Constituição, quanto à função de cortes superiores como o nosso STJ [3], sempre atentando-se, convém aclarar, para as diferenças existentes entre as funções exercidas pelas referidas cortes na ordem jurídica, que aqui não serão exploradas. Além disso, se, como vimos, em razão do princípio da (e direito fundamental à) segurança jurídica, (1) a ordem jurídica deve ser inteligível, estável e previsível, e a (2) jurisprudência das Cortes Superiores é parte integrante e indissociável da ordem jurídica [4], tem-se que (3) sua jurisprudência também deve ser inteligível, estável e previsível. Não por outra razão, o legislador infraconstitucional, no já citado artigo 926 do CPC, expressamente determinou que "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". Ainda no que diz respeito à proteção da segurança jurídica pelo Poder Judiciário — no e pelo processo (e não apenas no processo civil, como visto) — tão importante quanto a manutenção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente, é a proteção dos direitos e garantias fundamentais — de todas as dimensões — em face de alterações de natureza legislativa, administrativa e mesmo por decisões judiciais que, além de atentarem contra manifestações especificas (por sua vez, consagradas na CF como direitos fundamentais) da segurança jurídica (mas que, por sua vez, servem à proteção de outros direitos), como é o caso do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, violem as exigências da proteção à confiança legítima, incluindo as expectativas de direito e um direito a um regime de transição proporcional. Mas isso e outros aspectos correlatos, como é o caso da proteção contra mudanças jurisprudenciais e da modulação dos efeitos das decisões do STF e do STJ, é algo que ainda teremos oportunidade de desenvolver. Por ora, o que se quis, em apertada síntese, demonstrar, é o quanto a proteção e promoção da segurança jurídica, nas suas mais variadas refrações, tornou-se uma das funções mais importantes do Poder Judiciário e, em especial, no caso brasileiro, do STF e do STJ. [1] Na doutrina, sobre a expectativa legítima de direitos, v. BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência: ascensão e queda de um regime de erros e privilégios. Revista de Direito da Procuradoria -Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 58, 2004, p. 145. [2] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, in: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, Curso de direito constitucional, 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 2023, p. 963. [3] MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas, 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2022. [4] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores. 6ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 294.)
2023-07-28T08:00-0300
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Paradoxo da Corte
Valor da causa na ação anulatória da sentença arbitral
O artigo 33 da Lei nº 9.307/96, como é sabido, autoriza a parte que sofreu gravame submeter ao controle judicial a sentença arbitral eivada de nulidade. Os vícios que ensejam o ajuizamento da ação anulatória (rectius: ação declaratória de nulidade) estão previstos no precedente artigo 32. A jurisprudência de nossos tribunais tem uma interpretação mais liberal à regra do artigo 32, sobretudo quando o fundamento for ofensa às garantias do devido processo legal, como, e. g., infere-se de importante precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.660.963/SP, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual exarado o entendimento de que: "A ação anulatória de sentença arbitral há de estar fundada, necessariamente, em uma das específicas hipóteses contidas no artigo 32 da Lei 9.307/96, ainda que a elas seja possível conferir uma interpretação razoavelmente aberta, com o propósito de preservar, em todos os casos, a ordem pública e o devido processo legal e substancial, inafastáveis do controle judicial" (destacamos). Seguindo os requisitos contemplados no artigo 319 do Código de Processo Civil, para a elaboração da petição inicial da ação anulatória, observa-se que o respectivo inciso V exige a atribuição ao valor da causa. Tal valor deverá ser certo, ainda que a ação anulatória de sentença arbitral não tenha conteúdo econômico prontamente estimável (artigo 291). Em determinadas situações, a fixação do valor da causa pode apresentar alguma dificuldade, como por exemplo na hipótese em que o autor da arbitragem objetiva a anulação de atos societários (ação de natureza constitutiva negativa). Neste caso, não há propriamente um "proveito" de cunho financeiro a nortear a atribuição do valor em jogo, cabendo ao requerente da ação anulatória estimar uma soma que, à luz dos artigos 292, parágrafo 3º, e 293 do Código de Processo Civil, poderá ser corrigido respectivamente pelo juiz ou impugnado pela parte contrária. Tenha-se presente, outrossim, que, além da repercussão no terreno fiscal para fins de recolhimento de custas processuais, inúmeras sanções encontram-se atreladas ao valor da causa, como, por ilustração, as multas contempladas nos artigos 77, parágrafo 2º, 81 e 334, parágrafo 8º, do Código de Processo Civil. Além deste aspecto, a teor do artigo 85, parágrafo 2º, o valor da causa constitui, entre outros, critério para a fixação de honorários advocatícios de sucumbência. O supra referido artigo 292, reproduzindo o artigo 259 do diploma processual revogado, estabelece os critérios legais para aferir-se o valor da demanda. Nesse particular, três pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, o inciso II do artigo 292 determina que, se a ação tiver por escopo a modificação, resolução, resilição ou rescisão de ato jurídico, o valor da causa será equivalente ao da parcela controvertida. Ademais, nas ações que visam à declaração de nulidade da sentença arbitral condenatória, o valor da condenação deverá ser atribuído à causa. Cumpre-me esclarecer, a propósito, que o conceito de "proveito econômico" é paradoxal. Em primeiro lugar, porque não há dúvida, por exemplo, de que o autor da arbitragem pretende uma indenização de R$ 1 milhão e o pedido é julgado procedente, o réu, que experimentou derrota, deverá atribuir à ação anulatória da sentença arbitral o mesmo montante da condenação que lhe foi imposta. No entanto, se, nesta idêntica situação, a pretensão condenatória é reputada improcedente, o autor do processo arbitral, ao ajuizar a anulatória deverá igualmente atribuir-lhe o valor de R$ 1 milhão, ainda que não lhe tenha sido imposta qualquer condenação. Seja como for, nesse sentido, a 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por ocasião do julgamento Agravo de Instrumento nº 0174530-03.2011.8.26.0000, decidiu que o valor indicado na petição inicial da ação anulatória de sentença arbitral deve ser simétrico ao "proveito econômico" pretendido pela demandante. Em senso análogo, a 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça bandeirante, ao julgar o recurso de Agravo de Instrumento nº 2065870-36.2015.8.26.0000, teve oportunidade de ponderar e decidir o seguinte: "Segundo os argumentos recursais, o incidente de impugnação ao valor da causa estaria atrelado a uma ação anulatória de sentença arbitral que recebera como valor, eleito pela autora, M. M., o valor histórico de R$ 454.240,87. Por não concordarem com tal expressão numérica para fins de valor da causa, as corrés, dentre elas, a ora agravante, manejaram seus respectivos incidentes de impugnação ao valor da causa, postulando-se a majoração do valor originário para R$ 27.415.987,12, sobrevindo, na origem, o resultado de acolhimento de ambas as impugnações, eleito como critério relevante, o necessário respeito ao efetivo proveito econômico perseguido... Necessário sim, respeitar, no caso concreto, o quanto já fora antes decidido na anterior impugnação apresentada pela outra corré, prevalecendo, como deveria mesmo ser, o critério do proveito econômico perseguido na lide, evitando-se, demais disso, decisões conflitantes diante do aludido erro material constatado e até o presente momento não sanado, por isso, ainda vivo o interesse recursal em sede de agravo de instrumento. Altera-se a decisão guerreada, portanto, passando-se ao valor de R$ 27.415.987,12 como sendo o valor da causa, cabendo ao juízo de origem deliberar a respeito da concessão de prazo à agravada para recolher eventual diferença das custas processuais, caso ainda não o tenha feito diante do acolhimento da impugnação apresentada pela corré S.S.". Instada a examinar a questão relativa à atribuição do valor da causa na ação anulatória de sentença arbitral, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.704.551/SP, da relatoria de ministra Nancy Andrighi, secundou entendimento trilhando a seguinte linha de raciocínio: "O propósito recursal consiste em determinar qual deve ser o valor da causa em hipóteses de ação declaratória de nulidade de sentença arbitral, ajuizada com fundamento no artigo 33 da Lei 9.307/96. A legislação brasileira sobre arbitragem estabelece uma precedência temporal ao procedimento arbitral, permitindo que seja franqueado o acesso ao Poder Judiciário somente após a edição de sentença arbitral. A jurisprudência desta Corte superior, há algum tempo, está orientada no sentido de afirmar que 'o valor da causa, inclusive nas ações declaratórias, deve corresponder, em princípio, ao do seu conteúdo econômico, considerado como tal o valor do benefício econômico que a autora pretende obter com a demanda' (REsp nº 642.488/DF, 1ª Turma, DJ 28/9/2006, pág. 193). Na hipótese dos autos, não há óbice jurídico algum para que a condenação contida na sentença arbitral seja considerada como o parâmetro para a definição do valor da causa". Ademais, analisando a questão sob a perspectiva das ações de natureza declaratória, a exemplo da ação declaratória de nulidade da sentença arbitral, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.630.526/MG, com voto condutor do ministro Antonio Carlos Ferreira, assentou que: "Estando os fatos delineados no acórdão recorrido e sendo a questão eminentemente de direito, o recurso não encontra óbice nas Súmulas nº 5 e 7 do STJ. A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que o valor da causa, mesmo nas ações declaratórias, deve corresponder ao proveito econômico almejado pela parte. No caso, ao requerer a declaração de nulidade da sentença arbitral, pretende a recorrente anular o próprio título executivo, de forma que o valor da condenação contido na sentença deve ser o parâmetro para definição do valor da causa na ação declaratória". Saliente-se, por outro lado, que, a despeito dos inúmeros critérios determinantes da fixação do valor da causa (artigo 292), poderá haver incorreção deste requisito da petição inicial. Diante desta situação, consoante o disposto no parágrafo 3º do mesmo artigo 292, o juiz poderá corrigir "de ofício e por arbitramento" o valor atribuído à causa, "quando verificar que não corresponde ao conteúdo patrimonial em discussão ou ao proveito econômico perseguido pelo autor". O réu, todavia, como acima já frisado, continua podendo impugnar o valor dado à causa. Deve fazê-lo na própria contestação, "sob pena de preclusão" (artigo 293 do Código de Processo Civil).
2023-07-28T08:00-0300
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Observatório Constitucional
Doutrina brasileira do HC e origem do mandado de segurança
A origem do mandado de segurança tem direta relação com a chamada doutrina brasileira do Habeas Corpus, desenvolvida a partir de julgados do Supremo Tribunal Federal. Na ausência normativa de remédios constitucionais mais específicos, a corte procurou moldar o writ de modo a conceder proteção judicial efetiva a hipóteses que não estavam abarcadas em sua tradicional formatação, pautada na liberdade de locomoção [1]. A Constituição de 1891, primeiro texto constitucional a prever o Habeas Corpus entre nós, indicava que este seria concedido sempre que o indivíduo sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (artigo 72, § 22). A redação do dispositivo não fazia menção expressa ao direito de ir e vir, já a indicar a influência de Rui Barbosa, que defendia uma maior abrangência do seu escopo [2]. Esse entendimento, aliado ao conturbado contexto histórico do país, bem como à crescente atuação do STF, que se firmava, então, como importante instituição republicana, foi a base para a consolidação da doutrina brasileira do Habeas Corpus. Especialmente nos primeiros anos da República, marcada por eventos como a Revolta da Armada e a Revolução Federalista, e o estado de sítio consequentemente decretado, a Suprema Corte foi o berço da impetração de uma série de pedidos de Rui Barbosa, que se utilizava do instrumento para a tutela de diversas espécies de direitos. Mencione-se, nesse sentido, a utilização do Habeas Corpus para garantia da liberdade de profissão, em demanda proposta por motorista profissional cuja carteira de habilitação fora apreendida por autoridade policial incompetente [3]. Ainda, para assegurar liberdade de manifestação, em writ impetrado por Rui Barbosa em 1914, na qualidade de senador e de paciente, contra decisão do jornal que recusara publicar discurso por ele proferido contra o governo federal [4]; e, também, para defesa do direito de reunião e da livre manifestação de pensamento, em seu formato preventivo, para que Rui Barbosa e seus correligionários pudessem se reunir em comícios [5]. A compreensão de que seria possível recorrer ao Habeas Corpus para proteger uma série de direitos outros que não apenas a liberdade de locomoção não era amplamente aceita no cenário jurídico nacional. A doutrina encontrava resistência inclusive dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, a exemplo de interpretação restritiva realizada pelo ministro Godofredo Cunha. Mesmo assim, acabou por prevalecer na jurisprudência a visão do ministro Pedro Lessa [6], que tinha entendimento semelhante ao de Rui Barbosa, em votos que igualmente semearam as bases do que viria a ser o mandado de segurança. Em 1926, entretanto, reforma constitucional restringiu o âmbito de proteção do Habeas Corpus, enfraquecendo diretamente a doutrina até então praticada e deixando diversos direitos sem remédio constitucional cabível, na hipótese de sua eventual violação [7]. Essa limitação foi resultado de ampla movimentação política — já na campanha eleitoral, Arthur Bernardes indicava que um de seus objetivos era a contenção do instituto a suas origens clássicas. Eleito presidente da República, dirigiu-se ao Congresso Nacional para enfatizar a importância de sua proposta, ao criticar que a apreciação do writ era motivo de excesso de trabalho da corte [8]. Na verdade, a mudança tinha como principal objetivo frear a atuação do Supremo Tribunal Federal que, por meio da doutrina brasileira do Habeas Corpus, acabou por ampliar sua competência em julgados considerados polêmicos. Os próprios congressistas admitiam que o retorno a sua concepção história deveria se dar em razão de supostos abusos. A corte estaria se desviando de sua função precípua ao resolver, por procedimento sumário, matérias que deveriam ser tratadas por ação regular. Esse contexto conduziu necessariamente à discussão acerca da criação de novos remédios constitucionais que focassem na preservação de outras liberdades e direitos, que não apenas o de locomoção. As primeiras luzes sobre a matéria haviam sido lançadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, Alberto Tôrres e Edmundo Muniz Barreto. Aquele, em 1914 sugerira um "mandado de garantia" para a tutela de direitos "lesados por atos do Poder Público, ou de particulares, para os quais não haja outro remédio especial" [9]. Muniz Barreto, por sua vez, defendera a adoção de remédio que complementasse o writ do Habeas Corpus, propondo algo parecido ao recurso de amparo mexicano. Enfatizava que o Poder Judiciário deveria possuir meios coercitivos prontos para dar resposta a quem estivesse na "iminência ou efetividade de ato agressivo ao direito", mas que assegurasse, ao mesmo tempo, o direito de defesa contra quem é impetrada a ação [10]. Oito anos se passaram entre a reforma de 1926 até a inserção do mandado de segurança na Constituição de 1934, pondo fim a verdadeiro vácuo protetivo. Assim, nos termos do artigo 113, 33, da Constituição de 1934, restou consagrado, ao lado do Habeas Corpus e com o mesmo processo deste, a previsão do mandado de segurança para proteção de "direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade". A exigência de "direito certo e incontestável" já era mencionada em decisões do STF [11]. Em seus votos, ministro Pedro Lessa indicava a necessidade de comprovação da liquidez do direito para a concessão de Habeas Corpus, anotando que ao juiz "incumbe verificar se o direito que o paciente quer exercer, é incontestável, líquido, não é objeto de controvérsia, não está sujeito a um litígio" [12] Além disso, da doutrina brasileira do habeas corpus também adveio outro aspecto procedimental do mandado de segurança, que é a impossibilidade de ser impetrado contra lei em tese. Dois anos depois da promulgação da Constituição de 1934, o mandado de segurança foi regulamentado pela Lei 191, de 16 de janeiro de 1936. Já a Carta de 1937 não trouxe, em sua redação, a previsão do mandado de segurança. Por meio do Decreto-lei 6, de 16 de novembro de 1937, porém, restou determinado que o mandado de segurança continuava em vigor, nos termos da Lei 191/36 — exceto a partir de 10 de novembro de 1937, em relação aos atos do presidente da República e dos ministros de Estado, governadores e interventores. O Código de Processo Civil promulgado em 1939 previu o mandado de segurança em moldes semelhantes ao estabelecido na Lei 191/36, em dispositivos que acabaram sofrendo alterações pela Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951. A Lei 1.533/51, por sua vez, foi reformada com objetivo de restringir a concessão de liminares. Nesse período, Aliomar Baleeiro relatou que os abusos dos tribunais ao conceder mandados de segurança acabaram por gerar a limitação do instituto. O ministro narrou, então, situação em que um juiz da Fazenda Pública chegou a conceder cerca de 700 mandados de segurança para liberação de veículos importados que dependiam de licença prévia, todos concedidos em decisões idênticas e previamente preparadas. Outrossim, enfatizou a quantidade de ações em que o impetrante nitidamente objetivava apenas a concessão de medida cautelar, em processos que, após apreciada a liminar, ficavam anos a espera de julgamento. Assim, advertiu: "Num país, como o nosso, em que de ânimo leve, se passa vertiginosamente de zero ao infinito, esquece-se a lição da História: o exagero, às vezes, pode fazer o retrocesso do infinito a zero. O golpe de morte vibrado pelo presidente Bernardes, em tempos relativamente normais e por emenda constitucional, à doutrina brasileira do habeas corpus deve servir de advertência a quantos, sobretudo os juízes, possam concorrer para a desvirtuação do instrumento judicial magnífico, que é o nosso mandado de segurança" [13]. Com isso, Baleeiro lançou alerta sobre a banalização de remédio constitucional essencial, de modo a desvirtuar sua importância e a minar sua credibilidade. Em resposta ao quadro de aparentes abusos na concessão de mandados de segurança, defendeu sua limitação às hipóteses de violação da Constituição ou de lei federal [14]. Ainda sobre a importância do estudo da evolução histórica desses institutos, Gilmar Ferreira Mendes ressalta que a doutrina brasileira do Habeas Corpus e o mandado de segurança tiveram influência direta no rito da representação interventiva. Isso porque a Constituição de 1934 também criou a "declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal", que nada mais seria do que a antecessora da representação interventiva, a ser confiada ao procurador­‑geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no artigo 7º, I, a a h, deste texto constitucional [15]. Após curta duração do diploma de 1934 e do texto de 1937, a Constituição de 1946 previu a representação interventiva em seu artigo 8º, parágrafo único. Essa restou regulamentado pela Lei 2.271, de 1954, na qual foi estabelecido: "Aplica-se ao Supremo Tribunal Federal o rito do processo do mandado de segurança, de cuja decisão caberão embargos caso não haja unanimidade" (artigo 4º). Isso permitiu que o Supremo Tribunal Federal pudesse dar maior amplitude à representação interventiva, utilizando-se, inclusive, por exemplo, da possibilidade de concessão de medida cautelar para suspensão de ato impugnado — o que geraria novas reações congressistas [16]. Atualmente, a Constituição Federal dispõe que será concedido "mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por 'habeas-corpus' ou 'habeas-data', quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (artigo 5º, LXIX), sendo admitido, ainda, o mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX). Em produção acadêmica sobre a relevância do Habeas Corpus ao desenvolvimento do processo constitucional brasileiro, Gilmar Mendes aponta que a atual jurisprudência do STF permite certas flexibilizações dos critérios de cabimento do writ, em prol da efetiva proteção dos direitos previstos na Constituição [17]. Nesse aspecto, indica Habeas Corpus coletivo em favor de mães de crianças e grávidas que estivessem preventivamente presas no país, concedido pela 2ª Turma do STF em 20 de fevereiro de 2018 para que a prisão preventiva dessas mulheres fosse convertida em prisão domiciliar [18]. Acatou-se, aí, o uso do Habeas Corpus — uma ação usualmente individual —, para a tutela de direitos coletivos, em aproximação ao já previsto para o mandado de segurança. De fato, a configuração de remédios constitucionais que temos hoje em dia à disposição, notadamente do mandado de segurança, evidenciam o valor da influência da doutrina brasileira do Habeas Corpus, bem como o constante caráter evolutivo de meios para melhor tutelar direitos e garantias fundamentais. O estudo de suas origens é essencial para efetiva compreensão do nosso atual quadro jurídico, e o que dele é possível extrair ou aprimorar. [1] Sobre evolução histórica do mandado de segurança, conferir: MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2019. WALD, Arnoldo. A evolução legislativa do mandado de segurança. Revista de direito da Procuradoria Geral. Governo do Estado da Guanabara, n. 14, p. 85-101, 1965. [2] BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares. Obras completas de Rui Barbosa, XVIII. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981, p. 94. [3] HORBACH, Carlos Bastide. Memória jurisprudencial. Ministro Pedro Lessa. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2007. [4] STF. HC 3.536, Pleno, rel. min. Oliveira Ribeiro, j. 5.6.1914. [5] STF. HC 4.781, Pleno, rel. min. Evandro Lins, j. 5.4.1919. [6] Leda Boechat, por sua vez, atribui ao ministro Enéas Galvão a base jurisprudencial da doutrina brasileira do habeas corpus. (RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, v. 3, p. 33). [7] Cf. art. 72, § 22, em redação conferida pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926: "Dar-se-há o habeas-corpus sempre que alguem soffrer ou se achar em imminente perido de soffer violencia por meio de prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção". [8] Mensagem apresentada pelo Presidente Arthur Bernardes ao Congresso Nacional na abertura da Primeira Sessão da Décima Segunda Legislatura. Rio de Janeiro, 1924. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/arthur-bernardes/mensagens-ao-congresso/mensagem-ao-congresso-nacional-na-abertura-da-primeira-sessao-da-decima-segunda-legislatura-1924. [9] BALEEIRO, Alionar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 78. [10] BARRETO, Edmundo Muniz. Mandado de segurança. Archivo Judiciario, suplemento, v. 31, p. 35-40, jul./set., 1934. [11] HORBACH, Carlos Bastide. Memória jurisprudencial. Ministro Pedro Lessa. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2007. [12] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Livraria Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1915, p. 285. [13] BALEEIRO, Alionar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 82. [14] BALEEIRO, Alionar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 82. [15] MENDES, Gilmar Ferreira. Ações constitucionais: O habeas corpus como pedra fundamental do processo constitucional brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019 [16] Daí foi iniciada uma série de discussões sobre a pertinência de concessão de medida cautelar, com base no rito do mandado de segurança, em sede de representação interventiva. Acabou sendo adotada, apesar de alguma resistência, a possibilidade de concessão de medida liminar em representação interventiva para suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, em consonância com a orientação consagrada na lei do mandado de segurança. Após muitas polêmicas e discussões políticas, a Lei 4.337/64, que regulou a declaração de inconstitucionalidade, não fez menção à aplicação subsidiária do rito da lei de mandado de segurança, muito menos previu a concessão de medida cautelar. (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Ações constitucionais: O habeas corpus como pedra fundamental do processo constitucional brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019). [17] MENDES, Gilmar Ferreira. Ações constitucionais: O habeas corpus como pedra fundamental do processo constitucional brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. [18] STF. HC 143.641, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julg. em 20.2.2018.
2023-07-29T08:00-0300
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Opinião
Ana Luiza Liz: IA, Poder Judiciário e os executivos fiscais
A realidade contemporânea indica a existência de significativos níveis de congestionamento processual no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Esta conjuntura, por sua vez, reflete na morosidade do andamento dos processos e, por consequência, na adequada e efetiva prestação jurisdicional. O Conselho Nacional de Justiça e os tribunais em todo país não desconhecem a situação, motivo pelo qual estão continuamente em busca de soluções e alternativas para aperfeiçoar a prestação da justiça e minimizar os prejuízos. Esta circunstância, de igual modo, desperta a atenção do pensamento acadêmico e doutrinário, que reforçam a necessidade de ampliação de discussões jurídico-científicas aptas encontrar alternativas que busquem soluções aos problemas. Em paralelo a isso, o avanço tecnológico é realidade presente, de modo que a era digital protagoniza uma constante reestruturação das relações pessoais, sociais, econômicas, políticas e culturais, as quais, por sua vez, necessariamente impactam o Direito. Quer dizer, diante do fenômeno tecnológico, a ciência jurídica, inclusive por decorrência do seu elemento social, deve acompanhar as transformações da sociedade. A inteligência artificial, inserida neste contexto, está cada vez mais presente na vida das pessoas, ainda que de forma imperceptível para muitos, que ainda pensam tratar-se de "coisa do futuro". Significa dizer, milhares de pessoas que se utilizam de ferramentas como identificação facial em seus celulares, ou aplicativos de rotas com previsão de chegada, estão rotineiramente se utilizando de inteligência artificial, ainda que não façam a devida correlação entre o nome e a funcionalidade. Unificando as temáticas, chega-se na relevância do uso de mecanismos tecnológicos, e, nomeadamente, de inteligência artificial, no âmbito do Poder Judiciário. De forma mais específica, alcança-se a necessidade de estudo sobre a utilização de inteligência artificial para o deslinde dos processos de execução fiscal, especialmente porque visam o adimplemento de obrigações que não foram devidamente cumpridas na esfera administrativa, repetindo tentativas frustradas e buscando a satisfação de créditos com menor probabilidade de recuperação. No Brasil já há diversas ferramentas de inteligência artificial implementadas nos órgãos públicos e, de forma específica, no Poder Judiciário, o que ocorre desde meados de 2017, para auxiliar em tarefas específicas e otimizar operações. Esta realidade confirma a importância da modernização do Judiciário, que deve superar o conceito primário de que eficiência e efetividade estão exclusivamente atreladas à criação de cargos e espaços físicos, passando a racionalizar os trabalhos com alocação de servidores nas áreas mais carentes e capacitação de pessoal, para atingir máxima eficiência operacional e automatização do processo, quando a tecnologia atua como ferramenta indispensável [1]. O Supremo Tribunal Federal já conta com três ferramentas de inteligência artificial: o Victor (nome em homenagem ao ministro Victor Nunes Leal, principal responsável pela sistematização da jurisprudência do STF em súmula), que foi implementado no ano de 2018, com o objetivo de aumentar a eficiência e a velocidade de avaliação judicial dos processos que chegam ao tribunal, a partir da análise de temas de repercussão geral na triagem dos recursos; o Rafa 2030 (que significa Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030), implementado em 2022, com objetivo de classificar as ações de acordo com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas; e a VitórIA, implementada em no corrente ano de 2023, que realiza o agrupamento dos processos por similaridade de temas, mas que tem capacidade para atuar em outras etapas da tramitação processual. A crescente integração da inteligência artificial está em aprimorar o acesso à justiça, acelerar a prestação jurisdicional, dar maior eficiência ao cumprimento das ações e desafogar o sistema processual, privilegiando a desburocratização e a celeridade, até porque a morosidade processual é tida como mais marcante elemento de ineficiência do Judiciário [2]. Assim, pelo eixo do princípio da eficiência, a tecnologia desempenha papel determinante nos avanços da gestão pública [3]. Nesse contexto, a temática do uso de inteligência artificial nos processos judiciais de execução fiscal é de extrema relevância e atualidade, mormente porque no relatório Justiça em Números de 2022, organizado pelo CNJ referente ao ano-base 2021 [4], foi identificado que de todos os processos que tramitam no Poder Judiciário brasileiro, 53,3% referem-se à fase de execução. Quer dizer, mais da metade de todos os processos que tramitam, são processos executivos, o que inclui execuções judiciais criminais, não criminais, execuções de títulos extrajudiciais não fiscais, e execuções fiscais. Ainda outro ponto importante de consideração diz com o fato de que são ajuizados quase duas vezes mais processos de conhecimento, em comparação com os de execução, mas no acervo, a quantidade de processos executivos é 38,4% maior. Ademais, tem-se que de todos os processos em fase de execução, 65% correspondem aos executivos fiscais, o que confirma que são os principais responsáveis pela elevada taxa de congestionamento do Poder Judiciário, representando 35% do total de processos pendentes e um congestionamento de 90%. Por estes dados, resta demonstrada a justificação para o uso de mecanismos de inteligência artificial, especialmente no âmbito dos executivos fiscais, a fim de aperfeiçoar e acelerar, dentro do possível e dos limites legais e constitucionais, a prestação jurisdicional. Em termos práticos, emblemática é a experiência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que desenvolveu ferramenta de inteligência artificial a ser aplicada na 12ª Vara da Fazenda Pública da Cidade, para os executivos fiscais municipais, escolhidos pelo alto impacto e por representarem casos simples e repetitivos. O sistema tinha por propósito, primeiro, analisar processos com citação positiva, mas sem pagamento ou indicação de bens à penhora, quando a IA deveria buscar no banco de dados do município o valor atualizado da dívida e identificar a natureza do tributo, para então tentar a penhora no sistema BacenJud, aguardar o prazo e ler o resultado: em sendo penhorada a totalidade da dívida, deveria proceder à transferência do valor para a conta judicial e desbloquear eventual excedente; em sendo negativa ou parcial a penhora de valores, deveria seguir na tentativa de constrição de veículos automotores via RenaJud e/ou consulta de outros bens via InfoJud, informando, na sequência, a existência, ou não, de bens passíveis de penhora. Em cada etapa, ressalta-se, os servidores e magistrados realizaram uma validação, a fim de cumprir a confirmação humana da atividade realizada pela máquina, inclusive para verificar a acurácia e a utilidade do sistema [5]. Os resultados do teste impressionam. Em três dias, foram analisados 6.619 processos, com média de 25 segundos para cada um, e com precisão de 99,5%, o que significa que dos mais de seis mil, apenas três incidiram em incongruências. A realidade demonstra que, se a mesma atividade fosse desenvolvida por um servidor, teria demorado dois anos e cinco meses — com dedicação exclusiva, o que, como é sabido, não é a realidade, pois cada servidor desenvolve diversas atividades — com média de 35 minutos para cada processo, e com cerca de 15% de equívocos. Quer dizer, a ferramenta foi 1400% mais rápida, e com uma acurácia muito superior. Outro ponto que alarma diz com a economia de R$ 11.597.923,42, considerados o tempo e o custo médio de cada processo, bem assim com a arrecadação de R$ 2,1 milhões de custas e taxa judiciária para o TJ-RJ, e de R$ 32 milhões para os cofres do município do Rio de Janeiro. O então presidente do TJ-RJ, inclusive, destacou que o uso da tecnologia pelo Direito representa, na atualidade, o instrumento mais eficaz de agilização na distribuição da Justiça, sendo que, nos executivos fiscais, atua como uma verdadeira revolução na gestão pública, seja pelo adequado funcionamento do processo de cobrança, seja pela criação de uma cultura fiscal [6]. Os resultados são fantásticos e o sucesso é indiscutível, porém, é preciso ter cautela. E isso especialmente no que diz com o possível poder decisório da inteligência artificial. O entusiasmo com celeridade, avanços e conquistas não podem tirar a atenção dos questionamentos sobre a constitucionalidade das ações, as quais devem respeitar a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a paridade de armas, o juiz natural, dentre outros preceitos. É por isso que em muitos casos instaura-se uma espécie de tensão dialética [7] entre o aprimoramento do acesso à justiça e da prestação jurisdicional, e os direitos do contribuinte. Por isso, questiona-se: no exemplo prático da ferramenta desenvolvida e utilizada nos processos executivos fiscais municipais do Rio de Janeiro, a inteligência artificial decide ou indica caminhos? Como visto, o sistema é voltado para procedimentos de investigação e busca de bens e de valores dos executados. Preliminarmente, é possível defender a ausência de cognição em torno dos elementos da CDA e dos atos que tentam concretizar a cobrança. Em contrapartida, mesmo não sendo decisão em sentido estrito, é inegável que, ao menos até certo ponto, carregam conteúdo material com carga decisória, especialmente porque interferem na esfera patrimonial do executado. De mais a mais, há que se tomar cuidado com os riscos que decorrem do uso propriamente dito das tecnologias. Isso porque, para realizar suas atividades, as ferramentas precisam ser alimentadas com dados que, se não forem corretamente administrados, podem estar sob risco em termos de vigilância estatal e abuso e uso indevido pelo setor privado. Cabe ao Direito, então, uma proteção ampla em termos sociopolíticos e jurídicos [8]. Nesse contexto, um dos grandes desafios está em identificar os riscos e planejar ações eficazes para evitar — ou minimizar ao máximo — as consequências negativas. Conclui-se ser indiscutível que o uso de máquinas como substituto da mão-de-obra humana confere celeridade e acurácia na realização de atividades repetitivas e de pouca complexidade, o que incentiva a utilização de ferramentas de inteligência artificial no Poder Judiciário. É essencial, porém, uma atenção redobrada quanto às ações que serão realizadas pelas ferramentas, bem assim sobre a necessária conferência humana quanto aos atos por elas executados, a fim de que sejam garantidos e tutelados os fundamentos constitucionais e os direitos fundamentais dos jurisdicionados. Retomando à experiência do TJ-RJ, tem-se que não há maiores objeções e riscos de violação a direitos fundamentais, pois em cada etapa de ações da ferramenta, os servidores procedem à sua validação. Estas constatações, em contrapartida, não excluem a urgente necessidade de uma forte e completa sistematização da temática. E isso especialmente porque é preciso conferir segurança jurídica e porque a legislação vigente não dá conta, de forma satisfatória, das demandas que cada vez mais vão surgir no contexto tecnológico, inclusive em razão dos bem-sucedidos resultados. Por fim, destaca-se a primordial consciência de que não se trata de objetivar, ou defender, a utilização de inteligência artificial em toda e qualquer demanda judicial, das simples às complexas, das repetitivas às inovadoras. Trata-se, sim, de sua incidência no plano de demandas e de atividades repetitivas e com baixa complexidade, capazes de gerar significativos impactos em termos de volume e tempo, sempre com o destaque de que as decisões judiciais derivadas das ações das máquinas devem passar pela supervisão do magistrado competente. Referências BASTOS, Verônica Issi Simões; BEVILACQUA, Lucas. Administração pública do século XXI: a execução fiscal, a tecnologia e os novos caminhos trilhados no aprimoramento da prestação dos serviços públicos. In: CALIENDO, Paulo; LIETZ, Bruna (Coords.). Direito Tributário e novas tecnologias. Porto Alegre: Fi, p. 25-49, 2021. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2022. Brasília, 2022. HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do Direito Digital: transformação digital, desafios para o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021. PORTO, Fábio Ribeiro. O impacto da utilização da inteligência artificial no executivo fiscal. Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Direito em Movimento, v. 17, nº 1, p. 142-199. Rio de Janeiro, 1º sem. 2019. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. TJRJ adota modelo inovador nas cobranças de tributos municipais. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/5771753#:~:text=Parece%20coisa%20de%20fic%C3%A7%C3%A3o%20cient%C3%ADfica,para%20o%20Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a.>. Acesso em 25 jul. 2023. [1] PORTO, Fábio Ribeiro. O impacto da utilização da inteligência artificial no executivo fiscal. Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Direito em Movimento, v. 17, nº 1, p. 142-199. Rio de Janeiro, 1º sem. 2019, p. 154. [2] PORTO, Fábio Ribeiro. O impacto da utilização da inteligência artificial no executivo fiscal. Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Direito em Movimento, v. 17, nº 1, p. 142-199. Rio de Janeiro, 1º sem. 2019, p. 155. [3] BASTOS, Verônica Issi Simões; BEVILACQUA, Lucas. Administração pública do século XXI: a execução fiscal, a tecnologia e os novos caminhos trilhados no aprimoramento da prestação dos serviços públicos. In: CALIENDO, Paulo; LIETZ, Bruna (Coords.). Direito Tributário e novas tecnologias. Porto Alegre: Fi, p. 25-49, 2021, p. 26. [4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2022. Brasília, 2022, p. 164. [5] PORTO, Fábio Ribeiro. O impacto da utilização da inteligência artificial no executivo fiscal. Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Direito em Movimento, v. 17, nº 1, p. 142-199. Rio de Janeiro, 1º sem. 2019, p. 186. [6] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. TJRJ adota modelo inovador nas cobranças de tributos municipais. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/5771753#:~:text=Parece%20coisa%20de%20fic%C3%A7%C3%A3o%20cient%C3%ADfica,para%20o%20Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a.>. Acesso em 25 jul. 2023. [7] PORTO, Fábio Ribeiro. O impacto da utilização da inteligência artificial no executivo fiscal. Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Direito em Movimento, v. 17, nº 1, p. 142-199. Rio de Janeiro, 1º sem. 2019, p. 178-179. [8] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do Direito Digital: transformação digital, desafios para o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 6.
2023-07-31T20:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-31/ana-luiza-liz-ia-poder-judiciario-executivos-fiscais
academia
Opinião
Mello e Camacho: Patentes e direitos autorais no contexto da IA
Com o avanço das tecnologias emergentes, o cenário global vem vivenciando uma onda de debates éticos e jurídicos, com a finalidade de regular e de conter as externalidades negativas geradas pelo uso indiscriminado desses avanços vislumbrados, especialmente, nas últimas décadas. Tais impactos estão sendo responsáveis por alavancar um vertiginoso processo de alteração no âmbito social, devido à hiperconectividade no contexto denominado Internet das Coisas e em decorrência do grande fluxo de captura, de troca e de venda dos dados gerados que são submetidos aos interesses do mercado. Além dos efeitos disruptivos desses avanços serem sentidos em diversas esferas sociais sob uma perspectiva quantitativa, defende-se que essas transformações implicam em uma "mudança na subjetividade das relações entre as pessoas e a tecnologia" [1], ou seja, a tecnologia tem impactado, frontalmente, as relações pessoais e interpessoais e, em razão disso, nota-se um impacto direto nos mecanismos de tutela à pessoa humana. À guisa de exemplificação, percebe-se novas formas de violação aos direitos de personalidade como à imagem, à privacidade e uma nítida incompatibilidade das normas existentes para se tutelar, adequadamente, as vulnerabilidades e os novos desafios advindos. Nos dias atuais, é possível observar que a inteligência artificial (IA), por ser uma tecnologia que pode ser empregada em diversos setores e atender às múltiplas finalidades de cunho patrimonial — além de estar passando por um constante aprimoramento dos seus sistemas de algoritmos inteligentes e dos seus softwares — já consegue desempenhar funções que antes eram inerentes à racionalidade humana. Isso quer dizer que o potencial inventivo e generativo humano se estendeu hoje, em certa medida, às máquinas que são capazes de criar conteúdos artísticos, audiovisuais e literários, como as atuais plataformas "ChatGPT", "Bard" e "BingAI" [2]. Ademais, o debate acerca dos limites éticos e jurídicos no controle dessas tecnologias deflagrou-se, em especial no âmbito nacional, após a propaganda da empresa Volkswagen recriar digitalmente a cantora Elis Regina, no ano de celebração dos 70 anos da empresa no Brasil. A empresa fez uso de IA generativa para lograr reconstruir a imagem da saudosa cantora que aparece ao lado de sua filha cantando uma de suas performances mais festejadas. Nesta toada, o professor Carlos Affonso entende que essa propaganda: "[...] desperta muitas questões sobre o futuro das criações digitais de pessoas mortas, desde a possibilidade de os herdeiros contratarem esse uso comercial da imagem e da voz alheia até uma reflexão sobre o impacto que essas montagens geram no público" [3]. Destarte, pensando justamente nessas questões, indaga-se: quais os limites para o uso da inteligência artificial, em especial no que diz respeito aos fins comerciais que estes bens gerados podem ter? E, ao nos referimos aos direitos da propriedade industrial, no momento do registro de uma patente [4], quando uma invenção tenha sido criada por uma tecnologia baseada em IA, poderia o requerente, o detentor ou criador dessas tecnologias indicar a IA como uma inventora? Embora o tema tenha ganhado destaque, quando pensamos na questão dos direitos autorais, na garantia do direito de patente dessas criações e no contexto do uso da IA que avança e altera a noção de criador e de criação, observa-se que no âmbito nacional existem poucas regulações aplicáveis para traçar uma solução capaz de compatibilizar o avanço e as garantias de proteção aos direitos de personalidade. Sobre o tema, o caso Dabus, que será avaliado adiante, ilustrou esse contexto desafiador, visto que um possível titular dos direitos autorais tentou registrar esse sistema de IA como a inventora em processo de patentes em diversos países. Nessa seara, diante da complexidade dos questionamentos, esse caso concreto foi levado ao Tribunal Superior dos Estados Unidos e em diversos escritórios de propriedade intelectual no mundo, inclusive no Brasil. De acordo com os canais de notícias, o cientista Sthephen Thaler, ao reconhecer que a sua invenção baseada em IA conhecida como Dabus (Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience) havia criado de forma autônoma certos protótipos, o cientista buscou indicar essa tecnologia como a inventora no momento do registro de patentes. Contudo, o tribunal de apelações estadunidense considerou que as patentes só poderiam ser emitidas quando o produto levado ao registro fosse decorrente de uma invenção humana [5] — um dos argumentos levantados por Thaler contrário ao entendimento foi que, em nenhum momento, a lei restringiu o termo "inventor", associando-o, exclusivamente, às pessoas físicas. Além disso, o cientista enfatizou a importância de haver uma compatibilização hermenêutica com o desenvolvimento tecnológico, para que não haja um desestímulo à inovação. No Brasil, esse pedido foi negado pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), autarquia responsável pela concessão de patentes a nível nacional. Mediante um parecer da procuradoria responsável por analisar o caso, optou-se por seguir o posicionamento de alguns países como os EUA e a Inglaterra, de modo a considerar desfavorável a atribuição de uma característica "inventora", "criativa" para a máquina dotada de inteligência artificial [6]. Nessa decisão específica, a Procuradoria do INPI prolatou o parecer aludindo o parágrafo 4º inserido no artigo 6º da Lei de Propriedade Industrial (LPI), que confere os direitos de ser nomeado e identificado ao inventor (indivíduo dotado de capacidade civil), juntamente com o artigo 1º do Código Civil de 2002, que estabelece que "toda pessoa é capaz de exercer direitos e deveres". Dessa maneira, ao se considerar que a tecnologia utilizada pela IA generativa não é dotada de personalidade, não é possível que figure nesta posição, em favor ao rigor da proteção e impossível equiparação à pessoa natural e jurídica que desempenham as prerrogativas de terem reconhecidas as suas capacidades inventivas, tal como fica discriminado no artigo 11, da Lei 9.610/98 que retoma a compreensão de que o "autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica. Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei" [7]. Ainda que seja uma conclusão pertinente com base na legislação atual, é evidente que, com o crescimento constante da utilização de IAs no processo criativo de inovações tecnológicas, as demandas concernentes à tutela de tais invenções e sobre as formas de proteção à propriedade intelectual hão de ser frequentes, e certamente configurará um desafio para as novas discussões jurídicas do tema. A título de exemplo, cabe destacar o artigo 42 do Projeto de Lei 2.338/2023 que, salvo melhor juízo, evidencia que uma das atuais pautas referentes à regulação da IA no país está relacionada aos mecanismos de proteção aos direitos autorais e sobre os dados utilizados por essas tecnologias durantes os seus processos generativos: "Art. 42. Não constitui ofensa a direitos autorais a utilização automatizada de obras, como extração, reprodução, armazenamento e transformação, em processos de mineração de dados e textos em sistemas de inteligência artificial, nas atividades feitas por organizações e instituições de pesquisa, de jornalismo e por museus, arquivos e bibliotecas, desde que: I – não tenha como objetivo a simples reprodução, exibição ou disseminação da obra original em si; II – o uso ocorra na medida necessária para o objetivo a ser alcançado; III – não prejudique de forma injustificada os interesses econômicos dos titulares; e IV – não concorra com a exploração normal das obras" [8] (grifo nosso). Assim, conforme os apontamentos supracitados, vislumbra-se que a temática se esbarra em questões complexas envolvendo a tentativa de compatibilização entre o desenvolvimento e a proteção dessas tecnologias, o reconhecimento e uma possível equiparação entre a pessoa natural e um artefato tecnológico artificial, o que poderia gerar, por conseguinte, toda uma reformulação do sistema para lidar com questões envolvendo o uso indevido dessas construções intelectuais patenteáveis e uma possível responsabilização por tais práticas desempenhadas por pessoas físicas, jurídicas e, agora, por "pessoas artificiais", dentre outras questões. Desse modo, à luz da legalidade constitucional que coloca a pessoa humana como a categoria central de proteção no ordenamento, defende-se que, a priori, as tecnologias já introduzidas no mercado não devem ter o condão de substituir ou mesmo de serem equiparadas à pessoa humana, pelas atuais propostas regulatórias. Posto que, uma possível equiparação, poderia ensejar um esvaziamento dos atuais mecanismos proteção ao indivíduo (autor e criador do conteúdo a ser patenteado) e reproduzir efeitos jurídicos compatíveis com uma lógica reducionista que mantém a predominância da patrimonialização das relações sociais, responsável pela instrumentalização do indivíduo e, desse modo, de suas aptidões criativas que são, potencialmente, mercantilizadas a níveis imensuráveis no contexto internacional, digital e de datificação da vida [9]. [1] DONEDA, Danilo. (et.al). Considerações iniciais sobre a inteligência artificial, ética e autonomia pessoal. Pensar, Fortaleza, v. 23, n. 4, p. 1-17, 2018. [2] FERREIRA, Tamires. Openai e outras terão selo para identificar conteúdo gerado por IA. Olhar Digital. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/2023/07/21/internet-e-redes-sociais/openai-e-outras-terao-selo-para-identificar-conteudo-gerado-por-ia/> Acesso em: 23 jul. 2023. [3] AFFONSO SOUZA, Carlos. Elis Regina mostra como recriação digital de pessoas mortas veio para ficar. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/carlos-affonso-de-souza/2023/07/05/elis-regina-mostra-como-recriacao-digital-de-pessoas-mortas-veio-para-ficar.htm>. Acesso em: 12 jul. 2023. [4] Em linhas gerais, a patente é um título de propriedade outorgado pelo Estado de caráter temporário concedido às pessoas jurídicas ou físicas, para suas criações, visando evitar que terceiros possam produzir, reproduzir, vender ou importar essa invenção sem autorização prévia. [5] FORBES. Suprema Corte dos EUA é provocada a decidir se inteligência artificial pode gerar patentes. Disponível em: em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/03/suprema-corte-dos-eua-e-provocada-a-decidir-se-inteligencia-artificial-pode-gerar-patentes/. Acesso em: 12 jun. 2023 [6] INPI. Inteligência Artificial não pode ser indicada como inventora em pedido de patente. Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias%202022/inteligencia-artificial-nao-pode-ser-indicada-como-inventora-em-pedido-de-patente>. Acesso em: 11 jul. 2023. [7] BRASIL. Lei 9.610, de 1998. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.610%2C%20DE%2019%20DE%20FEVEREIRO%20DE%201998.&text=Altera%2C%20atualiza%20e%20consolida%20a,autorais%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.&text=Art.%201%C2%BA%20Esta%20Lei%20regula,os%20que%20lhes%20s%C3%A3o%20conexos.>. Acesso em: 14 jul. 2023. [8] BRASIL. Projeto de Lei nº2338, de 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233?_gl=1*16wxjln*_ga*MTk0NDUwNzM1Ny4xNjg2MzMwMzU4*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4OTc4NTk3Ny42LjAuMTY4OTc4NTk4Mi4wLjAuMA..>. Acesso em: 12 jul. 2023. [9] MELLO, B. C. de S. Patrimonialização da personalidade post mortem por meio da reconstrução digital. Conjur, 05 jan. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/souza-mello-patrimonializacao-personalidade-post-mortem. Acesso em: 19 jul. 2023.
2023-07-31T10:19-0300
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Direito Civil Atual
Se um morto não herda, quem [d]ele herdará então?
Ainda no "prelo", com muito gosto, pude ler o esboço ensaístico do jurista Murilo Pinto[1] sobre uma suposta polêmica que versa "um mistério [que] ronda o direito civil há pelo menos uma década": "se os mortos podem herdar dos vivos", polêmica essa lançada por Pablo Stolze em artigo de 2012 [2], como recordado por Murilo, e republicado recentemente em livro que homenageia os ministros Og Fernandes, Luis Felipe Salomão e Mauro Campbell Marques[3], numa análise do princípio saisine", consagrado em francês na fórmula "le mort saisit le vif",  e, em alemão (motivo de fundo da polêmica), como "der Tote erbt den Lebenden" (sobre os mortos herdarem [d]os vivos). É que o professor Pablo Stolze menciona ter lido uma referência constante do livro de Caio Mario da Silva Pereira (as "Instituições de direito civil: Direito das sucessões", referindo-se à 15ª ed., 2004, p. 19-22), acerca do referido brocardo alemão: "Sua origem germânica é proclamada, ou ao menos admitida, pois que fórmula idêntica era ali enunciada com a mesma finalidade: Der Tote erbt den Lebenden", e, a partir disso, menciona inclusive correspondência pessoal com o falecido professor Arruda Alvim (missiva de 24 de abril de 2012), completando: "a frase, citada e repetida, não faria sentido algum se convertida para o português, pois afirmaria que o 'morto herda do vivo'", prosseguindo com o assombro: "o vivo é quem herda do morto! E não o contrário!", mas bastava algo a mais, além da simples busca por uma tradução literal que nem sequer acontece no caso francês, igualmente invertida (e influenciadora da alemã). Não se pode discordar do professor Pablo Stolze quanto ao impertinente uso de estrangeirismos, moda nefasta que muitas vezes traz consigo também os inadequados ensejos de traduções literais, ou a não adoção das cautelas necessárias quanto aos elementos mínimos daquilo que modernamente chamamos de "transposição de ideias jurídicas". Minha perspectiva, neste breve texto, é apenas fazer algumas observações laterais e singelas, contribuindo com o assunto, especialmente quanto a proximidade idealística entre o alemão e o francês, no ponto, mas sobretudo com a observação de que no caso da citação ("der Tote erbt den Lebenden") não se trata de estrangeirismo, mas sim de nota mais sucinta do que deveria, o que geralmente ocorre em todos os manuais de direito, cada vez mais sintéticos e simplificadores, fazendo recordar o 2º prefácio de Ronaldo Conde Aguiar à obra de Manoel Bonfim, para quem a parte mais importante de um manual é tudo aquilo que fica de fora, pois as narrativas são convenientes e seletivas[4]. O professor Pablo Stolze se ocupou de fazer uma crítica aos estrangeirismos, apontando que não faria sentido a expressão alemã "Der Tote erbt den Lebenden" [sua frase foi: "Der Tote (o morto) erbt (herda) den Lebenden (do vivo)"] ser vinculada à expressão francesa "le mort saisit le vif", conforme alega: "o único sentido possível da frase, a despeito da sua literalidade confusa, é atribuir-lhe uma via inversa de intelecção, para se afirmar que o vivo herda do morto ... deve haver alguma explicação, talvez histórica, perdida ao longo dos séculos", enquanto, por outro lado, o jurista Murilo Pinto se ocupou de fornecer uma explicação a partir das tradições religiosas, localizando origem bíblica na referência, "mais precisamente, em Números 26:55: Cada um herdará sua parte de acordo com o nome da tribo de seus antepassados", menciona. Como dito, faço aqui uma breve abordagem a partir da leitura de três textos distintos. O primeiro, desde as linhas da história do direito tracejadas por Franz Dorn[5], professor de Direito Civil e História Jurídica Alemã na Universidade de Trier; o segundo, a partir da senda propugnada por Krynen Jacques[6], professor emérito de história do direito e das instituições da Universidade de Toulouse; e, o terceiro, desde a luz divisada pelo professor José Carlos Moreira Alves[7] ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, que foi professor nas Faculdades de Direito da USP e da UnB. Pois bem, a abordagem de Franz Dorn estabelece uma leitura possível do postulado "der Tote erbt den Lebenden" desde as origens que o vinculam ao Sachsenspiegel, célebre cânone jurídico escrito entre 1220-1235 D.C. pelo cavaleiro saxônico Eike von Repgow, cujo nome advém de origem familiar, na aldeia de Reppichau, perto de Dessau, onde provavelmente teria nascido por volta de 1180, e, quanto a obra mencionada, a escreveu originalmente em latim, embora depois tenha traduzido para o baixo-alemão a pedido de seu mestre, Hoyer von Falkenstein, criando assim a primeira grande obra alemã em prosa. Escrita em duas partes; a primeira cuidando do direito das terras; a segunda, tratando do direito feudal (dem Landund — den Lehnrecht). De acordo com o prefácio em dísticos rimados, os saxões deveriam observar seu direito no "Sachsenspiegel" como as mulheres enxergam seus rostos num espelho, daí a expressão (Sachsen + Spiegel), ou no original: "ihr Recht so sehen wie Frauen im Spiegel ihr Antlitz", havendo esparsas influências romanas e também algumas influências canônicas, estas em maior número, e as fontes citadas no estudo original são numerosas (Gerd Kleinheyer, Jan Schröder, Hans Schlosser, Rolf Lieberwirth e Gerhard Köbler), dando notícia de que a obra começou como um trabalho privado, mas logo passou a ser um meio de se provar o direito consuetudinário no Tribunal, dando origem a outros livros: o Deutschenspiegel (1274/75) e o Schwabenspiegel (1275/76). Este último somente seria substituído, muitos anos depois, pelo Código Civil do Reino da Saxônia, abreviado como Sächsisches BGB de 1865, e depois pelo próprio Código Civil tedesco nacional (o BGB de 1900). Pois bem, a regulamentação disciplinada pelo Sachsenspiegel trata da questão da propriedade feudal, ou seja, se após a morte do senhor feudal a propriedade poderia recair a este ou àquele herdeiro, quando é feita uma distinção relevante para o caso em que o senhor feudal deixasse um filho como herdeiro, ou para o distinto caso em que não houvesse um filho após a sua morte. Na hipótese de ausência de filiação, o elemento central recairia no instituto do "Gedinge", que é antigo meio de recompensa (pagamento), atraindo a diferenciação entre pagamento por tempo ou por desempenho. Não esqueçamos, por oportuno, o pioneiro texto de Moreira Alves sobre outro importante instituto, a "Gewere"[8], que "é o instituto que, no direito germânico medieval, corresponde à possessio, que só foi introduzida no direito alemão com a recepção, na Alemanha, do direito romano, o que apenas ocorreu no século 16", embora, como advertiu o civilista, "correspondência não significa igualdade", pois, prossegue: "a Gewere, se apresenta pontos de contato com a possessio, dela se afasta em outros aspectos". "Basta atentar para o fato de que, enquanto o direito romano distinguiu, nitidamente, as três posições em que decorre para uma pessoa poder sobre uma coisa (propriedade, posse e detenção), o direito germânico medieval desconheceu, quanto às coisas móveis, a diferença entre posse e detenção, e embora a maioria dos germanistas entenda o contrário — há autores que chegam a negar que o direito germânico medieval tenha estabelecido distinção entre propriedade e posse (essas figuras estariam abrangidas na Gewere)." É justamente neste ponto que o civilista do Largo São Francisco e da UnB aborda, no caso, ligações entre a Gewere e a herança no direito alemão, decorrente de seu reconhecimento como "direito real provisório" (vorläufiges Sachenrecht): "estabelece-se a posse do herdeiro: este adquire, automaticamente, independente de imissão efetiva, a posse da herança no momento em que falece o de cuius", prosseguindo, mais a frente, com outra importante distinção entre a Gewere de fato (leibliche Gewere) e a Gewere ideal (juristische Gewere) contraposição "que corresponde à que se encontra nas fontes francesas sob as denominações saisine de fait e saisine de droit". Neste compasso, observa Moreira Alves: "a ideele (juristische ou unkörperliche) Gewere é aquela que existe independentemente de haver senhoria de fato sobre a coisa". "Ela, que se prende ao princípio da publicidade que domina todo o direito imobiliário germânico, não se aplica às coisas móveis, exceto se estas são pertenças de imóvel ou partes constitutivas de um patrimônio considerado no seu todo", que ocorreria em três hipóteses, entre elas a seguinte: "o herdeiro, ainda que não tenha senhoria de fato sobre a herança, se torna, no momento da morte do de cuius, titular da ideelle Gewere sobre ela (o que se traduz no brocardo Le mort saisit le vif, ou, em alemão, Der Tote erbt den Lebendigen)". A partir daqui, como visto, nós provisoriamente deixamos de lado a "Gewere" e retornamos à "Gedinge", tendo em vista que os dois institutos são o núcleo do brocardo germânico "Der Tote erbt den Lebendigen", quando o Sachsenspiegel mencionava: "Der Mann aber, der keinen Sohn hat, der (ver)erbt die Gewere des Gutes auf den Herrn, es sei denn, dass der Herr das Gedinge daran verliehen hat, und der belehnte Mann dies nach dem Recht binnen seiner rechten Jahresfrist beweist" [9]. O mais importante é que se destaca que o Gewere possuía função defensiva (Defensivfunktion), permitindo o direito de proteção possessória (Recht des Selbstschutzes), e, como observado por Franz Dorn, "a regra de que a propriedade de um patrimônio passa para o herdeiro por meio de herança não se limita, entretanto, à sucessão do feudo, mas se aplica ao direito sucessório em geral", estabelecida formalmente (Ssp. Lehnr. 6 § 1) e que expressa um princípio geral que não se limita à lei saxônica, mas também pode ser encontrada em outras leis medievais ligando o postulado tedesco "Der Tote erbt den Lebendigen" ao igualmente medieval postulado francês "Le mort saisit le vif"[10], este último exigindo uma observação com tempero de caráter monárquico da realeza de França[11]. Menciona o professor Jacques Krynen, sobre o postulado "Le mort saisit le vif", algo que deve guiar nosso ideário reflexivo, na proximidade literal: "Os mortos confiscam os vivos" — que era uma máxima muito comum nos tempos feudais. Ela é usada em questões de herança para significar que "a posse dos bens e direitos do falecido é adquirida no dia da morte por seu herdeiro". "A aplicação dessa regra consuetudinária no direito privado atraiu a atenção de estudiosos do direito, mas sua incorporação na esfera do direito público da monarquia francesa quase não deu origem a nenhum estudo específico", e disso os publicistas do Ancien Régime acabaram tirando o máximo proveito[12]. E isso remonta ao momento da transição, já no século 17, quando queriam os autores expressar a superioridade e a excelência do sistema monárquico francês, quando Jacques Krynen, valendo-se de Bossuet, observa que a autoridade real e hereditária era tida como a forma mais apropriada de governo, onde ela era exercida de homem para homem, e do mais velho para o mais novo, ou seja, o sistema mais natural seria "aquele que tem seu fundamento na autoridade paterna, ou seja, 'na própria natureza'. Essa é a ordem que 'funciona melhor por si mesma', sem a necessidade de designar um sucessor. Pois a natureza cria um: 'os mortos, dizemos, se apoderam dos vivos e o rei nunca morre"[13], ou seja, usando a expressão "le mort, saisit le vif et le roi ne meurt jamais", quando os mortos "herdam" os vivos, num jogo de palavras do ditado popular, como ocorre no caso alemão "Dder Tote erbt den Lebendigen". Portanto, podemos dizer que há uma ligação entre os dois brocardos de origens medievais na França ("Le mort saisit le vif") e na Alemanha ("Der Tote erbt den Lebendigen"), havendo neste último caso a necessidade de uma leitura conjunta dos institutos da "Gewere" e da "Gedinge" quanto ao sentido remoto de índole feudal, mas também com o espírito da ficção da realeza sobre a impossibilidade de vacância do trono, com o ditado popular de que os mortos recebem (abocanham?) os vivos, tudo, de resto, para proteger o poder e a posse da propriedade em aquarelas correspondentes, mas sem que isso signifique igualdade, como diria o professor e ministro Moreira Alves, a quem este artigo é dedicado pelos 55 anos de seu pioneirismo no estudo da "Gewere", e quem possivelmente afirmaria não haver "mistério" algum, e recomendaria a todos, como já o fez, a necessidade de aprofundamentos em direito romano[14].   *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
2023-07-31T09:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jul-31/direito-civil-atual-morto-nao-herda-quem-dele-herdara-entao
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Opinião
Rodrigo Haidar: Livro conta bastidores do "caso do juiz coach"
Onde é fácil demitir juiz, é impossível encontrar justiça. Saul Tourinho Leal "Tenho uma história boa que talvez te interesse pra coluna. Mas não vou me adiantar e não quero te influenciar, porque o caso fala por si só, meu amigo. Vou te mandar as informações objetivas e o link pra um vídeo. Assista e tire suas próprias conclusões." A ligação do Saul foi assim, curta e grossa. Instantes depois chegava no meu WhatsApp o link para uma sessão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Era outubro de 2020. Dias antes da ligação, naquela sessão que eu começava a assistir, os desembargadores decidiram demitir o juiz Senivaldo dos Reis Júnior sob a acusação de que ele era coach e, advertido pela Corregedoria do Tribunal, se recusou a cumprir a ordem de interromper a atividade taxada de irregular pelo Conselho Nacional de Justiça. Esse era o motivo declarado da demissão. Mas as manifestações dos juízes durante a sessão revelavam as nuances. E é nas nuances que, sabemos, se esconde a essência. Assisti, ao longo da carreira de jornalista especializado na cobertura do Poder Judiciário, a incontáveis sessões de tribunais, judiciais e administrativas. É comum que nas sessões administrativas, mesmo diante de fatos por vezes graves, o tom dos magistrados seja mais ameno. Uma reação, muitas vezes, humana. Outras vezes, corporativista. Não era, contudo, o que se via naquela sessão do Órgão Especial. As críticas estavam acima do tom, principalmente diante da conduta estava em discussão — uma busca de 30 segundos no Google nos coloca diante de uma penca de cursinhos preparatórios para concursos, alguns integrados por magistrados. Por que, então, o caso de Senivaldo era diferente? O que, de fato, levava os desembargadores aplicar a pena máxima a uma conduta aparentemente banal? Para muitos, o motivo não declarado da decisão se fez presente de forma cristalina em alguns votos. Um dos desembargadores, por exemplo, ressaltou que, na primeira fase do concurso para a magistratura, Senivaldo foi aprovado nas vagas reservadas para cotistas. Por isso, o desembargador dizia não saber se "ele atingiu aquele número, na primeira fase, exigido dos demais candidatos, o que tornaria, paradoxalmente, mais grave a conduta dele". Diante do vídeo da sessão, fui atrás de dados, fornecidos pela assessoria de comunicação do tribunal. Nos cinco anos anteriores, o Órgão Especial havia punido 37 magistrados do Poder Judiciário paulista: 27 juízes e 10 juízas. Todas e todos com penas de advertência e censura. Apenas uma demissão: Senivaldo dos Reis Júnior. Não é preciso dizer que demissões de magistrados são raríssimas. E têm de ser mesmo, porque poucos são os cargos da República em que se faz uma coleção de desafetos com tanta facilidade. Por mais correto, justo e afável que seja o juiz, sempre haverá pessoas insatisfeitas com sua decisão. De novo, é da condição humana. Nada mais natural. Com os dados em mãos, usei meu espaço na rádio BandNews FM para chamar a atenção para essa demissão. Me espantava não apenas o motivo da decisão, mas também um desembargador ter dito, sem meias palavras, que o fato de um candidato negro ter sido aprovado no concurso pelo sistema de cotas tornava a conduta dele mais grave. Disso, poderíamos inferir que juízes negros e juízas negras, se fizeram uso do sistema de cotas, têm de se portar de forma mais cuidadosa do que seus colegas? Certamente não é assim que pensa a esmagadora maioria da magistratura brasileira. O comentário sobre a demissão do Senivaldo foi ao ar na rádio no dia 13 de novembro de 2020. Conversei algumas vezes com o Saul ao longo do processo, mas só voltei a prestar atenção de verdade ao caso em abril de 2022, às vésperas de o CNJ julgar a revisão disciplinar que o advogado apresentou em nome do juiz demitido. O processo foi pautado e retirado de pauta algumas vezes, até que, no dia 24 de maio de 2022, o Conselho Nacional de Justiça derrubou a decisão do TJ-SP e determinou a reintegração do juiz aos quadros da magistratura paulista. A maior parte dos conselheiros julgou a pena de demissão desproporcional. O conselheiro Vieira de Mello, também ministro do Tribunal Superior do Trabalho, chamou a atenção para o fato de outros 18 magistrados, em situação semelhante, terem seus casos avaliados com muito mais equilíbrio. O presidente do CNJ na ocasião, ministro Luiz Fux, disse que o Conselho dava a Senivaldo uma carta de alforria e o livrava de uma espécie de "prisão perpétua". A frase tinha fundamento: após a demissão, Senivaldo voltou a prestar concursos. Foi, novamente, aprovado. No Rio Grande do Sul. Mas impedido de tomar posse por conta da demissão. Este é só um dos fatos do "caso do juiz coach" que ficou longe dos holofotes. Em parecer pro bono anexado aos autos, o professor Lenio Streck — insuspeito justamente por ser um crítico mordaz do empobrecimento e da pasteurização do ensino jurídico — saiu em defesa de Senivaldo. Em suas palavras, o juiz "foi buscar lã, e voltou tosquiado". Ou, ainda segundo sua cirúrgica definição, o Tribunal de Justiça de São Paulo transformou "uma pequena coceira em uma gangrena". Por quê? Porque a investigação que culminou com a demissão do juiz começou com uma consulta sua sobre se poderia seguir dando aulas. Frei David, líder da Educafro, também veio aos autos para reclamar da desproporcionalidade da pena aplicada pelo TJ-SP. E disse: "Esse Brasil, cujas estruturas estatais distinguem pela cor da pele — de uma pele — é um Brasil que precisa acabar". Mas isso é apenas parte da história. O que mais se passou neste ano e meio em que Senivaldo ficou fora do exercício da função de juiz? Como são os bastidores de um processo complexo como esse? Como um advogado decide as ações que tomará no curso do processo e qual a influência do cliente nessas decisões, ainda mais quando o cliente é um juiz? Quais os dramas da vida humana, real, palpável que são vividos intensamente e que ficam fora dos autos? A resposta para essas perguntas está no livro Do Sopro, um Vendaval: A história da reparação de uma injustiça. O livro, que será lançado no dia 16 de agosto, em Brasília, é uma aventura, da qual tive o prazer de participar a convite do Saul e do Senivaldo. Conheço Saul há mais de 15 anos. Tivemos contatos intensos por alguns anos, em Brasília. Depois, trocamos palavras mais raramente. Voltamos a nos aproximar quando ele assumiu o "caso do juiz coach". Mas nunca deixei de acompanhar sua exitosa carreira de advogado e acadêmico. Senivaldo conheci só em julho de 2022, quando ele já estava de volta ao trabalho, em plena atividade, mas ainda lambendo as feridas. A decisão de aceitar escrever sobre um caso paradigmático foi fácil. Difícil foi conseguir colocar em texto a experiência de vida rica, riquíssima, dos dois personagens que são os autores deste livro, sem perder a essência de suas vozes. O livro é deles, a voz é deles, a história é deles. Eu contribuí apenas com o trabalho técnico, com a experiência de costurar as memórias dos autores de forma a tentar tornar o mais prazerosa possível a viagem da leitura de um caso tão relevante. Um spoiler: Senivaldo nunca foi coach.
2023-08-01T18:28-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/rodrigo-haidar-livro-conta-bastidores-juiz-coach
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Fábrica de Leis
Por iniciativas legislativas dos e para os povos originários
Paramentada com um belo cocar, a ministra Rosa Weber, lideranças judiciárias e indígenas lançaram, no dia 19 de junho deste ano, a primeira tradução da Constituição da República no chamado tupi moderno ou nheengatu. Nossa Lei Fundamental em língua indígena é um grande passo cheio de simbolismo no momento em que o STF é presidido por uma mulher. Seu papel nas comunidades indígenas imunes ao feminicídio entre si, conforme o mapa da violência contra os povos originários evidencia uma cultura de cooperação imunizada contra a violência, mas que não os protege dos ataques dos outros brasileiros. Algumas Constituições reconhecem, oficialmente, as línguas dos povos originários como as do Peru, Bolívia, Nova Zelândia, África do Sul, e em outros países, como Austrália, Angola, Chile, Ruanda, por exemplo, a lei reconhece e facilita o ensino de línguas dos povos originários. Dados de 2014 [1] revelam que a população estimada dos povos originários na América Latina seria de cerca 46 milhões de pessoas, (com cerca de 200 etnias em isolamento voluntário) distribuídas em 826 etnias, estando o Brasil com a maioria delas (305). Uma longa história de resistência e violências envolve a questão dos povos originários no Brasil e em toda a América pré-colombiana, desde o relato de Bartolomé de Las Casas e até mais recentemente, pela arqueologia. A língua nheengatu escolhida para se dirigir aos povos originários foi uma construção dos portugueses com o fim de sistematizar uma certa língua franca que pudesse alcançar o maior número de indígenas, porém o universo falante as outras línguas, conforme mapeamento linguístico, é muito mais extenso. Nossos povos originários souberam transformar o Nhengatu em instrumento de compreensão, comunicação e identidade para a interlocução. Recentemente, várias iniciativas de tradução de línguas indígenas indicam uma aliança entre tecnologia e cultura linguística [2]. No cenário legislativo pré-Constituição de 1988, os povos indígenas e o indígena enquanto indivíduo deveriam ser tutelados pelo Estado, ou seja, integrados, assimilados. A iniciativa no STF, por sua vez, nos mostra que há que se observar que esses povos têm ancestralidade, culturas e direitos próprios reconhecidos pela nossa Constituição e, por isso, merecem respeito e o direito à diferença no modo de ser de sua cultura, seus costumes, suas línguas. Leis escritas fazem pouco sentido para os povos tradicionais que trazem a regra dentro de si. O sentido da lei se materializa nos comportamentos que são visíveis e fortemente homogêneos com baixa ou inexistente violação. Um costume reconhecido por uma comunidade tem força normativa, voz e capacidade para vincular indivíduos, permitindo que construam uma identidade e se reconheçam como comunidade. A discussão é complexa e deve considerar que os povos indígenas têm ascendência pré-colombiana e já habitavam densamente as Américas, especialmente o Brasil, com uma cultura rica e sofisticada, com suas tradições, seus costumes e principalmente se harmonizando com a natureza, de modo que a cultura não indígena (inclusive, a jurídica) interajam de forma harmônica, sustentável e sócio ambientalmente correta. A ideia de direito positivo se sustenta pelo conjunto de fontes do direito reconhecido pela lei apto a vincular pessoas a um dado território, por um período de tempo. O conhecimento e a consequente documentação desse direito, escrito na língua dos nacionais, permitiram o reconhecimento de uma comunidade jurídica capaz de fazer valer o projeto de sociedade escolhido, aos moldes ocidentais. As categorias de análise para interpretação dos direitos constitucionais dos indígenas necessitam ser interpretadas de forma sistêmica, trazendo a convergência de institucionalidades. Para a implantação de políticas públicas envolvendo múltiplas intervenções com vários atores sociais, leis e ações governamentais com temas de interesse dos povos indígenas devem considerar a pluralidade de cada etnia e reconhecer seus costumes como fontes do direito nacional, com provas de teor e vigência em estatuto próprio, muito além da atual disciplina do artigo 376 do Código de Processo Civil em vigor. Na concepção ocidental do direito escrito, anterior às questões postas pela Legisprudência, Legística, Avaliação Legislativa inclui como especial importância as estratégias para um conhecimento real da norma jurídica, o planejamento das condições para a sua efetividade. Assim, a publicação oficial formal, o lugar da incidência assumem muito valor, em detrimento da real adesão às normas, para as quais, é tolerável não serem levadas a sério. No mundo dos costumes, ignorá-los significa o seu fim. A convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) destaca o princípio da consulta livre, prévia e informada a qualquer política e atividade que afete os povos indígenas e disciplina o critério para sua autoidentificação e heteroidentificação e de autodeterminação. Uma interpretação conforme os costumes originários e a nossa Constituição sinaliza que a identidade indígena não é perdida porque uma pessoa frequenta a universidade ou porque usa algum aparelho eletrônico, roupas ou sapatos. Sua condição de indígena prevalece se, convictamente, assim se identifica e se é identificado por sua comunidade. As recentes iniciativas do uso de linguagem simples no Judiciário também sinalizam a tendência de maior preocupação com questões da linguagem. Afinal, já bastam as leis complicadas, obscuras, contraditórias, disfuncionais que não façam sentido quando confrontadas com o dinamismo social, e que são o grande foco do imenso aparato do Judiciário. Coube também ao sistema de administração da Justiça outras iniciativas focadas especificamente para as comunidades dos povos originários. No Canadá, desde os anos 2000, o EducaLoi, uma associação de advogados, notários e membros da sociedade de informação jurídica usou rádios comunitárias em comunidades indígenas para que o direito estatal pudesse ser "verbalizado" transmitido, oralmente, por mulheres indígenas. Em Minas Gerais, o Tribunal Regional Eleitoral apoiou projeto para uso da urna eletrônica pela etnia Maxacali por meio de signos de sua própria cultura. Mas, ainda hoje, as leis são escritas em linguagem não natural. O uso de estruturas da retórica que remonta à Idade Média e se vale de estruturas linguísticas, proposições escritas sob a forma de "artigos", orientadas por "alíneas" e "parágrafos", com uma linguagem e termos decorrentes de milênios de uma tradição documentada por homens, na língua do conquistador, não obstante a regra da escrita em "vernáculo", o português, ainda convivemos com "caput" e outras pérolas do Latim. Recentemente, no Canadá o uso de um emoji foi considerado consentimento válido em compra e venda grãos pelo Tribunal de King's Bench, na província de Saskatchewan. O mesmo Canadá que adota o bilinguismo ( para a língua inglesa e francesa) e o bijuridismo (sistema de direito consuetudinário e sistema de direito escrito). Nossa Constituição lida, em português, hoje em dia, por muitas pessoas, não indígenas soa incompreensível e quimérica, como projeto maior da nação do que "deve ser", mas que não escolheu um projeto de nação plurinacional que reconheça o papel da das outras linguagens na representação de mundo, na perpetuação da tradição e valores de um povo. A inciativa da publicação da Constituição em língua indígena traz ainda a estridente ausência dos Legislativos quanto ao tema e o que nos auxilia na compreensão da exclusão do estado plurinacional, do reconhecimento da necessidade de amplificação das condições para o real conhecimento da lei ou na ampliação linguística do conhecimento da lei, ou de legislações que de fato permitam a vida dos povos indígenas e do seu conhecimento. O artigo 59 da Constituição dispõe sobre processo legislativo e cria um dever de legislar ao determinar que a "Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis". A Lei Complementar 95/98 já necessita ser revisada. Não obstante o fato de dispor sobre os critérios de validade de atos normativos de origem legislativa, executiva e judicial é desconsiderada, em diversos pontos, como é evidente na nossa cultura de "jabutis" em projetos de leis dos mais diversos. Dentre as suas regras vigentes, há a previsão que leis de grande alcance social não devam ter eficácia imediata. Isto significa que a publicidade, requisito essencial para o direito escrito, precisa se ocupar de estratégias para o conhecimento real da lei. Em outra Lei mais recente, a Lei de Acesso a informação (LAI) que especificamente trata da disponibilização de informações estatais (as legislações são informações com caráter vinculante) dispõe que a informação deva ser disponibilizada de forma transparente, clara e de fácil compreensão. Leis que façam sentido para uma dada comunidade serão mais ou menos (re)conhecidas se as pessoas por elas afetadas puderem estar presentes no seu percurso formativo e que estratégias sintonizadas com o nosso tempo possam potencializar o arsenal comunicacional seja quanto às diversas linguagens, seja quanto aos meios. A elaboração de legislações que amparem políticas públicas eficazes, eficientes e efetivas, devem incluir temas voltados para educação diferenciada a partir de suas línguas nativas, políticas de saúde coletiva, uso e aplicações tecnológicas, acesso à internet (inclusão digital) e especialmente, a demarcação de suas terras. O processo de desconsideração dos costumes e práticas indígenas como fonte de conhecimento ainda perdura até os dias atuais, facilita o desconhecimento da realidade social desses povos, sua cultura de cooperação, sua consciência do coletivo, sua convivência e manuseio harmônico e sustentável do meio ambiente, sua relação de respeito e cuidado com a sua territorialidade. O resultado é também o risco de perda de fontes de aprendizagem para a sociedade autointitulada de civilizada e suas atividades quase sempre predatórias e irracionais que interferem no problema global das mudanças climáticas. O artigo 231[3], da nossa Lei Fundamental, do nosso projeto de nação dispõe serem reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. O artigo 231 trouxe direitos até então inéditos para esses povos que impuseram uma interpretação dirigente, sob o paradigma da interação, a não assimilação, o direito a diferença, o respeito ao estilo de vida dos povos indígenas. A representação linguística da nossa Lei Maior em linguagem indígena é também importante porque abre janelas para apontar novas discussões sobre Estado plurinacional, a criação do novo Estatuto dos Povos Indígenas até hoje paralisada, com início dos anos 90, no Congresso Nacional. O território brasileiro conta com a presença indígena em todas as regiões e demandaria ações legislativas não só do Congresso, mas também nas cidades onde estejam e nas vizinhanças dos seus territórios. Por fim, as políticas públicas transversais em educação indígena deveriam estar presentes não só para os estudantes indígenas nas suas línguas, mas seus valores e mitos, histórias e costumes (práticas de justiça restaurativa), crenças, tradições, direitos constitucionalmente assegurados para esses povos deveriam estar presentes nos programas de ensino da educação não indígena, mas igualmente brasileira. [1] MORI, Angel Corbera. Diversidade Linguístico-Cultural Latino-Americana e os direitos linguísticos dos povos originários. 2014. [2] Vide algumas iniciativas: https://blog.google/outreach-initiatives/arts-culture/woolaroo-new-tool-exploring-indigenous-languages/; https://aldeianews.com.br/2023/03/28/aplicativo-para-celular-torna-possivel-traducao-da-lingua-waiwai-para-portugues/; https://portalamazonia.com/noticias/inovacao-e-tecnologia/aplicativo-criado-no-para-permite-acessibilidade-na-traducao-da-lingua-indigena-wai-wai; https://memoria.ebc.com.br/tecnologia/2015/10/pesquisadores-desenvolvem-aplicativo-que-auxilia-na-traducao-de-linguas-indigenas; https://www.portalamazonida.com.br/jovens-pesquisadores-criam-teclado-digital-com-caracteres-de-mais-de-40-linguas-indigenas-da-amazonia/ [3] Art. 231. Guvernu umaã indio ta resé, mayê ta umuyã ta yumuatiri sa arã, ta rikusái ta resé, ta nheenga tá resé, ta ruyari sa asui maã taãmusasá waitá ta raíra u rayera ta supé,asui iwí resé waára mamé ta raãumuyã ambira tá taikú uikú waá kuxiíma suiwaára,yawéwa rupí Uniãutẽ umukamé, ũbeu amú ta supé yãindigena ta iwí, papéra rupí, asui usú umuyakũta iwí resé, ti aáram ne mayê míra ta tayuíri ta wiké ápe
2023-08-01T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/fabrica-leis-iniciativas-legislativas-povos-originarios
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Contas à Vista
Sobre simetria e equalização no federalismo fiscal brasileiro
Sabe-se que nossa sociedade é bastante desigual, inclusive quanto aos estados e municípios. Dessa forma, o tratamento a ser dado para os entes federativos deve ser igual, isto é, simétrico? Marcelo Labanca em seu livro Jurisdição Constitucional e Federação expõe a crença de que a simetria é vinculada à perfeição e a assimetria ao que é imperfeito. Simetria diz respeito à organização, à ordem, enquanto a assimetria sugere desorganização. A simetria foi desenvolvida pelos gregos, como uma forma racional de explicar a beleza, com proporção, equilíbrio e harmonia, sendo usada por eles em diversos campos, como na arte. O problema, relata o autor, "surge quando se aplica o valor da simetria para âmbitos de produção de poder. Notadamente no que tange à distribuição territorial do poder" (p. 08), o que, em sua essência, diz respeito ao federalismo em sociedades marcadamente desiguais, como a brasileira. Isso vem a calhar com o que estabelece o artigo 3º, III, de nossa Constituição, que estabelece como um dos objetivos de nossa sociedade a redução das desigualdades regionais, além das sociais. Cabe simetria fiscal no federalismo fiscal brasileiro sabendo-se que somos um país com entes federados assimétricos? Como tratar de forma financeiramente simétrica (isto é, idêntica), o estado de São Paulo e o de Sergipe ou o Acre? Sem falar no âmbito municipal, em face da patente diversidade entre os entes federados? O sistema financeiro brasileiro é obcecado pela simetria. Um exemplo pode facilitar a compreensão. Norma do Senado estabelece que todos os estados podem se endividar em até 2,0 vezes sua receita corrente líquida. É possível acreditar que as necessidades de endividamento do Acre ou de Sergipe são iguais às de São Paulo? Sei que a base de cálculo (a receita corrente líquida) de cada um será diferente, mas, visando a necessidade de alavancar o desenvolvimento, não seria adequado tratá-los de forma assimétrica, permitindo maior endividamento aos que necessitam de mais recursos para desenvolver seu território? O mesmo ocorre com os municípios, que, pela mesma norma, podem se endividar até 1,2 de sua receita corrente líquida — será que o município do Rio de Janeiro e o de Duque de Caxias devem ser tratados simetricamente? O controle sobre o uso dos recursos é outro assunto, igualmente importante, mas que foge ao tema aqui abordado. Nem se diga que a modificação da base de cálculo (renda corrente líquida) é suficiente para dar a necessária assimetria. É necessário alterar também as alíquotas. No âmbito tributário isso é de mais fácil visualização, em face do princípio da progressividade na tributação da renda. A alteração da base de cálculo acarreta proporcionalidade, o que seria simétrico, e só com a alteração conjunta das alíquotas é que se obtém a progressividade, obtendo assim, alguma assimetria. O tratamento financeiramente simétrico é prejudicial para o desenvolvimento nacional, pois alguns entes federados necessitam de mais recursos do que outros. Logo, a simetria, tal como aplicada, implica em tratar os desiguais de forma igual, o que é contra o princípio da isonomia, que determina tratamento desigual buscando igualar situações desiguais, visando reduzi-las. Para tanto, é necessário analisar os critérios de discrímen estabelecidos pelas normas a fim de verificar se o tratamento assimétrico possui fundamento. Um bom ponto de observação diz respeito aos fundos criados há décadas para repartir a receita do Imposto de Renda e do IPI que são arrecadados pela União, com percentuais a serem distribuídos entre os demais entes federados. Essa lógica compõe a arquitetura do federalismo cooperativo estabelecido em nossa Constituição, e parte do pressuposto que as bases de incidência da renda e da produção são distribuídas em todo o território nacional, a despeito de sua arrecadação competir à União. Por exemplo, a renda pode ser gerada no Piauí, mas o imposto sobre a renda é pago à União, logo, o compartilhamento de parte dessa receita tem por fundamento a amplitude da base de incidência desse tributo em todo o território nacional, e é algo muito mais racional do que criar um imposto de renda estadual, como se vê nos Estados Unidos e foi previsto originalmente na Constituição de 1988 para ser cobrado como um adicional. Nas transferências obrigatórias para os estados no Fundo de Participação dos Estados (FPE), a regra de discrímen (assimetria) leva em consideração a população e o inverso da renda domiciliar per capita, considerando de forma antecedente que 85% dos recursos são divididos entre os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 15% para divisão entre os estados das regiões Sul e Sudeste. Nas transferências obrigatórias para os municípios no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), a regra de discrímen leva em consideração, inicialmente, o fato de serem ou não capitais — estas rateiam 10% do Fundo —, os demais dividem 86,4% dos recursos (FPM-Interior), considerando a população de cada cidade e a renda per capita de cada estado, o que implica em menor valor para cada município caso componha um estado com muitos municípios. A recente Lei Complementar 198 buscou reduzir o impacto financeiro do Censo para as cidades que tiveram sua população reduzida. Existe ainda um percentual de re-rateio (3,6%) para os municípios com população superior a 142 mil habitantes. Será que estes critérios de discrímen para tais assimetrias estão adequados ou poderiam ser melhor desenhados? Afinal, não basta ser assimétrico, pois o critério de discrímen pode agravar as desigualdades, ao invés de reduzi-las, ou ter impacto muito menor que o pretendido. Este tema é o cerne do federalismo fiscal e, como se trata de uma questão de distribuição de poder, bolir com ele pode gerar uma enorme revolução federativa, e não tem sido objeto sequer de pesquisas jurídicas, havendo apenas propostas de economistas, como se vê na de Marcos Mendes, na de Constantino Mendes, do Ipea, e no estudo de Teresa Ter-Minassian, do FMI. Em síntese, propõem transformar o atual sistema de singela distribuição para o de equalização, adotando, por exemplo, a diferença de renda líquida per capita como parâmetro. Equalizar implica em considerar outras variáveis que não a singela distribuição. Um exemplo: os recursos do FPE são transferidos independentemente do aumento de arrecadação do ICMS ou da obtenção de outras receitas, como a dos royalties do petróleo ou da mineração — neste caso, havendo outras receitas, a transferência poderia ser ampliada ou reduzida, a depender do objetivo a ser alcançado. Pode haver equalização em face de outros parâmetros, como a quantidade de leitos públicos hospitalares por habitante ou de vagas em escolas públicas por município. Os exemplos poderiam se multiplicar. Vale referir que esse modelo de transferências fiscais não é um pires na mão, que estados e municípios apresentam à União, mas faz parte do arranjo constitucional de federalismo cooperativo brasileiro, constituindo-se em receitas próprias desses entes federados, embora não se constituam em receitas diretamente arrecadadas por eles. O pires na mão se refere às transferências voluntárias, que tem volume muito menor de recursos. Reconhecer a diferença entre os entes federados, e transferir recursos de conformidade com um conjunto de variáveis politicamente determinadas, seria uma boa forma de implementar um federalismo fiscal assimétrico, contribuindo para um país mais justo, e a criação de fundos de equalização seguramente é um forte instrumento para isso.
2023-08-01T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/contas-vista-simetria-equalizacao-federalismo-fiscal-brasileiro
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Senso Incomum
O evangelho segundo Barbie e o Power Ranger guerrilheiro
Hoje a coluna não é sobre direito propriamente dito. Dizia T.S. Eliot que, numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo. Por isso escrevo este texto. Parece que estou fugindo... com tantos fugitivos em volta. Arrisco. Há risco. Embora Antonio Prata tenha feito uma brincadeira tipo backlash do filme Barbie na Folha de domingo, um dia antes fiz comentários em grupos de WhatsApp sobre o tema, bem na mesma linha. Ambos, Prata e eu, pensamos em algo como "o arrependimento de vilões" ou a ressignificação de arquétipos. Ouso, assim, discordar respeitosamente dos que tecem loas ao filme. E vou brincar um pouco com tudo isso. Uma ludocrítica. Então. Para além da coluna de Prata, pensei em um filme bem cool com os Powers Rangers sendo guerrilheiros socialistas, com a Mermaid com traje de Che (nota: sei que Mermaid era dos Changeman, mas esse é o busílis do filme — afinal, change quer dizer troca...!). Ou o político Paulo Maluf, em longa-metragem, agora filiado ao PSOL, defendendo políticas identitárias. A película mostra a infância de Maluf, rico e já vencendo eleições no grêmio estudantil em resultados duvidosos, e, ele adulto, virando revolucionário como prefeito de Itapecerica da Serra, transformada em meca revolucionária. Põe catarse nisso. A parte em que os personagens descobrem que têm frieiras nos pés dá Oscar. Outra opção de roteiro é um filme sobre a vida e obra de Gustavo Lima, arrependido dos shows que fez para prefeituras (e dos seus apoios políticos) e das músicas cantadas em tom anasalado, aparecendo em noir, cantando bossa nova de cidade em cidade. O topete altíssimo dá lugar a um chapéu fedora. Ao final, dirige um táxi no aeroporto de Cumbica. O filme é repleto de flashbacks. Na verdade, o roteiro todo se passa em um táxi — essa parte é copiada por um ChatGPT do programa do Gugu. Na sequência do filme Barbie, coqueluche da crítica (já se fala em vários Oscars) e da esquerda mundial (e brasileira), ela, a Barbie, vem para o Brasil e é recebida em palácios governamentais. O Fantástico faz um especial de duas horas entrevistando médicos e designers, sobre como ela tinha aquela cintura — tinha mesmo dois rins? Essa sequência do filme apresenta Barbie vestida de Carmen Miranda, rodeada de personagens vestidos de Zé Carioca. O lema é "Eis uma boneca que as meninas pobres não podiam comprar e agora chegou a hora de enganar de novo essa malta — fazendo uma catarse". Um dos patrocínios é das lojas do Burger King (cujos sanduíches de novo os pobres não podem pagar), com todos os prédios pintados lindamente de rosa. Meigo, não? E revolucionário. Barbie aparece com a mão esquerda erguida, como a estátua das Lojas Havan — que também estão pintados de rosa! Já o terceiro filme da franquia Barbie será em metaverso, cujo roteiro mostra-a substituída por inteligência artificial. O filme será feito por cinco pessoas. O resto será composto por robôs. Tudo recorde de bilheteria. Com superlucro. O que fica é: como é possível que uma espécie de "mea culpa" sobre uma boneca de plástico, com uma linguagem que sequer é cifrada — e por isso "todo mundo entende" — faça tanto sucesso? Sintomático. Perdemos a capacidade de entender as mensagens sem que elas sejam soletradas. Já estão surgindo comparações de Barbie com o evangelho. Barbie, 1, 15. Ou Barbie, cap 1, verso 71. "Naqueles dias ela andava com o carro rosa... e, chegando à loja, deu-se conta dos erros e dos males que havia causado com o seu modelito de moça branca, rica, e perfeita". Agora o filme traz a expiação. Com os pés chatos. Não só os pés. Na cerimônia do Oscar de 2024, uma comitiva de brasileiros e brasileiras acampará em Hollywood. Os repórteres da TV estarão vestidos de Barbie. O avião que leva a comitiva é cor de rosa. Como a Barbie. A tripulação estará vestida de Barbie. A final da Champions será em homenagem à Barbie — a ressignificação. O único filme crítico disso tudo — que certamente será esculhambado pela crítica — poderia ser feito por algum neto ou bisneto do Milan Kundera, que foi quem melhor trabalhou o conceito de kitsch. O título do filme poderia ser "Barbie — o Kitsch: de como se perfuma o lixo". De todo modo, a maioria das críticas é "encantada com o filme". Greta Gerwing, a diretora, conseguiu "colocar no chinelo" Kubrick, Spielberg, Hitchcock, Truffaut e fez o que outros gênios do cinema jamais conseguiram. Como disse um crítico, ironicamente, "Barbie está para 2023 como O Poderoso Chefão esteve para 1972". Bingo. Mas folgo em saber que não estou na contramão sozinho. Sarah Vine, do Daily Mail, disse: "É um filme profundamente anti-homens, uma extensão de todo aquele feminismo do TikTok que pinta qualquer forma de masculinidade — exceto a mais inócua — como tóxica e predatória...". No filme (e isso é facilmente perceptível), "todo personagem masculino é um idiota, um fanático ou um perdedor triste e patético. Se os papéis fossem invertidos e um diretor fizesse um filme sobre como todas as mulheres são bruxas histéricas, neuróticas e interesseiras, seria denunciado — com razão — como profundamente ofensivo e sexista". E Sarah concluiu: "O filme é desigual, desconexo, o enredo não faz sentido real — e a mão morta da América corporativa pesa muito sobre ele". Nada tenho a acrescentar, a não ser que quero meu ingresso de volta. Outra crítica que dá no "rim" do filme é feita por Fabrício Nejar já no título "Barbie é Pinochio", de sua coluna na Zero Hora: "Existe, entretanto, uma perigosa adulteração da realeza da Barbie, como se ela nunca tivesse sido alienante e consumista, como se nunca tivesse padronizado um ideal de beleza irreal, com as medidas anoréxicas de um corpo impossível de modelo, de cintura fina e pernas longas". Sigo. Na contramão. Se eu sou chato, ou se meu estatuto não me concede lugar de fala, sugiro o que disse a insuspeita Nancy Fraser à BBC Brasil. A filósofa foi no ponto sobre o neoliberalismo progressista e identitarista. Progressismo da barbielândia, digo eu. Em alguns anos, alguém no Brasil, imitando Greta, poderá fazer um filme sobre o 8 de janeiro, em que os personagens falam de como era o mundo da bolha e agora (no filme) falam das agruras do mundo da vida. Com pés chatos e cintura nem tão fina. Arrependidos. Como Barbie? Ah: o filme terá muitas ironias e "sacadas" tipo stand up. E a crítica se regozijará. MacIntyre, em seu After Virtue, tinha razão: o Know Nothing (o Partido do Saber Nenhum), baseado no emotivismo, chegou ao poder. No mundo. Essa é a distopia que daria um grande filme.
2023-08-03T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-03/senso-incomum-evangelho-segundo-barbie-power-ranger-guerrilheiro
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Opinião
França e Junquilho: Curioso caso dos pesquisadores de Direito Digital
Produzir artigos e pesquisas na área do Direito Digital constitui árdua tarefa. A começar, pela controvérsia que orbita a nomenclatura e a abrangência atribuídas ao domínio, previamente identificado pelas alcunhas de Direito Cibernético [1] ou Informático. No entanto, um problema maior acomete os pesquisadores de suas temáticas: a obsolescência — quase que instantânea — das análises produzidas. Sofremos de uma generalizada síndrome de "Benjamin Button", por meio da qual os textos produzidos pelos estudiosos do Direito Digital já nascem velhos aos olhos do público, tal como o protagonista do longa-metragem dirigido por David Fincher em 2008, ainda que tenham sido redigidos paralelamente aos fenômenos que investigam. O drama O Curioso Caso de Benjamin Button [2], levemente baseado no homônimo conto de Scott F. Fitzgerald, se serve da fantasia para explorar, com uma delicadeza ímpar, os acontecimentos da peculiar vida do personagem interpretado pelo ator Brad Pitt, a partir da narrativa epistolar intermediada pelo seu grande amor, a bailarina Daisy (Cate Blanchett), e a sua filha, Caroline (Julia Ormond). A travessia por um envelhecimento atípico singulariza a trama, centrada no elemento do tempo: enquanto Benjamin rejuvenesce a cada dia que passa, Daisy percorre o inadiável e belo caminho das rugas e dos fios de cabelo branco. Timing. Vital ao relacionamento do casal, o termo sintetiza a força-motriz no processo de inovação, retratado nos escritos sobre Direito & Tecnologia [3]. Jean Tirole sublinha como a delimitação temporal impacta a fruição de vantagens econômicas atreladas a novos produtos ou serviços. No ciclo da informação, aqueles que tiveram o timing para efetuar descobertas e conceber novidades concentram os lucros iniciais de sua comercialização, pois monopolizam o saber alusivo aos meandros de seu funcionamento. Com o passar do tempo, os concorrentes assimilam esse savoir-faire, desenvolvem produtos similares e os lançam no mercado, nivelando, assim, os ganhos econômicos [4]. Nesse cenário, observa-se a ascensão e o declínio das ondas de inovação descritas pelo economista Joseph Schumpeter. Responsável pela popularização da noção de destruição criadora, o austríaco retratava o empresário inovador como o principal impulsionador da modernização nos fatores de produção, a qual dinamizaria ciclos econômicos já estagnados. A introdução de mudanças transformadoras por tal agente despertaria uma onda de inovação, cujo rompante coincidiria com a sua gradual replicação pelos rivais de segmento e cujo ocaso se daria quanto todos ocupassem um idêntico patamar. Nesse instante, outra novidade seria apresentada e reiniciaria a conjuntura cíclica descrita [5].  O fenômeno não atinge somente a academia, mas também o debate regulatório, comumente equiparado à fábula da disputa entre a lebre e a tartaruga, tendo em vista que boa parte das leis que disciplinam o mercado digital já nascem desatualizadas. Na corrida pela normatização das inovações tecnológicas, o Direito larga numa considerável posição de desvantagem em comparação aos  inevitáveis fatos novos. Tome-se como exemplo o Artificial Intelligence Act (AI Act), o  projeto legislativo em torno das aplicações de inteligência artificial na União Europeia, que, em pouco mais de três anos de discussão, já passou por mais de três mil emendas, incluindo-se aqui as modificações destinadas a assegurar maior transparência na utilização das ferramentas de IA generativa [6]. De forma semelhante, o robusto relatório apresentado pela Comissão de Juristas designada pelo Senado Federal — cujo conteúdo ultrapassa a impressionante marca de 900 páginas — restou publicado poucas semanas após as mudanças ocasionadas pela abertura ao público do acesso à versão 3.5 do ChatGPT [7]. Efetuado pela desenvolvedora OpenAI no final de outubro, o lançamento da nova versão do modelo de IA generativa originou uma série de desafios técnicos e democratizou a utilização de um sistema inteligente que não representava o enfoque inicial das propostas legislativas, e, portanto, cuja compreensão ainda não havia amadurecido. Porém, torna-se importante frisar que, não obstante os textos legais e doutrinários na área do Direito Digital possam ser taxados como ultrapassados diante da efervescência das descobertas tecnológicas, essas produções têm o condão de rejuvenescer ao longo de sua existência, tal como o protagonista do filme em comento. Nesse sentido, elas podem representar instrumentos para que vindouros pesquisadores rememorem os acontecimentos da 4ª Revolução Industrial em curso, desde que se atentem à valiosa lição de Luciano Oliveira, desencorajadora de um exaustivo (e quiçá desnecessário) resgate do "Código de Hamurabi" — agora, em meio ao expansivo universo da inteligência artificial [8]. O efeito "Benjamin Button", típico das pesquisas e escritos a respeito das novas tecnologias, é curioso e desperta reflexões quanto à efemeridade das coisas com o caminhar do tempo, que, como canta Caetano, mostra-se "compositor dos destinos" e "tambor de todos os ritmos" [9], impondo-se de maneira soberana enquanto sacramenta a obsolescência das conclusões acadêmicas e investigativas. Por mais desafiadora que a tarefa de construir saberes na área seja, ainda acreditamos ser possível reunirmo-nos para contemplar as belezas das novas descobertas e problematizar a vida. [1] Como bem destaca Alexandre Pimentel, não obstante várias tentativas de conceituar o instituto concebido por Norbert Wiener tenham sido performadas, "atualmente existe uma tendência amplamente difundida no sentido de considerar a cibernética como a ciência investigativa das leis gerais dos sistemas de tratamento da informação, pois todo e qualquer sistema de informação tem necessariamente que recolher, elaborar e transmitir as informações". PIMENTEL, Alexandre Freire. Tratado de Direito e Processo Tecnológico - Volume II - Big Data, Justiça 4.0 e a Digitalização da Processualização, Ciberespaço, Metaverso, Legal Design e Visual Law: O Direito Processual Tecnológico. Recife: Editora Publius, 2023, p. 64. Por conseguinte, caberia ao ramo do Direito Cibernético examinar as repercussões jurídicas em torno de tais balizamentos universais. [2] O CURIOSO CASO DE BENJAMIN BUTTON (The Curious Case of Benjamin Button). Diretor: David Fincher. Produção de Warner Bros Pictures e de The Kennedy/Marshall Company. Estados Unidos: Prime Video, 2008. Streaming. [3] Embora mais simples que as demais nomenclaturas criadas pela doutrina, a expressão "Direito & Tecnologia" parece amalgamar, de maneira ampla, os fenômenos pretéritos, presentes e futuros a serem avaliados pelos seus estudiosos. [4] TIROLE, Jean. Economics for the Common Good. New Jersey: Princeton University Press, 2017, p. 430-442. [5] SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997. [6] LOMAS, Natasha. EU lawmakers back transparency and safety rules for generative AI. TechCruch+, [S.l], 11 mai. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3KcQMxk. Acesso em: 23 jul. 2023. [7] O relatório encontra-se disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/Relato%CC%81rio%20final%20CJSUBIA.pdf. Acesso em 25 jul. 2023. [8] OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurabi! A pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em Direito. E-disciplinas USP. Disponível em: https://bit.ly/3KdFuc4. Acesso em: 25 jul. 2023. [9] As poéticas descrições fazem parte da canção Oração ao Tempo, composta e interpretada por Caetano Veloso no álbum Cinema Transcendental, de 1979.
2023-08-03T06:07-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-03/franca-junquilho-curioso-pesquisadores-direito-digital
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Opinião
Daniel Borges: Desenvolvimento sustentável do patrimônio
O conceito de sustentabilidade estabeleceu um novo paradigma para a discussão dos temas ambientais, aliando a proteção ambiental ao desenvolvimento econômico, que tradicionalmente eram compreendidos como opostos. O objetivo central do instituto é garantir a equidade intergeracional, ou seja, que tanto as gerações presentes quanto as futuras tenham igualmente o direito de usufruir dos bens ambientais [1]. Em se tratando de desenvolvimento sustentável, é incomum identificar uma abordagem que aplique o conceito ao patrimônio cultural, de sorte que se enreda certo antagonismo nessa relação, pondo, muitas vezes, em lados opostos a proteção ao meio ambiente cultural e o desenvolvimento econômico. Muito embora a conceptualização de sustentabilidade, preponderantemente, venha sendo atrelada ao meio natural, esse conceito não se descola de outros meios — artificial, cultural, do trabalho, digital  [2]. Nesse sentido, cabe questionar a possibilidade de adequação conceitual — do termo sustentabilidade — ao meio ambiente cultural, isso porque, dada à sua incipiente aplicação, a sua amplitude ainda é indeterminada. Compõe esse tipo de meio ambiente o patrimônio cultural de um povo, que, para o direito brasileiro, no artigo 215, constitui-se em "[...] bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira" [3]. Dessa maneira, esse meio representa a conexão mais forte que um povo pode ter com um lugar, por representar a sua história, sua cultura, seus saberes e suas formas de manifestação, trata-se da materialização de sua identidade e autenticidade. Por conta da variedade de bens que integram o meio ambiente cultural, a sua conjuntura patrimonial pode ser dividida em material — relacionado aos bens móveis e aos imóveis — e imaterial — envolve saberes, celebrações, formas de expressão e lugares onde se concentram práticas culturais coletivas. O patrimônio cultural edificado, que integra o patrimônio cultural material, abarca tanto as edificações individualmente consideradas, quanto os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. A análise da sustentabilidade do patrimônio cultural edificado é fundamental, especialmente porque os bens culturais também são dotados de valor econômico, o que faz erigir a preocupação em relação ao uso sustentável desses bens [4]. Da mesma forma que os recursos naturais podem ser utilizados em favor do desenvolvimento, os bens culturais também podem ser utilizados para gerar riqueza, desde que estejam passíveis de preservação e operacionalização sociorresponsável. Justamente por conta dessa percepção, diferentemente do que ocorreu no passado, a partir do século 21, tornou-se indeclinável incluir os valores econômicos e ambientais na análise do patrimônio cultural [5]. Nesse sentido, "[...] o património cultural é um recurso insubstituível que pode melhorar o capital social, aumentar o crescimento econômico e assegurar a sustentabilidade ambiental" [6]. Sendo assim, diversas preocupações que recaem sobre o meio ambiente natural também são pertinentes para o meio ambiente cultural, notadamente em relação ao uso predatório desses bens, bem como à exclusão das camadas mais pobres da população do seu gozo. Para que haja o uso equânime desse patrimônio, é fulcral o encorajamento ao seu uso múltiplo e sociorresponsável. Dessa maneira, é possível mesclar atividades comerciais a empreendimentos residenciais, tanto de alto padrão quanto daqueles destinados à habitação social. Assim, a sustentabilidade do patrimônio cultural não está restrita à sua preservação [7], mas também envolve a sua destinação. Para tanto, para adequar o bem às necessidades contemporâneas, deve-se permitir que ele seja adaptado às novas demandas e aos padrões de segurança e de acessibilidade. Por essa razão, Portugal prevê a aplicação do Princípio da Proteção do Existente ao seu patrimônio edificado. "Artigo 4º, 1 - A atuação sobre o edificado existente deve sempre integrar a preocupação de uma adequada preservação e valorização da preexistência, bem como a sua conjugação com a melhoria do desempenho, que deve sempre orientar qualquer intervenção de reabilitação." [8] Percebe-se a preocupação da legislação portuguesa em associar a preservação à melhoria do desempenho, pois ter a preservação a qualquer custo como objetivo protetivo é incompatível com o desenvolvimento sustentável do patrimônio cultural. De igual modo, pode-se afirmar que a proteção adequada da natureza não pode ser confundida com a sua inviolabilidade. Isso posto, da mesma forma que a proteção ao meio ambiente natural não se pode constituir em um "culto da vida silvestre" [9]; o uso adequado dos bens culturais perpassa pela aproximação entre a preservação do patrimônio e o seu uso econômico. Aquilo que aqui se convencionou chamar de "sustentabilidade do patrimônio cultural" tem uma acepção ampla, abrangendo todos os aspectos relacionados ao meio ambiente cultural. Nesse sentido, devem-se incorporar técnicas de proteção à natureza a esses bens, ao mesmo tempo em que são gerados impactos sociais e econômicos positivos. Dentre as possibilidades que se apresentam para alcançar a sustentabilidade do patrimônio cultural, um modelo, apesar de desafiador, já vem sendo largamente utilizado no mundo [10]: o retrofit [11]. Trata-se o retrofit de uma palavra da língua inglesa, utilizada para designar as intervenções realizadas em um prédio antigo para que seu uso possa atender às necessidades contemporâneas por meio da utilização de novas técnicas e padrões construtivos. Outras denominações podem ser associadas a essa técnica, quais sejam: reutilização adaptável, reuso, remodelação, requalificação, adaptação, conversão, reabilitação ou renovação. Como uma interseção entre a proteção aos meios ambientes natural e cultural, é possível identificar práticas sustentáveis que são adotadas nos projetos de retrofit. Como exemplos disso, têm-se: o reuso da água; a introdução de painéis para a produção de energia solar; a seleção de materiais duráveis que utilizem menos recursos naturais em sua produção; entre outras iniciativas [12]. Mesmo que um projeto desconsidere o uso de tecnologias sustentáveis, a reabilitação de edifícios antigos, por si só, já traz impactos positivos ao meio ambiente natural. Primeiramente, porque, no geral, demanda menos insumos do que construir partindo do zero. Além disso, por conta das limitações tecnológicas da época de construção dos edifícios antigos, os recursos naturais precisavam ser mais bem utilizados, a exemplo do uso da ventilação natural — em lugar dos climatizadores de ar — e da iluminação natural — em vez de lâmpadas —, reduzindo os gastos energéticos. Além disso, o reaproveitamento de edifícios antigos ainda pode representar um ganho social e urbanístico, pois, no processo de crescimento das cidades, existe um padrão de ocupação nas suas bordas em detrimento das áreas centrais, o que gera um impacto negativo, tanto para a população mais pobre quanto para o erário [13]. As estruturas urbanas já implementadas nas áreas centrais, como transporte público, malha viária, iluminação e saneamento básico acabam sendo subutilizadas, enquanto novas construções nas zonas periféricas, muitas vezes, carecem dessa infraestrutura. Assim, ou as pessoas que residem nessas áreas não terão acesso aos serviços públicos básicos, ou o erário terá que arcar com altos custos para a sua implementação. A ocupação de imóveis antigos nas áreas centrais ainda auxilia a redução do déficit habitacional nas grandes cidades, pois muitos imóveis dotados de valor histórico e cultural estão desocupados e poderiam ser revertidos em moradias populares. Complementando os projetos de habitação social, a inauguração de empreendimentos de alto padrão, a diversificação do comércio e a implementação de hotéis permitem o aumento do fluxo de recursos financeiros, trazendo novos investimentos e a criação de novos empregos, conferindo vitalidade à essas regiões. Esse conjunto de fatores contribui com a sustentabilidade cultural do patrimônio, sendo fundamental para a sua preservação. Por essa razão, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por meio da portaria nº 375/2018, reconheceu a necessidade de se garantir a sustentabilidade ambiental, social e econômica do patrimônio edificado (artigo 55). "Artigo 55. As ações e atividades de Conservação, buscando contribuir para a sustentabilidade dos bens protegidos, devem: [...] III - Fomentar os usos tradicionais, o uso habitacional e demais usos que apoiem e incentivem a permanência, nas imediações do bem, da população em suas rotinas diárias; e IV - Agregar soluções que visem à eficiência energética, à diminuição da geração de resíduos e ao uso de materiais e técnicas que minimizem o impacto ao meio ambiente." Conforme a normativa do órgão, apesar de os projetos de conservação terem como elemento central a preservação dos imóveis, não podem deixar de incluir ações que garantam a sua sustentabilidade. Diante do exposto, conclui-se que não apenas é possível, mas também recomendado, aplicar o conceito de desenvolvimento sustentável ao patrimônio cultural. Nesse sentido, destaca-se que gerir o patrimônio cultural edificado de maneira sustentável é uma tendência no mundo contemporâneo, porquanto se trata de uma forma de conciliar a sua proteção com o desenvolvimento social, econômico e a preservação do meio ambiente natural. Apenas assim poderá ser preservado para as próximas gerações. [1] CÔRTES, Aline S.; VALE, Marília Maria B. T. As inflexões entre a conservação do patrimônio cultural e a sustentabilidade: um estudo sobre as capelas rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Revista Projetar, Projeto e Percepção do Ambiente, v. 6, n. 2, maio 2021. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/revprojetar/article/view/23102/14230. Acesso em: 20 jul. 2023. [2] FIORILLO, Celso Antonio P. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2020.  [3] BRASIL. Constituição Federal. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. [4] MARCHESAN, Ana Maria M. Os Princípios Específicos da Tutela do Meio Ambiente Cultural. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 73, jan. 2013 – abr. 2013, p. 97-123. Disponível em: http://amprs.com.br/public/arquivos/revista_artigo/arquivo_1383851594.pdf. Acesso em: 02 maio 2023. p.112-113. [5]PEREIRA, Júlio César. Sustentabilidade no patrimônio histórico nas edificações revitalizadas. PATORREB 2018 – 6ª Conferência sobre Patologia e Reabilitação de Edifícios. 04 a 06 de abril de 2018. UFRJ. Disponível em: https://www.nppg.org.br/patorreb/files/artigos/80497.pdf. Acesso em: 19 jul. 2023. [6] European Commission, Directorate-General for Education, Youth, Sport and Culture, Quadro de ação europeu no domínio do património cultural, Publications Office, 2019. Disponível em: https://data.europa.eu/doi/10.2766/09353. Acesso em 03 mai. 2023. p.11. [7] Apesar de os termos preservação e conservação terem acepções distintas para o Direito Ambiental, elas não serão apresentadas no presente artigo. Optou-se por utilizar o termo "preservação" genericamente, por ser o mais usual quando se quer referir à integridade dos bens culturais. [8] Portugal. Decreto-Lei n.º 95/2019. Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), de 18 de julho de 2019. Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/95-2019-123279819. Acesso em: 14 set. 2023. [9] ALIER, Joan Martínez. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2009. p. 243. [10] Como exemplo, pode-se citar a iniciativa da união europeia intitulada "Quadro de ação europeu no domínio do património cultural", o qual infere que "[...] a sustentabilidade é um dos cinco pilares do quadro de ação europeu no domínio do património cultural, que destaca o seu potencial para reforçar o capital social, impulsionar o crescimento económico e garantir a sustentabilidade ambiental. A cultura e o património cultural contribuem para um desenvolvimento inclusivo e sustentável". (EUROPEAN COMMISSION. Sustentabilidade e Património Cultural. 2019. Disponível em:  https://culture.ec.europa.eu/pt-pt/cultural-heritage/cultural-heritage-in-eu-policies/sustainability-and-cultural-heritage. Acesso em: 03 mai. 2023. p.1. [11] PEREIRA, op. cit., p. 5. [12] Ibidem. [13] PINHEIRO, Filipa Serôdio. Novos usos de edifícios como forma de reabilitação urbana. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito Geral) – Universidade Católica Portuguesa. Coimbra, Porto, 2015.
2023-08-05T13:28-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-05/daniel-borges-desenvolvimento-sustentavel-patrimonio
academia
Observatório Constitucional
A trilha sonora da Constituição (para comemorar seus 35 anos)
A história do(s) constitucionalismo(s) é a história das revoluções por limitações de poderes e conquistas de direitos. As atuais garantias constitucionais são frutos de reivindicações populares que marcaram a história política dos últimos 250 anos. Mas a partir do início do século 20, com o surgimento das tecnologias de radiodifusão, gravação e reprodução de áudio (especialmente o rádio e o gramofone), os movimentos revolucionários assumiram uma característica histórica peculiar: eles passaram a ser embalados por músicas cujas letras e melodias os inspiraram na luta pelos direitos. Os momentos constitucionais do século 20 possuem a sua própria trilha sonora, que não apenas os distingue historicamente das antigas revoluções francesa e norte-americana como é capaz de traduzir culturalmente a sua identidade e o seu espírito político. Os principais gêneros musicais da primeira metade do século 20 originaram-se de estados de insatisfação social e movimentos insurgentes de caráter popular. O blues e, posteriormente, o jazz desenvolveram-se a partir das tradições musicais africanas no seio da comunidade afrodescendente norte-americana (especialmente do sul dos Estados Unidos) como expressão cultural de contestação e de resistência às políticas de segregação racial. O grande sucesso e a difusão mundiais desses ritmos estão atrelados justamente ao caráter revolucionário da criação artística negra contra as desigualdades sociais históricas, como bem explicou Eric J. Hobsbawm na sua conhecida obra História Social do Jazz [1]. No Brasil, antes de se converter em símbolo da cultura nacional, o samba teve sua origem nas manifestações rítmicas espontâneas das comunidades afrodescendentes das regiões urbanas do Rio de Janeiro e assim converteu-se em expressão político-cultural de resistência [2]. Mas foi na segunda metade do século 20 que surgiu o mais impactante e revolucionário gênero musical da época: o rock and roll. Originado nos anos 50 a partir do desenvolvimento e mesclagem do blues, do jazz e do rhythm and blues, o rock nasceu como genuína música de protesto e, assim, foi rapidamente adotado pelos principais movimentos de contestação política e reivindicação de direitos das décadas de 1960-70. O rock se conectou de modo tão umbilical com os movimentos populares daqueles anos, que hoje é difícil realizar qualquer retrospectiva histórica dos mais emblemáticos protestos do período — como, por exemplo, as passeatas estudantis de maio de 1968 na França, ou as grandiosas reuniões de jovens norte-americanos contrários à Guerra do Vietnã — sem relembrar as músicas dos Beatles ou as letras de Bob Dylan. No Brasil, apesar de a ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964 ter obtido relativo sucesso inicial na censura das músicas de protesto, do ponto de vista histórico, é inegável que o período acabou ficando marcado pelas canções que mais o contestaram politicamente, como as inesquecíveis obras de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, o movimento Tropicália e o rock dos Mutantes, entre vários outros. Expressões musicais de resistência política como "esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer" (Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, 1968), e "caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento" (Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, 1977), fazem parte do imaginário popular a respeito de todo um período da história nacional. Os anos 1960 e 70 unificaram os protestos populares e as músicas que os embalaram em um só fenômeno cultural e político, de modo que cada movimento social passou a ter na sua identidade a própria trilha sonora. Ao final dos 60, quando Paul McCartney cantou "Black Bird fly...", não foram poucos os que traduziram o refrão dessa famosa música dos Beatles como uma ode à mulher negra e um manifesto pela sua liberdade e igualdade, o que acabou influenciando os movimentos antirracistas da época. E nos anos 1970, ninguém melhor do que Bob Dylan para colocar na letra de Hurricane um poderoso manifesto político pela observância das garantias do devido processo legal. Na mesma época, processos de independência e de transição de regimes em diversos países receberam apoio político além de suas fronteiras por meio dos festivais e grandes concertos internacionais de música, os quais funcionaram como trincheiras de reivindicação e de resistência. Hoje, não é possível abordar do ponto de vista histórico a independência de alguns países africanos sem citar, por exemplo, a influência e o incentivo recebidos das letras e do reggae de Bob Marley, com especial destaque para a música Zimbabwe, de 1979. Foi assim que as primeiras décadas da segunda metade do século 20 formaram um caldo cultural e político que tornou determinante a conexão dos momentos constitucionais da época com as músicas que os marcaram. Praticamente todas as constituintes desse período histórico foram influenciadas por canções de protesto. E, nesse mesmo contexto, não poderia ser diferente em relação à Constituição do Brasil, igualmente fruto político dessa atmosfera cultural dos anos 1960 e 70. A Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988, mas o momento constituinte brasileiro remonta ao decênio que a antecede. Desde finais dos anos 1970, especialmente a partir da Lei de Anistia de 1979, o país ingressou em um gradual processo político de abertura do regime, dando início à transição para a democracia que culminaria no pacto constitucional de 88. A memória do período reaviva as músicas de protesto que mais tocaram nas rádios e que de fato influenciaram o ambiente político daquele importante momento da história brasileira. Havia um grande anseio popular por democracia, que também se traduzia por meio das músicas, nacionais e internacionais, que todos cantavam na época. Entre tantas outras, é importante recordar a música Ebony and Ivory, interpretada por Paul McCartney e Stevie Wonder, que dominou as paradas de sucesso das rádios em todo o mundo, especialmente no Brasil, no ano de 1982. A mensagem política do refrão era clara e impactante: "O ébano e o marfim, vivem juntos em perfeita harmonia, lado a lado em meu piano, oh, Deus, por que nós não podemos?" [3]. Na interpretação musical, McCartney, um branco, e Wonder, um negro, tocaram juntos (lado a lado) as teclas brancas (de marfim) e as negras (de ébano) do piano e assim conseguiram construir uma das melhores metáforas da época para reivindicar mais igualdade e harmonia em sociedades marcadas historicamente pela escravidão, como é o caso do Brasil. A música teve forte repercussão em países de grande população afrodescendente, caracterizados pela desigualdade, e chegou a ser censurada na África do Sul, ainda sob o regime de apartheid. A letra impressionou especialmente o compositor brasileiro Milton Nascimento, que nos anos seguintes se converteria numa das principais vozes musicais do momento constituinte dos anos 80. O impulso decisivo para a redemocratização do país ocorreu a partir de 1983, com a campanha das Diretas Já, o maior movimento popular da história brasileira, cuja pauta reivindicava o direito fundamental ao voto direto para presidente da República. Foi a primeira vez na história do país que o povo efetivamente participou do momento constituinte, nas ruas e com muita alegria. A participação popular acelerou a transição, que havia sido iniciada com a pretensão de ser "lenta, gradual e segura". No recente livro O Girassol que nos Tinge [4], o jornalista Oscar Pilagallo bem descreve as características culturais das manifestações da época: "As Diretas Já foram a campanha política mais popular da história do Brasil. Mas não só. Foram também um intenso movimento cultural que, mais do que gravitar em torno da agenda suprapartidária, galvanizou a repercussão da mensagem, emprestou criatividade à narrativa e transformou palanques sisudos em palcos animados, amalgamando para sempre o melhor momento da memória coletiva da sociedade civil" [5]. De fato, as manifestações populares que impulsionaram a transição democrática no início dos anos 1980 diferenciavam-se não apenas por seu tamanho, nunca antes visto no país, mas pelo inédito viés cultural, no qual a musicalidade dos protestos tornou-se a principal característica do movimento. Como Pilagallo bem observou: "A criatividade vazava por slogans matadores, músicas empolgantes, performances modernistas e manifestos poéticos, o que emprestava uma dimensão estética à questão política" [6]. Entre o início da campanha das Diretas Já, em 1983, e a promulgação da Constituição, em 1988, o país cantou junto as músicas que animaram o processo de redemocratização e ficaram marcadas na história brasileira como a trilha sonora do momento constitucional dos anos 80. O dia 27 de novembro de 1983 foi um dia triste para o país, em razão da morte de Teotônio Vilela, um dos políticos mais obstinados na defesa das eleições diretas. Ao mesmo tempo, o acontecimento acabaria dando mais fôlego ao movimento, quando em comício realizado na Praça Charles Miller, em São Paulo, Fernando Henrique Cardoso pediu um minuto de silêncio e pronunciou: "Todos haverão de lembrar que a campanha pelas eleições diretas ganhou as praças no dia em que Teotônio, que tanto lutou por elas, morreu" [7]. A partir daquele domingo, a canção Menestrel das Alagoas, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant em homenagem a Teotônio Vilela, se tornaria um dos hinos das Diretas, na interpretação de Fafá de Belém, que por sua vez seria reconhecida como a musa do movimento. Três outras grandes canções compostas por Milton Nascimento no início da década de 1980 entrariam para a trilha sonora daquele momento histórico. Em Coração Civil, Milton cantava "os meninos e o povo no poder, eu quero ver, São José da Costa Rica, coração civil, me inspire no meu sonho de amor Brasil", uma reivindicação de efetiva cidadania para os brasileiros, com nítida inspiração na Convenção Americana dos Direitos Humanos, denominada Pacto de San José da Costa Rica, que entrara em vigor internacionalmente no ano de 1978. A famosa canção Nos Bailes da Vida igualmente marcou aquele período, com o seu verso eloquente "todo artista tem de ir aonde o povo está", uma conclamação à participação dos artistas nos movimentos populares. Mas a música de Milton (o Bituca) que provavelmente mais foi cantada naquele momento foi Coração de Estudante, cujas letra e melodia evocavam o espírito de esperança dos brasileiros. No dia 21 de abril de 1985, a morte de Tancredo Neves foi anunciada em cobertura especial do programa Fantástico, da Rede Globo, que escolheu a música para a homenagem a uma das figuras públicas mais importantes do processo de redemocratização do país. Apesar da comoção nacional, a canção convidava a renovar as esperanças por dias melhores, que certamente viriam, como Tancredo havia prometido: "Mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia, e há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor e fruto". As músicas de protesto que Chico Buarque havia composto como resistência à ditadura também foram adotadas pelas manifestações. Entre outras, teve especial impacto a famosa Apesar de Você, cuja letra encaixava-se perfeitamente nos anseios sociais daquele momento: "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia, você vai ter que ver a manhã renascer, e esbanjar poesia". Chico ainda teria protagonismo nas rádios com Vai Passar, expressão que foi usada nos comícios das Diretas na torcida pela aprovação no Congresso Nacional da emenda Dante de Oliveira [8]. Como não poderia deixar de ser, o rock brasileiro teve papel importante como música de protesto no período constituinte. Em 1987, a Legião Urbana extravasava a crítica política com a música Que País é Este e pregava para a juventude brasileira "temos nosso próprio tempo,...temos todo tempo do mundo", com a letra de Tempo Perdido. A campanha das Diretas utilizou em diversas manifestações o polêmico verso "a gente não sabemos escolher presidente", que inaugura a música Inútil da banda Ultraje a Rigor (1983). E em ritmo de rock, Caetano Veloso gravou Podres Poderes para fazer duras críticas à política nacional, no mesmo ano da rejeição pelo Congresso da emenda Dante de Oliveira (1984). Além das músicas de protesto, o período também ficou marcado pelas canções que pregaram a esperança e imaginaram um futuro promissor para o país. Em Novo Tempo (1980), Ivan Lins criou versos que emitiam uma importante mensagem para aquele período de transição de regime: “Pra que nossa esperança, seja mais que a vingança, seja sempre um caminho, que se deixa de herança". Tiveram também destaque: Sal da Terra, de Beto Guedes (1981); Brincar de Viver, de Maria Bethânia (1983); e Sementes do Amanhã, na interpretação de Erasmo Carlos (1984). Músicas que resgataram o sentimento de brasilidade tiveram importante papel de encorajamento de toda a sociedade para os desafios políticos daquele momento, com especial relevância para: De volta ao Começo” (1980), O que É, o que É? (1982) e Alô, Alô Brasil (1983), todas de Gonzaguinha; Canta Brasil (1981), de Gal Costa, a qual também gravou uma inesquecível interpretação de Aquarela do Brasil (1980); assim como Verde e Amarelo, de Roberto Carlos, que tocou incessantemente nas rádios brasileiras a partir do ano de 1985. O conjunto dessas músicas pode trazer à memória a atmosfera cultural do momento constituinte brasileiro. Toda Constituição possui um fundamento cultural que a identifica e a conecta com a história do seu povo. A sociedade brasileira é caracterizada pela riqueza das expressões artísticas, pela criatividade popular, pela espontaneidade rítmica e pela diversidade de tradições musicais. A constituinte da década de 1980 fez aflorar toda a potência cultural do país e foi capaz de amalgamar toda essa pluralidade em uma verdadeira Constituição Cultural. A cada 5 de outubro, renova-se a oportunidade de trazer à tona essa essência cultural da Constituição. Na festa dos 35 anos da Constituição de 1988, comemoremos com as músicas que embalaram o momento constituinte dos anos 1980 no Brasil! Para escutar a trilha sonora da Constituição de 1988, clique aqui   [1] HOBSBAWM, Eric. J. História Social do Jazz. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2022. [2] NETO, Lira. Uma história do samba. São Paulo: Companhia das Letras; 2017. [3] "Ebony and ivory, Live together in perfect harmony, Side by side on my piano keyboard, Oh, Lord, why don't we?". Ebony and Ivory (McCartney e Wonder), Tug of War, de Paul McCartney, 1982. [4] PILAGALLO, Oscar. O Girassol que nos tinge: uma história das Diretas Já, o maior movimento popular do Brasil. São Paulo: Ed. Fósforo; 2023. [5] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 200. [6] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 13. [7] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 169. [8] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 80.
2023-08-05T08:00-0300
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Opinião
Alisson Moraes: Interface entre Direito e políticas públicas
Durante os cinco anos de graduação em Direito, não tive a oportunidade de estudar, sequer superficialmente, a temática das políticas públicas e a sua interface com o universo jurídico. Nem ao menos me lembro de a expressão "políticas públicas" ter sido, em algum momento, abordada ao longo dos dez períodos de faculdade. Nesta terceira década do século 21, muitos discentes já compreenderam que não é possível conceber, adequadamente, a missão do Direito na contemporaneidade sem, necessariamente, incluir as discussões conceituais acerca das políticas públicas e suas correlações seminais com o âmbito jurídico. As faculdades de direito, mais notadamente as cátedras de Direito Administrativo e Direito Constitucional, ao omitirem essa temática, provocam um déficit formacional significativo nos futuros operadores do direito. Este breve artigo almeja instigar esse debate e despertar o interesse dos leitores desta ConJur para esta relação, muito mais necessária e essencial do que se pode imaginar. Há cerca de um ano, tenho ministrado aulas na disciplina "Contexto Jurídico-Político e Gestão na Administração Pública Contemporânea" na pós-graduação lato sensu em Direito Administrativo da PUC-Minas. O curso se sustenta em três pilares: 1) a governança e a gestão, compreendidas como sistemas que visam ao alcance de objetivos previamente definidos, com a consequente eficientização da administração pública; 2) perspectivas sociopolíticas acerca dos desafios da democracia no Brasil e no mundo; e 3) o modo pelo qual o ordenamento jurídico brasileiro e, especialmente, o Direito Administrativo se vinculam aos outros dois pilares. O conteúdo programático da disciplina traz uma unidade inteiramente dedicada à interface entre o Direito e as políticas públicas (abrangido no primeiro pilar explicitado no parágrafo anterior), apresentando autores clássicos do campo multidisciplinar das políticas públicas, a evolução dessa conceituação, desde a década de 1950, e algumas das discussões contemporâneas mais candentes sobre a interface entre essas duas áreas do conhecimento. Compreender a temática exige examinar a diferenciação entre as políticas públicas e as políticas governamentais, a definição de problema público, os conceitos sobre as macrodiretrizes estratégicas — e sua subdivisão tática e operacional em programas, projetos e ações — inseridas na esfera do planejamento governamental, além de analisar o papel das legislações orçamentárias na consecução das políticas; bem como investigar, criticamente, a ambiência geratriz delas, na qual os interesses, as preferências e as ideias sobre as políticas públicas se materializam, impactando na condução política da sociedade. Outro aspecto relevante a ser conhecido pelos operadores do direito diz respeito ao processo de elaboração de políticas públicas ou policy making process (também conhecido como Ciclo de Políticas Públicas). Trata-se de um esquema de visualização e interpretação que organiza a vida de uma política pública em fases sequenciais e interdependentes. Seu proponente precursor foi o cientista político estadunidense Harold D Lasswell no livro The Decision Process [1], posteriormente revisto, criticado e aprimorado por diversos autores até os dias atuais. Uma das formatações mais aceitas no Brasil considera que estas são as etapas do ciclo (SECHI, 2022): 1) Identificação do problema; 2) Formação da agenda; 3) Formulação de alternativas; 4) Tomada de decisão; 5) Implementação; 6) Avaliação; e 7) Extinção. Nota-se, desde a primeira etapa do ciclo de políticas públicas até a última, a indispensabilidade da atuação do operador do Direito. Não apenas para forjar uma linguagem jurídica aos atos emanados pela administração pública (revestindo-os de legalidade) como também para a observância legal e constitucional do mérito das políticas públicas — a partir a identificação do problema público e o método desta identificação, até a extinção da política pública. A interface entre o Direito e as políticas públicas, portanto, precisa ser vista, holisticamente, tendo como fundamento o próprio cumprimento dos desígnios constitucionais: "Ao constitucionalizar fins, objetos e projetos para a sociedade por intermédio das políticas públicas, optou-se por um Estado não apenas regulador e garantidor da coesão social, mas também protetor. Essa percepção condiciona certos posicionamentos no âmbito das políticas públicas, determinando quais programas de ação governamental poderão ser iniciados, interrompidos, alterados ou prosseguidos" (Valle, 2009, apud Ximenes, Julia Maurmann, 2021). Como um campo relativamente novo, as relações entre o direito e as políticas públicas no Brasil foram exploradas, visionariamente, na década de 1990, por Maria Paula Dallari Bucci [2]; ainda que o foco da professora tenha sido majoritariamente o direito administrativo e não amplamente o direito concebido holisticamente. Desde então, o número de publicações sobre a temática correlacionada tem expandido significativamente; reunindo, atualmente, livros, teses de doutorado, dissertações de mestrado, além de dezenas de artigos científicos. Há de se ressaltar, contemporaneamente, o protagonismo do Grupo Direito e Políticas Públicas (GDPP) da USP, responsável por promover um debate acadêmico fundamental sobre o papel do direito na implementação das políticas públicas, objetivando examiná-las sob a ótica jurídica para torná-las mais efetivas e democráticas, na esteira do mister constitucional. O GDPP foi criado pela Faculdade de Direito da USP em 2007, e tem contribuído ativamente para esse incipiente diálogo no Brasil, possibilitando o aclaramento das relações entre o arcabouço jurídico e a atuação dos profissionais do direito nas políticas públicas. Numa interpretação exegética extensiva (e correta, a nosso ver) do artigo 133 da Constituição [3], o advogado precisa ser compreendido como um profissional indispensável à manutenção e ao aprimoramento da própria ordem democrática. Assim, o operador do direito (para além mesmo do próprio advogado) deve, imprescindivelmente, não apenas conhecer sobre as políticas públicas, mas também atuar no sentido de seu aperfeiçoamento constante — o que, por si só, revela-se conditio sine qua non para a evolução do Estado Democrático de Direito, uma conceituação tão utópica quanto necessária para a realização do mister constitucional de se construir, no Brasil, uma sociedade livre, justa e solidária, conforme dispõe o legislador constituinte no artigo 3º, I da Carta Magna [4].   Referências BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997. BRASIL. [Constituição (1988)]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Artigos 3º, I e 133. LASSWELL, Harold. The Decision Process: Seven Categories of Functional Analysis. College Park: University of Maryland, 1956. SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 2ª ed. São Paulo: Cengage Learning, 2022. Valle, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2009. Ximenes, Julia Maurmann. Direito e políticas públicas / Julia Maurmann Ximenes. – Brasília: Enap, 2021. [1] LASSWELL, Harold. The Decision Process: Seven Categories of Functional Analysis. College Park: University of Maryland, 1956. [2] BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997 [3] BRASIL. [Constituição (1988)]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Artigo 133. [4] BRASIL. [Constituição (1988)]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Artigo 3º, I.
2023-08-05T07:07-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-05/alisson-moraes-interface-entre-direito-politicas-publicas
academia
Cotas raciais
XX Concurso para Magistratura Federal realiza heteroidentificação
Foi realizado, nesta sexta-feira (4/8), o procedimento e heteroidentificação do XX Concurso para Magistratura Federal. O certame visa preencher vagas para os cargos de juiz federal substituto da Justiça Federal da 3ª Região. O concurso teve número recorde de aprovados para a prova oral, com 146 candidatos que se qualificaram para a próxima fase. Dentre esses, 19 candidatos de autodeclararam negros.  O desembargador federal Paulo Fontes, presidente do XX Concurso, também liderou a mesa de abertura e destacou a importância da política de cotas raciais para ampliar o acesso de pessoas negras aos quadros da magistratura. O procedimento de heteroidentificação dos 13 candidatos e 6 candidatas que se autodeclararam pessoas negras foi baseado exclusivamente no critério fenotípico pela Comissão de Heteroidentificação. Tudo foi filmado para fins de registro e avaliação. A gravação poderá ser utilizada na análise de possíveis recursos.  O procedimento de heteroidentificação é uma política de ação afirmativa que visa evitar fraudes e garantir o acesso da população negra a cargos públicos. A Comissão de Heteroidentificação foi composta pela desembargadora Federal Inês Virgínia Prado Soares (presidente), pela procuradora regional da República Geisa de Assis Rodrigues, pela antropóloga Cinthia Marques Santos,  pelo defensor público Vinícius Conceição Silva e pela professora e historiadora Silvane Aparecida da Silva. A banca também foi composta pelas suplentes Eliane Leite Alcantara Malteze, diretora da Escola Técnica Centro Paula Souza, e Karine de Paula Bernardino, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP).  A Turma Recursal é formada pela desembargadora federal Daldice Maria Santana de Almeida, pela advogada Cláudia Patrícia Luna e pelo advogado Estevão André da Silva.
2023-08-06T12:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-06/xx-concurso-magistratura-federal-realiza-heteroidentificacao
academia
Nova obra
Desembargador Jatahy Júnior, do TJ-BA, lança seu primeiro livro
 O desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia Jatahy Júnior lança, neste mês, o seu primeiro livro: "Tecendo Palavras e Silêncios." Os capítulos estão relacionados à pesquisa de mestrado do autor, na Universidade Federal da Bahia, e mais investigações no ambiente jurídico brasileiro. O prefácio do obra ficou a cargo do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Reynaldo Soares da Fonseca, que destaca: "O livro é uma eclosão de lampejos e intuições do seu florescimento como ser lançado no mundo da vida com tantos outros, seus atravessamentos afetivos primais tornados pensamentos expressos poeticamente e com a marca de uma ironia cortante e ridente, já despojada do peso inútil dos ressentimentos."
2023-08-06T08:48-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-06/desembargador-jatahy-junior-tj-ba-lanca-primeiro-livro
academia
Grandes temas, grandes nomes do Direito
Arbitrariedade se combate com conhecimento jurídico, diz Capez
No âmbito do Direito Penal, não há mecanismo melhor para combater o abuso de autoridade do que o próprio conhecimento jurídico e a objetividade da lei, afirma o jurista e professor Fernando Capez. Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e especialista em Direito Penal, Capez falou sobre a importância da dogmática jurídica em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com alguns dos principais nomes do Direito brasileiro e internacional. Para Capez, no cenário atual, em que a lei tem sido frequentemente aplicada de maneira arbitrária, é de suma importância restabelecer a Ciência Jurídica como forma de solução dos principais problemas relacionados ao Direito Penal no país. "Diante da enorme instabilidade política e jurídica que tomou conta do Brasil nos últimos 15 anos, há uma tendência de que a Justiça se torne muito prática, abandonando os padrões objetivos de legalidade em troca do uso retórico de princípios vagos, imprecisos, e até de jargões para justificar decisões que muitas vezes são contrárias ao texto objetivo da lei e à própria letra expressa da Constituição", contextualizou Capez. Nesse sentido, segundo o procurador, cabe à classe jurídica discutir, sob diversos prismas, os diplomas legais mais sensíveis a essa problemática — como a Lei de Lavagem de Dinheiro, por exemplo. Assim, ele destaca que a discussão deve abordar aspectos como a eficiência da lei, a garantia dos direitos humanos e o respeito ao devido processo legal no curso das investigações, com o atendimento ao contraditório e à ampla defesa — tudo isso, porém, sem comprometer a proteção do patrimônio público e de outros valores ligados ao delito de lavagem. Aprofundando a análise, Capez deu exemplos dessa abordagem em relação ao aspecto subjetivo dos atos de lavagem de dinheiro, principalmente quanto às condutas de ocultar e dissimular. "A lei trata da necessidade do dolo direto. Quisesse o legislador adotar o dolo eventual, ele teria dito claramente: 'sabe ou deve saber [o ocultador ou dissimulador] ser origem de infração penal'. Como o legislador omitiu o 'deve saber', nós devemos interpretar a lei na literalidade das condutas de ocultar e dissimular, o que pressupõe certeza, ciência da origem ilícita", explicou o procurador licenciado. Ainda sobre a importância de se ater ao que diz o texto da lei, Capez falou sobre o princípio da confiança no âmbito da Lei de Lavagem. "Está fora do âmbito da proteção da norma exigir, por exemplo, que um gerente de banco faça todas as diligências possíveis para apurar se aquele produto que ele está recebendo tem origem ou não em infração penal. Se aquilo não tem uma aparência clara de infração penal, não é dever do gerente fazer maiores diligências. Ele age na confiança de que seu cliente, que está trazendo os recursos, atua dentro da legalidade", disse Capez. Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-08-07T16:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-07/arbitrariedade-combate-conhecimento-juridico-capez
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Opinião
Giovanna Wanderley: ​​​​​​​Gastrodiplomacia e mercado da saudade
O termo gastrodiplomacia foi citado pela primeira vez em 2002, em uma edição impressa do The Economist que abordava a estratégia bem sucedida da Tailândia em usar a sua gastronomia para difundir a cultura local e fortalecer a identidade nacional. A partir de então, vários outros países passaram a utilizar a gastrodiplomacia como soft power na construção do seu branding internacional. O Peru foi um deles. Ao pensar no Peru, automaticamente, a maioria das pessoas lembram da sua culinária, ao lado de Machu Picchu, sem sequer imaginar que o país experimenta instabilidade política que motiva manifestações populares, como a recente "Tomada de Lima" (O Globo, 2023), responsáveis por fechar rodovias, suspender o acesso aos logradouros públicos e atrações turísticas.  Na história peruana conhecida por estrangeiros, certamente há passagens da ancestralidade inca, exuberância dos andes e seus camelídeos, mas dificilmente haverá registros do "Sendero Luminoso", grupo paramilitar semelhante às Forças Armadas da Colômbia (Farc), descontentes com a representação política do país. Curiosamente, as ações do Sendero foram narradas no livro Lituma dos Andes de Mário Vargas Llosa, escritor ganhador do Nobel da Literatura em 2010, conhecido por outras obras. Diante de passagens históricas como as citadas acima, o Peru (re)construiu a sua imagem a partir da gastronomia e suas ligações com a cultura e natureza, por meio da Marca Peru (2023). A Future Brand, empresa que criou a marca e, por conseguinte, o branding a ela associado, descreve em seu portfólio que o Peru "é um país único que tem uma abundância de atrações, benefícios e oportunidades que são escassos em qualquer outro lugar do mundo". Além de movimentar a economia, uma vez que a licença para uso é paga, a Marca Peru aumentou o alcance interno e internacional dos produtos típicos, receitas, restaurantes, rotas turísticas, feiras, ações de fomento, oportunidades de investimento externo e premiações, a exemplo do World’s 50 Best, promovido pelo Guia Michelin e que elegeu o restaurante peruano "Central" como o melhor do mundo. O Central é comandado pelo chef Virgilio Martínez, embaixador da Marca Peru e idealizador do Projeto Mater Iniciativa (2023), para valorização dos elementos nativos dos ecossistemas andinos na gastronomia. A ideia de singularidade e o forte apelo cultural e identitário da gastronomia após a Marca Peru, trouxe novos contornos à gastrodiplomacia peruana e fez (res)surgir uma nova nuance também para o "mercado da saudade", cujo público original era o peruano residente fora do  país, alcançando os estrangeiros que queriam experimentar os sabores andinos, muitos deles sem sequer ter pisado na terra dos incas. A fascinação pela cultura e o anseio pela experiência sensorial trazida pela comida peruana, vem mostrando a capacidade da gastrodiplomacia mostrar ao mundo uma nova visão de um país. Semelhante fascínio pela gastronomia, cultura e exuberância natural é identificado no Brasil, mas de maneira rarefeita e em sua maioria atrelada à Amazônia. Elementos como o açaí, castanha do Pará, fava Tonka, oriundos da floresta, são conhecidos em todo o mundo, não só na gastronomia, mas sobretudo na indústria cosmética e a fragilidade de planos de preservação ambiental já foi, inclusive, motivo de tensões diplomáticas na negociação de acordos internacionais, como o que se tentou estabelecer entre o Brasil e a União Europeia. Nessa esteira, a Tailândia e o Peru foram inspirações para o Projeto Amazônia 2030, idealizado por Roberto Smeraldi e Saulo Jennings (2023) para o desenvolvimento de um plano brasileiro de soft power, centrado na gastrodiplomacia da Amazônia e concebido para construir uma "marca global com características positivas" para o país. Com a devida vênia, a genialidade do projeto de valorização da cultura amazônida, poderia ser encampada como um projeto maior e apto a englobar o Brasil, além da Amazônia, assim como fez o Peru, que também possui uma "Amazônia", na busca de unir as regiões enquanto integrantes de uma mesma nação. A gastronomia brasileira, retratada por seus ingredientes nacionais, estão por todos os lugares do país ansiando por valorização interna, suporte para alcance internacional e não aumento da segregação regional existente. O patrimônio culinário nacional tem poucos registros nos tombamentos como bens imateriais no Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan). O mesmo ocorre com as denominações de origem e indicações de procedência registradas no Instituto de Propriedade Industrial (Inpi). Os existentes, ainda não representam a diversidade brasileira, sobretudo em sua gastronomia. Os pratos nacionais ainda se apresentam com inspirações estrangeiras para melhor aceitação. Enquanto no Peru é possível comer ceviche em estabelecimentos do tipo fast food, no Brasil, as franquias da mesma natureza cada vez mais se interiorizam. A título de ilustração, uma das redes de fast food mais famosas do Peru, a Bembos, é nacional, possui menu genuinamente peruano, harmonizado com Inka Kola. No Brasil, produtos genuinamente nacionais são pouco valorizados internamente, sendo escassos (até) no "mercado da saudade" dos brasileiros no exterior. O samba, caipirinha, feijoada e futebol ainda preponderam no atual branding internacional. Por fim, o sal marinho potiguar de mesa é excelente e atende a cerca de 95% do consumo brasileiro. Poucas pessoas sabem dessa informação, mas provavelmente conhecem a flor de sal, originária da ilha francesa de Guérande ou o Sal de Maras, no Peru.   Referências MATER INICIATIVA. (2023). Nosotros. Acessível em: https://materiniciativa.com/nosotros/. O GLOBO. (2023). 'Tomada de Lima': Manifestantes voltam às ruas no Peru em dia de protestos contra o governo de Dina Boluarte. Acessível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/07/19/tomada-de-lima-manifestantes-voltam-as-ruas-no-peru-em-dia-de-protestos-contra-o-governo-de-dina-boluarte.ghtml. PERU. MINISTERIO DE COMERCIO EXTERIOR E TURISMO. Marca Perú. (2023). Acessível em: https://peru.info/es-pe/marca-peru.  FUTURE BRAND. (2023). Marca Peru. Acessível em: https://www.futurebrand.com/our-work/peru. SMERALDS, Ronald. JENNINGS, Saulo. Amazônia 2030. Soft Power, Gastronomia E Amazônia. Acessível em: https://amazonia2030.org.br/wp-content/uploads/2023/05/Soft-power-gastronomia-e-Amazonia.pdf. THE ECONOMIST. (2002). Food as ambassador: Thailand's gastro-diplomacy. Acessível em: https://www.economist.com/asia/2002/02/21/thailands-gastro-diplomacy.
2023-08-07T12:19-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-07/giovanna-wanderley-gastrodiplomacia-mercado-saudade
academia
Grandes temas, grandes nomes do Direito
Fragmentação da internet é tendência preocupante, diz professor
Marcado pelo crescente controle no fluxo de dados e pela regulação do ambiente virtual por parte dos países, o fenômeno da fragmentação da internet é uma tendência global que preocupa os especialistas, afirma o professor Victor Oliveira Fernandes. Conselheiro do Cade e professor de Direito da Concorrência no IDP, Fernandes falou sobre as relações entre internet, legislação e territorialidade em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com alguns dos principais nomes do Direito brasileiro e internacional. De acordo com Fernandes, nos primórdios do debate surgido no Direito Constitucional ainda na década de 1990, a grande questão era entender se a rede mundial de computadores poderia ser regulada. Isso porque, lembrou o professor, a internet mitiga um fator essencial do constitucionalismo: a relação entre poder e território. Nesse contexto, surgiram várias teorias sobre a regulação do ciberespaço, como as libertarianistas e as paternalistas. Desta vez, explicou Fernandes, a questão era entender se fazia sentido propor a regulação do ciberespaço na ausência das jurisdições nacionais pertinentes ao tema. De lá para cá, porém, o mundo tem assistido à criação de leis nacionais sobre questões como a guarda de dados e a moderação de conteúdo. "Essa tendência global cria um risco que é muito discutido na literatura. Sobre isso, o professor Milton Mueller (da Georgia Tech, nos Estados Unidos), por exemplo, tem um livro muito importante que trata da fragmentação da internet. Ou seja, a internet vai deixar de ser um serviço prestado em escala global e vai começar a se fragmentar dentro de territórios nacionais a partir das suas respectivas legislações", disse. Em países como a China, continuou Fernandes, esse movimento se reflete na ideia de que a guarda de dados deve se dar no território nacional. Outro exemplo é o uso dos firewalls (dispositivos de segurança que autorizam ou bloqueiam o tráfego de dados) para proibir o acesso a determinadas páginas da internet em território chinês. "Falando do ponto de vista de quem estuda esse assunto, e no IDP se discute isso, nós temos assistido a tudo com muita preocupação. O que se tem é um desafio no sentido de tentar entender de que forma uma cooperação global pode surgir em torno desse assunto", disse ele. Como exemplo de cooperação, Fernandes citou o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e Estados Unidos (MLAT, na sigla em inglês), que foi tema da Ação Declaratória de Constitucionalidade julgada pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro deste ano. "Nos casos em que o juiz pede que uma empresa de internet entregue determinado dado é necessário acionar o mecanismo de cooperação internacional, uma vez que está sediado em outro país? Ou o juiz pode, com base no Marco Civil da Internet, determinar a entrega direta desses dados?", questionou o conselheiro do Cade. "Nesse julgamento, o STF disse que o artigo 11 do Marco Civil da Internet é constitucional. Assim, o juiz pode determinar a entrega dos dados por parte da plataforma, ainda que esses dados estejam no exterior. Mas, no julgamento, o STF também destacou a importância da Convenção de Budapeste e dos tratados internacionais que tentam fazer algum de tipo de harmonização dessa matéria em nível global", destacou Fernandes. Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-08-08T16:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-08/fragmentacao-internet-tendencia-preocupante-professor
academia
Opinião
Tarso Genro: Novo olhar sobre a anistia na transição conciliada
Com a reinstitucionalização operacional da Comissão de Anistia, é novamente aberta oportunidade de retomar os processos políticos e jurídicos que orientam a nossa complexa Justiça de Transição. Numa aula magna na Academia, ainda como titular do Ministério da Justiça e com ajuda do então presidente da Comissão de Anistia, professor Paulo Abrão Pires Júnior, ressaltei o seguinte sobre o tema ora reposto: "a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça tem procurado implementar um efetivo programa de Justiça de Transição (e assim) o Direito e a Política marcam encontro e reciprocamente interagem (...)". Através de uma ação judicial da OAB (de descumprimento de preceito constitucional), o tema da tortura, o mais crítico dos temas na transição conciliada, foi (então) posto em questão, a partir não somente da Lei de Anistia, mas também a partir dos fundamentos da Constituição de 88. Menciono em outro texto estes "fundamentos", que se projetam a partir da hipotética "norma fundamental" [1]: "Os 'fundamentos' de uma constituição, no caso da nossa carta, 'a igualdade perante a lei' e a 'inviolabilidade dos direitos' (artigo 5º da CF), sustentam todos os direitos e determinam todos os deveres, que a 'norma fundamental' enseja respeitar. O raciocínio é elementar: caso não ocorra essa conexão (hermenêutica) entre os fundamentos e a norma fundamental, todas as demais regras do ordenamento podem deixar de ser aplicadas pelo arbítrio de quem decide" [2]. A dogmática conservadora e democrática do Direito Constitucional moderno, que reflete por inteiro na nossa tradição jurídica, foi assim exposta por Ruy Cirne Lima: "o Estado-pessoa-jurídica é (...) chamado à existência, primariamente, para fazer o direito vivo positivo (...). Quer dizer, anunciá-lo, aplicá-lo e executá-lo. No cumprimento dessa missão o estado há de conservar-se, entretanto, subordinado ainda, à norma jurídica" [3]. O mestre aponta o círculo de coerência formal dos sistemas e das normas, que dão credibilidade e eficácia à ordem jurídica, círculo esse que constitui a base e coerência sistêmica para o intérprete entender a anistia e a autoanistia, como não contraditórios formalmente. Esta dogmática, aqui aplicável, é uma consequência negativa da transição conciliada e da superação imperfeita da ditadura, mas dela podem ser tiradas outras consequências. A anistia, nesta contextualização, não é apenas um perdão dos vencedores que promoveram a exceção ilegal pela ditadura imposta aos vencidos, mas é sobretudo um "pedido de desculpas do Estado" pelas violências que cometeu fora da lei e da Constituição derrocada, processo que não pode ser mais aceito como "um instrumento de amnésia histórica" [4], já que, em cada momento de aplicação das normas que anistiaram, fica entendido que o Estado revive a totalidade da transição para o Estado de Direito. No caso em tela, revive, inclusive, por anistiar crimes que não foram apreciados no devido processo legal. Na decisão do STF, pela qual o Estado supostamente negou-se a "revisar" a Lei da Anistia (na verdade se recusou a interpretá-la corretamente), foi decidido, em abstrato, que as torturas cometidas pela repressão policial — no regime de exceção — eram "crimes conexos", o que implicou torná-los análogos aos crimes políticos, o que, como fato novo na Justiça de Transição, fez "equivaler" o tratamento dado a ambos os lados, com consequências diferentes: os anistiados políticos em regra não tiveram seus direitos protegidos de forma total, mas os que cometeram torturas ou agiram fora da legalidade da própria exceção ditatorial, obtiveram a proteção máxima: sequer foram processados! O entendimento do STF que se baseou numa leitura superficial do artigo 1º § da Lei 6.683 de 28/08/1979, considerou como conexos "os crimes de qualquer natureza", relacionados com "crimes políticos" ou praticados por motivação política. Pela sua exegese, portanto, os insurgentes contra a ditadura, bem como os que se serviram dela para cometer atrocidades nos seus porões, estariam abrigados pelos mesmos valores. Assim, a tortura não pesava mais como um crime contra a humanidade, impossível de ser perdoado ou "desculpado", mas crime conexo, análogo ao "político"! (Consultor Jurídico, 1 de maio, 2010,13h e 34 — "Reação de militares sobre decisão do STF é de alívio"). Ao sentenciar dessa forma sobre a questão da anistia "ampla e irrestrita", o STF gerou uma situação absurda, pois grande parte dos atingidos pela violência nos cárceres da ditadura não tiveram os seus direitos repostos de maneira integral e completa, mas os autores de delitos comuns e das barbáries — nos cárceres subterrâneos ou "legais" do regime — mantiveram as suas relações jurídicas com o Estado íntegras, sem qualquer processo penal pendente sobre as suas condutas e sem sofrer qualquer dano – não só quanto às suas carreiras funcionais públicas — mas também nas suas relações sociais e familiares. Trata-se de um tratamento desigual e incoerente, no processo de transição negociada, no qual mais do que uma "anistia", mas uma "autoanistia", estabeleceu proteções superiores para dar apoio selvagem aos que usurparam o Estado de Direito derrocado. Cabe lembrar aqui, por coerência dogmática (em acordo com a própria interpretação dada pela decisão acima referida), que se os torturadores foram anistiados antes de processados, mantendo, assim, todos os seus direitos intactos, os tocados pela violência do regime ditatorial não poderiam ter um tratamento pior do que o deles, pois "no que diz com a utilização da dignidade da pessoa humana como critério de interpretação do ordenamento jurídico" a anistia envolve [5] em bloco a defesa dos direitos fundamentais. Audiência pública promovida pela Comissão de Anistia em 31 de julho de 2008 — para debater se ela abrigava, ou não, os que cometeram o crime de tortura (...), hoje pode ser vista como uma colaboração ímpar para a superação da leitura, então dominante, de que a anistia seria um instrumento de amnésia histórica (...) [6]: a "transição negociada", no mínimo, não pode ser destinada a desigualar torturadores e torturados, em favor daqueles. E o "perdão" ou as "desculpas" oferecidas aos "vencidos", objetivamente não podem ser consideradas parciais, em relação a uns e totais, em relação a outros.   - Colaborou com a pesquisa o advogado Juliano Genro.   [1] GENRO, Tarso; ABRÃO, Paulo. Direito, Constituição e transição democrática no Brasil. Brasília: Editora Francis, 2010, p. 26-27. [2] GENRO, Tarso. Fundamentos do estado de Direito e a Crise da representação. Ed. INP.p.20. [3] Lima, Ruy Cirne. A PREPARAÇÃO À DOGMATICA JURIDICA. 2ª, Ed., Porto alegre,p.32. [4] GENRO, Tarso; ABRÃO, Paulo. Direito, Constituição e transição democrática no Brasil. Brasília: Editora Francis, 2010, p. 27. [5] SARLET, Ingo Wolfgang; WEINGARTNER NETO, Jayme. Constituição e direito penal: temas atuais e polêmicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p.27 [6] GENRO, Tarso. Direito, Constituição e transição democrática no Brasil. Brasília: Editora Francis, 2010.p.40
2023-08-08T14:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-08/tarso-genro-olhar-anistia-transicao-conciliada
academia
Fábrica de Leis
Problemas sobre a vigência da lei estatal no espaço virtual
Desde há muito tempo — convencionou-se que pelo menos desde o Pacto de Westfália — o critério básico para a definição da vigência da lei estatal é o território. Embora ainda haja situações em que a aplicabilidade da norma jurídica está sujeita a outros aspectos (como, por exemplo, a sucessão de bens, que segue em regra a lei pessoal do de cujus), a Idade Moderna e a Idade Contemporânea conviveram sempre com a territorialidade da lei como princípio. Os casos excepcionais de extraterritorialidade apenas confirmam essa regra geral. Nem sempre foi assim, contudo. Durante toda a Idade Antiga, o critério principal de vigência das normas era a lex personalis. Cidadãos romanos e estrangeiros submetidos ao Império não eram regidos pela mesma legislação, ainda que ocupassem um mesmo território nos limiares do poder político romano. Antes, na Grécia, a distinção entre leis que regiam os gregos e regras aplicáveis aos estrangeiros eram claramente observáveis [1]. Durante a Idade Média, a ascensão da lei costumeira, amálgama de Direito Romano com usos e costumes dos povos "bárbaros" (notadamente germânicos) tratou de esfumaçar um pouco os critérios da vigência da lei, mas o fenômeno da positivação do ordenamento — voltamos à Idade Moderna — sempre esteve intrinsecamente ligado à ideia de território. Pois bem. Aparentemente, está-se no momento diante de mais uma viragem nesse processo. A emergência de espaços virtuais/digitais — que não podem, obviamente, viver ou continuar a viver a ausência de normas, a anomia — exige uma releitura do conceito de Estado e, por consequência, da própria noção de lei [2] e de vigência da lei [3]. Nesse contexto, os elementos tradicionais da entidade estatal (território, povo e poder soberano) exigem uma urgente releitura: existe agora um território, por assim dizer, virtual, com espaços igualmente virtuais em que a noção de cidadania/nacionalidade/pertencimento já não é mais a mesma, e que testam até mesmo a noção de soberania estatal. Não é preciso recorrer a casos como o metaverso (ora já em declínio, talvez?). Basta ver ferramentas como redes sociais, mantidas pelas grandes empresas de tecnologia (as big techs) e as dificuldades dos diversos estados "soberanos" para impor suas regulações a essas plataformas. Como definir a "nacionalidade" de uma plataforma quando os dados são mantidos na nuvem, os usuários podem usar endereços de IP situados em outros países? Qual a lei aplicável quando um usuário com ferramenta VPN (que altera a localização do IP) acessa um site estrangeiro a partir de um provedor estrangeiro na internet (significativamente definida como a rede mundial de computadores)? Questões como essas demonstram a possível obsolescência do critério espacial ou da territorialidade na definição da vigência da lei. Na melhor das hipóteses, faz-se necessário adaptar o conceito de territorialidade a essa nova realidade. Vale lembrar que é o Direito que "corre atrás" da realidade, adaptando-se a ela, e não o contrário... Não se pense, aliás, ser essa uma discussão meramente teórico-especulativa. Para além do óbvio exemplo das redes sociais, pululam outros aspectos ainda por resolver. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), por exemplo, prevê sua aplicação da seguinte forma: "Art. 3º Esta Lei aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que: I - a operação de tratamento seja realizada no território nacional; II - a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou III - os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional. § 1º. Consideram-se coletados no território nacional os dados pessoais cujo titular nele se encontre no momento da coleta. § 2º. Excetua-se do disposto no inciso I deste artigo o tratamento de dados previsto no inciso IV do caput do art. 4º desta Lei." Não se trata de um critério tradicional de territorialidade, como se vê. Ou, pelo menos, tem-se uma mescla do critério tradicional de territorialidade com diversos outros, tais como o território de oferecimento dos bens ou serviços para os quais se fez o tratamento de dados... Como definir onde os dados foram coletados pode, contudo, cair nos mesmos problemas e dilemas adiante comentados em relação às apostas esportivas... Por outro lado, a questão de como regular (e tributar) sites de apostas esportivas (bets) mostra essa mesma necessidade de releitura do critério da territorialidade. A maioria — para não dizer a totalidade — desses sites é situada e registrada com domínio estrangeiro na internet, o que leva inclusive a algumas contradições curiosas, como é o caso da "betnacional.com". Isso se deu como tentativa de fugir não apenas da tributação brasileira, mas também de legislações nacionais eventualmente restritivas dessa atividade. Ao menos para fins tributários, a questão parece ainda não resolvida, a ponto de o presidente da República ter editado uma medida provisória (MP) a fim de tributar os bilionários valores movimentados nessas plataformas [4]. Sendo o fato gerador ocorrido em "território brasileiro", incide a lei tributária brasileira, criando a obrigação tributária principal. Assim, por exemplo, a legislação brasileira prevê a existência da loteria de quota fixa, "cuja exploração comercial ocorrerá no território nacional" sendo que "poderão solicitar autorização para exploração das loterias de apostas de quota fixa as pessoas jurídicas nacionais ou estrangeiras, devidamente estabelecidas no território nacional" (artigo 29, caput e § 4º, da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, na redação dada pela Medida Provisória nº 1.182, de 25 de julho de 2023). Como definir, nesse contexto, território brasileiro? Sendo o apostador pessoa física brasileira, conectado à internet por meio de provedor estrangeiro e com IP estrangeiro realizando aposta em site registrado em domínio estrangeiro, enquadra-se essa situação na hipótese de incidência da norma brasileira? E se a pessoa física for brasileira, mas domiciliada em país estrangeiro, porém realizar a aposta em site brasileiro com domínio brasileiro, incidirá o tributo? Se sim, há uma nítida situação de se aplicar o critério da lei pessoal do apostador, em detrimento do critério territorial. Ou então se considera que o território, para essa finalidade, é o país no qual o domínio do site está registrado: nesses casos, se se entende esteja sendo mantido o critério da territorialidade da lei, então "o buraco é mais embaixo", e se considera que o território não é apenas a base física sobre a qual repousa a população do Estado, mas também o conjunto de sites cujos domínios estejam registrados como ".br", um verdadeiro território virtual. Nesse ponto, por exemplo, não se deve esquecer que o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014) regula a utilização da internet "no Brasil" (artigos 1º a 4º), mas sem especificar o que se entende como "território". Já no artigo 11, define-se um critério que transita entre a territorialidade clássica e a lex personalis: "Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. § 1º. O disposto no caput aplica-se aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil. § 2º. O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil. (...)" Tudo isso, no entanto, não pode ofuscar os casos da legislação "física", que ainda tem aplicação segundo a territorialidade. Boa parte — a maior parte da vida de talvez (ainda) a maioria das pessoas — ainda ocorre no mundo "real", regida por leis "à moda antiga". O território (ainda) é (também) físico. Que o digam a Crimeia e o Donbass [5]. De toda forma, é certo que a necessidade de vigência da lei em espaços virtuais traz questões que poucas décadas atrás nem sequer se colocavam. Talvez se caminhe para a substituição (ainda que parcial) do critério da territorialidade pela "nacionalidade" da pessoa física ou jurídica, ou até do domínio do site, ou seja, pode ser que se esteja presenciando o renascimento do critério da lex personalis. Ou então se pode entender pela manutenção do critério territorial para a vigência da lei, mas aí então será preciso uma releitura da própria noção de território estatal, para abranger não apenas a base física "real", mas também o "território virtual" daquele Estado. Seja uma mudança do critério universal da territorialidade, seja uma alteração mais estrutural no próprio conceito de Estado e de território, é certo que a teoria do Direito e da legislação precisa apresentar interpretações sobre essa mudança estrutural do âmbito de aplicação da norma jurídica. Talvez se esteja diante de uma das maiores mudanças no âmbito da teoria da norma desde o século 17; talvez um Pacto de Westfália Digital, 2.0, seja necessário com urgência. [1] SILVA, Luís Antônio Vieira da. História Interna do Direito Privado Romano até Justiniano. Brasília: Senado Federal, 2008, p. 60. [2] A própria noção de lex personalis num contexto de relações globalizadas já vem (e vinha) sofrendo releituras. Cf. HE, Qisheng. Reconstruction of lex personalis in China. In: International & Comparative Law Quarterly, v. 62 , n. 1 , Jan. 2013 , pp. 137-157. [3] Cf. VESTING, Thomas. The Impact of Artificial Intelligence on the Structures of the Modern Public Sphere. In: MORAIS, Carlos Blanco de; MENDES, Gilmar Ferreira; VESTING, Thomas (orgs.). The Rule of Law in Cyberspace. Cham: Springer, 2022. [4] Medida Provisória nº 1.182, de 25 de julho de 2023. Vale ressaltar, contudo, que "A Medida Provisória nº 1.182, de 24 de julho de 2023, altera a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. Essa lei dispõe, entre outros temas, sobre a modalidade lotérica denominada de 'apostas de quota fixa". Vale ressaltar que essa MP ainda não é a regulamentação do mercado de apostas esportivas, prevista no § 3º do art. 29 da referida lei e cujo prazo máximo expirou em dezembro de 2022. Porém, conforme a Mensagem (EMI nº 95, de 2023), a regulamentação deve ocorrer em breve, sendo as mudanças promovidas pela MP nº 1.182, de 2023, um pré-requisito.” (ALMEIDA, Raquel Mesquita. Sumário Executivo de Medida Provisória. MPV nº 1.182, de 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/sumarios-de-proposicoes/mpv1182). [5] Cf. AFONSO, José Roberto Rodrigues; SANTIAGO, Silas. A Conexão entre o Militarismo, o Estado Moderno e as Constituições. In: Revista de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIPAR, v. 26, n.1, 2023.
2023-08-08T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-08/fabrica-leis-problemas-vigencia-lei-espaco-virtual
academia
Contribuições ao Direito
Asadip homenageará Jacob Dolinger e João Grandino Rodas
Ocorrerão, nos dias 10 e 11 de agosto, as XVI Jornadas da Associação Americana de Direito Internacional Privado (Asadip), no Rio de Janeiro. O evento homenageará os professores Jacob Dolinger e João Grandino Rodas. O primeiro dia das Jornadas ocorrerá na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); enquanto que o segundo, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Participarão, também, o Comitê Jurídico Interamericano da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado. O tema central das Jornadas é “O Direito Internacional Privado: entre o inovador e o disruptivo”, que será tratado por dezenas professores das três Américas. Um diferencial da XVI Jornadas será um painel em homenagem a ser prestada a dois professores da matéria: Jacob Dolinger e João Grandino Rodas, que, a começar da década de 1980, se uniram, no afã de titular os então jovens professores, que, por seu turno, contribuíram para fundação e o crescimento institucional da Asadip. Jacob Dolinger, professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, também é autor de livros e advogado. Falecido em 2019, é referência permanente em Direito Internacional Privado, Direito Comparado e Direito Estrangeiro. João Grandino Rodas é professor titular aposentado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tendo sido diretor da Faculdade de Direito e reitor da Universidade de São Paulo (USP). Foi desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, presidente do Comitê Jurídico Interamericano da OEA e presidente do Tribunal Permanente do Mercosul. Atualmente, é parecerista e advogado. Como presidente do Cedes, coordena o programa de pós-graduação stricto sensu em Direito, Justiça e Impactos na Economia. Clique aqui para ver a programação completa da XVI Jornadas da Associação Americana de Direito Internacional Privado
2023-08-09T21:01-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-09/asadip-homenageara-jacob-dolinger-joao-grandino-rodas
academia
Opinião
Opinião: O STF e a decisão cautelar sobre os cursos de medicina
Em bem fundamentada decisão cautelar, o Supremo Tribunal Federal sobrestou parte dos processos administrativos relativos à autorização de cursos de medicina em trâmite com base em decisões judiciais. A indecisão governamental e a falta de políticas claras fomentaram a insegurança jurídica e obrigaram diversos jovens brasileiros a estudar em países vizinhos, a par da exponencial judicialização do problema. Uma questão tormentosa, cujo ponto central é o direito à saúde, negado peremptoriamente pelo órgão de regulação, à míngua de número suficiente de médicos. Interessados na manutenção de um modelo restritivo construíram narrativa desprovida de fundamentos fáticos, enviesada, aliciante para quem não se interessa efetivamente em resolver o problema. A decisão foi proferida na ADC 81 e ADI 7.187, com relatoria do ministro Gilmar Mendes. Depende de ratificação do Plenário, nos termos do artigo 21, V, do Regimento da Corte. A decisão é um divisor de águas e o assunto deve doravante ser tratado em seus termos e limites. O decano da corte colocou a discussão em um patamar mais elevado. Toda controvérsia gira em torno da constitucionalidade e da correta interpretação do artigo 3º da Lei 12.871/2013, que criou o Programa Mais Médicos e que impôs uma licitação (chamamento público) para a abertura de novos cursos de medicina. Deve-se também atentar para a livre iniciativa, valor constitucional de muito prestígio na ordem econômica, e que estimula a discussão em um prisma menos ingênuo. A cautelar inovou na abordagem, tratando a questão não apenas como uma discussão sobre a atividade de ensino. Pensou-se o problema sob o prisma da discussão relativa à distribuição de recursos humanos na área de saúde. Foi além do debate. Colocou-se no centro julgamento o tema da política pública de distribuição de médicos no país. Não se trata de abrir (ou não) novos cursos. Trata-se também da distribuição racional de recursos humanos na área de saúde. Essa é a base da decisão. É seu fundamento. É o que lhe substancializa. A técnica usada para fundamentar a cautelar — ou o tema principal, na verdade — foi a da ponderação para apurar a razoabilidade e a proporcionalidade da norma questionada. Essa técnica demanda a verificação da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito da regra discutida. O ministro relator conhece profundamente essa metodologia e a decisão aqui comentada é uma aula que demonstra essa superlativa proficiência. Quanto à adequação, fixou que: "A política estatal indutora [vincula] a atuação econômica dos agentes privados à finalidade pública de melhoria dos equipamentos públicos do Sistema Único de Saúde". Já a respeito da necessidade, mencionou que: "O debate, embora rico e plural, não se revelou propositivo no tocante a alternativas regulatórias especificamente voltadas à solução da desigualdade na oferta de serviços médicos à população". Por fim, quanto a proporcionalidade em sentido estrito, explicou que: "É natural que [...] o legislador ordinário construa políticas públicas indutoras e restritivas, voltadas justamente a ordenar e integrar a formação dos recursos humanos ao Sistema Único de Saúde". Dessa forma, deveria ser considerada razoável e proporcional a norma analisada. A análise (em forma de decisão) é, densa, firme, como esperado. Alguns temas talvez suscitem ajustes pontuais. Por exemplo, e construtivamente, lembre-se que o "chamamento" esteve suspenso por cinco anos (fato que mereceu inclusive uma menção na cautelar em outro ponto, quando foi mencionado que além do aumento de vagas, "...a moratória estendida por anos sem a correspondente reestruturação do sistema, engendra distorções e dá azo a especulações sobre a formação de reserva de mercado e criação discricionária de barreiras à entrada"). O ministro Gilmar, profundo conhecedor dos impactos práticos das decisões do tribunal lembrou que: "O que não pode perdurar é sistema que garroteie a porta de entrada no mercado, mas viabilize que as empresas que nele atuam aumentem progressivamente as vagas de seus cursos". Essa crítica é importante porque, no caso dos editais do Mais Médicos isso de fato ocorreu e continuará acontecendo se não tivermos uma contenção. Alguns tópicos serão certamente explorados em embargos e nos debates que ainda ocorrerão em Plenário. Nesse sentido, a Procuradoria Geral da República sustentou em denso parecer que a maioria das ações relativas a esse assunto foi proposta enquanto vigorava a suspensão do Mais Médicos. Além disso, deve-se enfatizar a fala do representante do Cade em audiência pública, transcrita na cautelar, que expôs que o órgão vê com ressalvas: "....o fechamento absoluto de abertura de novos cursos, porque esse fechamento absoluto pode impedir que novos agentes disruptivos, que sejam qualificados e tenham tecnologias de ensino igualmente eficientes ou mais eficientes do que as outras existentes, entrem no mercado", que, acrescentamos, ocorreu entre 2018 e 2023. Por fim, cabe descrever o que foi decidido: a principal determinação foi o sobrestamento, ou a suspensão, dos processos administrativos de curso que ainda não tiveram uma análise documental. Em paralelo, os processos administrativos de cursos que passaram dessa fase seguem normalmente, pois: "...a segurança jurídica deve ser prestigiada, de modo a permitir que os processos administrativos que ultrapassaram a fase inicial de análise documental a que se refere o art. 19, § 1º do Decreto 9.235/2017 tenham regular seguimento". Nesse contexto, foram valorizados, ainda, investimentos, impactos e expectativas criadas nas comunidades que abrigam os cursos. Os processos que seguem tramitando, enfim, deverão considerar as regras do programa Mais Médicos, em especial a existência de equipamentos, convênios e contrapartidas para os municípios. Outra decisão foi a manutenção dos cursos já aprovados, afinal: "...ainda que não seja o trâmite da política pública considerada constitucional nestes autos, é inegável que esses cursos cumpriram os requisitos mínimos para funcionamento regular, não oferecendo riscos à população e ao seu mercado consumidor. Pelo contrário, é do interesse da sociedade que esse longo processo de instalação das faculdades, com admissão de alunos e corpo docente, não seja revertido". Nessa ponderada decisão talvez seriam oportunos dois esclarecimentos, que poderiam ser provocados por meio de embargos. O dispositivo normativo mencionado para modular a decisão (artigo 19, do Decreto 9.235/2017) parece se referir a credenciamento institucional e não a autorização de cursos. Acreditamos que o tema também é tratado na Portaria Normativa 23/2007. Pergunta-se também como ficariam os processos judiciais durante a vigência da cautelar do STF. A lógica aponta para não serem indeferidos os pedidos dos processos judiciais alcançados pela liminar e para que os demais sejam suspensos, sem decisão contrária ou favorável. Nessa mesma zona cinzenta encontram-se dezenas de processos administrativos que não chegaram a ter os documentos analisados por exclusiva responsabilidade do MEC, que atrasou em alguns casos e até mesmo descumpriu decisões judiciais. Nessas situações não parece justa a suspensão do processo em virtude da fase que se encontra e há precedentes, do próprio STF, sobre a impossibilidade do particular ser prejudicado pela morosidade da administração pública. Há uma mora do MEC, que não pode prejudicar ainda mais quem confiou em norma jurídica que permitia investimentos e expectativas. A validação de todas as ações propostas, dado os cinco anos de moratória, poderia ser uma providência à espera de deferimento jurisprudencial, como pá de cal nesse tormentoso assunto, até mesmo em virtude da imprecisão da legislação, da insegurança jurídica que disso resulta e do desvirtuamento de um programa governamental originariamente criado com a melhor das intenções. Tem-se, inclusive, uma questão gramatical. Os "mais" médicos não poderia resultar, em qualquer hipótese, em um "menos" médicos. Esse registro linguístico não é vago, e nem ambíguo. Juridicamente, discutimos, no limite, a defesa da Constituição. O prolator da decisão afirmou em obra fundamental de doutrina que "o reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos poderes públicos torna inevitável a discussão sobre as formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público". É o que se espera do STF, na continuidade de análise de decisão corajosa e oportuna.
2023-08-09T09:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-09/opiniao-stf-decisao-cautelar-cursos-medicina
academia
Senso Incomum
Júri e prisão automática: STF versus STF — o que é um precedente?
Prisão imediata no Júri: esse é ponto central do RE 1.235.340/SC (Tema decorrente: 1.068) que está agora no plenário físico do STF. Até agora tínhamos o seguinte resultado: O ministro Barroso (aqui) deu provimento ao RE e fez tábula rasa, dizendo que nem mesmo a limitação de 15 anos deve ser levada em conta como teto, com o que qualquer condenação do júri se torna de aplicação automática (prisão do réu dos moldes da súmula declarada inconstitucional do TRF-4, nº 122). Os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia e André Mendonça acompanharam tal entendimento. Já os ministros Gilmar, Rosa e Lewandowski discordaram e votaram inclusive pela inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Anticrime que dizia que prisões acima de 15 anos determinavam a prisão imediata. Restou o ministro Fachin, com voto médio, discordando da maioria dos cinco, mas não concordando com a minoria dos três. Para ele, não pode haver prisão automática, salvo para penas acima de 15 anos. Então tínhamos, até o pedido de destaque do ministro Gilmar, cinco votos plenos pela prisão automática, três pela inconstitucionalidade até mesmo dos 15 anos e um voto pela manutenção dos 15 anos sem automaticidade. Escrevi aqui na ConJur sobre o voto do ministro Barroso, que foi condutor da maioria dos cinco votos. Barroso diz que presunção da inocência, formada nas ADCs 43, 44 e 54, é princípio e não regra, podendo ser "aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes". Assim, no item 16 do seu voto, Barroso diz que é necessário ponderar o princípio da presunção de inocência e, como tal, "pode ser aplicado com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes" com a soberania dos veredictos, de modo a dar prevalência a este último fundado, inclusive, na função do Direito Penal de proteção de bens jurídicos, in casu, da vida humana. Aí já começa o problema: fosse correto o dizer do ministro, ficaria a pergunta: quem decide "a maior ou menor intensidade"? Com qual critério? Sigo. Demonstrei o equívoco do voto do ministro Barroso e cheguei a colocar a fórmula peso de Alexy para demonstrar que a ponderação propalada pelo ministro se mostrou errada. Demonstro isso com detalhes (para quem não leu, ponho o link mais uma vez aqui). Na sequência, lembrei do caráter vinculante das ADC 43, 44 e 54, que exigem a vinculação do julgador ao seu resultado como uma condição prima facie — o que se afirma inclusive com apoio na TAJ de Alexy. Isto é, não há nada na teoria de Alexy que dê algum conforto ao voto do ministro Barroso. No meu artigo também falei do equívoco do voto do ministro ao fazer a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung) do dispositivo que diz que penas acima de 15 anos têm cumprimento imediato. Nesse sentido, o voto contestado comete o pecado da jurisdição constitucional, que é o de mascarar uma legislação pelo Judiciário como controle de constitucionalidade incidental. Seu argumento é de que a lei não deveria limitar a execução da pena para casos de condenação igual ou maior a 15 anos. Na sua opinião, a regra deveria valer para qualquer condenação, e assim ele propõe essa discussão em seu voto. Não é possível encontrar algum espaço para uma interpretação conforme a Constituição no caso. No caso, o voto estabelece uma nova lei. A dogmática constitucional mostra claramente que o instituto da Interpretação Conforme possui limites. O que muda na interpretação conforme é a norma (sentido do texto), mas o tribunal não está autorizado a colocar outra "letra no lugar". Aí vem a grande questão, bem captada nos votos de Gilmar, Rosa e Lewandowski: se existe inconstitucionalidade, essa está em dizer que penas de 15 anos mandam prender automaticamente. A inconstitucionalidade reside no inverso do que disse o ministro Barroso. Por quê? Porque o STF possui um precedente vinculante sobre presunção da inocência: as ADCs 43, 44 e 54. A holding do precedente é: não existe prisão automática no Brasil. Havendo condições pessoais favoráveis, é possível recorrer aos tribunais superiores em liberdade. Aliás, prisão automática existia no CPP original. No Estado Democrático, o STF baniu, ainda que por escassa maioria. Presume-se a inocência. E não a culpa. Portanto, o voto de Barroso coloca o STF contra o próprio STF, ao não obedecer a seu próprio precedente. Trata-se de um easy case que o ministro transformou em um tragic case. Há uma contradição na posição do ministro e dos que o seguiram. Se o STF decidir pela prisão automática no júri — para qualquer pena ou mesmo para aquelas acima de 15 anos — teremos que a Suprema Corte cai em uma contradição: uma afirmação e uma negação. Um precedente que assegura algo e outro que dessassegura o que assegurava. Com a tese dos cinco votos, cria-se duas categorias de réus: os do júri (sem presunção de inocência) e os do resto do "sistema" (que possuem esse direito). Resta saber se, vencedora a tese da prisão automática, caberia reclamação no STF contra o próprio Supremo, por descumprimento de seu próprio precedente. Afinal, Reclamação constitucional cabe toda vez que um tribunal desobedece a um precedente vinculante da Suprema Corte. Volta-se ao problema recorrente: o que é um precedente (ver qui a crítica à recém-lançada Revista de Precedentes). Como podemos falar de precedentes, se institucionalizamos algo que inexiste nos demais países: a divisão em "precedentes qualificados" e "precedentes meramente persuasivos"? O que é vinculante num precedente? O que vincula? Essa é a discussão que temos de fazer — e nisso a doutrina tem de se manifestar. Como pode uma decisão em três ADCs que declara constitucional um artigo que espelha a Constituição não gerar um precedente a partir do qual está sacralizada como precedente a presunção da inocência até o trânsito em julgado, no sentido de que, tal como optou por fazer o legislador, ninguém será preso até que se encerre juridicamente a presunção da inocência com o trânsito em julgado? Há mais uma questão que deveria ser levada em conta, mais pela doutrina do que pelo próprio STF: se o STF "superar" o precedente da presunção da inocência no caso da prisão no Júri, estará aberta a porta para voltar ao patamar anterior às ADCs 43, 44 e 54. Mais ainda, restará a institucionalização da Repercussão Geral como uma carta branca para que magistrados legislem. Observe-se: no RE não está em discussão a prisão automática. Era um caso concreto acerca da possibilidade de recorrer ou não em liberdade. O que está ocorrendo — com o Tema 1068 — é que o precedente a ser firmado é uma forma de legislar para o futuro. Numa palavra: esse é o papel da doutrina em qualquer país do mundo, queiramos ou não. Sua função é iluminar e mostrar os acertos e os erros das decisões judiciais. Com todas as vênias — para usar um jargão do juridiquês — se esse não for o papel da doutrina, ela perde a sua serventia. A obra mais premiada na Alemanha nos últimos tempos se chama Uma Interpretação Ilimitada (ou Não Constrangida), de Bernd Rüthers (Die unbegrenzte Auslegung). Ali ele mostra como, ao ficar silente, a doutrina (e não só ela, é claro) assistiu, lenientemente, à ascensão do regime que levou ao nazismo. Chamo a esse papel, com toda a lhaneza, de necessário constrangimento epistemológico [1]. [1] Cfe. Verbete Constrangimento Epistemológico – Streck, L. L. Dicionário De hermenêutica (Editora Casa do Direito, 2ª. Ed) e Verbete Fator Julia Roberts – Streck, L.L. Dicionário Senso Incomum (Editora Dialética).
2023-08-10T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-10/senso-incomum-juri-prisao-automatica-stf-versus-stf-precedente
academia
Grandes temas, grandes nomes
Integração Brasil-Europa deve muito à sociedade civil, diz Canas
É notória a atuação dos governos no movimento multilateral de aproximação entre Brasil e União Europeia, mas o principal esforço nesse sentido deve ser creditado à sociedade civil, afirma o advogado e professor português Vitalino Canas. Presidente do Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe), Canas falou sobre o assunto em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com alguns dos principais nomes do Direito brasileiro e internacional sobre os assuntos mais relevantes da atualidade. "Nós assistimos, naturalmente, ao esforço que os governos fazem para que as suas relações deem frutos para os respectivos países. Mas penso que o principal sucesso vem da relação entre os particulares, na figura dos brasileiros que têm relação com Portugal e a Europa e que, assim, vão intensificando seus laços", disse Canas, que promove debates entre personalidades de Brasil, Portugal e outros países europeus e lusófonos. Nessa perspectiva, continuou Canas, o fortalecimento da relação entre o Brasil e a Europa pode contribuir para consolidar o país com uma potência no cenário mundial, e não só no hemisfério sul. "Os resultados a que assistimos são graduais, não se verificam instantaneamente. Mas eu creio que eles estão melhorando muito devido à atuação das sociedades civis, dos agentes privados, científicos, acadêmicos e culturais", disse o professor de Direito Constitucional e Administrativo. Por fim, Canas avalia que o Brasil está em situação privilegiada para buscar mais integração com a comunidade internacional como um todo. "Em um mundo em que as diferenças estão se acentuando e se tornando críticas, o Brasil mostra que tem capacidade para ter parcerias em vários níveis, seja com os Estados Unidos ou com a China, seja com a Europa ou com o Oriente Médio. Portanto, o Brasil tem capacidade de estabelecer pontes que muitos outros Estados não têm", disse o advogado. Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
2023-08-11T16:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-11/integracao-brasil-europa-sociedade-civil-canas
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Estúdio ConJur
FGV Direito lança livro sobre reparação de danos concorrenciais
A FGV Direito Rio, em parceria com o Fundo de Defesa de Direitos Difusos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, acaba de publicar o livro Ações de reparação de danos concorrenciais no Brasil: obstáculos e sugestões. A publicação é fruto do projeto de pesquisa “Superação dos obstáculos à aplicação privada do direito da concorrência” desenvolvido ao longo de quatro anos. O livro está disponível para download gratuito (veja abaixo). A reparação privada de danos concorrenciais é extremamente subutilizada no Brasil. Contudo, o potencial desse instrumento é ilimitado, tendo a capacidade de produzir efeitos dissuasórios e reparatórios importantes à proteção da livre concorrência no país. Os autores da obra são o professor convidado do LL.M. em Direito e Compliance do FGV Law Program Carlos Ragazzo e a senior analyst de Direito da Concorrência Isabel Veloso. Para contribuir para o fomento desse instrumento no Brasil, o estudo foi construído com base em cinco eixos metodológicos: (i) análise da base legal de reparação por danos concorrenciais disponível no país; (ii) análise doutrinária sobre ações de reparação de danos concorrenciais (ARDCs) no Brasil; (iii) pesquisa jurisprudencial; (iv) entrevista com stakeholders relevantes; e (v) mapeamento de boas práticas estrangeiras e recomendações de organizações internacionais. Carlos Ragazzo é professor da graduação em Direito e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Regulação da FGV Direito Rio, além de professor convidado do LL.M. em Direito e Compliance do FGV Law Program. Foi o primeiro superintendente-geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de 2012 a 2014. Antes disso, tinha sido conselheiro do órgão de 2008 a 2012. Isabel Veloso atua como senior analyst na área de Direito da Concorrência. As outras áreas  em que também trabalha são Direito da Concorrência; Regulação; Políticas Públicas de Enfrentamento à Corrupção; Estatística; Eleições e Comportamento Eleitoral. Clique aqui para baixar o livro
2023-08-11T15:30-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-11/fgv-direito-lanca-livro-reparacao-danos-concorrenciais
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Paradoxo da Corte
Produção antecipada de prova e o devido processo legal
Em homenagem ao Dia do Advogado   Como já tive oportunidade de escrever nesta coluna, o Código de Processo Civil em vigor prestigiou o direito substancial à prova, facultando expressamente a produção antecipada em situação que não tem natureza cautelar e, portanto, sem urgência, destacando-se, entre as hipóteses possíveis, aquela cuja precípua finalidade é a de diagnosticar a viabilidade de uma possível e futura ação judicial (artigo 381, inciso III). Enfatiza, a propósito, Flávio Yarshell que o diploma processual de 2015 trouxe significativa inovação ao desvincular a antecipação da prova do requisito do perigo, positivando o que se pode conceber como direito autônomo à prova (Breves comentários ao novo CPC — obra coletiva —, 3ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2017, pág. 1.027). Esse denominado direito autônomo à produção de provas viabiliza o acesso ao conhecimento de fatos por meio de processo legítimo e idôneo, sob a chancela do Poder Judiciário, caracterizado pela cooperação das partes e pelo exercício de contraditório nos limites da pretensão à exibição de documentos ou, até mesmo, à produção de outros meios de prova. Examinando a regra do artigo 381 do Código de Processo Civil, Fredie Didier Júnior, sob interessante perspectiva, assinada que: "... também aqui há o reforço à ideia de que as provas também possuem as partes como destinatárias. Busca-se a produção antecipada da prova para que se possa obter um lastro probatório mínimo para o ajuizamento de uma demanda futura ou a certeza de que essa demanda seria inviável" (Curso de direito processual civil, vol. 2, 17ª ed., Salvador, JusPodivm, 2022, pág. 140). Trata-se, portanto, de expediente processual apto a constituir prova para eventualmente, no futuro, ser incorporada em outro processo. A prova antecipada não se dirige propriamente a formar o convencimento do juiz, mas, sim, da parte requerente, como mecanismo eficaz para que seja bem aferida a viabilidade de potencial e sucessiva investida judicial. Como procedimento de natureza não contenciosa, em que inexiste litígio propriamente dito, não se reserva nenhuma apreciação de mérito da prova recolhida, mas tão somente a observância da regularidade do seu procedimento de obtenção, sob o crivo do contraditório. É bem verdade que, a teor do parágrafo 4º do artigo 382 do diploma processual, eventual debate entre as partes exsurge deveras exíguo. No entanto, dúvida não tenho de que se faz possível, nos limites da prova cuja produção é pretendida pelo autor, a instauração de contraditório, até mesmo para assegurar ao demandado a garantia de ser ouvido, sobretudo quando o tiver ele de justificar a inexistência ou o perecimento da prova ou mesmo que a exibição desta conspira contra o seu próprio direito. Isso significa que, de modo absolutamente coerente, doutrina e jurisprudência são convergentes no sentido de que o direito autônomo à prova, de um lado, tende a prevenir o ajuizamento de demandas temerárias, e, de outro, encontra limitações em respeito ao direito subjetivo da parte, que tem a prerrogativa legal de não produzir prova contra si próprio! É importante considerar, neste particular, que o direito à produção da prova não é absoluto, ou seja, jamais pode comprometer a situação jurídica do requerido, de quem sempre se espera cooperação e lealdade, mas não de submissão ao pleito do requerente. Para meu conforto intelectual, secundando exatamente esta linha de raciocínio, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar em época recente o Recurso Especial nº 2.037.088/SP, com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, admitiu o contraditório no bojo da produção antecipada de prova. Permito-me transcrever os seguintes excertos do respectivo acórdão: "A controvérsia posta neste recurso especial, para além da discussão acerca da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, centra-se em saber se, no procedimento de produção antecipada de prova, a pretexto da literalidade do parágrafo 4º do artigo 382 do Código de Processo Civil, não haveria, em absoluto, espaço para o exercício do contraditório, tal como compreenderam as instâncias ordinárias, a ponto de o Juízo a quo, liminarmente — a despeito da ausência do requisito de urgência — e sem oitiva da parte demandada, determinar-lhe, de imediato, a exibição dos documentos requeridos, advertindo-a sobre o não cabimento de nenhuma defesa, bem como de o Tribunal de origem, com base no mesmo dispositivo legal, nem sequer conhecer do agravo de instrumento contraposto a essa decisão. O entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, suficientemente fundamentado, não encerra, em si, nenhum vício de julgamento. Não obstante, no mérito, não se pode deixar de reconhecer que o proceder levado a efeito pelas instâncias ordinárias, permissa venia, aparta-se, por completo, do chamado processo civil constitucional, concebido como garantia individual e destinado a dar concretude às normas fundamentais estruturantes do processo civil, utilizadas, inclusive, como verdadeiro vetor interpretativo de todo o sistema processual civil... Por evidente, é possível que as normas processuais estipulem o modo como o contraditório deva ser exercido, diferindo-o eventualmente; ou mesmo, em função das especificidades de determinado procedimento, possam restringir as matérias passíveis de serem nele arguidas. A restrição do direito de defesa, estabelecida em lei, encontra justificativa, portanto, nas particularidades e, principalmente, na finalidade do procedimento por ela regulado. Não há, obviamente, nenhuma vulneração ao princípio do contraditório em tais disposições legais. Todavia, eventual restrição legal a respeito do exercício do direito de defesa da parte não pode, de maneira alguma, conduzir à intepretação que elimine, por completo, o contraditório, como se deu na hipótese dos autos. A vedação legal quanto ao exercício do direito de defesa somente pode ser interpretada como a proibição de veiculação de determinadas matérias que se afigurem impertinentes ao procedimento nela regulado. Logo, as questões inerentes ao objeto específico da ação em exame e do correlato procedimento estabelecido em lei poderão ser aventadas pela parte em sua defesa, devendo-se permitir, em detida observância do contraditório, sua manifestação, necessariamente, antes da prolação da correspondente decisão. Por conseguinte, o parágrafo 4º do artigo 382 do Código de Processo Civil – ao estabelecer que, no procedimento de antecipação de provas, 'não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário' – não pode ser interpretado em sua acepção literal... De tais considerações já se pode antever que, no âmbito da ação probatória autônoma, mostra-se de todo imprópria a veiculação de discussão acerca dos fatos que a prova se destina a demonstrar ou sobre as consequências jurídicas daí advindas. A vedação contida no dispositivo legal em comento (parágrafo 4º do artigo 382), por evidente, refere-se a essas matérias, absolutamente impertinentes ao objeto tratado na ação de produção antecipada de provas... No caso dos autos, conforme demonstrado, o Juízo a quo, liminarmente e sem oitiva da parte adversa, determinou a citação da demandada para apresentar os documentos indicados na inicial no prazo de 30 (trinta) dias, advertindo-a sobre não ser possível a apresentação de nenhuma defesa, nos termos do parágrafo 4º do artigo 384 do Código de Processo Civil. Interposto agravo de instrumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo, pelo mesmo fundamento (qual seja, a dicção do referido dispositivo legal), não conheceu do agravo de instrumento. Em se reconhecendo a afronta ao princípio do contraditório – do que se me afigura inescapável, conforme se demonstrou pontualmente –, tem-se que o provimento do presente recurso não poderia ensejar, simplesmente, o retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que este conheça do agravo de instrumento... Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, dou provimento ao recurso especial, para tonar sem efeito a decisão de primeira instância que determinou a citação da parte demandada para apresentar a documentação no prazo de 30 (trinta) dias, a fim de que lhe seja concedida a oportunidade de apresentar a defesa que reputar conveniente, pertinente com o objeto do procedimento em exame, nos termos da presente fundamentação, observando-se, a partir de então, o devido processo legal" (destaques no original). Concluo, salientando que esse importante precedente, pela sua invejável fundamentação, bem retrata a visão dogmática, no âmbito da ciência processual, que deve predominar nos dias de hoje, direcionada a conceber o processo como instrumento revestido das garantias constitucionais, dentre elas, as que asseguram a isonomia e a paridade de armas entre os litigantes!
2023-08-11T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-11/paradoxo-corte-producao-antecipada-prova-devido-processo-legal
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Repensando as Drogas
Juízes e políticos: STF e a constitucionalidade do uso de drogas
Desde 2015 o Supremo Tribunal decide o RE 635.659, sob o Tema 506: "Recurso extraordinário, em que se discute, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, a compatibilidade, ou não, do art. 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada". Passados oito anos, agora que o julgamento retornou à pauta e mais votos foram proferidos, a polêmica e os tabus envolvendo essa questão reacenderam paixões. A legitimidade do Supremo é questionada com a afirmação de que o Congresso Nacional, representante da vontade da população, é o foro adequado para decidir essa questão. A criminalização de drogas seria uma decisão política e apenas a esfera política deveria poder alterar essa questão. Isso sob uma divisão do campo jurídico, afeto a juízes, do político, afeto a congressistas. Esse raciocínio é equivocado. Todas as leis, criminais ou não, são decorrentes do processo legislativo, com discussão política. Caso o Judiciário não pudesse declarar a inconstitucionalidade de leis discutidas e aprovadas pelo Parlamento, não exerceria controle de constitucionalidade. "A descriminalização de um tipo penal criado a partir de uma discussão no Congresso Nacional" é dever do STF, se essa criminalização ofender a Constituição da República. Caso o Congresso Nacional editasse pena de morte para situação diversa da guerra externa, pena de açoite, trabalhos forçados ou perpétua, há ofensa ao artigo 5o, XLVII, da CRFB. Permitir tortura como método investigativo para extrair confissão é contrário ao artigo 5o, III, da CRFB. Criminalizar heresia se choca com a liberdade religiosa do artigo 5o, VI, da CRFB. São várias as limitações ao poder político do Estado de criminalizar condutas. Uma passada de olho rápida pelo artigo 5o da CRFB permite averiguar que limitações ao poder punitivo é tema de boa parte de seus incisos. Isso tem sua razão de ser, pois todos os exemplos citados ocorreram historicamente. Em diversas oportunidades, a Lei de Drogas, de problemática técnica, já teve regras declaradas inconstitucionais. Seu artigo 44 foi declarado inconstitucional, pois previa a vedação de liberdade provisória, com ofensa ao artigo 5o, LVII, da CRFB, o princípio da presunção de inocência do qual decorre impossibilidade de executar penas antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. O STF declarou a inconstitucionalidade deste dispositivo, de modo que os requisitos atualmente são os usuais das prisões cautelares, tratadas como medida excepcional. O chamado "tráfico privilegiado", do p. 4o do artigo 33, não é equiparado a hediondo, ao contrário do tráfico de drogas do caput do mesmo artigo. Em consequência, cabível substituição por penas restritivas de direito. Essas decisões motivaram a edição da Resolução 5 de 2012 do Senado. O STF também influenciou na aplicação da Lei de Drogas em diversos outros pontos, com decisões sobre aplicação do princípio da insignificância ao tráfico de drogas, inconstitucionalidade do regime integralmente e inicialmente fechado para crimes equiparados a hediondos. Merecem citação decisões sobre a inviolabilidade domiciliar, Avisos de Miranda e buscas pessoais. O STJ, igualmente, tem por papel constitucional a interpretação da legislação federal e, por isso, esclarece vários pontos obscuros dessa Lei de Drogas, que abrem campo a arbitrariedades e a decisões muito díspares em casos similares. Todo sistema jurídico racional deve se preocupar com sua harmonia e com provimentos semelhantes em casos parecidos. Não custa lembrar, apenas é possível “pretender legalizar ou descriminalizar, que é uma tese que pode ser sustentada”, por força de decisão do STF. Defender legalizar ou descriminalizar drogas já foi considerado apologia ao crime. Não há nada de diferente ou especial em analisar a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas por ofensa ao artigo 5o, X, da CRFB. Isso faz parte da competência do STF, de exercer controle de constitucionalidade, prevista nos artigos 102 e seguintes da CRFB. No exercício difuso de constitucionalidade, diversos juízes já reconhecem a inconstitucionalidade deste dispositivo. Cortes constitucionais de outros países, como é o exemplo da Colômbia e da Argentina, também já se manifestaram neste sentido. A outra incompreensão é separar o campo "jurídico", afeto aos juízes, do campo "político", de atribuição de congressistas. Esse equívoco é bastante comum ultimamente e é a maneira usual como esse tema é discutido na imprensa. Não é, todavia, novidade e tampouco adstrito à realidade brasileira. Na Itália fascista, a exemplo, o ministro Rocco já reclamava: "a magistratura não deve fazer política de nenhum gênero, não queremos que faça política governamental ou fascista, mas exigimos firmemente que não faça política antigovernamental ou antifascista, e isto é o que ocorre na imensa maioria dos casos" (ZAFFARONI, pp. 159/160) Ensina Eugênio Raul Zaffaroni, jurista e magistrado argentino: "Cada sentença é um serviço que se presta aos cidadãos, mas também é um ato de poder e, portanto, um ato de governo, que cumpre a importante função de prover a paz interior mediante a decisão judicial dos conflitos. A participação judicial no governo não é um acinte, mas é da essência da função judiciária: falar de um poder do Estado que não seja político é um contra-senso. Por conseguinte, não seria possível 'despolitizar' o judiciário no sentido amplo da função essencialmente política que ele cumpre" (ZAFFARONI, p. 94) Todo ato judicial é, por natureza, um ato político. A confusão, neste tema, guarda relação com a vedação de exercício de atividades partidárias por juízes. Magistrados são proibidos pela Lei de Organização da Magistratura Nacional a se filiarem a partidos políticos e a exercerem atividade partidária. Não podem pedir votos, defender campanhas ou manifestar suas preferências eleitorais, seja em suas decisões ou publicamente, como em redes sociais ou entrevistas. O exercício da magistratura exige discrição. Isso não é o mesmo que dizer que magistrados sejam pessoas desprovidas de preferências ideológicas. Como toda e qualquer pessoa, é natural e, até certo ponto, desejável, que assim o seja. Também é importante que haja juízes com ideologias diversas. Isso é fundamental para a dialética democrática e para não haver congelamento de critérios de julgamento. O afastamento de juízes de atividades partidárias é deveras salutar. Inclusive, seria um aprimoramento institucional acentuar essa separação, com a estipulação de quarentenas, de modo a evitar que magistrados se valham do poder de seu cargo para se tornarem conhecidos e viáveis eleitoralmente. "Somente esclarecendo os termos, distinguindo nitidamente entre 'politização' e 'partidarização', pode-se entender que 'despolitizar' o judiciário implica subtrair-lhe funções próprias, reduzindo seu poder até torná-lo incapaz de executar suas funções; por outro lado, 'despartidarizar' o poder judiciário significa democratizá-lo e, enfim, torná-lo idôneo ao exercício de suas funções manifestas" (ZAFFARONI, p. 96). E são justamente essas funções manifestas do Judiciário a pedra de toque para afastar diversas incompreensões que pairam em atritos entre os poderes da república. A pergunta que deve ser respondida para elucidar essa questão é sobre a legitimidade democrática de juízes. Ao contrário de parlamentares e chefes de executivo, juízes não são eleitos. Têm garantias de vitaliciedade e inamovibilidade. Prestam contas de seus atos não com a renovação de mandatos através de eleições, mas pela fundamentação de suas decisões. Afinal, se a legitimidade democrática provém de eleições, o que explicaria, em uma democracia, juízes não serem eleitos? Melhor dizendo, se o Congresso é eleito pela população e tem por função legislar, qual legitimidade democrática dispõe um Poder Judiciário composto por magistrados que não são eleitos, para proferir decisões que afetam toda a sociedade? Essa confusão decorre da incompreensão de elementos básicos a regimes democráticos. Democracia não é apenas a escolha de governantes por sufrágio universal, tampouco sinônimo da popularidade do governante. Diversos governos autoritários subiram ao poder através de eleições e gozaram de considerável apoio popular. Para regime ser considerado democrático é fundamental reconhecer a dignidade intrínseca ao ser humano, titular de direitos fundamentais e inalienáveis, como sua vida e liberdade. Fundamentais e inalienáveis, mas limitados pela própria Constituição, que não reconhece nem a vida como direito absoluto, ao permitir pena de morte em determinados casos, além de diversas limitações à liberdade, como as penas de prisão. Esses direitos fundamentais foram desenhados em pedra pela Constituição, são cláusulas pétreas e não podem ser suprimidos ou desconsiderados pelos poderes constituídos. Todas as pessoas são titulares desses direitos e seu destinatário é, em especial, o seu maior ofensor historicamente: o próprio Estado. Regimes que negam a dignidade inerente ao ser humano e, com isso, abrem espaço para desrespeitar direitos de minorias, assim entendidos grupos vulnerabilizados por questões religiosas, políticas, raciais ou outras formas de discriminação, se afastam do ideal democrático. Há diversos exemplos de triste lembrança. A democracia estabelece diversos mecanismos de divisão de poder justamente para evitar que as maiorias — já sairão vencedoras das eleições majoritárias para o executivo e terão o maior número de cadeiras no legislativo — massacrem as minorias. A estipulação de limites ao poder punitivo e a divisão de poderes parte da constatação histórica de que a concentração demasiada de poder leva ao abuso. Democracia é o oposto da ditadura da maioria. A ideia de a função jurisdicional configurar poder em países democráticos, não meramente uma agência subalterna ao executivo ou ao legislativo, é justamente a de permitir aos juízes impor barreiras às vontades das maiorias, no que ofendam os direitos fundamentais das minorais. Essa função contramajoritária, que tanto irrita, é a principal razão de ser do Judiciário enquanto poder e o motivo mesmo de se tripartir o governo. Disso decorre a legitimidade democrática dos juízes, por isso não são eleitos e por isso gozam de tantas garantias, necessárias a assegurar sua independência judicial. Por isso o Judiciário é referido como guardião da Constituição. Essa função contramajoritária, de necessidade de respeito aos direitos de todos os cidadãos, permeia todo o texto da Constituição. Está inscrita no artigo 1º, III, da CRFB, que estabelece o princípio basilar da dignidade da pessoa humana. Também em seu artigo 3º, que estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil estabelecer uma sociedade livre, justa, solidária, sem pobreza, sem desigualdades regionais e sociais, além de promover o bem-estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No artigo 5º, de direitos fundamentais, no 6º, de direitos sociais e em toda a concepção de tripartição de poderes, organização econômica e por aí vai. Muito ensimesmados, importante reconhecer que a centralidade dessa necessidade de respeito ao outro, tanto do ponto de vista social quanto do pessoal, não provém de iluminação especial de estudiosos do Direito. Paira pelas artes, outras ciências e religião, pela cultura e também na simplicidade, para todos que desejarem vê-la. A própria ideia do salutar instrumento democrático e contramajoritário, o controle de constitucionalidade, é fruto de decisão judicial, o sempre lembrado caso Madison v. Marbury, proferido pela Suprema Corte dos EUA em 1803. Já no período de 1953 a 1969, há muito assentadas as raízes desse controle, a Corte Warren (1) o utilizou para promover a chamada "Revolução Constitucional" nos EUA. Construções judiciais que estabeleceram parâmetros dentre os mais importantes para assegurar os direitos da população: "é surpreendente, mas real, que muitos dos princípios da liberdade constitucional mais prezados pelos americanos tenham sido criados não pelos fundadores*, mas pela Suprema Corte durante este século (XX)." (SUSSTEIN, p. 122). * Nos EUA se chamam de 'fundadores' os constituintes de 1783. Não se afirma, por outro lado, que em todas as situações de conflito entre cortes constitucionais e outros poderes, assista sempre razão ao Judiciário. É emblemático o embate ocorrido entre o presidente Franklin Roosevelt e a Suprema Corte dos EUA na década de 1930 (2). Utilizado o critério funcional explicitado, forçoso reconhecer a agressividade e equívoco dos posicionamentos da Suprema Corte. Não é objetivo entrar no mérito do julgamento, apenas esclarecer que decidir sobre a constitucionalidade do uso de drogas faz parte da atribuição do STF. Não obstante, como os resultados da decisão podem causar perplexidade, encerra-se o texto com o comentário sobre possíveis consequências jurídicas do julgamento. O STF não analisará a constitucionalidade do tráfico de drogas, que continuará sendo crime, conforme inclusive o mandamento do artigo 5o, XLIII, da CRFB. É possível que o STF reduza o alcance da lei, apenas para descriminalizar o uso da maconha. É plenamente possível determinar retirar alguma droga do campo da ilicitude, até por questão de coerência, pois o critério legal para tornar drogas ilícitas é causar dependência. Diversos estudos afirmam que algumas drogas lícitas, como o álcool, causam mais dependência e danos à saúde que a maconha. Lado outro, caso o STF estabeleça critérios objetivos de quantidade de drogas que a população poderia portar, há situação de aparente contrassenso. Parece incoerente permitir posse de drogas ao tempo que os fornecedores dessas substâncias cometem crime de tráfico, equiparado a hediondo. Portugal adota exatamente essa linha de corte, ao permitir que a população porte determinada quantidade de drogas que, não obstante, continuam proibidas. Sua política de drogas é considerada uma das melhores e mais avançadas do mundo. * Este texto representa a visão do grupo Repensando a Guerra às Drogas, composto por 48 integrantes oriundos da magistratura, Ministério Público, diplomacia, Defensoria Pública, do magistério e da advocacia. Nota. 1 Diz-se corte Warren porque o presidente da Suprema Corte dos EUA se chamava Earl Warren. 2 A ideia de ativismo judicial é igualmente falaciosa e de certa maneira se assenta nessa divisão entre o campo político e outro jurisdicional. Basicamente, uma ideologia se apresenta como neutra e apolítica e acusa seus opositores de estarem agindo politicamente. Na verdade, os dois lados são igualmente políticos. Para explicá-la de maneira adequada, todavia, seria necessário escrever mais algumas páginas. Em suma, a ideia de "ativismo judicial" nasceu na época dos conflitos da Suprema Corte dos EUA com o executivo e o legislativo, de 1905 a 1937. Esse período de decisões costuma ser chamado de Era Lochner. Nessa época, o governo progressista de Franklin Roosevelt criticava as decisões liberais e conservadoras da Suprema Corte, com a afirmação de que seria um governo dos juízes e ativismo judicial. A Suprema Corte se valia de seu controle de constitucionalidade para invalidar leis trabalhistas e diversas medidas do New Deal, o programa econômico de Roosevelt que se mostrou acertado para reduzir o desemprego, por fim à crise de 1929, além de crescer a economia e reduzir desigualdade social. Essa época se encerrou com o julgamento do caso West Coast Hotel v. Parish. A partir, contudo, da Corte Warren, período de 1953 a 1969, houve a situação contrária, uma corte progressista, que reconheceu por exemplo a inconstitucionalidade da segregação racial, no caso Brown v. Board of Education e estabeleceu diversos direitos dentre os mais prezados pelos americanos e, por isso, é citada como a era de “Revolução Constitucional”, como lembrado no corpo do texto. Essa corte progressista passou a ser criticada por políticos e juristas conservadores insatisfeitos com o fim da segregação racial, como o presidente Richard Nixon e o juiz da Suprema Corte por ele nomeado, Antonin Scalia. Como explicado, concorde com a linha de Scalia ou de Warren, as decisões de ambos são políticas e refletem ideologias opostas. O conceito de ativismo judicial é critério imprestável em ambos os períodos citados. Para analisar qual dessas posições estavam corretas nesses conflitos de Roosevelt contra Suprema Corte da Era Lochner; Nixon e Scalia contra a Suprema Corte de Warren, repita-se, é também utilizável o critério funcional citado, de defesa de direitos de minorias e implementação de direitos fundamentais. Referências bibliográficas: SUSSTEIN, Cass (trad. José Adércio Leite Sampaio). A Constituição Parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. ZAFFARONI, Eugênio Raul (trad. Juarez Tavares. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
2023-08-11T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-ago-11/repensando-drogas-juizes-politicos-stf-constitucionalidade-uso-drogas